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Lívia Dantas Enjeitado?

àquela noite, a minha tia deu a ideia de levarmos o nosso filho para a roda dos rejeitados. Cândido começou a brigar com a minha tia no mesmo segundo, eu comecei a chorar, só de pensar que meu filho, minha maior paixão, ia ser tirado de mim, aquilo me dava pânico, não consegui mais ficar na mesa de jantar, me retirei e fui deitar torcendo para quando acordar não lembram daquele ocorrido.

A tia Mônica não tirava a ideia de colocar a minha criança na Roda dos rejeitados, ela dizia que devíamos deixar esse filho para trás, e, assim que tivéssemos dinheiro, teríamos um novo filho. Teve uma determinada hora que ela parou de implorar e começou a ameaçar, cada vez ameaças maiores. Depois de sermos muito pressionados decidimos dar o bebê para a Roda dos rejeitados.

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O grande dia chegou, o dia em que ia ver a carinha do ser que eu mais amava no mundo, mas era também o dia que iam arrancar o meu bebê de mim.

A dor era suportável mas muito forte, depois de meia hora de muito esforço ele nasceu: era um menininho, meu maior amor. Pena que não consegui ficar admirando-o por muito tempo, minha tia o arrancou dos meus braços, e deu-o para Cândido levá-lo. Lívia Y Dantas

Enjeitado?

Lembro-me de quando casei-me com Candinho, tia Mônica me alertara sobre sua fama de vadio mas não dei ouvidos, o desejo de casar era maior. Na época em que o conheci estava para fazer 22 anos, quase certa de que nunca me tornaria noiva, mãe. Porém, no baile de nosso primeiro encontro soube que ele se casaria comigo, agarrei-o então com todas as minhas forças. Na época ele arranjou um emprego de entalhador para pedir a minha mão, apesar da aparente insatisfação tia Mônica não deu palpite, aceitei a proposta com imensurável satisfação. A festa foi boa, as primeiras semanas foram as mais felizes de minha vida até então.

Queríamos um filho, tia Mônica não gostou da ideia e dizia que uma criança só traria fome, principalmente depois que Cândido deixou o ofício de entalhador. Além disso, os meses passavam e eu acabara de completar 23 anos, a ideia de não poder engravidar me aterrorizava constantemente. Sabia que antes da criança nascer ele deveria ter um emprego certo, como dizia titia. Não gostava da ideia de meu marido ser um caçador de escravos, um ofício tão violento, cruel, mas o que poderia fazer? Era o único ofício que aguentava e precisávamos do dinheiro.

admitir um breve alívio. Uma criança, eu pensava, um sucessor para Candinho, um ser que seria amado e cuidado por pai e mãe. Animada, contei a notícia para titia, ela, amarga, soltou premonições pessimistas. Não pude acreditar, como ela podia ser tão seca e tão insensível? Me convenci de que era apenas uma maneira de extravasar o fato de nunca ter conseguido ser mãe. Candinho, por outro lado, ficou encantado. Assim como eu, ele sabia que agora teria de trabalhar mais do que nunca, então começou a passar mais horas longe de casa. Eu trabalhava incessantemente, tentando economizar tecido e retalhos para o enxoval do bebê. Os meses se passavam e a barriga crescia, nossa situação piorava. Admito que em certas noites o medo de que o trabalho se revelasse inútil me assombrava. Desse modo, me punha a trabalhar mais e mais, se não para o meu filho, para o marido, eu pensava.

Agora faltava pouco para o nascimento da criança. Passávamos fome, havíamos perdido a casa e Candinho incansavelmente procurava por anúncios de escravos fugidos. Ele estava aflito, deixara de rir como antes, fora humilhado. Eu, tola, não pensei nas consequências de uma gravidez. Estava tão preocupada em não acabar como a tia Mônica, sozinha...fui egoísta. Mas seria mesmo tão ruim querer uma criança para amar como eu nunca havia sido? Pensava,enquanto cosia.

Titia dizia que teríamos de levar a criança para a roda dos enjeitados, para que esta não sofresse por nossa miséria. Mas como poderíamos, Candinho faria tudo em seu alcance para evitar isso e a simples ideia de meu filho crescer sem pai nem mãe me era repugnante, um destino cruel. Fui criada por tia Mônica e muito poucas são as memórias de meus pais. Não sei ao certo por que me deixaram.

De minha mãe, lembro de seu doce rosto, de seu colo seguro e das cantigas que murmurava em meu ouvido quando eu chorava. Recordo menos ainda de meu pai, não posso formar uma imagem nítida de seu rosto. Sei que contava para meus irmãos histórias sobre meu avô, que fugiu de seu senhor e conseguiu ganhar a vida na vila. Ao relembrar disso, confesso que senti um pouco de vergonha de ser esposa de Candinho, mas não há nada que pudesse fazer agora, a barriga era grande e o tempo escasso.

A cada dia que passava, sabia que estava mais próxima de perder meu filho. Sabia que se o medo se concretizasse, perderia Cândido e ele a mim. Tia Mônica manteve-se, ou pelo menos parecia, firme dizendo que ela mesma levaria o rebento à roda. Como ela poderia levar uma criança a um lugar sem amor, onde ela não teria lar e precisaria trabalhar duro desde cedo? me perguntava inconformada.

Certa tarde no celeiro emprestado, enquanto cosia, senti a criança, ela estava para chegar. Neste momento o desespero se apossou de meu corpo e se já não estivesse sentada, teria caído. Por longos segundos a respiração me foi tomada. Tia Mônica, trabalhando ao meu lado, olhou-me séria e, calmamente, pôs-se a preparar as coisas para a chegada da criança.

Continuei ali imóvel, meu filho está indo embora, pensei. Como poderia chamá-lo de meu se antes mesmo que pudesse conhecê-lo seria tirado de mim. Como um reflexo, um pensamento cruel passou por minha mente ainda atônita, não quero que ele chegue. Ao repetir essas palavras em minha cabeça fui tomada por vergonha, raiva, era o meu filho e vê-lo vivo e saudável seria uma benção, deveria me conformar.