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Daniel Santiago
Ficção dos irmãos gêmeos Daniel Míope e Santiago Chapéu I 2007 I fotografia digital I Col. do artista Daniel Santiago I Foto: Daniel Santiago
Eduardo brandão1
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curador
A partir dos anos 1980 temos uma produção conhecida como “foto construída”, na qual ações fotografadas em cenários criados por artistas contrapõem a realidade à ficção, obrigando o espectador a repensar o caráter documental da fotografia. Herdeiro dessa produção artística, Daniel Santiago cria dois personagens, dois irmãos gêmeos fotógrafos, cada qual com seu trabalho autoral.
Daniel Míope e Santiago Chapéu são fruto de uma pesquisa histórica, filosófica e estética feita pelo artista dentro da herança fotográfica. No programa Portfólio,2 os irmãos fotógrafos apresentam uma série de retratos que fazem um do outro e instigam o espectador a questionar autoria e originalidade na produção artística.
Daniel Míope é herdeiro da fotografia clássica. Influenciado por trabalhos modernos, como os de Robert Frank e Duane Michaels, sua investigação branca e preta da natureza é feita através de lentes de uma câmera analógica. Esse trabalho é catalogado em livros-diários com textos, desenhos e outros documentos da intimidade.
1 Nota da organizadora: texto publicado originalmente no catálogo da exposição de Daniel Santiago no Portfólio do ano de 2007 e no do Portfólio Itinerante do ano de 2008 [exposição realizada de 15 de julho a 26 de agosto de 2007 no Itaú Cultural, em São Paulo/SP, e de 27 de junho a 27 de julho de 2008 na itinerância para o Museu da Universidade Federal do Pará (UFPA), em Belém/PA]. Para esta publicação, o texto passou por outra revisão, seguindo as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. 2 Nota da organizadora: o curador substitui essa informação por “No programa Portfólio Itinerante” no texto para o catálogo da exposição de Daniel Santiago nesse programa.
Santiago Chapéu acredita na imaterialidade das imagens. Entusiasmado com pesquisas espaciais e questionador de seu lugar no mundo, ele mapeia seu território com uma câmera de vídeo, reconstruindo paisagens alteradas por câmeras digitais, e as apresenta em monitores.
Míope e Chapéu nos apresentam questões da fotografia contemporânea. Juntos sugerem que as muitas e diferentes linguagens criadas ao longo da história da técnica fotográfica são o mais rico legado desse meio artístico.

Daniel Míope I 2007 I diários I Col. do artista Daniel Santiago I Foto: Daniel Santiago

Daniel Míope I 2007 I diários I Col. do artista Daniel Santiago I Foto: Daniel Santiago
Foto: Daniel Santiago I Col. do artista Daniel Santiago I diários I 2007 I Daniel Míope


brevidade1
Edward Pimenta
Os argonautas do cerrado acrescentaram as iniciais P e R às antigas inscrições daquelas pedras. Emborcaram cantis, jantaram pombos, esfolaram répteis, roubaram diesel, compraram brigas, campearam e riram, riram muito, gostosamente, juntos. Abraçaram-se sempre que precisaram ter calor e carinho um do outro. Mas a vida os separou. E agora só havia a saudade e a espera.
Era um dia de sol daqueles. Em minutos, a brevidade estará na mesa, um primeiro naco partido, fumegando, como os que Proc sempre preferiu. A recordação do sorriso do outro era alimento para ele, agora com a faca de serra em punho, nas lides da cozinha, matutando se conviria mesmo passar um café, andando de um lado para outro. Preparando.
Café no ar, vai ao quarto ver as roupas. O cheiro do corpo está impresso na colcha de algodão, amarelenta, por sobre a cama. Nela estão estendidos o safári e a camisa alvejada de colarinho, as roupas de que Proc sempre gostou. De volta à cozinha, aí está a brevidade, para quem quiser dela servir-se. Arranjar as flores, pensou, e a música.
1 Nota da organizadora: texto publicado originalmente no catálogo da exposição de Daniel Santiago no Portfólio do ano de 2007 e no do Portfólio Itinerante do ano de 2008 [exposição realizada de 15 de julho a 26 de agosto de 2007 no Itaú Cultural, em São Paulo/SP, e de 27 de junho a 27 de julho de 2008 na itinerância para o Museu da Universidade Federal do Pará (UFPA), em Belém/PA]. Para esta publicação, o texto passou por outra revisão, seguindo as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Os odores engolfaram tudo, quentes, impregnaram-se no vermelho do chão e fizeram-no relembrar a viagem, o preciso senso de direção do outro, a destreza no fazer e refazer os nós, os músculos dançando a cada movimento na trilha, os laços nos cadarços, o lenho, o fogo. O relógio marcava 4 da tarde. Era quase a hora. Naquele impaciente ir e vir, ele notava no espelho da sala os traços de um menino, mas sabia que ali estava um homem em cãs, Rep, o reptílico, no coro dos garotos da escola. Repleberry Finn, por assim dizer, nos livros de história.
Como seria bom vê-lo chegando de novo. Trazendo histórias, histórias sempre. Às 5, não mais que de repente, tocam a campainha. Era como se ele não a ouvisse. Foi ao quarto e, convulso de choro, abraçou o cadáver do irmão, bem-posto na cama, com um resto fixo daquele sorriso. Estavam de novo juntos, Rep e Proc, como no nascimento estiveram em 15 de novembro de 1935, Proc. da Rep. do Brasil nas calendas oficiais. Agora, só havia a saudade.
Santiago Chapéu I 2007 I imagens digitais I Col. do artista Daniel Santiago I Foto: Daniel Santiago


Santiago Chapéu I 2007 I imagens digitais I Col. do artista Daniel Santiago I Foto: Daniel Santiago

Santiago Chapéu I 2007 I imagens digitais I Col. do artista Daniel Santiago I Foto: Daniel Santiago
Sobre Edward Pimenta1
Nelson de Oliveira curador
Vivemos no mundo da complexidade social, política e econômica, vivemos sob o imperativo do pensamento complexo. Mas não vamos confundir “complexo” com “complicado”. Etimologicamente, “complexo” significa “abraçar”, “enlaçar”, “entrelaçar” e “estreitar”. Aí está o sentido afetivo e até mesmo erótico dessa palavra atualmente tão em voga. Aí está o sentido das fotos de Daniel Santiago e do pequeno conto de Edward Pimenta sobre os irmãos Rep e Proc, argonautas do cerrado. Ao falar, por exemplo, da complexidade da literatura, da ciência ou da globalização, é importante não perder de vista esse abraço, esse entrelaçamento emocional e intelectual.
As imagens, as ideias e as personagens de Brevidade são coordenadas pelo nonsense. Em arte e literatura, o nonsense não é apenas o irmão gêmeo do absurdo e do estranho. Ele também é a reunião de pessoas e
1 Nota da organizadora: texto atualizado pelo curador em 15 de junho de 2009 a partir do original publicado no catálogo da exposição de Daniel Santiago no Portfólio do ano de 2007 e no do Portfólio Itinerante do ano de 2008 [exposição realizada de 15 de julho a 26 de agosto de 2007 no Itaú Cultural, em São Paulo/SP e de 27 de junho a 27 de julho de 2008 na itinerância para o Museu da Universidade Federal do Pará (UFPA), em Belém/PA]. A revisão do texto atualizado segue as normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
eventos de diferentes épocas e lugares, sob uma nova lei da causalidade. Como nos sonhos, o nonsense condensa e desloca múltiplos sentidos ocultos, cabendo a nós reconhecer e desvendar cada um deles.
Rep e Proc (Castor e Pólux?) não são figuras de carne e osso, são figuras poéticas. São ideias com características humanas, inseridas num contexto simbólico que pode significar muitas coisas. Esse contexto reúne, de maneira criativa, vários níveis da natureza humana, e Brevidade é a expressão singular dessa reunião. Aqui a complexidade é dupla, ela está no conto e em sua leitura. O sentido que determinado leitor atribuir aos detalhes da narrativa jamais será exatamente o mesmo atribuído por outro leitor. Pensando bem, ela é tripla. Afinal, ela também está no diálogo (no entrelaçamento?) entre o conto e as fotos que o provocaram.
I Foto: Daniel Santiago I Col. do artista Daniel Santiago fotografia digital I I 2007 Ficção dos irmãos gêmeos Daniel Míope e Santiago Chapéu

