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A CONTRANARRATIVA POÉTICA DE GUSTAVO SPERIDIÃO
from Gustavo Speridião | Manifestação contra a viagem no tempo - Centro Cultural Justiça Federal
by AREA27
Evandro Salles Curador
1. DESCRIÇÃO DO SENTIDO
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Em um plano – abre-se um amplo espaço de convergências e possibilidades poéticas.
Realidade e ilusão, tempo passado e tempo futuro, a inevitabilidade do agora. Linha, palavra, mancha e silêncio. Erros, acertos, descobertas, destruições, abandono, entrega, paixões, apropriações, revelações, revolução e classe operária. Sonho de libertação, a tragédia do agora. Como fragmentos de um corpo, surgem partes de diferentes sistemas de linguagem, como instrumentos de aferição e construção poética. Aferição da veracidade da língua, da fala em construção no seu passo a passo entre vida e morte, entre inconsciente e razão, entre entendimento e pura entrega. A construção poética se revela então como fazer fundamental na elaboração psíquica e na razão mesma da arte, do fazer arte. Dupla função constituinte.
No princípio, há um método de abrir o plano ao acaso do inevitável, de silenciar as vozes rasas para que, do mais fundo, possa surgir o que diferencie na própria intenção o verdadeiro do falso. Como se fosse um chamado ritual à voz de Deus. Mas a voz que surge é a voz do dentro. Do dentro do corpo, do dentro da memória, do dentro do tempo, do dentro do silencioso e do impalpável. Esse dentro onde é gerada a palavra verdadeira. De lá vem o vento que sopra a temporalidade do definitivo e eterno agora.
Então as falas se sucedem, improváveis e imprevistas. E o poema se constrói como um inventário onde cabe o mundo todo, cada coisa vivida (e vívida) do mundo. Toda e qualquer coisa, desde que cada coisa seja colocada a partir de uma ordem disruptiva, uma ordem de instauração da verdade no seu sentido de legitimidade da fala interior, de sincronicidade com o real do agora.
Mas o atravessar do tempo com a aferição do inconsciente exige uma simplicidade específica e transparente. O pincel ou o lápis agem como uma faca, cortando a superfície do plano em gravações definitivas, irretocadas. Suas referências históricas são explicitadas. Suas apropriações, reveladas. Suas palavras são ditas (e escritas). Seus erros são incorporados ao lado de seus acertos. Nada há a esconder. Revelam-se as verdades cruas, as ilusões vãs ou as realidades cruéis. Transitamos então pelos caminhos de nossa própria percepção. Entre o olho e o pensamento, transitamos entre o ver e a palavra, entre o olhar e a mente. Mas estas imagens são mais rápidas que o pensamento. Não nos iludem, mas nos trazem para diante delas próprias, de sua veracidade irredutível e essencialmente poética. Somos incorporados a essa linguagem. Ao vê-las, nos tornamos parte de seu alfabeto, de sua língua. Somos incorporados à sua contranarrativa, pois dela não damos seguimento (ou conta), a não ser no plano poético, a não ser como elementos de sua poética. Olhadores da fala. Ouvidores de imagens. Navegamos.
Nas articulações da imagem – a palavra. Sobre a palavra – um oceano. Navegamos. O espaço é pleno ao olhar, pleno ao capturar o olhador. Soletramos o Poema escalando o olhar que o articula. Linhas que se desdobram em oceano. Linhas, linhas, linhas. Manchas. Letras. Com elas, navegamos.
2.SOBRE DOIS FILMES
Em meio a um grande número de pinturas e desenhos, aqui serão vistos dois filmes extraordinários de Speridião: Estudos Superficiais, média-metragem de 2013 que levou vários anos sendo elaborado, e Time Color, curta-metragem de 2020. Vertoviano por excelência, Estudos Superficiais é um filme de sofisticada elaboração construtiva: não narrativo, planos desenhados entre contrastes e modulações musicais de luz e sombra. Cotidiano assombroso que se desdobra diante do olhar desperto pela extrema beleza das imagens. Já Time Color, ainda que seguindo o rigoroso olhar construtivo do artista, mergulha no estilhaçamento da narrativa e da imagem através da radical superposição de planos e vozes, o que o faz uma paráfrase da linguagem de rede. Filmes-pensamento que perpassam de forma vertiginosa a história do cinema, da fotografia e da arte contemporânea
3. DESCRIÇÃO DO FATO
Manifestação Contra a Viagem no Tempo apresenta uma grande e vigorosa seleção da produção recente de Gustavo Speridião. Reunindo pinturas, desenhos, colagens, filmes, e objetos, esta é uma mostra antológica de um artista denso e profícuo, fortemente inscrito nas raízes construtivas da arte. O construtivismo que – desde Malevich – busca a “supremacia do sensível” e que, no Brasil, desde Wlademir Dias Pino faz aproximar em mútua convergência imagem e palavra em fusão poética. Este constitui o seu chão, por onde caminha e transita. E transita de forma surpreendente entre a pintura, o desenho, a construção da imagem fotográfica e cinematográfica, o universo gráfico e o poema. Ancorando seu universo em fontes e práticas estruturantes do pensamento estético contemporâneo, bem como em uma rica aproximação e troca entre arte e política, Speridão tem o poder de fazer interagirem na arte o pessoal e o coletivo, o íntimo e o público, o romântico e o dramático. Com pinturas de grandes dimensões, de até 6 metros de comprimento, e outras pequenas construções em papel, pano ou gesso de poucos centímetros, Manifestação Contra a Viagem no Tempo, de Gustavo Speridião, apresenta um artista único na plenitude de seu fazer.
4. DESCRIÇÃO DO TÍTULO
O título dessa exposição foi trazido pelo curador de uma colagem do artista que, sobre uma foto impressa em jornal de uma manifestação, escreveu com tinta a frase Manifestação Contra a Viagem no Tempo. Trata-se, segundo o autor, de uma referência às alegações reacionárias e obscurantistas surgidas no discurso da extrema direita brasileira, glorificando períodos obscuros e ditatoriais da história recente do Brasil. Particularmente exemplar, esta abordagem poética com que o artista trata o episódio retira do campo da crueza política uma perspectiva poético-temporal que desestabiliza e desaliena as mistificações reacionárias. Para enfrentar a desmemória de um falso passado, propõe e nos remete ao real do aqui e agora. Imagem e palavra se articulam na construção de um terceiro sistema de linguagem: o POEMA.