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Crónica de um comboio escalfado VII

Eram 06h23 da manhã, dia de nevoeiro cerrado. O pouco que se vislumbrava da automotora na estação de Beja, indiciava mistério perturbador. Passageiros, não deveriam ser mais de meia dúzia. Carlinhos Mamã era um deles. Trinta e três anos, a idade de Cristo quando pregado na cruz, a idade que tinha quando andou a primeira vez de comboio sozinho. Educado com muito amor, carinho e possessão por parte de sua mãe, nunca foi dotado de autonomia nem motricidade para tomar qualquer decisão ou acção. Aliás, conta-se que até aos dezoito anos de idade, a suposta maioridade, nunca teve ordem para limpar o rabinho, sempre que ia à casa de banho desaguar as impurezas do interior. Era sempre a sua mamã maternal que assumia todas as acções fitossanitárias do seu rebento. Na escola, praticamente não existia. Festas de aniversário dos colegas nunca ia, saídas à noite nem sabia, namoradas nem pensar! Resultado: o moço era tão inanimado de carácter, que mais parecia filho da tensão baixa e da anemia. Apesar de viver enclausurado na casa de sua doce mãezinha, às vezes tinha ordem de ver televisão. Foi num desses dias de liberdade eufórica que viu um programa sobre comboios. De como eles rasgaram serras, planícies e montanhas, para ligar o mundo ao mundo. De como havia um universo para além dos cuidados intensivos prestados pela sua progenitora. E se havia um som que reconhecia, era o do apitar do comboio-correio, às duas da manhã. Som que ecoava no silêncio da cidade à hora em que toda a gente dormia e que lhe acendia no coração uma vontade imensa de partir e dobrar o cabo das suas tormentas. Assim pensava, assim sentia e não aguentou mais… Uma noite, antes de se deitarem, depois de mais um episódio da telenovela devorado com profícua devoção, serviu um chá à sua doce mãezinha - “Cuidado, meu filhinho, não se queime!”, advertia a pôrra da velha, não fosse o menino sofrer danos que desvalorizassem consideravelmente o seu biblot de porcelana. A criança de barba feita tomou a decisão de enfiar, sem que ela notasse, uma dúzia e meia de comprimidos para dormir no chazinho de camomila. Não tardou muito até que a velha tombasse. Carlinhos Mamã, ansioso, não conseguiu pregar olho uma noite inteira. E, assim, lá estava ele, às 06h23 da manhã, num dia de nevoeiro cerrado, pronto para embarcar na primeira viagem de sua vida a caminho de Lisboa Oriente. O revisor não deixou de notar na cara de parvo estampada no rosto de quem na primeira vez na vida ia ver o mundo. Era um sorriso de orelha a orelha, petrificado em cada paragem e nova partida. Ouvia os anúncios das novas estações como música. As pessoas a entrarem e a saírem assemelhavam-se-lhe a melodias em movimento. As paisagens, um encanto. Ainda chamou o revisor para que lhe esclarecesse uma dúvida, “Porque é que a paisagem está sempre a mexer-se?”. Se ela está sempre em movimento ao lado da carruagem, é porque também quer viajar de comboio! Deixem-na entrar!” O revisor estava boquiaberto, não queria acreditar na interpelação a que fora sujeito. Não imaginava que fosse possível que alguém, do alto da sua superlativa ingenuidade, exigisse estar sentado no assento da automotora, com um rebanho de ovelhas a seu lado, ou com um olival ocupando toda a composição. A natureza como passageiro! Oh diabo, de onde veio esta peça! Interrogava-se o profissional da CP.

Jorge Serafim Humorista

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