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Quem é o homem oco?

2021 | resenha

Nós somos os homens ocos Os homens empalhados Uns nos outros amparados O elmo cheio de nada. Ai de nós!”

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Assim inicia T.S. Eliot, famoso poeta inglês, o poema “Os Homens Ocos” de 1925. Como ele próprio acreditava que um bom escritor nunca escrevia sozinho — mas sempre em companhia de outros grandes pensadores — o início deste poema se refere à morte do coronel Kurtz, personagem do clássico “Coração das Trevas” de Joseph Conrad. O livro baseia o filme “Apocalypse Now” (1979) e o que ambos têm em comum é a representação do indivíduo e sua capacidade humana para o horror em busca de poder e domínio.

No filme, o poema de Eliot é declamado por Kurtz no momento de sua morte, encerrando a trama tão conturbada ao ponto dos críticos classificarem-na semelhante à Odisseia de Homero. Entretanto, não há nada novo debaixo do sol. É perfeitamente tangível tal análise visto ser um dos mais celebrados filmes sobre os horrores da Guerra do Vietnã em 1955.

A Guerra, protagonizada pelas forças norte-americanas em prol do sul-vietnamita, aconteceu por motivos padrões em meio a um mundo polarizado: domínio territorial e, consequentemente, poder. Sentindo ameaças ao longe, os Estados Unidos não se precaveu e foi assertivo em todos os combates. Visando derrotar a ideologia comunista na Ásia, provocou mortes brutais e atrocidades do outro lado do Ocidente, as quais são simbolizadas no filme de Francis Ford Coppola.

Inspirado nas águas de Conrad, a obra cinematográfica pode ser esclarecida criticamente com os escritos de Edward Said, em seu “Cultura e Imperialismo”. Como ele mesmo dizia, o principal troféu na disputa imperialista é a terra: quem a possui, quem a reconquistou e quem irá explorá-la — valendo-se de toda sorte de forças e sem fraquejar diante do mais “fraco”, “bárbaro”, “primitivo” e “necessitado de civilização”.

Sua crítica não se limita às nuances do processo imperial entre dominante e dominado, mas também às narrativas, romances e produções culturais que explicitam ou, até mesmo, ignoram tal conflito. Na tentativa de buscar um novo olhar para a cultura do Ocidente, Said tece críticas ao próprio Conrad em “Coração das Trevas”, o qual é dito como imperialista e não-imperialista simultaneamente por evidenciar as barbaridades humanas cometidas em meio à guerra e rivalidades de poder, e ser um “homem cuja visão ocidental do mundo não-ocidental está tão arraigada a ponto de cegá-lo para outras histórias, outras culturas e outras aspirações”.

É nesse ponto que todas as obras citadas anteriormente se cruzam concomitantemente. Como bem disse Said, “Nenhum americano ficou imune a essa estrutura de sentimentos”. Isto é, assim como Conrad e tantos outros artistas ocidentais negligenciaram a visão dos colonizados diante da batalha imperialista, de certa forma, todo o Ocidente possui o mesmo olhar cauterizado. “Somos os melhores, estamos destinados a liderar, representamos a liberdade e a ordem”, somos os homens ocos de T.S. Eliot.

O coronel Kurtz e o tenente-coronel Bill Kilgore são as figuras que melhor simbolizam o que é ser um homem oco, como o próprio nome já diz — vazios, superficiais, materialistas, indiferentes com o mal, corruptos, incapazes de algum sentimentalismo humano primordial, “Fôrma sem forma, sombra sem cor, força paralisada, gesto sem vigor”.

A famosa frase “Eu adoro o cheiro de napalm pela manhã. Cheira a… vitória” dita pelo tenente-coronel é a síntese de todo o pensamento imperialista na visão do dominante. Sendo o napalm um armamento militar, Kilgore comemora a chacina acontecendo em território vietnamita enquanto surfa as melhores ondas da região em meio à sangue e caos, literalmente, sendo apenas um prelúdio do que viria a ser o comando de Kurtz. Dessa forma, “Apocalypse Now” nos revela aquilo que os olhos cegos da sociedade ocidental em diversas vezes não é capaz de ver.

Identificados os infortúnios presentes, podemos prosseguir com o poema até a epígrafe V. Aqui, Eliot nos permite enxergar o homem oco como uma possibilidade a ser escolhida ou recusada diante da estrela perpétua e da rosa multifoliada — os olhos da justiça que tudo vêem. Como um preenchimento mediante a sensibilidade humana e o novo ângulo proporcionado por Said, permanece, então, a escolha de cada indivíduo de decidir deixar para trás essa visão ultrapassada das sociedades orientais e ocidentais.

2021 | resenha

QUEM É O HOMEM OCO?

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