14 minute read

Grito do Povo da Zona Leste

PRISCILA D. CARVALHO é assessora de comunicação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e integrante do Intervozes

“O Grita Povo a gente lia. Por causa desse envolvimento que a gente tinha na comunidade e sabia que de lá vinham as informações. O Grita Povo, de uma forma muito mais politizada, com experiência do que fazia, tinha as informações que nós da rádio gostaríamos de passar para a comunidade. O que estava acontecendo no mundo, no Brasil, e os assuntos da nossa comunidade. Era o que a gente queria fazer na rádio. Logicamente isso contribuiu, porque a referência de todo mundo acabou sendo o Grita Povo, era o acesso que nós todos tínhamos ao que acontecia em todo lugar. Um jornal até pequeno, mas com muita informação”.

Advertisement

Quem conta a história é Sueli Maria de Almeida. Ela tinha 22 anos quando fazia um programa de uma hora todo sábado de manhã, numa rádio-corneta, instalada na torre de uma igreja do Jardim Verônia, bairro da Zona Leste de São Paulo. Era 1987. O Grita Povo, jornal que ela cita, existiu de 1982 a 1991 e acompanhou toda a mobilização social da época: ocupações do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), luta contra os problemas causados pelas enchentes, o Movimento Contra o Custo de Vida, as eleições, greves, o processo da Constituinte e tantos outros processos de conquista de direitos em um momento em que o fato de ter direitos, por si só, era notícia.

O Grita Povo era planejado e impresso em uma casa ao lado da paróquia de São Miguel Paulista, onde funcionava o Cemi (Centro de Comunicação e Educação Popular). Lá, a comunicação era trabalhada como instrumento de apoio aos movimentos sociais.

“Chega um momento em que a gente começa a perceber uma dificuldade muito grande na comunicação entre esses diversos grupos, movimentos, comunidades. Daí surge a idéia de criar um centro que, de alguma maneira, sistematizasse essas experiências. E que, ao mesmo tempo, propusesse, de uma forma mais organizada, mais didática, a questão da educação popular, do método Paulo Freire, e a questão da comunicação. Não só criar um veículo de comunicação que servisse a esses movimentos e comunidades, mas ensinar ao pessoal dos grupos a trabalhar melhor a comunicação como uma ferramenta indispensável para o crescimento e fortalecimento dos movimentos”, lembra Carlos Strabelli, ex- padre que foi um dos coordenadores do Cemi e do Grita Povo.

O bairro São Miguel Paulista cresceu a partir da década de 1950 repetindo o modelo de expansão periférica da cidade de São Paulo. Para fugir dos aluguéis caros, a população comprava – ou ocupava – terrenos distantes do Centro, em bairros com muito pouca – ou nenhuma – estrutura urbana. Em 1950, eram 16 mil moradores; em 1960 eram 66 mil e, entre 1970 e 1980, o número de pessoas cresceu de 236 mil para 320 mil.

Ao mesmo tempo em que a cidade atraía imigrantes com ofertas de empregos e promessas de ascensão social, colocava grande parte dessa população em espaços desprovidos de estrutura urbana básica. Isso fez com que a construção da infra-estrutura para acesso a água, luz e esgotos fosse posterior à chegada dos moradores e só viesse graças a esforços coletivos. Uma das conseqüências do aumento intenso da população foi o crescimento – não menos intenso – da organização dos moradores para obter serviços públicos, principalmente no final da ditadura militar.

Outra característica dessa mobilização foi a presença da igreja católica. Seus setores progressistas abriram espaço para a organização da sociedade civil nas pastorais sociais, nas paróquias e nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Nestes espaços, foram organizados pequenos grupos, nos quais se valorizava a proximidade entre os participantes e a atuação dos leigos.

Sueli conta a experiência de Ermelino Matarazzo, bairro vizinho a São Miguel. “Quando a gente começou, Ermelino Matarazzo era muito diferente do que é hoje. Todo esse processo de organização das comunidades influenciou muito porque quem estava na comunidade também estava nos movimentos, sabe? Leite, moradia, asfalto, saúde, creches, educação, eram as mesmas pessoas que estavam. Foi uma fase em que a gente começou a brigar pelos direitos, e a gente instigava a população a participar de tudo. Tudo foi feito desse período pra cá. A população foi muito importante nessa pressão contra o governo pra construção desses benefícios”.

Ex-seminarista e depois fotógrafo de movimentos sociais, Douglas Mansur acredita que “o mais forte e importante daquilo era a integração que gerava entre as pessoas. Elas abriam suas casas umas para as outras, isso era mais importante que água, esgoto”.

Em 1987, segundo o pesquisador Pedro José Gomes, existiam 51 paróquias e 179 CEBs na Região Episcopal de São Miguel Paulista, que compreendia 10 bairros da Zona Leste e que tinha um bispo progressista, Dom Angélico Sândalo Bernardino.

Em 1981, foi criado o Cemi, com o incentivo de Dom Angélico, formado em jornalismo, e com o trabalho de jovens da região, estudantes de comunicação e seminaristas engajados. Muitas dessas pessoas, como os jornalistas Regina Vilela e Gilberto Nascimento e o fotógrafo Douglas Mansur, continuam atuando em ONGs, movimentos sociais e movimentos ligados às comunicações e artes. O Cemi contava com uma gráfica, um estúdio de rádio, equipamento de vídeo, a redação de um jornal, um centro de documentação e um núcleo de cursos que trabalhava com o método Paulo Freire. Havia também uma Kombi que rodava pelas comunidades carregando equipamento para projetar vídeos produzidos pelo Cemi ou por algum outro centro de comunicação popular da América Latina. Depois dos vídeos, discussões com as comunidades.

“Estava começando o vídeo naquela época. Nós gravamos e editamos a minissérie Morte e Vida Severina, que passou na Globo. Muito bem feita por sinal. A gente deve ter passado isso em mais de 100 lugares. A gente tinha o aparelho, tinha a fita, pegava uma televisão e passava por etapas, e toda a discussão vinha em cima das idéias do João Cabral de Melo Neto, a questão do retirante, da terra, da injustiça, da exclusão, e ao mesmo tempo a garra, a luta daquele cara que quer superar. Isso foi pra gente, a comunicação como ferramenta pro fortalecimento do movimento”, lembra Carlos Strabelli.

Havia cursos de técnicas de montagem de jornal mural e de como fazer cartazes para a divulgação de atividades (encontro, show, outro curso) usando técnicas caseiras e baratas para tiragens pequenas. E cursos de análise crítica da comunicação, falando sobre o que se via nos jornais, na TV, na publicidade. Participavam das atividades os coordenadores de grupos de rua, de pastorais e lideranças dos grupos de jovens.

Strabelli conta que a visão de comunicação como ferramenta veio da experiência nos movimentos. “As filipetas, os folhetos, eram sempre muito mal-feitos, a linguagem era inadequada. A idéia era: será que a gente não pode juntar a experiência que temos, bus-

car outras experiências de quem melhorou linguagem e maneiras de fazer comunicação, e criarmos um centro que aglutine e espalhe isso? Foi aí que chegou a Regina Festa, jornalista que estava na região nessa época e que conhecia algumas experiências na América Latina, principalmente Peru e Colômbia, onde havia centros de comunicação popular importantes”.

“A verba para financiamento do Cemi veio através da Misereor [instituição da igreja católica alemã]. Mas, em época de ditadura, nem mesmo o aval da igreja era garantia de permissão para que o financiamento para projetos como esse chegasse”. Strabelli lembra que houve interferência da embaixada brasileira para que não financiassem. “Quando souberam que a Igreja de São Miguel, de Dom Angélico, que dava muita dor de cabeça pra eles, ia receber um financiamento de U$ 300.000 pra três anos, houve uma tentativa de fecharem a torneira. Demorou quase dois anos esse processo, com cartas, pressão da Igreja de São Paulo. Nesses dois anos, catamos uma sala da torre da Igreja de SMP, tiramos as pombas e montamos o nosso QG. Paróquias que tinham papel doavam papel. Tínhamos um mimeógrafo elétrico, à tinta. Aprendemos no Peru técnicas para desenhar em estêncil e saiam boletins interessantes. Foi aí que Dom Angélico falou: ‘vamos botar um jornal’”.

O objetivo do jornal era retratar as lutas do movimento, além de ser material para formação política e divulgação de notícias que não saíam na grande imprensa. Depois de reuniões e desentendimentos para escolher um nome (“tudo era muito democrático naquela época”), ficou-se com Grita Povo, sugerido por Dom Angélico.

“A gente montava naqueles espelhos de máquina de escrever elétrica, letraset pros títulos, desenhos, tudo muito artesanal. Saímos com uma tiragem de 2 mil exemplares”, lembra. Cada paróquia recebia uma quota de jornais e o padre e algumas pessoas da comunidade garantiam a venda. “Tinha retorno, tinha sempre alguém da comunidade que avisava o jornal do que ia acontecer. Então, a gente pautava e ia fazer as matérias. E tudo isso sempre acontecia nos finais de semana, que era quando o pessoal dos movimentos saía pra lutar pelos direitos, porque todo mundo trabalhava. As coisas fervilhavam no fim de semana. De segunda a sexta, todo mundo levava sua vidinha normal.

[Reprodução]

Em pauta no Grita Povo: dos bairros da Zona Leste paulistana a Brasília

Eu trabalhava num banco”, conta a jornalista Regina Vilela, na época ainda estudante.

O jornal cobria manifestações, divulgava reuniões e atividades nas comunidades. Durante um longo período, a página central falava de cada um dos 10 setores em que era organizada a diocese. O Grita Povo dava notícias de lutas e de direitos, abordava temas nacionais e internacionais, principalmente latino-americanos.

A capa da edição número 77, de agosto de 1987, dá idéia dos temas tratados pelo jornal. A página foi dividida em retângulos. No primeiro deles, destaque para o texto “Contra a política atual: Greve Geral dia 28/08/87” e um desenho de grevistas com faixas: “Não Voltar ao FMI – Direito dos Trabalhadores – Pagamento das perdas salariais – Reforma Agrária – Repúdio ao Plano Bresser”.

No retângulo abaixo: “Plenário Pró-participação Popular na Constituinte - A entrega estadual das assinaturas de iniciativa popular”. E, distribuídas em retângulos menores, as chamadas: “Assembléias nas favelas”, “Movimento dos Sem Terra”, “Semana da Juventude”, “Espantando Bruxas” e “Desatando Nós”, “A Bíblia na Região” e “Se cuida Brasil!”.

O arquivo dos jornais, hoje encadernados e guardados na sede da Cúria de São Miguel, evidencia a quantidade de mudanças gráficas e editoriais pelas quais o Grita Povo passou. “Havia muitas discussões sobre a maneira como fazia, que tipo de linguagem, de enfoque, de pauta. Alguns achando que devia se massificar mais, ser um boletim muito mais leve, que ainda era muito massudo”, lembra Strabelli.

Houve uma primeira fase que durou de agosto de 1982 a agosto de 1984 (número 1 ao 23), em que o Grita Povo era um tablóide mensal com 8 páginas de 6 colunas, impressão off-set e contava com uma equipe de estudantes de jornalismo na sua produção – o que permitia uma cobertura mais quente de manifestações e acontecimentos regionais. “Pra eles era uma experiência prática e pra gente era interessante porque trouxeram formatação”, diz o responsável pelo jornal até 1988.

O jornal deixa de ser publicado entre 1984 e março de 1985. Volta quinzenal, com 12 páginas de papel ofício. Desenhos e caricaturas, que já existiam antes, passaram a ser mais usados que as fotografias, por causa da impressão mais simples. Segundo um

editorial da edição da volta do jornal: “Vimos que fazer um jornal popular, com cara de grande imprensa, não era possível (...). Portanto, achamos melhor parar e discutir (e como discutimos...). Voltamos. Uma sexta-feira sim, outra não, você terá este jornal na mão. Dependendo de sua participação e das demais comunidades, podemos melhorar. Contamos com o seu apoio” (número 23 – página 2). Foi uma adequação do jornal aos recursos técnicos que o Cemi tinha, para gastar menos com impressão. Segundo algumas das pessoas que estavam lá, foi também um momento de mudança da orientação do jornal, que se afastou de temas nacionais e passou a cobrir mais dos temas locais.

“O Grita Povo mudou na visão da Arquidiocese, passou a ser voltado pra questão religiosa. Quando começou a abandonar esse lado social, a maioria das pessoas foi saindo”, lembra Regina Vilela.

Strabelli vê aquela mudança de forma diferente: “A gente acabou criando uma rede de repórteres populares, que fizeram os cursinhos de como fazer uma redação, como redigir uma notícia. Dependendo das coisas que a gente sabia que ia acontecer num determinado local a gente pedia pra alguém fazer a cobertura. Foram duas experiências que poderiam ter casado muito bem, mas a gente não tinha como segurar a rapaziada, que começava a ter que procurar emprego pra sobreviver”. A conseqüência mais visível da mudança foi o aumento de matérias frias ou opinativas.

Na página 2, ficava uma coluna de Dom Angélico, onde o bispo comentava algum fato – eclesial ou não – da quinzena. As seções fixas variaram muitas e muitas vezes nos anos de jornal. Encarte de quadrinhos, uma seção de culinária (com receitas caseiras simples que tinham o objetivo de melhorar a saúde da população) e uma coluna sobre santos foram algumas delas.

Com o passar dos anos, os temas tratados pelo jornal foram voltando-se mais e mais para os assuntos da igreja, ao mesmo tempo em que enfraqueciam ou se transformavam os movimentos populares da região.

Os motivos para o fim do Cemi e do Grita Povo tiveram a ver com a mudança do cenário político nacional e com uma mudança da orientação da igreja católica que fez

[Reprodução]

Solidariedade em foco: questão indígena e reforma agrária

com que os setores progressistas perdessem força dentro da instituição e que as prioridades saíssem dos trabalhos sociais e comunitários. Nesse processo, que incluiu trocas de bispos e fechamento de portas para os trabalhos das CEBs, Dom Angélico foi transferido em 1989 para a diocese de Brasilândia, bairro da Zona Norte de São Paulo, e depois para a cidade de Blumenau (SC).

Com a abertura democrática, a criação de partidos, a volta da possibilidade de militância em sindicatos,a igreja deixou de ser um dos únicos espaços possíveis de atuação política. Na análise de Gilberto Nascimento, “a igreja ajudou demais na organização, na cessão dos espaços e no apoio aos movimentos populares. Mas geralmente quando uma liderança avançava, crescia, começava a questionar muito, acabava saindo dos espaços da igreja. Isso explica um pouco porque as coisas organizadas pela igreja perderam força mais tarde, quando outros caminhos de participação voltaram a existir”. Nascimento participava também do Movimento Popular de Arte, o MPA, que, entre outras atividades, organizava a “Praça do Forró”, com manifestações culturais e populares no centro de São Miguel.

A nova orientação da igreja fez com que a existência de estruturas como a do Cemi perdesse sentido e a manutenção do Centro – que chegou a ter 23 funcionários, em 1988 – tornou-se cara e pouco atrativa para os financiadores estrangeiros.

As pessoas que participaram daquele momento, no entanto, lembram dele como um período intenso de formação. Potencializados por ferramentas de comunicação – rádios-corneta, vídeos, jornais e outros – os movimentos fizeram parte de um processo de “perda do medo de se comunicar. Reconquista do direito à cidadania ou, antes, à palavra, à reflexão”. É o que avalia Regina Festa em sua tese de doutorado Comunicação Popular e Alternativa: a realidade e as utopias, de 1984.

A interpretação dos fatos pelos entrevistados é semelhante. Conta Regina Vilela: “Quando explodiu o movimento das Diretas Já, a grande participação foi por conta disso: as pessoas vêm fazendo os trabalhos no Brasil inteiro e as discussões vão amadurecendo. Chega um momento em que todo mundo quer aquilo, que todo mundo vai à rua pedir. Não vem por acaso, quem está na liderança tem o termômetro, não dava

pra ter acontecido antes. A gente fez parte desse processo de ajudar a amadurecer, de ajudar a que as pessoas questionassem, pensassem e buscassem essa mudança”.

A história do Cemi, entretanto, está ameaçada pela falta de cuidado com a preservação de seu acervo. “Essa é uma das grandes mágoas que eu tenho da igreja. Quando a gente saiu, o Centro ainda ficou uns dois anos, depois resolveram derrubar. Tem depoimentos do pessoal de que eles enchiam carrinhos de mão e iam jogando. A última notícia que eu tive foi de uma pesquisadora que ficou sabendo dessa documentação. Ela disse que descobriu na torre da Igreja de São Miguel Paulista, tudo jogado. Eu liguei pro padre responsável e disse que me interessava, que ia recolher e colocar à disposição das pessoas de novo. Disseram que o Instituto de Teologia ia fazer isso. Se fizeram, não sei”, lamenta Strabelli.

No prédio da quadra da Igreja de São Miguel há uma sala sem luz, mas com as paredes cobertas por seis estantes de aço, todas elas cobertas de poeira. Para ver o que está escrito em uma das caixas de papel que estão nas estantes, é necessário afastar o pó diversas vezes. Dentro das caixas, em meio a jornais do início da década de 1990, documentos antigos e um xerox de “O Estado e A Revolução”, V.L. Lênin, páginas 225 a 309, um cronograma de atividades de 1982, folhas com o “mapeamento do Grita Povo”, com os campos comunidade, telefone, número de assinantes, nome do responsável e observações. Há ainda pilhas e pilhas de livros empoeirados sobre cinco arquivos de metal cinza, com pastas suspensas. A história vai se transformando em memória e poeira.

[história] Jornal Grita Povo [onde e quando] São Paulo (SP),de 1982 a 1991 [quem conta] Carlos Strabelli,Douglas Mansur,Gilberto Nascimento,Pedro José Gomes,Regina Vilela e Sueli Maria de Almeida [entrevistas realizadas] de Dezembro de 2003 a Abril de 2004