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Abertura

FILHOS DE UM PAÍS EM CONSTRUÇÃO

Não existe democracia sem comunicação democrática. Foi com base nessa reflexão que, no final de 2002, começamos a elaborar o que viria a ser este livro. Buscávamos entender o papel da comunicação no processo de redemocratização do Brasil. Para essa tarefa, reunimos 32 repórteres, que levantaram histórias e personagens em diferentes cantos do Brasil. Um trabalho que poderia ser definido como árduo não tivesse sido tão divertido e gratificante. Nessa longa jornada em busca da história recente do País, aprendemos muito. E é o fruto desse aprendizado que agora dividimos com os leitores.

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Desde o princípio, o que nos moveu a olhar o passado foi a vontade de entender o Brasil na perspectiva de transformá-lo. Do resultado desse mergulho, acreditávamos, traríamos material suficiente para poder compartilhar com nossos leitores descobertas capazes de apontar caminhos. Foi o que ocorreu. E o resultado, na nossa avaliação, mais do que o recorte de um momento das comunicações no País, traz a percepção de que valores e princípios democráticos não morrem jamais – mesmo sob o jugo de uma ditadura militar. Pelo contrário, tendem a crescer, a se fortalecer, ao passo que a roda da história prossegue e deixa seus rastros.

Oficialmente, a ditadura militar durou 21 anos (1964-1985). Poderíamos demarcar seu término com a eleição de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral. Mas essa indagação sobre quando, de fato, o País voltou a viver em um modelo político estruturado sobre a vontade de sua população nos acompanhou durante todo o processo de feitura do livro. Como analisar, por exemplo, os dias de luta pela Anistia, que culminaram com a volta de líderes políticos, intelectuais e militantes expulsos do Brasil pelos generais? Ou a rearticulação, no final do anos 70, das lutas sindicais, a partir do Grande ABCD? Ou mesmo o renascimento das lutas camponesas, especialmente nas regiões Sul e Nordeste, retomando o sonho das Ligas Camponesas – sufocadas a pontapés de coturno?

A lista é extensa: a campanha por eleições diretas para presidente da República, que a história registrou como Diretas Já, uma mobilização que contou com enorme participação popular e uniu em torno de uma mesma bandeira vários setores progressistas da política nacional. Há também a Constituinte, para a qual a população elegeu deputa-

dos para construírem uma nova Constituição, que ficou pronta em 1988 e recebeu a alcunha de “Constituição Cidadã”. A eleição de Fernando Collor de Mello, em 1989, e o processo de impeachment três anos depois, em que a mobilização da sociedade, especialmente dos estudantes, teve notória importância.

Essa dúvida permanente acendeu-se ainda mais quando o cineasta Nélson Pereira dos Santos, de Vidas Secas, Memórias do Cárcere e Rio 40 Graus, que viveu o antes e o depois da ditadura, sempre como uma das máximas expressões da cultura brasileira, afirmou que a democracia só voltou a raiar no horizonte do Brasil em 2002, quando a população elegeu o operário Luiz Inácio Lula da Silva presidente da República. E, ainda assim, a dúvida permaneceu.

Ao final da edição do livro, temos como uma de nossas principais conclusões a percepção de que a democracia se fortaleceu em cada um desses momentos, mas prossegue em busca de complementações, para não se tornar uma mera simplificação retórica. Porque a democracia é um processo. Uma construção coletiva, árdua, conflituosa – por vezes vigorosa – que caminha de braços dados com as lutas sociais. E é isso que esses 28 textos, produzidos por uma rede de repórteres de todo o País, mostram.

Com todas suas variáveis, alguns descaminhos, tantas histórias, o resultado desse esforço é uma publicação que, entendemos, consegue lançar um olhar sobre o Brasil como um todo, com suas diferenças e contradições, e que conseguiu mostrar o papel fundamental na luta pela democracia que a comunicação exerceu do final dos anos 70 para cá. E dessas histórias, podemos apreender que não existe democracia se todos os cidadãos não tiverem igual acesso à informação. Não existe democracia sem o direito de cada pessoa se comunicar.

Isso nos permite afirmar que no passado não vivemos, e continuamos a não viver, na democracia que sonhamos. Mas também nos abre caminho para concluir que estamos justamente construindo essa democracia e que, se vivemos o hoje para escrever o amanhã, foi porque homens e mulheres, solitariamente ou em conjunto, transformaram o ontem.

São essas inúmeras gerações, que trabalharam pela construção de uma nação sólida e soberana, que viram companheiros caírem, as responsáveis pela nossa existência. O

Intervozes reivindica para si filiação nessa história. Porque nos sentimos filhos desse País em construção. E como filhos, sentimos necessidade de conhecer mais sobre nossos pais e mães, avôs e avós, lutadores e lutadoras, que criaram as condições para que pudéssemos nos unir nessa construção do porvir.

As histórias relatadas nesse livro são algumas demonstrações da grande jornada de luta por uma comunicação e um país mais democráticos. Sabemos que a valorização dessas histórias e personagens pode servir de estímulo ao surgimento de outras. E também sabemos que mesmo que elas não surjam graças a esse livro, ou graças ao Intervozes, elas certamente surgirão. Quanto a nós, buscaremos, sempre, conhecê-las e valorizá-las. E, à medida do possível, tentaremos construí-las coletivamente, fortalecê-las e torná-las possíveis.

Nesse esforço de compreender o papel que a comunicação teve na redemocratização do Brasil, vislumbramos o fortalecimento da comunicação comunitária, a volta da liberdade nas redações, a multiplicação de veículos de informação populares, alternativos, livres e independentes. Também nos deparamos com inúmeras iniciativas, movimentos e atores diretamente relacionados à construção de políticas democráticas de comunicação, que têm na democratização ou nos direitos à informação e à comunicação suas bandeiras.

Também topamos, evidentemente, com o outro lado da moeda. A face que mostra o avanço da censura econômica, ideológica e da auto-censura nas redações e que nos coloca diante do processo de crescente concentração dos meios de comunicação. Topamos com as artimanhas e a força dos oligopólios, verdadeiros estandartes do capitalismo contemporâneo, extremamente organizados e claros em seus objetivos e que bloqueiam qualquer tentativa de democratização em suas áreas de interesse – qual seja, todas aquelas que seus tentáculos puderem alcançar.

Enquanto realizávamos o livro, é preciso registrar, com histórias de resistência à ditadura militar e de contribuições para a redemocratização do Brasil, nos deparamos com algumas desagradáveis coincidências. Entre elas, o brutal assassinato da missionária Dorothy Stang no Pará em 2005, repetindo a morte de Chico Mendes no Acre em 1988. O novo ataque de O Estado de S. Paulo aos povos indígenas, no dia 8 de maio de 2005, repete, lamentavelmente, uma das histórias contadas neste livro. O jornal publicou um texto

“revelando” que a demarcação das terras indígenas seria parte de uma estratégia de dominação dos “países hegemônicos”. Baseado em um suposto relatório secreto da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), afirma que o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) “teria recebido, entre 1992 e 1994, US$ 85 milhões da Fundação Nacional para a Democracia, dos Estados Unidos, mantida pelo governo e dirigida pelo Congresso americano”. Também nos sentimos afrontados, no final de 2004, com a agressão de Rômulo Maiorana, diretor do jornal O Liberal, um dos mais poderosos do Pará, ao jornalista Lúcio Flávio Pinto, do célebre Jornal Pessoal, numa demonstração típica de autoritarismo e coronelismo à brasileira. Mais uma vez – e nesse ponto a lista poderia ser ainda maior – recebemos notícia da morte de dois sem-teto em 2005 em uma ação da Polícia Militar, desta vez em Goiânia. Um fato que, como os anteriores, demonstra que, infelizmente, há ainda muito por fazer no Brasil pela democracia, principalmente superar as heranças da ditadura e os contrastes de uma sociedade estruturada de forma desigual e injusta.

Para que a publicação de todas essas histórias fosse possível, lá se vão horas e horas de debates, contatos, reportagem, edição. Um processo realmente demorado, mas igualmente rico e que conseguiu, do começo ao fim, respeitar todos os envolvidos, envolvendo muitos do Intervozes. Envolvendo o Intervozes com outros tantos.

As dificuldades não foram poucas. Certamente, não é fácil consolidar uma rede de comunicadores de Porto Alegre ao Vale do Juruá, no Acre, e, feito isso, definir as pautas mais importantes para os objetivos a que o livro se propõe. Tivemos dificuldade para trabalhar uma edição que contemplasse os mais variados temas, realidades, cotidianos e possibilidades de dedicação. Dificuldades, também para superar as limitações de falta de financiamento, de diferentes vivências e conhecimentos em relação ao tema.

Mas tais obstáculos apenas fortaleceram o processo do livro. Geraram mais aprendizados. Foram deixados para trás, juntando-se às outras virtudes do projeto. Ao abarcar histórias do papel da comunicação na redemocratização do Brasil em boa parte do País, destacamos aqui a importância de projetos, pessoas e iniciativas não conhecidas pelo público em geral. Histórias que, em boa parte, são desconhecidas no campo dos

estudantes, profissionais e militantes de comunicação. O que as torna ainda mais importantes de conhecer, estudar, valorizar e reproduzir.

Histórias que, entendemos, permitem à comunicação dialogar com a universidade, com os movimentos sociais, com os comunicadores, com os vários Brasis. E que colocam a comunicação novamente em parceria com a democracia. Que afirmam a comunicação como um direito, um direito em diálogo e colaboração com os outros direitos humanos fundamentais, indissociáveis e inalienáveis.

Além de todas as lutas e personagens aqui relatados e valorizados, pudemos também contar com a contribuição de importantes pesquisadores e militantes da comunicação no livro. A reunião dessas contribuições, voltadas ao trabalho de contextualização política e social das matérias que retratam as lutas nas cinco regiões do País, é motivo de orgulho para todos nós que realizamos este projeto.

Uma das maiores conquistas desta publicação foi reservada para o final de seu processo de edição, com o histórico e complexo acordo entre o Intervozes e a Imprensa Oficial para que o livro fosse publicado sob a licença Creative Commons. O acerto contou com o apoio fundamental do Centro de Tecnologia e Sociedade da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-RJ) e com a visão pública e cidadã da Imprensa Oficial a respeito de seu papel como difusora do conhecimento, bem como das entidades participantes do Conselho Editorial do programa Imprensa Social. A prerrogativa de permitir a livre utilização não-comercial do livro pelo público segue deliberação da Assembléia Geral do Intervozes de 2005 a respeito de suas publicações. E fortalece a participação do Coletivo na luta pelo compartilhamento do conhecimento e pela democratização da informação e das comunicações.

Estamos nos consolidando como um Coletivo Nacional, reunido em cada região do País, que participa de forma intensa da luta pelo direito à comunicação. Mas seguimos amadurecendo e colaborando com a construção deste grande sonho chamado Brasil.

É preciso registrar, por fim, que cada uma das conquistas que hoje alcançamos só é possível graças às gerações que nos antecederam. É a elas – e também às futuras gerações – que dedicamos este livro.

A ilustração acima, do livro Macambúzios e sorumbáticos – Os anos 77-80 nas charges de Luiz Gê, ingressou em nosso livro quando foi solicitada ao seu autor uma autorização para publicação da foto da página 89, em que Luiz Gê aparece junto aos amigos Angeli, Laerte e Sérgio Gomes e ao professor Guido Stolfi. Luiz Gê autorizou a publicação da foto, mas destacou que achava injusto o livro não trazer nenhuma ilustração dele, que – assim como Laerte e Angeli, como os irmãos Caruso, como Ziraldo, Zélio, Jaguar, Millôr, Henfil e toda a turma do Pasquim e como tantos outros ilustradores –, durante anos participou da luta contra a ditadura com suas charges. Ao publicar a ilustração no texto de abertura do livro, superamos em parte as lacunas, ao mesmo tempo em que buscamos homenagear todos os comunicadores e cidadãos acima citados e também aqueles por citar. Aproveitamos para nos desculpar antecipadamente por outras eventuais ausências, que muito possivelmente serão registradas. E fica aqui nossa torcida e compromisso para que venham outros livros e iniciativas voltados a contar novas histórias como as presentes em Vozes da Democracia.