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« A história de uma menina que mudou o mundo ao seu redor

PERFIL

A MENINA QUE SONHAVA COM A JUSTIÇA

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Ahistória que será contada aqui neste perfil originalmente participaria do projeto Memorial AMPPE, onde, por meio dos registros textuais e fotográficos, buscamos registrar a memória da nossa instituição através das pessoas, dos nossos associados e das nossas associadas. Bem, a história que será narrada a seguir, precisou ser contada de outra forma, com outro foco. Aqui, vamos focar na menina.

A menina nasceu em Água Preta, na Mata Sul pernambucana, perto de Palmares. Aos três anos, foi viver na cidade de Joaquim Nabuco, uma cidade pequena e não muito distante do município onde ela nasceu, um lugar cercado por engenhos. Filha de Manoel Barbosa de Azevedo e Auta Martins de Azevedo, era a mais velha de 11 filhos e, desde pequena, carregava consigo um senso de responsabilidade enorme: precisava estudar, cuidar dos irmãos e trabalhar.

A mãe era dona de casa. O pai trabalhou como comerciante, mas em alguma altura da vida tornou-se oficial de Justiça e foi assim que se aposentou. O avô materno era um homem branco, filho de por-

"AQUILO ALI ERA UMA COMUNIDADE QUILOMBOLA E SÓ DEPOIS EU PERCEBI."

tugueses, um homem muito interessante. Já a avó materna era uma mulher negra, neta de escravizados. Desta parte da família a menina guarda lembranças muito especiais, como das passagens por Xexéu, que hoje é uma cidade, mas há 72 anos atrás era uma espécie de sítio. A infância feliz, muito tem relação com a vida no quilombo, lugar que só mais tarde a menina veio identificar como tal.

“Quando eu paro pra me lembrar daquele sítio, eu percebo que aquilo lá era um Quilombo. Ninguém falava isso porque não existia essa ideia. Isso tem a ver com falta de identidade. A construção da nossa história, das nossas memórias foi negada. Meus avós e seus filhos moravam todos ali nas proximidades. Eram cinco homens e duas mulheres e moravam todos ali, reunidos. Eles tinham uma casa de farinha enorme, plantavam abacaxi, banana, laranja. Meu avô vendia no comércio o que eles colhiam. Aquilo ali era uma comunidade quilombola e só depois eu percebi ”, conta a menina.

A menina nasceu em Água Preta, na Mata Sul pernambucana, perto de Palmares.

Das memórias mais singelas, ela nunca esqueceu do dia em que foi levada pelo pai ao sítio para conhecer a bisavó. “Era uma quinta-feira santa. Eu tinha uns oito ou nove anos e fui na garupa do meu avô, a cavalo. Eu me lembro de tudo, esse momento era muito importante para mim. Chegando lá, meu avô me disse “olhe, hoje você vai conhecer a sua bisavó”. E eu percebi que era muito importante. Cheguei lá e vi minha bisavó, uma senhora bem branquinha dos olhos azuis, já acamada, cega, e meu avô disse “olha, mãe, trouxe uma neta sua para a senhora conhecer. Adivinhe de quem ela é filha”. Meu avô me sentou perto dela, ela tocou meus cabelos e disse “Já sei! É filha de nega, não é?”. Pelo meu cabelo crespo ela já reconheceu. Nega era o apelido da minha mãe, que era a mais pretinha entre os irmãos dela”, diz.

Além do senso de responsabilidade aflorado, sempre teve um senso de justiça muito forte. Na escola, como era a irmã mais velha, defendia os irmãos nas brigas. Por falar em briga, a menina enfrentou desde nova a batalha contra o racismo, mesmo que na época não tivesse este nome. Ela sabia que recebia um tratamento diferenciado - de forma negativa. Nunca recebeu um afago da professora quando os outros alunos lhe atacavam física e psicologicamente.

“Eu sabia que tinha um motivo para aquilo acontecer. Você é uma criança inocente, mas vê que eles não faziam com os outros, com os que tinham a pele clara. Aquilo me incomodava, mas eu não tinha uma palavra pro nome daquilo que eu sentia. O racismo é cruel”, conta

Nessa altura do campeonato, acho bom revelar que a garota da nossa história é muito inquieta. Ela é, na verdade, incansável, mas diz que gostaria de descansar. Hoje em dia, ainda garota, ela conta que começou a aprender a tocar violão e que gosta de tocar músicas de artistas da MPB. Ah, também gosta muito de curtir seu pai, que hoje já tem 94 anos e é lúcido e faz atividade física, assim como ela.

Como nunca foi de ficar parada, conseguiu estudar sozinha para a prova de um dos vestibulares mais concorridos de Pernambuco. Sem cursinho e enquanto conciliava estudo no colégio e trabalho, ela conseguiu: foi a primeira pessoa de sua família a estudar numa universidade. Fez Direito na UFPE.

Não foi fácil. A menina precisou sair de casa para morar na capital com uma amiga de sua cidade. Enquanto estudava, ela prestou concurso para o Banco do Estado de São Paulo. E passou. E foi morar em Salvador, na Bahia. Foi ser bancária enquanto estudava Direito, agora na UFBA, para onde transferiu seu curso.

A menina viveu uma boa vida em Salvador. Teve bons amigos. Teve um bom emprego. Mas chegou a hora de voltar para o Recife e se tornar o que nasceu para ser: ins-

trumento para dar voz a pessoas como ela. Pessoas negras, mulheres, quilombolas, indígenas, idosos, crianças, jovens, pessoas de vários gêneros. Foi para essas pessoas que ela destinou a sua luta. Com isso, sempre lutou por respeito, pelo fim da violência e por garantia de direitos. Fez na vida profissional o que fazia, em outro nível, na escola, quando viu seu senso de justiça nascer.

E foi aí que a nossa menina virou uma grande menina. Não que já não fosse potente e especial, mas é que aí ela virou promotora de Justiça e impactou a vida de muita gente. Criou um Grupo de Trabalho para discutir o racismo, aquele mesmo problema que a acompanha desde pequena. Dessa vez, ela queria discutir o racismo no seu ambiente de trabalho. E foi vanguardista quando fez isso. Hoje, integra um grupo nacional para discutir o preconceito racial no âmbito do Ministério Público. Não só isso, pois como já sabemos, ela é incansável, e integra diversos outros grupos, conselhos, núcleos. Ela também não nega entrevistas, nem participações em palestras, seminários. Ou melhor, às vezes nega, mas só quando está muito cansada.

A menina desta história se chama Maria Bernadete Martins de Azevedo Figueiroa e tem 72 anos. Procuradora de Justiça aposentada do Ministério Público de Pernambuco. Aqui, acho bom acrescentar que foi mãe aos 42 anos, numa gravidez tranquila, com um parto ótimo, como ela mesma conta. Também se casou com um homem muito especial, um verdadeiro parceiro. Um homem inteligente e que a amava muito.

Quem a conhece, sabe, parece que ela está só começando na luta. E foi por isso que resolvemos falar da menina. É com olhos ávidos que ela olha o mundo. Os ideais continuam os mesmos, o frescor que transmite é de quem mal começou a viver, pois ainda tem muito a fazer e a conquistar. A sua luta é grande, mas é travada por muitas e muitos. A sua luta é justa e muito digna, deve ser por isso que ela não envelhece.

Sonhos não envelhecem.

"AQUILO ME INCOMODAVA, MAS EU NÃO TINHA UMA PALAVRA PRO NOME DAQUILO QUE EU SENTIA. O RACISMO É CRUEL."

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