9 minute read

Cultura 105 anos de Manoel de Barros

Manoel de Barros recebeu Gilberto Gil na época em que o cantor ocupava o cargo de ministro da Cultura do governo federal

“Aonde eu não estou as palavras me acham”

Advertisement

Texto: Tathiane Panziera Fotos: Acervo Pessoal Bosco Martins

Em dezembro de 2021, Manoel de Barros, completaria 105 anos. O poeta já sabia que não seria doutor, e sim Fraseador. Optou de vez por escovar palavras, descobrir e brincar com sons e sonoridades, pois sabia “também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas”.

Manoel de Barros pertence à geração de 1945, mesmo período em que despontaram outros nomes da literatura nacional, como, por exemplo, Clarice Lispector, Ariano Suassuna, Mário Quintana e João Guimarães Rosa. A sua estreia literária ocorreu em 1934, quando publicou o livro Poemas concebidos sem pecado. Segundo assinala a crítica especializada, Manoel de Barros trazia, nessa primeira obra, a natureza como matéria-prima, mesclada com o humor, em suas composições carregadas de alegria. Era o menino brincando com as palavras escovadas.

A partir de então, publicou outros 13 livros, mas a sua consagração como poeta se deu ao longo das décadas de 80, quando recebeu o “Prêmio Jabuti” com O Guardador de Águas (1989) e se tornou reconhecido por desenvolver uma linguagem poética singular, marcada por narrativas que transitam

entre o sonho e a realidade, tecendo imagens a partir das palavras. Aliás, ele gostava quando os termos “perturbavam o sentido normal das ideias”, levando a língua portuguesa às suas raízes mais profundas.

A imagem de Manoel de Barros está ligada ao Pantanal, local onde passou a infância. Para o escritor angolano José Eduardo Agualusa, que assina prefácio de livro sobre o autor, o fato de a natureza ser a musa inspiradora do poeta mantém a atemporalidade de Manoel de Barros uma vez “que face à situação que vivemos hoje de colapso ambiental, essa poesia me parece cada vez mais urgente e necessária porque é um bom ponto de reflexão”.

Outro ponto de reflexão é o olhar atento dirigido às margens do mundo. No prefácio do livro Língua, literatura e identidades culturais da fronteira Brasil-Bolívia, publicado pela Editora UFMS, o professor da área de Estudos Literários nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Letras da UFMS Wagner Corsino Enedino pontua que Manoel de Barros, entre outros autores fronteiriços, provocam inquietações sobre a vida e a arte, tanto quanto transformações sociais locais, universais e atópicas. Por intermédio da literatura, uma das expressões artísticas, o local interage com o global.

Manoel de Barros e o jornalista Bosco Martins

Amigos e autoridades estiveram na casa de Manoel de Barros Interação poética

Um exemplo de interação entre mundos é o samba-enredo levado para a Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro: “Meu quintal é maior do que o mundo”, inspirado na obra de Manoel de Barros. Tema da escola Império Serrano, o samba homenageava o Fraseador, apresentando o regionalismo e a beleza da poesia, que encantaram quem estava no sambódromo.

“Abre a janela, vem ver ôô Poesia brotar no quintal O carnaval florescer Menino Bernardo em meu ser Reinvento o meu Pantanal”

“Meu quintal é maior do que o mundo”

Ainda na música, o dono do “quintal maior que o mundo”, aparelhado para gostar de passarinhos e feliz por isso, inspirou, também, projetos como o “Crianceiras”, em que “Bernardo” e outras criações são reimaginadas. Para o músico Márcio de Camillo, o poeta não só se inspira na infância crianceira que ele teve no Pantanal, “ele extrapola isso, a poesia dele fala de mundo, fala de Van Gogh e fala também do Bernardo”.

Outra interação entre mundos é o curta-metragem “Mariquinha no mundo da imaginação”, que, baseado em discussão sobre as obras do escritor, narra a história de uma menina que brinca em seu quintal e, com a imaginação, vivencia experiências. O filme foi produzido em 2018, a partir do olhar dos jovens participantes do projeto de extensão “Brincar de fazer cinema” da UFMS, coordenado pela professora da Faculdade de Educação, Constantina Xavier.

O curta-metragem, produzido coletivamente com crianças do quinto ano do Ensino Fundamental de uma escola pública de Campo Grande, participou de vários festivais de cinema nacionais e internacionais, entre eles o Animart Festival 2021, realizado na Grécia, e a quarta

Livro do jornalista Bosco Martins sobre Manoel de Barros

edição do festival de Cinema de Animação LatinoAmericano (Anima Latina), em 2019, em Buenos Aires (Argentina).

Manoel e a Educação

Uma das admiradoras da obra de Manoel de Barros é a professora do Câmpus de Aquidauana Janaina Maia. Ela relembra que a admiração teve início no final da década de 1980. “Sou fã de Manoel de Barros desde os anos de 1989, quando, no meu vestibular, se estudava as suas obras. A partir daí, fui buscando suas poesias para as andanças poéticas que sempre gostei”.

Para a docente, o poeta escolheu a infância como um lugar poético para manifestar e contar sua vida. Além disso, destaca a importância dessa escolha não só para as crianças, como também para os adultos que, ao acessarem os textos de Manoel de Barros, caminham pela própria história. “Os elementos encontrados nas poesias ilustram a liberdade, que a gente aprende com as crianças”.

Foi em 2014, ano de falecimento do autor, que Manoel de Barros se transformou em objeto de estudo. “Assumi como professora efetiva na UFMS em 2014, ano de sua morte, e, assim, busquei homenageá-lo de alguma forma, elaborando um projeto de extensão que levasse as poesias dele em relação à infância para as muitas crianças pantaneiras aqui de Aquidauana”.

Anualmente, a docente ainda realiza projetos inspirados nos escritos do poeta. Os dois últimos foram: “Criança/s e infância/s no cinema: possibilidades de des/ver conceitos” e “As poesias de Manoel de Barros e a UFMS: possibilitando caminhos entre a criança e sua/s infância/s”. Em 2021, as iniciativas foram desenvolvidas com estudantes da educação infantil da cidade de Aquidauana, por meio de ações planejadas pela coordenação do projeto e encaminhadas aos professores das escolas, em razão da pandemia.

Janaina explica que os projetos proporcionam aprendizagem, além do acesso à cultura regional e à arte, por meio de leituras, música, encenação e teatro inspirados nas obras do poeta. “O projeto colabora em lembrarmos que, um dia, também fomos criança, e, agora, adultos, temos a oportunidade de revivermos nossa infância, para, assim, entender as crianças”.

Janaína cita, ainda, algumas características do poeta que são facilmente percebidas pelas crianças, como quando ele “negava sua fama e abraçava as miudezas das coisas simples”, o que, segundo a professora, são características comuns às crianças. “Quando elas brincam, elas elaboram poesias. Suas brincadeiras são poesias. Elas dizem: ‘Eu escuto a cor dos passarinhos’”, afirma.

Ela não esconde o contentamento em compartilhar como aplica os ensinamentos deixados pelo autor nos projetos coordenados por ela. “Essa relação se dá a partir de ‘olhares’. No meu, por exemplo, utilizo como ele mesmo me ensinou: ‘renovar o homem usando borboletas’ e/ou ‘com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com a criança’. Assim, a educação vai se aprimorando sempre, com a dignidade da aprendizagem escolhida”, explica.

Outro ponto citado por Janaína é que, a partir da participação nos projetos, as crianças aprendem o mundo. “As coisas desimportantes se tornam sérias, pois brincar, para as crianças, é bem sério. Elas realizam a vida e aprendem o mundo por meio das brincadeiras e brincar tem toda uma poesia”. “As poesias de Manoel além de registrar a simplicidade, a natureza, a forma e da geografia da natureza tem peculiaridades, que podemos ampliar tanto para a educação quanto para a infância que é o que eu trabalho. Manoel de Barros tem marcas da singularidade pantaneira, a singularidade do rio, do chão, do sol, dos bichos, das matas para contar, para falar. Então utilizando as poesias de Manoel para todas as disciplinas para nossa base curricular nacional ela se torna pertinente para o nosso estado, principalmente para a região pantaneira”, destaca a professora.

Diálogos do Ócio

O jornalista João Bosco de Castro Martins foi um dos poucos a conviver com Manoel de Barros.

Ele relembra como conheceu a vida e a obra do poeta, na década de 1980. “Vez ou outra ouvia algum amigo ou colega de trabalho se referir a um poeta chamado por “Nequinho” que era recluso, não gostava de dar entrevista. Descobri que eu e minha esposa éramos amigos dos filhos de Manoel de Barros. E depois de passar horas lendo e relendo cada poema, cada linha, cada palavra, falei com o João (filho de Manoel) que queria conhecê-lo e ele fez as honras da casa”, relata.

Bosco relembra como foi o primeiro contato com o poeta. “Cheguei de mansinho e me deparei com um homem simpático, elegante, gentil e de conversa fácil. De lá para cá, surgiu entre nós uma amizade espontânea, alegre”.

A amizade foi se consolidando com o passar dos anos. “Muitas vezes visitei Manoel sozinho ou com minha companheira Márcia. Levávamos um bolo de maçã com canela para o chá com a Estela (esposa de Manoel), e jogávamos conversa fora a tarde toda. É um capítulo da minha vida que trago com muito carinho”. O último encontro se deu um ano antes da morte do poeta. “Ele me falou da sua vida no Rio de Janeiro, da viagem pela América do Sul até Nova Iorque, quando foi em buscas das suas origens. No livro reconto essa história, foi um ano antes de sua passagem. Ele colocou ao seu jeito a situação: vou ter que me retirar, a vida é conformação, não dá mais para seguir. Preciso dar tempo aos netos e familiares, vou me afastar dos amigos e peço compreensão”. O livro ao qual Bosco se refere é o “Diálogos do Ócio”. “É um registro das visitas de amigos, leitores e autoridades que estiveram comigo na casa de Manoel de Barros. É o relato de um amigo que não quer deixar que o tempo apague esta memória. Neste livro, reuni entrevistas e depoimentos dessas pessoas. O livro é despretensioso enquanto literatura, talvez seja uma boa ‘prosa’ entre amigos de diversas origens”.

Aprovado no Edital Publica UFMS 2021, o livro Diálogos do Ócio: Inventário poético de décadas de amizade do autor com o poeta Manoel de Barros pretende revelar ao público o cotidiano do escritor, criador de seu próprio dialeto e dono de uma linguagem sui generis.

Sobre

Manoel de Barros

Manoel Wenceslau Leite de Barros nasceu em Cuiabá, Mato Grosso, no dia 19 de dezembro de 1916. Filho de João Venceslau Barros e de Alice Pompeu Leite de Barros passou a infância no Pantanal.

Na adolescência estudou em colégio interno na cidade de Campo Grande, época em que escreveu suas primeiras poesias.

Em 1937, publicou seu primeiro livro de poesias: “Poemas Concebidos Sem Pecados”.

Cursou Direito na Universidade do Rio de Janeiro, onde formou-se em 1941. Manoel se casou-se em 1947 e teve três filhos: Pedro, João e Marta.

A partir de 1960 passou a se dedicar a fazenda da família, no Pantanal.

Em 1989, Manoel recebeu o “Prêmio Jabuti” com a obra “O Guardador de Águas” (1989).

Maneco, como era chamado pelos mais íntimos, faleceu em Campo Grande, dia 13 de novembro de 2014, aos 97 anos.

This article is from: