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A hora de Dona Maria
Em uma tarde nublada e quente ouço a voz de um homem chamando no portão, como de costume, vou ver quem é, um homem com cerca de 1,70 com os olhos claros e os cabelos já todos brancos ao seu lado uma senhora sorridente com cerca de 1,50. Ele pergunta sobre minha avó, vou chamá-la e em poucos minutos ela entra acompanhada dos dois. Normalmente, não costumo gostar de visitas. No entanto, a mulher que entra pelo portão, apesar de desconhecida por mim, cativa todos os presentes. Ela veste um conjunto de saia e camisa rosa chiclete, os cabelos estão presos em um rabo de cavalo baixo e ela emana um cheiro suave de sabonete, como quem acaba de sair de um longo banho. Seu nome é Maria mas, apesar da vulgaridade do nome, a trivialidade sobre ela se encerra por aí.
Dona Maria se ajoelha e cumprimenta meus irmãos, que estão brincando no chão da sala. A senhora brinca por alguns minutos de boneca com minha irmã mais nova e, o que seria um gesto singelo e gentil, acaba por ser um grande feito, visto que ela possui 91 anos.
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Em pouco tempo de conversa descubro que ela é madrinha de casamento de minha avó, que foi inquilina de Dona Maria em São João do Ivaí em seus primeiros anos de casada. O tom da conversa segue nostálgico, relembrando como era a vida em outra cidade e de como foi o nascimento de meu pai.
Assim como seu corpo parece não ter processado o tempo, sua mente também não, ela fica em choque ao descobrir que o garotinho que segurou nos braços, meu pai, possui agora 47 anos e cabelos grisalhos.
A mulher criou sozinha dois filhos, Zilda e Zildo, e se mudou para Maringá para acompanhar a mais velha, que veio em busca de trabalho. Desde então, Dona Maria ganha a vida limpando e negociando túmulos. Pergunto a ela se não tem medo de trabalhar em um cemitério, ela diz que essa coisa de ter medo dos mortos é bobagem, que são os vivos quem devemos temer. Não posso deixar de notar a ironia de uma das pessoas mais cheias de vida que já conheci passar seus dias negociando com a morte.
Após tantos anos de vida ela não guarda rancores de suas perdas, mas parece sentir falta do marido e relembra de forma saudosa dos anos com seu companheiro e conta que, em seus 2 últimos anos de vida, foi quem manteve a casa sozinha e prestou os cuidados necessários ao esposo que se encontrava acamado.
Quando comento com Dona Maria sobre sua disposição física ela faz alguns agachamentos exibindo que de fato sua idade não limita seus movimentos e afirma que o segredo para tal é que segue trabalhando das 8h às 17h todos os dias, folgando apenas aos domingos.
Seguimos conversando como se nos conhecêssemos há anos, apesar de ser a primeira vez que vejo aquelas pessoas. O principal assunto da mesa são nascimentos e mortes, como se o que estivesse entre esses dois acontecimentos não passasse de um sopro. Todos relembram os entes que já se foram, e comentam sobre os que acabaram de chegar, minha avó exibe orgulhosa seus netos.
Apesar da densidade dos assuntos, a conversa segue leve, acompanhada de risadas causadas pelas piadas de Dona Maria, que mantém um senso de humor impecável. Aproveito um desses momentos de descontração para perguntar se posso fazer uma visita para Dona Maria, no entanto, ela não gosta muito da idéia, diz que pode ir até a minha casa mas desconversa sobre eu ir até a sua. Apesar de se mostrar uma pessoa calorosa, talvez a invasão de seu espaço pessoal ultrapasse os limites de Dona Maria.
Em determinado momento, Dona Maria ergue as mãos para o céu e fala com Deus “Papai se quiser me leve hoje mesmo, mas se possível quero viver até os 120, com força, desse jeitinho”. De maneira vívida, Maria parece pronta para a morte.
Titulo do texto: A cidade higienizada
Gênero literário: Reportagem
Descrição: Trabalho desenvolvido para a disciplina de Tecnicas e Tecnologias de Criação verbal.
Proposta: Criar uma reportagem, sobre um tema de nossa escolha que possua no minimo uma entrevista.
Entrevistados: Vereadora Ana Lucia (PDT), Arquiteto
Danilo Pradela
Criação: Ágata Yasmim sobre a orientação de Cassio Ceniz.