4 gnarus6 considerações sobre a vida e a morte no egito antigo keidy narelly

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Artigo

ENTRE O CONTRASTE E O EQUILÍBRIO, KEMET E DUAT: CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIDA E A MORTE NO EGITO ANTIGO Por: Keidy Narelly Costa Matias

Resumo: O presente artigo versa acerca da oposição entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos no Egito Antigo; consideramos o segundo como sendo uma representação concebida do primeiro. Trataremos da natureza do mundo dos vivos (Kemet), elencando alguns exemplos que norteiam seu contraste e seu equilíbrio quando comparado com o mundo dos mortos (Duat). Palavras-Chave: Mundo dos vivos, Mundo dos mortos, Natureza, Antigo Egito.

B

aseado em Hecateu de Mileto, Heródoto

que a maneira egípcia de enxergar o mundo e de se

(II, X) afirmou ser o Egito “uma dádiva do

encontrar nele é muito distante da nossa, tanto no

Nilo” (a frase, tal como se encontra no

tempo

quanto

no

espaço.

Entretanto,

ao

livro, é “a maior parte do país é uma dádiva do

estudarmos o Egito, percebemos que a vida

Nilo”. A julgar pelo modo de vida egípcio, podemos

terrena/real é separada da vida no além por uma

pensar que essa ideia norteia todos os aspectos da

linha tênue, justamente de âmbito material, dado

vida prática daquele povo. O mundo egípcio

que

terreno se interliga com o mundo divino através de suas singularidades e diferenças; são duas percepções fazendo parte do mesmo cosmos. Essa ideia pode parecer confusa à primeira vista, dado

“o conceito de paraíso osiríaco oferece uma existência confortável e semelhante à existência conhecida em vida pelos egípcios sendo, desta maneira, o mundo terreno aprimorado” (GAMA, 2008, p. 174).


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Esse dado nos permite inferir acerca da estreita

Seth (seca, deserto, esterilidade). A natureza,

relação que aquele povo tinha com a natureza. Essa

portanto, correlaciona-se com todos os aspectos da

vivência quase que romanceada bem pode ser

vida prática que, por sua vez, interliga-se

entendida como um dos fatores responsáveis pela

intimamente com a natureza. O fato é que não é

maneira singular que os egípcios tinham de

possível imaginar o Egito tal como foi sem o Nilo,

conceber seu mundo.

mas se faz necessário demarcar que não foi

O mundo se tornava ordenado a partir do controle do caos; a fome, por exemplo, pode ser

somente o rio que conduziu o Egito ao que ele representou na Antiguidade.

entendida como um descontrole, como uma

Interessa destacar que o equilíbrio, ou seja, a

manifestação da incompetência do faraó perante o

ordem cósmica entre as forças que compõem a vida

seu povo e, especialmente, perante os deuses –

se faz através do ato de vencer o caos. Para que

podemos pensar na utilização da natureza pelos

Maat (a ordem) exista é fundamental que o caos

deuses como maneira tanto de abastecer quanto de

também exista na medida em que se apresenta

retirar donativos do povo. À medida que situamos a

como seu contraponto – um não vive sem o outro,

fé como elemento diretamente relacionado com a

pois

natureza se faz fundamental demarcar a noção da

fundamentalmente a existência de uma desordem,

importância que o rio Nilo possuía,

do temível. A superação do caos aparece em

a

manutenção

da

ordem

pressupõe

inúmeros eventos da vida cotidiana/religiosa

a paisagem (era) fortemente orientada, com o rio fluindo para o norte e os dois horizontes ocres dos desertos arábico e líbico, atrás dos quais surgia e desaparecia o disco solar toda manhã e toda tarde. [...] O lado fértil que seguia o rio ostentava tons puros: negro no momento da lavra, verde brilhante e luminoso quando cresciam as culturas, amarelo ardente quando o trigo estava maduro. [...] A orla do deserto marcava brutalmente o limite entre o mundo ordenado e nomeado da planície fértil e as vastas extensões informes e inorganizadas de areia e rochedos estéreis. [...] A grande uniformidade dessa paisagem, que se repetia de Elefantina ao Delta, era outro traço específico do Egito (TRAUNECKER, 1995, p. 27-28).

Ao imaginarmos esse cenário e ao considerarmos que ainda hoje a questão da falta de alimentação não é um problema superado, podemos ter maior ciência da importância do Nilo. A partir daí começam a aparecer associações entre a natureza e a religião: Osíris (fartura, húmus, virilidade) versus

/política: aparece no ato de vencer a fome, no paraíso osiríaco, no bom governo de um faraó.

Maat é, portanto, o equilíbrio, a vida e a verdade nas inúmeras dimensões da existência, tanto do homem no mundo dos vivos quanto no mundo dos mortos. É nesse sentido que podemos fazer uma oposição entre a ordem e o caos ao considerarmos que o momento da morte representa a quebra de uma ordem, ou seja, a morte está associada ao caos; os ritos fúnebres podem ser vistos como mecanismos de restabelecimento de Maat. É nesse contexto que aparece a Duat, mundo dos mortos que se porta como paisagem e território e que atua como um dos mecanismos salientadores da identidade egípcia. Algumas fontes (um exemplo bastante conhecido é a “História de Sinuhe”) nos permitem inferir que era temível morrer fora do Egito. Dessa forma, aparece aqui tanto o fator geográfico quanto aquele da religião e acreditamos não ser possível


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fazer

diferenciações

esses

negação do estático e o medo do desconhecido e

Antigo.

do perigoso etc. Estamos dizendo que a religião e a

Concordamos com Barry Kemp (1996) no sentido

magia, a vida cotidiana do homem vivo e sua

de ser o território egípcio em sua singularidade um

preocupação com o além – com a (não) morte –

mecanismo definidor de ideologias e identidades; a

exigem a criação de inúmeros espaços capazes de

concepção de um território através da percepção

albergar os múltiplos desejos do homem. A

da paisagem norteia o desenvolvimento de uma

paisagem e o território concebidos são, portanto,

identidade.

frutos do real; trata-se da concepção de mundo de

conceitos

para

o

profundas caso

do

entre Egito

Um fator definidor de uma identidade de lugar é

um povo que via no espaço do post-mortem seu

a maneira de enxergar a morte e os mortos.

meio de continuar existindo. Essa cosmovisão era

Campagno (2011, p. 27) afirma que no Egito existia

um atenuante do medo do desconhecido,

“um laço ideológico forte entre os vivos, os mortos

especialmente

e a terra”. O culto aos ancestrais e o respeito à

modo, que na Antiguidade o homem estava mais

memória destes também podem ser vistos como

ligado à religião do que nós contemporâneos. Dada

laços diretamente ligados à percepção da

a quantidade de fontes que a arqueologia

identidade de uma comunidade. No Egito Antigo

encontrou e encontra, podemos inferir que, mesmo

existia uma clara situação relacional entre os vivos

para o menos crente dos homens, o medo do

e os mortos – os mortos, ao continuarem existindo

desconhecido era presente e latente: podia-se

no pós-vida, permaneciam fazendo parte do seio da

desenvolver maneiras de encará-lo, mas nunca de

população, ou seja, um morto egípcio participava

evitá-lo.

quando

consideramos,

grosso

intensamente do mundo dos vivos. A paisagem possui uma carga de sentidos que interliga o real e

Rosalie David (2011, p. 22) admoesta que a

o imaginado. O homem só concebe o fantástico a

relação do homem egípcio com a natureza fazia

partir de um mundo real, ou seja, o irreal e o surreal

com que existisse “um padrão estruturado de ideias

são pautados na realidade e no contexto da época

que foi projetado para perpetuar o princípio de

em que foram produzidos. No caso do Egito, temos

Ma’at [...] e desafiar e subverter continuamente as

a concepção de uma paisagem, de um mundo

forças do caos”. Essa assertiva, utilizada para

imaginado – não irreal (a Duat) – a partir da

descrever o mundo terreno, pode ser aplicada sem

percepção do mundo pelo homem vivo (em

necessidade de substituição de qualquer termo

Kemet). A carga de sentidos desembocada pela

para o campo do além. A Duat é, portanto, uma

percepção e tratamento da paisagem aparece, na

terra reproduzida: o Egito com suas especificidades

esfera religiosa, através da fabricação da Duat, que

foi em grande medida uma dádiva do Nilo (se não

tanto é um contraste em relação ao mundo dos

houvesse o Nilo todo o Egito seria diferente – tanto

vivos quanto é também o seu próprio equilíbrio.

no campo da natureza quanto naquele reservado à

A concepção da Duat enquanto paisagem e

religião); a Duat é uma reprodução do mundo

território pressupõe a existência de muitas

terreno, ou seja, se o Egito no âmbito terreno foi em

preocupações advindas da vida cotidiana: o medo

grande medida uma dádiva do Nilo, a Duat de certa

da noite, a necessidade de se movimentar, a


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maneira também o foi, visto que era um espelho do

perigosos,

desafios

a

serem

vencidos

e

mundo dos vivos.

encantamentos que não podiam ser esquecidos. O

É importante demarcarmos que a oposição entre

medo do escuro também aparecia como espelho

Kemet e Duat representa também a oposição entre

dos dois mundos: a noite era sinônimo de perigo

a vida e a morte, entre homens e deuses.

(ladrões, sobretudo) e, no mundo dos mortos,

Acreditamos

associada ao estático, Osíris, enquanto Rê era “um

que

tudo

está

intimamente

encadeado, por exemplo,

princípio organizador e criador (dos) espaços do Além” (GAMA, 2008: 158). O deus do mundo dos

“com o mesmo radical mut, os egípcios formavam o verbo morrer e os substantivos morto e morte. Este último é claramente uma contraposição com aquele da vida, ankh. Do deus se diz que é o 'senhor da vida e da morte'” (DUNAND; ZIVIE-COCHE, 2003, p. 181).

mortos não tinha conotação negativa, mas o fato é que todos os egípcios desejavam navegar na barca do sol, a barca do deus Rê. Tanto na vida quanto na morte se buscava a luz e o movimento. Movimentar-se era estar vivo. Tanto Kemet quanto a Duat se equivaliam em

Vemos, ao mesmo tempo, a admissão e a negação da morte.

ordem de importância e os dois mundos eram

Como ocorre com Osíris, deus morto que deve deixar a mulher, o filho e este mundo, os mortos humanos também devem deixar a terra, mas eles “não vão como mortos, eles vão como vivos” (Textos das Pirâmides 134), eles não têm uma vida no mundo dos mortos como fantasmas, eles acordam para uma vida nova, com plena possessão de corpo e espírito (GAMA, 2008, p. 172).

Egito. O homem egípcio sabia da brevidade da vida

admitidos dentro de um cosmos maior, o próprio terrena e, por isso, preocupava-se com a eternidade, ou seja, Kemet estava para o homem vivo assim como a Duat estava para o homem morto – era necessário viver bem nessas duas dimensões. Conclusão O mundo dos vivos (Kemet) e o mundo dos mortos

Quando nos reportamos ao estudo das religiões

(Duat), apesar de serem dois espaços diferentes,

antigas, percebemos que a egípcia é, dentre todas

eram indissociáveis através das relações entre vivos

as outras, a que mais apresenta caráter positivo. A

e mortos e da própria concepção do espaço. Os

morte não é vista como um fim e, tampouco, o

mortos faziam parte da vida cotidiana dos vivos

mundo dos mortos visto como um ambiente hostil.

uma vez que, habitando a Duat, haviam garantido a

Essa visão positiva não elimina os perigos do mundo

possibilidade de continuarem existindo. Através da

post-mortem, “a ideia de um castigo no Além que

importância das relações com os ancestrais, os

punia a conduta da vida terrena (era) muito antiga”

mortos eram sempre lembrados e podiam adquirir

(DUNAND; ZIVIE-COCHE, 2003, p. 343).

tanto caráter positivo quanto negativo.

Portando-se como espelho da terra do Egito, no mundo dos mortos os perigos também estavam presentes: se temos, por um lado, crocodilos e animais peçonhentos no mundo dos vivos, por outro lado, no mundo dos mortos, temos lagos

A partir da geografia do Egito é que a Duat foi imaginada e produzida; as relações dos egípcios com sua natureza ajudaram na concepção dos deuses e de suas características e do espaço dos


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mortos, imaginado de maneira semelhante ao espaço dos vivos. O espelhamento entre esses dois mundos se dava tanto na dimensão geográfica quanto na social, fazendo com que a separação dessas esferas no cosmos se desse de maneira tênue. Duat e Kemet são espaços contrastantes que, cada um a seu modo, atuavam no sentido de estabelecer e restabelecer o equilíbrio no cosmos.

Keidy Narelly Costa Matias é estudante pesquisadora da Cátedra UNESCO Archai, da Universidade de Brasília, e do MAAT – Núcleo de Estudo de História Antiga, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Orientada pela Dra. Marcia Vasques, cursa Mestrado em História e Espaço pela UFRN.

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