claro! Erro

Page 1

ERROR

Que “errar faz parte” todo mundo sabe. Essa máxima, repetida diversas vezes por professores iluminados durante qualquer processo de aprendizagem, parece absoluta, mas abre margens surpreendentes. E o que é, de fato, errar?

Durante a elaboração do claro! Erro, conseguimos que cada membro da nossa equipe, seja através dos elementos visuais ou das reportagens, cedesse parte

de sua subjetividade para chegar em uma definição nem um pouco definitiva.

A partir da leitura, esperamos também que o leitor agregue (e desmantele) suas próprias crenças em relação ao Erro.

Bem longe de ser crasso ou binário, o claro! Erro não apenas tem a pretensão de colocar em evidência tudo aquilo que foge à norma, mas de levar ao público leitor uma nova perspectiva e ressignificar o ato de errar.

Expediente - Reitor: Carlos Gilberto Carlotti Junior. Diretora da ECA-USP: Brasilina Passarelli. Chefe do departamento: Luciano Guimarães. Professora responsável: Eun Yung Park. Capa: Duda Ventura e Mariana Carneiro. Editores de conteúdo: Beatriz Sardinha e Lívia Magalhães. Editor de Arte: Antonio Misquey. Editora Online: Karolina Monte. Ilustradoras: Duda Ventura e Mariana Carneiro. Diagramadores: Gustavo Assef, Isabella Oliveira, João Pedro Barreto, Julia Castanha. Julia Custódio, Lorraine Moreira, Matheus Nistal, Rebeca Fonseca, Regis Ramos, Renato Brocchi. Repórteres: Amanda Marangoni, Bianca Camatta, Carolina Borin, Caroline Kellen, Diogo Bachega, Emilly Gondim, Gabriel Gama, João Aguiar, Junior Vieira, Lara Paiva, Larissa Leal, Laura Guedes, Maria Carolina Milaré, Natalia Nora, Rodrigo Tammaro, Rosiane Lopes, Thiago Campolina, Valentina Moreira e Victoria Borges. Endereço: Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, prédio 2 - Cidade Universitária, São Paulo, SP, 05508 920 Telefone: (11) 3091- 4112. O claro! é produzido pelos alunos do quinto semestre de Jornalismo como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo Impresso-Suplemento.

2
DIAGRAMAÇÃO Gustavo Assef

Aexpressão é usada para designar um equívoco básico que culmina em uma falha grotesca. Sua definição é por natureza subjetiva: vai de um tropeço, até uma grande queda.

O termo tem sua origem atribuída popularmente à derrota do general romano Marco Licínio Crasso na Batalha de Carras, em 53 a.C., Crasso invadiu o Império Parta sem consentimento do Senado, rejeitou ofertas de ajuda e esgotou seu exército ao marchar pelo deserto da Mesopotâmia. O resultado: uma das maiores derrotas de Roma, 50 mil mortes e o fim do próprio general.

O erro crasso daquele tempo ficou marcado na história. Mas, na nossa história pessoal, o que representaria um erro tão grotesco? Não valorizar o tempo que se passa com a família, errar o endereço de uma entrevista de emprego, deixar o carro morrer na prova de direção, não transferir a titularidade de uma conta. Cada pessoa tem sua própria definição.

O estudante João Francisco considera diferente um erro em um conceito ou fundamento de errar uma conta, por exemplo. Errar a base que fundamenta todo um pensamento é mais prejudicial do que sua prática.

Mas há quem não veja as coisas desse jeito: errar é essencial para aprender. Jorge, vendedor de livros, pensa de forma semelhante. Para ele, viver é como preparar comida: se coloca um pouco de sal, um pouco de pimenta, e sempre ajustando para no final ficar gostoso.

ER·RO CRAS·SO

EXPRESSÃO

Segundo os latinistas, “crasso” foi importado do latim crassus. O termo denota algo espesso e, por aproximação, grosseiro; a palavra precedeu a vida do general. Já era algo grotesco antes da grande derrota, mas é possível que tenha sido ela quem popularizou a expressão “erro crasso”. Aparecia nos dicionários brasileiros desde a segunda metade do século 19, provavelmente importado por via erudita.

Não se pode voltar no tempo — e é possível que, mesmo se pudéssemos, cometeríamos os mesmos erros cansados. Jorge opina: “O urbanista pode indicar a passagem dos pedestres e o arquiteto construir pontes. Mas, no fim do dia, quem trilha seu próprio caminho é o ser humano, que despreza trajetos prévios e busca sempre atalhos”.

DIAGRAMAÇÃO Regis Ramos

COLABORADORES Jane de Castro e Gilson Charles dos Santos, professores de latim na UnB; Pedro Paulo Funari, professor de história na Unicamp; Ricardo da Cunha Lima, professor de latim da USP; Fernando, Felipe, Eric, Brenda, Gabriel, Lorenzo, Marina, Erick e outros colaboradores anônimos.

3
maio 2023

NÃO MAIS A INCERTEZA DO BINÁRIO

Che Puri, artista e pessoa indígena de 23 anos, começou a questionar sua identidade de gênero ainda no ensino médio, influenciado por sua amiga travesti Luna. Designado mulher ao nascer, Puri nunca se identificou com o gênero. “Homem”, a única outra opção que conhecia, no entanto, também não contemplava sua existência.

Ele nunca foi um grande fã de matemática e aproveitava o tempo das aulas para investigar o que é gênero na internet. Quando se deparou com a expressão “não-binário”, um termo guarda-chuva que engloba pessoas que não se identificam como homens ou mulheres, enxergou-se no rótulo.

Karine Schluter, médica ginecologista e membro do AmbGen, Ambulatório de Gênero e Sexualidades da Unicamp, explica que a medicina também enxergava a transgeneridade dentro de classificações binárias. Para ela, as identidades que não se encaixam nessa lógica “subvertem ainda mais essa ideia e provocam um novo movimento no sentido da compreensão da amplitude da diversidade aí presente.”

Karine também diz que a medicina passa por uma reeducação para aprender a lidar com pacientes que não se encaixam nos gêneros binários, parte expressiva da comunidade trans. Uma pesquisa da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (Unesp),

publicada em 2021, indicou que cerca de 2% da população do Brasil é trans — dessas pessoas, a maioria é não-binária: 1,19% dos brasileiros. Parte desse pequeno número, Che diz que “a dificuldade começa quando você sai de casa e não é enxergado”. Em seu dia a dia, ele enfrenta o julgamento binário das pessoas com quem convive, que geralmente olham para um corpo com seios e entendem se tratar de uma mulher. “É uma luta muito grande para as pessoas deixarem essa visão binária de lado para entender que existem outras possibilidades de gênero.”

É essa dualidade restritiva que também está por trás das dificuldades que pessoas não-binárias enfrentam com a burocracia. Se hoje já é mais fácil para homens e mulheres trans retificarem o nome na certidão de nascimento e em outros documentos, outras pessoas trans ainda não conseguem fazer isso sem complicações — Che conta que precisou entrar na Justiça para conquistar o direito.

Para o artista, todos deveriam questionar a própria identidade, inclusive pessoas cis — aquelas que se identificam com o gênero designado no nascimento. “Eu queria que todo mundo tivesse essa experiência de se olhar e tentar se ver como gostaria. Todo mundo deveria se questionar de onde vêm esses papéis.”

DIAGRAMAÇÃO Renato Brocchi

4

SEM SEGUNDA CHANCE

Eu sempre escutei da minha mãe que eu precisava ser duas ou três vezes melhor do que qualquer outra pessoa para ser considerada igual”. O depoimento de Roberta Calixto, especialista em diversidade do Instituto Identidades do Brasil e coordenadora da organização As Josefinas, escancara uma realidade: a maioria das mulheres pretas não têm a chance de cometer erros durante sua jornada profissional.

Tal expressão do racismo é sentida desde a infância. A falta de letramento racial em parte do sistema de educação se manifesta contra crianças pretas que, muitas vezes, são desmotivadas em sala de aula e tratadas como caso perdido. Se apresentam um desempenho baixo, por exemplo, são inferiorizadas.

Quando adentram o ambiente corporativo, não demora para que as dificuldades impostas por uma sociedade racista continuem. Laiz Carvalho, economista chefe e fundadora da Black Swan, recorda que, ao olhar para o topo das empresas, não encontrava pessoas parecidas com ela.

Atravessadas pela violência, profissionais pretas têm suas experiências coletivizadas e carregam a missão de representar todo um grupo. Qualquer tropeço, por menor que seja, se torna argumento para a propagação de dis cursos semelhantes a “já contratei uma mulher preta para esse cargo e não deu certo”.

Com a avaliação constante de possíveis deslizes, o ar se torna ainda mais rarefeito para a diversidade nos postos de liderança das empresas, aponta Rachel Maia, ex-CEO da Lacoste no Brasil. Ao atingirem o topo, outra imposição é estabelecida: o que elas farão com o próprio legado? “O peso de ser ‘a única’ ou ‘a primeira’ é constante”, afirma Laiz.

Em meio a tantas expectativas, a conta também chega para a saúde mental dessas mulheres. Com a exigência de serem fortes a todo tempo, até mesmo o papel de vítimas lhes é negado. Cruel e enlouquecedor, o racismo tenta convencê-las de que a intolerância não existe.

Conceição Costa, psicóloga e coordenadora geral da Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(es), destaca que esse quadro exige um esforço mental e emocional elevado. A discriminação racial tende a potencializar doenças como ansiedade, depressão, Síndrome de Burnout e muitas outras patologias.

Os danos para a saúde mental refletem a disparidade de oportunidades que ainda domina o país. Roberta, Laiz e Rachel fazem parte dos 3% de mulheres pretas que ocupam cargos de liderança no Brasil — mas elas não ficarão sozinhas por muito tempo. A partir de suas organizações, auxiliam na construção de um mercado diverso e inclusivo.

5 maio
DIAGRAMAÇÃO Isabella Oliveira COLABORADORES Kelly Baptista, diretora-executiva da Fundação 1Bi; Consultoria Gestão Kairós por José Vieira e Laura Guedes

UM FUTURO

Você tem que escolher o que quer fazer da vida. Tem que trabalhar. Tem que parar de se escorar na sua família. Tem que ser independente. Tem que se encontrar logo. “É como se nada que fizéssemos fosse suficiente, ou tudo tá errado”, desabafa Jaine, 20 anos.

Jaine quer ser a primeira pessoa graduada da sua família, mas o tamanho do sonho fez com que ela tivesse dificuldade para decidir qual caminho seguir, ao passo que enfrentava a falta de apoio de pessoas próximas.

E a estudante não está sozinha. Sobrecargados de dúvidas, somam-se os jovens presos na inércia – em 2018, 23% dos brasileiros entre 15 e 24 anos não estavam trabalhando nem estudando, segundo pesquisa do Banco Interamericano de Desenvolvimento.

Satya Doyle é psicoterapeuta nos Estados Unidos e escreveu um livro para entender o que está acontecendo com os novos adultos. Ela conta que o cenário socioeconômico colocou em xeque marcos considerados importantes para o início da vida, imergindo os jovens em uma onda de procura existencial. “Se as pessoas estão questionando as estabilidades do planeta e os governos sob os quais vivem, participar cegamente da economia ou constituir uma família deixa de ser o suficiente”.

“Dá a entender que a nossa geração não quer grandes desafios, nada com a dureza, justamente porque muitas vezes o que está no campo do conhecido e foi apresentado como a vida possível para a gente não in -

(Relatório Banco Interamericano de Desenvolvimento 2018)

(Enade 2017)

Em 2017, 34% dos estudantes universitários eram os primeiros da família a entrar na graduação
23% dos jovens no Brasil nem trabalham nem estudam
Praticamente quatro cada dez crianças brasileiros são tas com o futuro. percentual entre pesquisados

(Ipsos 2018)

À DERIVA

teressa”, explica Mariana Carvalho, 24 anos, que no dia da entrevista acabava de trancar o curso de Direito na UFMG para ingressar em Antropologia.

A mudança faz parte de um sonho maior de passar a vida em um barco, velejando. Por 5 anos, ela circulou por diferentes espaços até chegar onde está hoje. Mas ter uma escolha não significa o fim das inseguranças. “Existe um medo nesse processo porque fica muito claro que não tem garantia”, explica. Ainda que trabalhe e tenha seus próprios recursos, há uma dúvida que a acompanha: “Será que vou conseguir fazer isso que eu quero?”.

Inventar o próprio caminho não vem com um tutorial. Com opções infinitas e sem metas ditadas, o jovem pensa: “qual vai ser o meu sucesso?”. Sem prova de admissão, sem uma entrevista para dizer se sim ou se não. Para Mariana e tantos outros, o sucesso é a construção inteira. É saber lidar com os “serás”.Inventar o próprio caminho não vem com um tutorial. Com opções infinitas e sem metas ditadas, o jovem pensa: ‘qual vai ser o meu sucesso?’. Sem prova de admissão, sem uma entrevista para dizer se sim ou se não. Para Mariana, o sucesso é a construção inteira. É saber lidar com os “serás”.

45%

(Semesp - mapa do ensino superior 11a edição - 2021)

44%

(projeto 30, pesquiseria, 2016)

DIAGRAMAÇÃO

maio 2023
Francisco Aguiar e Valentina Moreira
quatro entre crianças e jovens são pessimisfuturo. É o maior entre 15 países pesquisados
dos ingressantes na rede pública superior concluem o curso.
das pessoas com 30 anos sentem que “não chegaram onde queriam”
Matheus Nistal COLABORADORES Danilo Suassuna, psicólogo; Marcos Vono, psicólogo; Tey Yanagawa, sócia da Cia de Talentos

ARRI$CADO, MAS CONFIA

Um idiota, um pastel. Com poucas palavras, o técnico de informática Pedro* descreve as primeiras sensações ao descobrir que foi vítima de um golpe. A história envolve in vestimentos, criptomoedas e começa com um erro: confiar na promessa de dinheiro fácil.

Pedro até sabia dos riscos: a rentabilidade de 5% ao mês oferecida no contrato é imprati cável no mercado. Mesmo assim, ele entrou na onda dos amigos que há três anos de positavam dinheiro no negócio. Um deles era diretor da empresa que, cinco meses depois, faria Pedro se sentir um pastel.

Ele começou “colocando uma graninha”, foi seduzido e decidiu aplicar um pouco mais. Acabou investindo cerca de R$ 8 mil. É nesse convencimento que os golpes digitais costumam operar. “A origem da maioria dos golpes é um phishing, o discurso que conquista e seduz”, explica a economista e especialista em direito digital Elaine Keller.

O técnico de informática mordeu uma isca que atrai muita gente. Segundo o psicólogo financeiro Celso Sant’Ana, a ganância, o ime diatismo e a expectativa de ganhar dinheiro de forma rápida são os principais fatores que induzem as vítimas a cair em golpes de investimentos. Só em 2022, mais de R$ 2,5 bilhões foram roubados por fraudes financei ras no Brasil.

Depois de fisgado, correr atrás do prejuízo é um tiro no escuro. De acordo com Leo Rosenbaum, advogado especialista em golpes, dificilmente as vítimas recuperam o dinheiro nos casos de investimentos em criptomoedas. “Normalmente são esquemas de pirâmide, as empresas quebram e você não

acha os representantes porque está tudo no nome de laranjas.” Assim são chamadas as pessoas que oferecem os próprios dados para ocultar bens de terceiros.

Os amigos que já investiam no negócio justificaram que também foram enganados. Pedro diz acreditar nessa versão. Juntos, eles entraram com uma ação contra a empresa. “Mas ela não tinha um centavo no caixa, estava totalmente quebrada e os diretores com as contas bloqueadas”. Só restou se conformar.

Mesmo assim, os especialistas indicam o registro do boletim de ocorrência. Para Elaine Keller, isso chama atenção das autoridades, ainda que o dano não seja revertido. Ela explica que o aumento dos registros de crimes digitais levou a uma atualização na legislação brasileira, que agora estabelece uma tipificação específica para golpes com ativos virtuais. Atualmente, 43% das fraudes de investimento envolvem criptomo -

As vítimas cometem erros, mas não são culpadas. “Essas pessoas não são trouxas, elas foram encantadas”, diz Rosenbaum. O engano pode ser evitado recorrendo a instituições consolidadas na hora de investir e tendo cautela com ofertas muito tentadoras. Mesmo que elas venham de colegas. Como diz o ditado: amigos, amigos… negócios à

*O nome da fonte foi alterado para preservar sua identidade.

É
DIAGRAMAÇÃO Júlia Castanha dos Santos DADOS Banco Central e CVM
8
“Eu ainda perdi um valor ok, mas teve gente que perdeu R$ 900 mil, perdeu tudo.”
“Não
acredito em Papai Noel, mas caí no conto da sereia.”

MEU ERRO FOI ME AMAR DEMAIS

Oque acontece quando o amor que deveria ser o mais forte e incondicional de todos, é substituido por um amor que machuca? Mães narcisistas exercem uma relação parental conturbada e depreciativa – especialmente com suas filhas, pois veem nelas uma competição direta. “Eu nunca fui para o exterior, por que você tem que ir?” Foi o que Ana, filha de mãe narcisista, ouviu ao contar para mãe sobre sua primeira viagem para fora do país.

Enquanto Ester* seguia os ditos de sua mãe, era uma boa filha. Quando decidiu enfrentá-la, o cenário mudou: “virei uma cobra traiçoeira”. Para chegar ao padrão que agradasse sua mãe, Ester viveu a base de dietas. “Me chamava de gorda e barriguda, mesmo eu sendo magra”.

Segundo a psicóloga Tais Nicoletti, mães narcisistas são controladoras e esperam que os filhos façam o que consideram certo. Enxergam-nos como uma extensão de si mesmas, uma falha da prole significa uma falha da mãe. Apesar de inalcançável, a busca pela aceitação da mãe pode durar anos e afetar a maneira como os filhos lidam com relações futuras.

Acreditar que o amor sempre terá uma configuração dolorosa e que ninguém vai conseguir amá-las de outro jeito é um sentimento constante de mulheres que convivem com essas mães. Ana, após ser forçada pela mãe a casar aos 16 anos, se casou novamente e sofreu agressões morais e físicas do marido. Após se separar, o reencontrou na casa da mãe, que tinha uma ótima relação com o ex-genro – mesmo sabendo de toda a situação.

O controle da mãe narcisista pode se mesclar na relação parental e se tornar tão sútil que, por vezes, o filho pode não perceber que sofre abusos disfarçados de cuidados e preocupação. Críticas, humilhação e comparação, manipulação e chantagem emocional se escondem sob a justificativa do amor materno.

As consequências de uma relação parental narcísica são profundas e o adoecimento psíquico é iminente. Marcados pela incapacidade de formar uma personalidade, se desvencilhar de uma mãe narcísica e de um amor que machuca pode ser um labirinto sem saída.

*O nome da fonte foi alterado para preservar sua identidade.

DIAGRAMAÇÃO Rebeca Fonseca
9 maio 2023

suportar. Se bem que esses limites são ilusórios: 10 vezes abaixo da real capacidade. Chama-se coeficiente de segurança.

Entramos no primeiro vagão. O funcionário aperta o cinto e trava uma barra de metal que perpassa meus ombros. Pesquisas influenciadas por uma preocupação excessiva já diziam que esta é uma norma dupla: caso o cinto falhe, há a trava, e vice-versa. Mas essa lógica sugere a possibilidade de falhas. O que aconteceria se ambas falhassem? Calo meu espiral de pensamentos ilógicos.

No mesmo instante em que o carrinho parte, a chuva começa a cair. Lembro do efeito da chuva nas estruturas de metal. Será que a manutenção está em dia? Minha mente é interrompida: começamos a subir. Crec. Atrás de mim, um homem diz que sua trava está solta. O percurso continuou. Fechei meus olhos, todo o resto foi obscuro.

Felizmente, nada fatal aconteceu. Quando saio do carrinho, minhas pernas ainda tremem. Ao fim, o cinto cumpriu sua promessa. Mas a possibilidade de que ele poderia falhar ainda me atormenta. Não acho que terei coragem numa próxima vez.

10

DIAGRAMAÇÃO

ACONTECEQUANDO ?

Gilberto Camanho, ortopedista, viu colegas desistirem da profissão por medo de errar. A especialidade dele é a quarta mais denunciada por falhas em procedimentos. Em primeiro lugar, vem ginecologia e obstetrícia.

ERoberta* passou por um quadro de diabetes gestacional, mas a condição estava controlada quando chegou ao hospital para dar à luz. No final do parto, um sangramento anormal alarmou a equipe médica. Eles optaram por colocar um acesso em seu braço para continuar com a medicação e facilitar a realização de procedimentos necessários.

No final do dia, quando o marido de Roberta pode visitá-la, percebeu que os dedos de sua mão estavam pretos e alertou a enfermeira. Os médicos disseram que ela provavelmente estava perdendo a circulação porque havia deitado sobre a mão, o que, segundo a vítima, era impossível.

Sem entender o que estava acontecendo, ela precisou ser transferida para outro hospital. A avaliação da condição veio 22h depois: era um caso de urgência e havia só 5% de chance da mão não ser amputada. O procedimento foi feito às pressas, já que a paciente foi transferida com pouca documentação. “Eu não quis fazer uma cesárea por medo da cirurgia, porém precisei passar por várias”, conta.

O caso está em segredo de justiça e foi solicitado apoio do Ministério Público e da Secretaria de Saúde. Enquanto isso, a mãe tenta contornar as dificuldades: “Já consigo dar banho no meu filho, trocar, pegar ele. Coisas simples que não conseguia fazer.” A advogada de Roberta conta que duas sindicâncias foram abertas, ainda sem resposta. Um registro de ocorrência também foi feito no início do ano e o processo segue em curso.

Cerca de 55 mil pessoas morrem a cada ano no Brasil.

Outras tantas carregam as marcas dos “erros médicos” ao longo da vida. O Conselho Federal de Medicina os definem como dano provocado no paciente pela ação ou omissão do médico, sem a intenção de cometê-lo; gerado pela imprudência, imperícia ou negligência.

Errar é humano, mas o cuidado precisa ser redobrado quando a falha interfere diretamente no outro. Na medicina, um deslize pode custar o bem-estar ou a vida de alguém. As vítimas lidam diariamente com as marcas da negligência e do erro — e não há indenização ou pedido de desculpas que apague isso.

*Os nomes das fontes foram alterados para preservar sua identidade.

maio 2023 11
por Carolina Borin e Victoria Borges COLABORADOR Fernando Polastro, voluntário da ABRAVEM JuliaCustódio

FAÇA VOCÊ MESMO

ATorre de Pisa ou os prédios tortos da Orla de Santos podem impressionar — ou assustar — quem vê suas irregularidades. Essas construções cederam ao longo dos anos e trazem consequências aos que ainda moram lá. Em Santos, por exemplo, há prédios que possuem inclina ções de mais de um metro. Ali, os moradores dão um jeitinho, colocando calções nos móveis e reforçan do trancas de janelas e portas.

Mas não é preciso ir tão longe para en contrar anormalidades estruturais. Habi tações que por fora aparentam ser ideais, com paredes retas e solo estável, geram dores de cabeça igualmente descon fortáveis aos moradores.

A porta emperrada que precisa de uma força a mais para abrir e fechar. Os tímidos pingos de água quente durante os banhos no inverno prestes a queimar o chuveiro. A porta da geladeira fechada por uma corda. O jeitinho certo de ligar o fogão para que as chamas continuem acesas. Tomadas sobrecarregadas na iminência de causar algum desastre.

Essas cenas dificultam o bem-estar e complicam tarefas simples. No fim, como se adaptar e reparar tudo isso? Da única forma possível, claro: com ajuda da internet.

Eletricista? Arquiteto? Isso é da época em que não existia YouTube. Agora tudo é mais fácil. “Como esconder trincas da sua parede. Isso ninguém te ensinou.” “Tire o ar do seu chuveiro…sem chamar ninguém.”

“Emenda sem fita isolante, saiba como fazer.” “Veja o que fazer quando seu chuveiro está cheirando queimado.” As preciosidades dos tutoriais ensinam a consertar quase tudo. Poucos minutos e está resolvido, você tem uma

Não importa se é gambiarra, “gato”, ou o jeitinho brasileiro, a verdade é que ninguém está ileso. Você pode tentar consertar um vazamento na sua pia e falhar. No máximo o problema e os dígitos da conta de água vão aumentar.

Mas tudo tem limites. Querer isolar um fio elétrico com sacolinha de mercado é testar até onde sua fé te mantém vivo. Ou os puxadinhos nas casas para aumentar o espaço, que afloram o arquiteto interior dentro dos moradores, que nem mesmo sabem quanto peso as vigas podem suportar.

Em Santos, foram as camadas de areia e argila que deixaram os prédios instáveis, a estrutura não foi suficiente para sustentar o peso dos edifícios. Em situações mais simples, a falta de espaço e o uso de materiais duvidosos são o que dão início às adaptações e “consertos”.

Afinal, tudo é um pouco torto e remendado à sua medida. Na dúvida, fica apenas uma sugestão: consulte um profissional ou você acabará caindo junto com sua própria gambiarra.

12
DIAGRAMAÇÃO João Pedro Barreto COLABORADORES Leila Oliveira, que passou recentemente por reforma; Lívia Bianchi, moradora de um kitnet.; Thiago Silva, estudante; Felipe, eletricista; Denise Nunes, arquiteta
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.