claro! Identidade

Page 1


Faces do Ser por Aldrey Olegário e Matheus Nascimento com diagramação de Ana Carolina Guerra

claro! junho de 2022

Compreender o que faz cada pessoa e cada grupo único implica, necessariamente, em estar aberto para ouvir o outro dizer sua história de forma atenta. Porque mais que queiramos, nunca o veremos da forma que ele se vê. E entender isso faz com que a gente possa abarcar as complexidades da fluída Identidade. Ela é expressão e um dos objetivos máximos do viver: possibilitar o reconhecimento, buscado desde o primeiro respiro de vida. Diz respeito ao choque e à cumplicidade, ao que pertence à coletividade e ao individual. Temos dificuldade de nos perguntar Quem sou eu? Nem todos nós temos uma resposta pronta. Na verdade, em alguns momentos, talvez ela não precise existir. Somos e deixamos de ser a cada instante. Mas em outros, não há como desviar da pergunta e necessitamos sim (re)afirmar, não só pela fala, que sou e estou. Se recordarmos de nossa infância e encararmos a identidade como uma história contada, lembraremos que ela muda constantemente e que também pode ter vários narradores: os que participam, os que acompanham de fora e os que só repassam. Cada um de um lugar. E o imaginário que você constrói para identificar os personagens dessa historinha está intimamente ligada a quem te contou. Presenciar as transformações identitárias através dos próprios olhos humanos, grandes holofotes da realidade e da ilusão, passa a ser a maior função de registro histórico nas mãos de quem irá contar narrativas. Sejam elas da pessoa que está produzindo a sua descrição, de quem seleciona quais serão as suas novas descobertas e também daqueles mais experientes que transformam suas capacidades de aceitação e crítica através de reflexões profundas.

2

Expediente - Reitor: Carlos Gilberto Carlotti Junior. Diretora da ECA-USP: Brasilina Passarelli. Chefe do departamento: Luciano Maluly. Professora responsável: Eun Yung Park. Editores de conteúdo: Aldrey Olegario e Matheus Nascimento. Editoras de arte: Iasmin Rodrigues e Sarah Lídice. Editores online: Cadu Everton. Repórteres: Bruno Miliozi, Filipe Narciso, Isabella Marin, Luana Machado, Mariana Marques, Mateus Dias, Pedro Guilherme Costa, Rebeca Alencar, Theo Sales. Endereço: Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, prédio 2 – Cidade Universitária, São Paulo, SP, 05508-020. Telefone: (11) 3091-3121. O Claro! é um produzido pelos alunos do quinto semestre do curso de Jornalismo como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo Impresso – Suplemento.


12:00

50%

Eu, os outros e os apps Longe do nervosismo típico de encontros cara a cara, os matchs se tornam abrigo para fazer com que eu sinta que valho a pena e que sou admirado por outros. Esse relato é o de muitas pessoas que baixam aplicativos como Tinder, Happn ou Badoo, plataformas mais utilizadas desse segmento, para um carinho e acalentar o ego vez ou outra. Mas todo esse processo é voltado para minha própria identidade, afinal, é a mim que interessa o contato com outros e ser vista por eles. Sou eu que quero ser enxergado e, de alguma forma, admirado e ‘aceito’ (num match, por exemplo) em apps de relacionamentos. A construção da persona que decido apresentar é uma responsabilidade que recai irrevogavelmente sobre mim. Um mexe mexe nervoso adentra a mente: fotos e descrição. O que os outros pensarão do meu perfil? Ao mesmo tempo, visualizar as fotos dos pretendentes é julgar a todo momento os porquês de entregar um “sim” ou “não” para aquela pessoa. Está muito longe, não faz o meu tipo, gosta do Palmeiras e odeia baladas, parece esquisito...

Os matches vão se acumulando, mas viram mais como itens numa cesta. Tudo se transforma num mercado: começo acumulando matches como num estoque, me desfaço daqueles que não me interessam (descarte) e posso abandonar alguém por outro mais interessante (troca). Da mesma forma, há uma movimentação para objetificar as pessoas que aparecem na minha tela e me deparo com a possibilidade de alguém estar do outro lado da tela pensando o mesmo de mim. A preocupação bate cada vez mais forte quando tomo conhecimento de informações como o uso de classificação Elo no Tinder: o sistema vincularia um “nível de popularidade” ao perfil com base nas curtidas que recebeu. É assim que consigo descobrir, por exemplo, quanto estou valendo no mercado do outro e se vendi bem meu produto. Se me vendi bem. Isso gera uma certa disputa das aparências para ultrapassar o status do perfil de pessoas que nem mesmo conheço. Alguns matches e conversas sem rumo, elogios e está feito o propósito desses apps. Agora demorará algum tempo até precisar usar esse artifício novamente.

colaborou: Hellen Taynan, pesquisadora sobre objetificação e trocas em relacionamentos virtuais

claro! junho de 2022

por Isabela Marin com diagramação de Ana Carolina Guerra

3


por Rebeca Alencar com diagramação de Maria Clara Abaurre e fotos de Depositphotos

claro! junho de 2022

As portas para o set de filmagem se abrem. À esquerda, como nos filmes populares, uma drogaria… você já viu esse filme antes, certo? Errado. Tal qual um longa de mistério, você percebe que algo está fora do lugar. Não é o lustre luxuoso no teto da drogaria, pode não parecer, mas ele faz parte do cenário. Quem não faz, certamente, é você. Na cenografia, as vitrines com iluminação precisa expõem artigos da última moda francesa e italiana. Em sua grande maioria, todos de grifes tradicionais europeias e até mesmo os frequentadores parecem ter saído de “As Patricinhas de Beverly Hills”. Tudo isso na Zona Sul de São Paulo, em um dos shoppings de mais alto padrão do país. O presidente da Associação Brasileira de Shoppings Centers, Glauco Humai, justifica essas questões: o objetivo é afunilar o perfil de compradores e ditar o status do local. “Os shoppings contam com lojas âncoras, megalojas, cinemas e outras marcas famosas que atraem mais o interesse de determinados públicos”, explica. Olhando ao redor e observando lojas como Gucci,

4

* Os nomes de Letícia e Silvia foram alterados a pedido das fontes.

Prada, Balenciaga, é de se imaginar o tipo de consumidor que se busca atrair. Nesse filme, Letícia Marques, funcionária de uma das lojas do local, se veste de atriz com sua aparência, postura, e treinamentos profissionais constantes. Mas não se engane: seu papel é estar sempre atrás dos balcões. Diz já ter presenciado uma única venda de 1,5 milhão de reais, já vendeu bolsas de 190 mil, e afirma que naquela quarta-feira sua loja já havia feito várias vendas. Isso, às 18h da noite, ainda faltando 4h para o fim de seu expediente. Diretamente dos bastidores, Dona Sílvia, da equipe de limpeza, enquanto cuida e prepara os camarins está sempre de olho em quem circula por aí e acha que há pessoas de diversos perfis econômicos. Mas a assistente administrativa Beatriz Loiola, que só assiste a esse filme e que nunca compraria uma bolsa de 190 mil reais, embora passeie, não vê aquele espaço como seu. “A localização, o nome chique, as lojas caras, tudo isso é para esse público”, diz ela, se referindo à elite paulista. Esse longa pode ser um mistério. Mas e se for um romance, para os apaixonados pela vida de luxo? Ou comédia, ao notar que lá uma simples caneta pode custar mais da metade de um salário mínimo? Independente da resposta, existe um fato: aos olhos de quem for, é difícil acreditar que seja baseado em fatos reais.


Retrato falado

por Luana Machado com diagramação e fotos de Maria Clara Abaurre

Em setembro de 2020, Luiz, homem preto de 23 anos, saiu de sua casa em Niterói. No caminho, foi interceptado por uma viatura. Com apenas uma foto, retirada de uma rede social e disposta no sistema da Polícia Civil do Rio de Janeiro, e seu nome de referência, Luiz teve prisão decretada nas ruas de Niterói por dois policiais. Cinco dias foi o tempo de encarceramento do jovem violoncelista acusado de roubo. O crime: um furto em setembro de 2017 que ocorreu enquanto o músico performava para a Orquestra de Cordas da Grota. O caso de Luiz Carlos Justino é uma das histórias de falha no sistema de segurança pública e judiciário no Brasil, que colaboram para o encarceramento da população preta. No mesmo ano em que o músico foi preso, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro divulgou um relatório analisando casos de prisões injustas por erros de identificação. Dos casos avaliados, 70% dos presos eram negros e, em todos eles, o mesmo procedimento arbitrário que colocou Luiz atrás das grades: baseados em reconhecimentos pessoais em delegacias — não confirmados em juízo — seguidos pela absolvição dos réus. O método é o mais utilizado pelas sedes policiais: o show up, no qual a vítima é posta diante de fotografias para reconhecer o seu suspeito. Maurício Saporito, defensor público, conta que o processo de identificação nas delegacias brasileiras reforça o perfil do “criminoso ideal”: negro, jovem e de baixa renda. As fotos dos catálogos são em sua maioria constituídas por uma série de imagens desse suspeito ideal relatado por Saporito. E pior, não se sabe o critério de categorização e apresentação delas. Luiz não tinha passagem pela polícia, e sua imagem não deveria ter sido apresentada durante um reconhecimento em sede policial. Pablo Nunes, coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, explica que esses procedimentos são realiza-

dos de forma arbitrária, já que não existe metodologia padrão. As falhas processuais não são contabilizadas e não é possível precisar quantas prisões injustas ocorrem todos os dias ou quantos falsos reconhecimentos são realizados. Esse processo faz parte de um sistema de reafirmação do estereótipo do bandido que vitima pessoas negras. E o efeito disso é a insegurança constante para todos os Luízes, o medo da possibilidade de começar seu dia andando em liberdade pelas ruas e terminar encarcerado por um falso reconhecimento.

claro! junho de 2022 5


claro! junho de 2022 6

Muito perfume, muita make. Sapato alto... dá pra dançar com ele? Dá. Ir de azul ou vermelho? Eparrey Iansã! Vermelho. Pente garfo, pente garfo, pente garfo. Pro crespo ficar bem crespo. Pronto? Pronto. Um charme... indo pro baile charme. A partir das 11 da noite, uma luz verde recebe os frequentadores do baile que, segundo o produtor musical Peeh Costa, chegam de todos os lugares de São Paulo para os Campos Elísios. Realizado gratuitamente no centro cultural e quilombo urbano Aparelha Luzia (ou apenas “o quilombo”), sempre na última sexta-feira do mês, o baile da produtora musical Discotecagem Preta reúne centenas de pessoas. Centenas de pessoas pretas. Fundada pela artista e deputada estadual Erica Malunguinho em abril de 2016, a Aparelha Luzia foi nomeada em homenagem aos aparelhos, apartamentos e casas onde aqueles que resistiam à Ditadura Militar se reuniam clandestinamente. Definida por sua fundadora como “associação-preta-política-artística-gentistadestruidora-das-razões-dominantes”, o local acolhe formas variadas de expressões culturais negras que dificilmente teriam local, oportunidade e liberdade em outros espaços. Mas vamos ao baile. Salão amplo de cor terracota com colunas brancas, iluminação de cores quentes e uma ampla mesa de som na lateral. Todo frio do outono fica do lado de fora quando os DJs começam a trabalhar. Reggae, pop, blues, funk: o que importa é ter rima com os pés. Foi ao som de Heartbreaker (1999), música de Mariah Carey com participação de Jay-Z, que o fenômeno começou. Todas as pessoas que estavam na pista entraram, aos poucos, em uma mágica sincronia. Cada batida, um passinho. Cada olhar, uma troca. Cada sorriso, resistência. Naqueles segundos preciosos do baile tinhase certeza de que aquele charme era único. Pouco tempo depois, a música Last Night (2007), de Diddy e Keyshia Cole, lotou o salão. Mas não era um problema: Peeh Costa falou sobre como a festa consegue se adaptar para não deixar ninguém de fora. O interior cria uma ponte com o exterior, e as pessoas que ainda não entraram na festa, curtem na calçada. É justamente na conexão entre o centro e a rua, dentro e fora, que toda uma cultura se desenvolve e, mais importante, se sustenta. O artista visual Ademir Martins conhece bem a dinâmica do evento.

Suando lib ritmo do


berdade no o Charme por Mariana Marques e Pedro Guilherme Massa com diagramação e fotos de Pedro Ferreira

claro! junho de 2022

Frequentador do “quilombo” desde a sua reabertura após a flexibilização das medidas sanitárias, ele comercializa peças artesanais autorais ao lado da entrada do Aparelha. Ademir define o baile como uma “cultura limpa”, por estar longe dos interesses comerciais de grandes empresas. Do lado de fora, uma mulher vestida toda de branco, com uma echarpe de estampa de leopardo chamava a atenção. Não exatamente naquele instante, apesar do seu estilo, mas na hora da pista: animada e incansável, transmitia sua energia e passinhos ao restante do salão. Desde sua infância, já frequentava incontáveis bailes charme, que faziam parte das festas da sua família. Gisa é uma das produtoras do espaço e invoca o seu tom político ao criticar a ausência de bailes feitos de, e para, pessoas pretas. Para Gisa e outros frequentadores, aquele é um importante espaço de aquilombamento, onde a comunidade negra pode estabelecer autocuidado, acolhimento e resistência enquanto coletividade. Já são 3 da manhã e a casa não para de encher. Peeh vê nas mais de 500 pessoas em movimento, iluminadas pela forte luz roxa, um lugar de autoafirmação e de ressignificação. “Corpos pretos suados em movimento de liberdade”. Esse é o tema principal da Discotecagem, que esse ano busca repensar a existência desses corpos. No baile, o suor representa a libertação em sintonia do sofrimento, substituída pela possibilidade de amar-se e ao próximo. E falando no próximo, o produtor da Discotecagem Preta fala sobre um plano futuro para os bailes de São Paulo, atualmente localizados em sua área central. O corpo de uma pessoa preta, preenchida pelo mapa da cidade, ilustra os flyers de divulgação dos eventos deste ano, com um recado subliminar: expansão. Em um movimento de descentralização, levar os bailes para a periferia é um dos principais objetivos do grupo. 4:40 da manhã. Se despedindo do funk, os primeiros grupos começam a se formar para peregrinar até o metrô Marechal Deodoro. No muro oposto à entrada do baile, algumas frases marcantes preenchem a mente dos que esperam até o próximo mês. Dentre elas, uma ilustra bem o espírito presente entre os passinhos, as paqueras e o suor de uma negritude em movimento: “O corpo é porto, é barco, é ponte”.

7


Axé para (R)existir

claro! junho de 2022

Conta um itan (mito da cultura iorubá) que o próprio Exú ensinou a um homem chamado Ogan a arte de tocar e cantar para os orixás. A partir de então, a pessoa que fosse responsável pela musicalidade dos deuses receberia o cargo de Ogan. Diante dessa responsabilidade, Alexandre Buda, mestre de percussão, busca a conexão com o sagrado através dos cânticos e toques. Filho de Ialorixá (mãe-de-santo), o músico e professor teve seu primeiro contato com o Candomblé e a musicalidade sagrada através da barriga de sua mãe. Apaixonado pelo som dos atabaques, quando criança, ao voltar para casa após o candomblé com a mãe, Buda passava a noite tentando imitar os movimentos das mãos dos experientes ogans. Para o músico, sua profissão e meio de vida, parte de sua identidade, vieram a partir de sua religiosidade. Enquanto os ogan tocam para as divindades, seus filhos dançam em transe. O babalorixá (pai-de-santo) David incorpora seu Santo: Xangô, o Senhor da Justiça e, ao receber a divindade em seu Orí (cabeça), ele assume sua personalidade. Porém, suas características não se espelham em seu orixá apenas quando está em transe. Como Omo Òrisà (filho-de-santo), a pessoa carrega características de seu Santo em seu corpo e em sua personalidade, explica o sacerdote.

8


por Theo Sales com diagramação de Vinicius Machuca e fotos de Theo Sales

Orí eni ní um’ni j’oba. Em iorubá: a cabeça de uma pessoa faz dela um rei. Filho de Xangô, o rei do Império de Oyó, David se identifica com aspectos de seu orixá, como o senso de justiça e a oratória. Seus deuses e seus ancestrais são meios de se entender a si mesmo, por meio dos arquétipos, histórias e experiências. Essa relação dentro do candomblé acontece com Thauane Rodrigues, que busca forças em Iyewa, sua orixá, e Iemanjá. Mas também na história das mulheres fortes que vieram antes dela — suas mães e avós, carnais e de fé — que, com muita luta, perpetuaram sua crença. Ela será a herdeira do seu terreiro, a Casa de Iemanjá. Essa responsabilidade pesa sobre suas costas, mas ela não foge e assume essa posição com orgulho, inspirada na história de luta do povo de axé. Também da Casa de Iemanjá, Ana Cavalcante, filha de Xangô e de Oyá, vê o terreiro construído por sua família para além do espaço de culto ao sagrado: como um local de resgate de sua ancestralidade e identidade cultural. Para ela, as origens africanas da religião são uma forma de afirmação racial. Ser do axé é uma forma de honrar seus antepassados e afirmar a negritude latente em suas veias.

claro! junho de 2022 9


m

T

ão ç i S N A R

claro! junho de 2022

Est a

mo se

Imagine se olhar no espelho e se ver como sempre sonhou: uns quilos a menos, peitos maiores, um nariz menor. As pessoas podem ou não fazer procedimentos e transformações, mas com ou sem eles, elas só querem se identificar e conversar melhor com o seu reflexo. Se achar diferente desde criança e se questionar o porquê dessa diferença é doloroso. Entretanto, o espelho que pode ser visto como um inimigo, na verdade trata-se de um poderoso aliado no processo de identificação como pessoa trans. Para Yasmin, ele foi um objeto de projeção da pessoa que ela era por dentro. Ou um refúgio, uma forma de iden tificar traços e curvas que Gabriela amava ainda antes de se reconhecer uma mulher. O processo de transição é repleto de sensações. Euforia, ansiedade e angústia marcam todo o lento caminho. O cabelo começa a crescer; a gordura corporal vai se realocando pelo corpo; a barba já começa a dar indícios de crescimento; a terapia hormonal já dá seus primeiros resultados. A auto identificação vai além das mudanças corporais. É entender que é um reencontro consigo mesmo na plenitude do seu corpo, de uma maneira a sentir-se confortável sobre sua própria pele, como sustenta a psicóloga Brune. A transição é uma história sem ponto final comum, ou sequer um fim. Sem um padrão a ser seguido, ela não exige uma perfeição para se chegar ao extremo oposto. O vilão seria os padrões de binariedade impostos pela cisgeneridade. Esses que podem acarretar ansiedade e depressão, em momentos que na verdade são gratificantes e de felicidade plena, como foi para Gabriela e Yasmin. Essa passagem é como uma borboleta em um desabrochar sem fim. Um processo, como “Quando arremessamos uma pedra no rio, nem nós somos o mesmo, nem a pedra é a mesma, nem o rio é mesmo”. O que refletimos hoje, não é o que refletiremos amanhã. Estamos em TRANSição.

10

por Mateus Dias com diagramação e fotos por Ana Paula Alves colaboraram: Brune Coelho, mulher trans e psicóloga. Gabriela Lohan, atriz; Yasmin Pádua, dentista;


Mas eu sempre f ui assim

Com o anúncio de uma gravidez desejada, se inicia uma série de rituais: os exames de rotina, o chá de revelação, a escolha do nome, a compra do berço e das decorações, as conversas sobre o futuro do bebê e de seus pais. E, em um dia ansiosamente aguardado, a criança nasce — e é a coisa mais linda que eles já viram. Mas nem sempre o projeto de ser humano em seus braços é o ser humano imaginado anteriormente. Na verdade, na maioria das vezes não é. Se a família é um microcosmo da sociedade em que está inserida, um Ocidente capacitista cisheteronormativo incute uma série de crenças em famílias em que crianças com deficiência ou identidade queer ou ambos, ou seja, com qualquer forma de divergência daquilo socialmente aceito, são vulneráveis não só por sua relação com o resto do mundo, mas pela relação com suas próprias famílias. Os desafios de conciliar a proteção familiar com o direito de uma criança tomar as próprias decisões é uma das adversidades fundamentais da estrutura familiar. De acordo com o psicólogo Mauro Luis Vieira, há a necessidade dos pais considerarem a flexibilidade de seus valores. É relevante para a interação desenvolver espaços de diálogo, em que seja possível expressar confiança nas escolhas de seu próprio filho.

por Filipe Narciso com diagramação e fotos por Ana Paula Alves

colaboraram: Amanda Schöffel Sehn - Professora da UNIJUÍ e integrante do Núcleo de Infância e Família (NUDIF) da UFRGS;; Mauro Luis Vieira - Professor da UFSC e Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Desenvolvimento Infantil (NEPeDI).

claro! junho de 2022

A popularização do termo smothering, gerúndio de um verbo traduzido do inglês como “sufocar”, que em sua estrutura se encontra também a palavra “mother” — mãe —, ao tratar de pais que ao serem tão superprotetores deixam seus filhos emocionalmente dependentes e inseguros, expõe as contraditórias dinâmicas familiares contemporâneas. Se até mesmo o amor e a preocupação podem ser um impedimento para o desenvolvimento infantil, os desafios da paternidade não são só uma questão de ser presente, mas também de equilíbrio. Quanto às promessas que antecedem o nascimento, a psicóloga Amanda Sehn aponta que o processo denominado luto do bebê imaginário é extremamente relevante para a parentalidade. De acordo com ela, criar expectativas sobre seu bebê é fundamental para a constituição psíquica dos pais. Mas, com o nascimento do filho, é importante deixar a criança idealizada ir para abraçar aquela que realmente nasceu. Vieira reforça que criar expectativas é uma característica da natureza humana. No entanto, expectativas cristalizadas demais são quebradiças. A realidade é bem mais complexa: algumas crianças nunca gostarão de rosa ou vão sonhar em ser um jogador de futebol ou sequer vão ser neurotípicas — e isso não as fazem menos dignas de amor e apoio.

11


“Misto, a vergonha do Nordeste” por Bruno Miliozi, com diagramação de Lucas Zacari e ilustrações de Iasmin Rodrigues

claro! claro!junho junhode de2022 2022

Seu setor no estádio é cercado, sinalizado por flechas que apontam: “vergonha do Nordeste”. Aliás, mesmo antes de se sentar, ele é lembrado de sua posição sem brio, de seu ato de desonra, e é recebido aos cantos: “Misto, misto, misto. Tu nasceu no Ceará. Vira-lata, traidor”. Assim é tratado o torcedor misto. Personagem comum no cenário do futebol nordestino, o misto é aquele que, seja por influência midiática ou por resultados esportivos, não doa sua paixão completa ao clube de sua região, preferindo vestir as cores de equipes de mais destaque nacional, como as do Rio de Janeiro e São Paulo. Esse é um movimento antigo que, para Artur Alves de Vasconcelos, sociólogo especializado em futebol nordestino, tem relação direta com cobertura da imprensa e poderio esportivo. Afinal, com os clubes do “eixo” jogando e vencendo competições televisionadas, o amante do esporte tende a criar um vínculo emocional, se sentir pertencente a esse nível mais distinto do futebol. Durante grande parte dos anos 80, 90 e 2000, enquanto o Flamengo jogava na elite, todo domingo à tarde, na TV, com 100 mil pes-

2

12

colaborou: Rick Martins, torcedor do Ceará

soas no estádio e craques da Seleção Brasileira em campo, Ceará, Fortaleza e outros nordestinos brigavam por pontos na segunda divisão às noites de terça, em gramados precários, para ganharem nota de rodapé nos jornais do dia seguinte. No entanto, para os anti-mistos, a identidade regional fala mais alto. Com um discurso de pertencimento, cresce, alinhada às redes sociais, a ação desses torcedores. Sua principal argumentação, segundo Artur, é a de que “um nordestino não deve torcer para um time de outro estado; torcer para time de fora é sinal de ‘alienação’ e tais torcedores precisam ser ‘conscientizados’”. Lucas Andrade, que zomba com os mistos em seu Instagram “Zorrinha”, explica que a expressão não tem intenção de machucar, mas “carrega um lance de traição à nossa terra”. E do outro lado? Ricardo Tavares, misto assumido, é editor-chefe do portal “Futebol Cearense”. Ele reprova a agressividade de termos como “vergonha do nordeste”, mas reconhece a importância dos “anti-mistos”. “Só o apoio do torcedor pode fortalecer o esporte na nossa região”. Cada um consome o futebol à sua moda. Há quem vá buscar fora, mas há quem prefira o da raiz, o típico, com cheiro e gosto da sua terra, o futebol que viu crescer. O grito é para que vejam que o épico, o tradicional, o grandioso, também vem do Nordeste.


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.