Os Territórios da Ciência e da Religião

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os territórios da ciência e da religião



Peter Harrison

os territórios da ciência e da religião

tradução

djair dias filho


OS TERRITÓRIOS DA CIÊNCIA E DA RELIGIÃO Categoria: Apologética / Ética / Vida cristã

Copyright © 2015 The University of Chicago. Todos os direitos reservados. Publicado sob licença de The University of Chicago Press, Chicago, IL, Estados Unidos. Título original em inglês: The Territories of Science and Religion Primeira edição: Maio de 2017 Coordenação editorial: Guilherme de Carvalho Tradução: Djair Dias Filho Revisão técnica: Breno Mendes

Daniel Guanaes

Revisão geral: Claudete Agua de Melo

Marcelo Meireles Braga Cabral

Diagramação: Bruno Menezes Capa: Douglas Lucas

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Harrison, Peter Os territórios da ciência e da religião / Peter Harrison ; tradução Djair Dias Filho. — Viçosa, MG : Ultimato, 2017. ISBN 978-85-7779-163-7 Título original: The Territories of Science and Religion 1. Ciência - História 2. Religião e ciência I. Título.

17-03555 Índices para catálogo sistemático: 1. Ciência e religião 215

Publicado no Brasil com autorização e com todos os direitos reservados Editora Ultimato Ltda Caixa Postal 43 36570-000 Viçosa, MG Telefone: 31 3611-8500 www.ultimato.com.br

CDD-215


As últimas décadas testemunharam um florescimento mundial sem precedentes do diálogo entre a religião e as ciências, particularmente entre a teologia cristã e o campo científico. Atualmente várias associações internacionais, instituições acadêmicas, igrejas e missões cristãs contribuem para um esforço conjunto de construção de pontes entre a fé cristã e a ciência contemporânea. No Brasil, tanto as pressões laicizantes dentro e fora das igrejas quanto o próprio amadurecimento intelectual e cultural dos cristãos vêm aprofundando e expandindo o debate sobre fé e ciência, fazendo dele um imperativo espiritual e testemunhal para nossa geração. Para ajudar a comunidade cristã e a comunidade científica na compreensão da importância e do caráter desse diálogo global, e visando uma comunicação rica e significativa entre esses campos, apresentamos a série “Ciência e Fé Cristã”. Apresentará perspectivas cristãs sobre campos diversos, como a teologia natural ou teologia da natureza, filosofia da tecnologia, biologia e teoria evolucionária, história da ciência, temas de filosofia da ciência, neurociências, física e cosmologia, e a relação entre a Bíblia e a ciência.


A amostragem de obras incluídas nesta série privilegia contribuições substanciais a esse diálogo contemporâneo realizadas a partir da tradição cristã evangélica ou compatíveis com essa tradição de fé. Com isso, a série procura fertilizar a reflexão avançada sobre tais temas no contexto evangelical brasileiro e entre aqueles interessados no diálogo, com vistas a uma participação mais rica e independente na conversação pública dos evangélicos com outras tradições religiosas ou seculares. Esperamos, ainda, promover uma contribuição amadurecida para o universo acadêmico brasileiro. A série “Ciência e Fé Cristã” é, enfim, um convite a todos aqueles que queiram mergulhar nesse fantástico universo de debates, conhecimentos e questões que tocam a nossa existência. Afinal, tanto o Livro da Criação quanto o Livro da Revelação merecem lugar em nossas cabeceiras.

Soli Deo Gloria. Guilherme de Carvalho e Roberto Covolan Editores Marcelo Cabral Editor assistente

Esta publicação contou com o apoio e financiamento da Templeton World Charity Foundation, Inc. As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente aquelas da TWCF.


Para Tom



Sumário

Prefácio Nota sobre os gráficos

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1. Os territórios da ciência e da religião

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2. O cosmo e a busca religiosa

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3. Sinais e causas

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4. A ciência e as origens da “religião”

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5. Utilidade e progresso

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6. A ciência professada

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Epílogo

195

Agradecimentos

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Abreviações

213

Notas

215

Bibliografia

263

Índice

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Prefácio

Este livro é a versão revisada das Preleções Gifford, apresentadas

na Universidade de Edimburgo em fevereiro de 2011. As palestras buscaram abordar a história de dois conjuntos inter-relacionados de temas – aqueles ligados à natureza do universo físico e suas operações e aqueles que dizem respeito aos objetivos da existência humana e seus valores morais. Hoje em dia tendemos a pensar nessas questões como se pertencessem aos domínios distintos da ciência e da religião. Quando observamos o passado, no entanto, vemos que os limites desses dois domínios eram entendidos de modo muito diferente e que as questões que dizem respeito ao sentido e ao valor humanos últimos eram raramente dissociadas do entendimento da natureza do universo. Em certo sentido, então, este livro trata da história da ciência e da religião no Ocidente. Seria, porém, mais preciso dizer que ele busca descrever como viemos a entender o mundo do ponto de vista destas categorias distintas de “ciência”


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e “religião” – como, em outras palavras, viemos a separar o domínio dos fatos materiais da esfera dos valores morais e religiosos. Este tema traz consigo dois desafios em particular. O primeiro deve ser, de imediato, mais ou menos aparente. Este livro não pode ser uma simples história das relações entre ciência e religião, já que meu argumento é que essas duas ideias, conforme são entendidas no presente, são concepções relativamente recentes que surgiram no Ocidente no decorrer dos últimos trezentos anos. O que procurei fazer, portanto, foi examinar atividades passadas que eram tipicamente entendidas nesses termos ou eram consideradas como se conduzissem a eles. Parte significativa deste exercício será uma consideração do destino dos termos latinos scientia e religio. Essas duas noções começam como qualidades interiores da pessoa – “virtudes”, se assim preferir – antes de tornarem-se entidades concretas e abstratas entendidas essencialmente do ponto de vista de doutrinas e práticas. Esse processo de objetificação é precondição para a relação entre ciência e religião. Além da consideração dos termos latinos a partir dos quais as palavras atuais “ciência” e “religião” derivam, rastrearemos também configurações dinâmicas de outros conceitos genealogicamente relacionados às nossas ideias atuais de ciência e religião. Estão incluídos “filosofia”, “filosofia natural”, “teologia”, “crença” e “doutrina”, todos os quais possuíam significados para agentes históricos passados que nos são bastante estranhos atualmente. Uma das minhas sugestões será que há o perigo de interpretar erroneamente atividades passadas, caso pressuponhamos equivocadamente a estabilidade do significado dessas expressões. Um segundo desafio diz respeito à amplitude histórica deste livro, que começa com a Grécia clássica e o cristianismo antigo e se estende até o fim do século 19. Isso talvez possa parecer deveras ambicioso, ainda mais à luz da tendência acadêmica da rígida especialização histórica. Esse escopo, porém, é necessário, em parte porque procuro questionar narrativas comuns sobre a trajetória da ciência que refletem essa magnitude começando do seu nascimento entre os gregos antigos, seu declínio na Idade Média cristã, sua revitalização com a revolução científica e o triunfo final com a profissionalização da ciência no século 19. Também é relevante que, enquanto religião histórica, o cristianismo atual ainda é avaliado em relação às suas formas iniciais, o que justifica prestar atenção à era cristã antiga. Dito isso, não busquei fornecer uma história detalhada


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dos múltiplos modos pelos quais, no Ocidente, o estudo do mundo natural era relacionado com questões filosóficas e religiosas mais amplas. Em vez disso, tentei “perfurar” momentos históricos específicos, antes de prosseguir conduzindo exercícios parecidos para períodos históricos posteriores. Esta abordagem comparativa por amostragem inevitavelmente deixará de fora algumas partes importantes do enredo, mas nos permitirá fazer um inventário de noções relevantes em diversos pontos da História e a realizar uma avaliação das mudanças pelas quais elas passaram. Essas lacunas na narrativa também dificultarão a especificação de causas para todas as transições identificadas, mas, de todo modo, questões de causalidade histórica são notavelmente difíceis. Não obstante, proporei algumas sugestões do porquê aquilo que considero ser transição decisiva ocorre especificamente em dado momento histórico. O livro é a culminação de inúmeros projetos nos quais tenho estado trabalhando ao longo dos últimos vinte anos, começando com minhas pesquisas iniciais acerca da nossa noção ocidental de “religião” e incorporando trabalhos mais recentes sobre a identidade da filosofia e da ciência em diferentes períodos históricos, bem como sobre a relação histórica entre ciência e religião. Repetirei versões de alguns argumentos que desenvolvi anteriormente, mas o livro propõe o que eu acredito ser uma perspectiva completamente nova em relação a essas questões, em especial na sua busca por relacionar mais detidamente a história da filosofia moral com a história da ciência. Em relação às palestras conforme foram apresentadas, embora eu tenha feito revisões e acréscimos significativos, os seis capítulos do livro correspondem ao conteúdo das seis palestras originais (em alguns casos, de modo mais fiel do que em outros). O primeiro capítulo fornece um panorama compacto do argumento geral e os capítulos subsequentes preenchem os detalhes. Também acrescentei o aparato acadêmico na forma de notas de fim substanciais para quem estiver interessado em averiguar as fontes ou desejar investigar pontos específicos com um pouco mais de detalhes. As notas me permitirão deixar algumas discussões mais esotéricas fora do texto e a manter ao menos parte do estilo das apresentações orais. Em conformidade com o tom original das palestras nas quais este livro se baseia, tentei simplesmente contar a história e me abstive (ou ao menos procurei me abster) de intrometer na narrativa reflexões teóricas mais recônditas. Dito isso, acrescentei um

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breve epílogo no qual ofereço rápidos comentários sobre questões teóricas, além de observações sobre o modo como minha descrição se relaciona com outras discussões da história da modernidade ocidental.


Nota sobre os gráficos

A figura 3 baseia-se em pesquisas de palavras em Early English Books Online Text Creation Partnership [Parceria de criação de textos online de livros ingleses antigos].1 Gráficos de pesquisas de palavras cobrindo o final do período moderno (figuras 6, 9, 11-14) baseiam-se em pesquisas visuais no Google Ngram.2 Essa tecnologia, lançada em 2011, permite pesquisas de frequências de palavras nos textos atualmente disponíveis na base de dados do Google Books. A escala nos eixos y é a porcentagem de títulos nos quais o termo ocorre. Os dados não são totalmente confiáveis, uma vez que as datas de publicação de alguns textos na base de dados foram registradas incorretamente. Até onde foi possível, verifiquei as datas de publicação, principalmente de obras mais antigas, e usei os dados para criar gráficos de barras. Devo acrescentar que utilizei os gráficos sobretudo com fins ilustrativos, para confirmar conclusões já estabelecidas por outros meios.



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Como são ridículos os limites dos mortais! – Sêneca, Questões Naturais1

As ideias acerca de Deus nutridas por homens perversos devem ser más, e aquelas de homens bons, as mais excelentes. – Clemente de Alexandria, Stromata2

Mapas e territórios

Se um historiador afirmasse que descobriu indícios de uma guerra até então desconhecida que teria irrompido no ano de 1600 entre Israel e Egito, essa afirmação seria tratada com certo ceticismo. A refutação dessa afirmação envolveria simplesmente indicar que os Estados de Israel e do Egito não existiam no início do período moderno e que quaisquer conflitos travados àquela época não poderiam, por nenhuma interpretação razoável, ser descritos com precisão como se envolvessem uma guerra entre Israel e Egito. Tampouco historiadores céticos ficariam impressionados se seu colega apresentasse mapas medievais indicando a existência de lugares como Jerusalém e Alexandria e incluindo as diversas características topográficas –


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rios, desertos, montanhas, planícies e costas – que atualmente talvez incluamos em qualquer descrição dos Estados atuais de Israel e do Egito (ver figura 1). No caso, o que estaria em jogo não é se o território geográfico em questão existia à época, mas sim se haviam fronteiras e identidades nacionais autoconscientes comparáveis. A negação da existência de uma Israel do século 16 não implica a negação da existência do território que hoje constitui a nação, mas sim a negação de que o território fosse então visto a partir de determinado ponto de vista, como algo circunscrito por um conjunto de fronteiras e fundamentado por ideais específicos de nação.3 Durante esse período, os territórios do que hoje conhecemos como Israel e Egito eram parte da mesma coisa, a saber, o Império Otomano. A ideia de uma Israel medieval e um Egito medieval só pôde surgir mediante a aplicação equivocada dos nossos mapas atuais a territórios passados.

Figura 1. Mapa do Império Otomano por Abraão Ortélio, da obra Theatrum Orbis Terrarum (1570).

Minha sugestão é que algo parecido seja válido para as entidades “ciência” e “religião” e, mais especificamente, que muitas afirmações acerca de supostas relações históricas sejam confusas pela mesmíssima razão das alegações acerca de um conflito no século 16 entre Israel e Egito: isto é, envolvem a


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projeção deturpadora dos nossos mapas conceituais atuais aos territórios intelectuais do passado. Os conceitos “ciência” e “religião” são tão familiares e as atividades e realizações comumente rotuladas como “religiosas” e “científicas” são tão centrais à cultura ocidental que é natural supor que se tratam de características permanentes da paisagem cultural do Ocidente. Essa visão, contudo, está errada. De fato, é verdade que, no Ocidente, desde o sexto século a.C., houve tentativas de descrever o mundo sistematicamente, de entender os princípios fundamentais por trás dos fenômenos naturais e de propor explicações naturalísticas das causas em operação no cosmo. Todavia, como veremos, essas práticas passadas mantêm apenas uma semelhança aparente com a ciência atual. Também é verdade que, quase desde o começo da História documentada, diversas sociedades dedicaram-se a celebrações religiosas, reservaram espaços e tempos sagrados e nutriram crenças sobre realidades transcendentais e conduta correta; porém, somente em tempos recentes é que essas crenças e atividades ficaram amarradas à noção comum de “religião” e foram separadas dos domínios “não religiosos” ou seculares da existência humana. Ao ressaltar que “ciência” e “religião” são conceitos de cunhagem relativamente recente, pretendo fazer mais do que uma afirmação histórica acerca da aplicação anacrônica de conceitos atuais a eras passadas. O que tenho em mente não é apenas expor a história de como estas categorias de “ciência” e “religião” emergiram na consciência ocidental, mas também mostrar como o modo da sua emergência é capaz de fornecer percepções cruciais sobre suas relações presentes. Do mesmo modo que podemos esclarecer conflitos internacionais contemporâneos ao atentar para os processos históricos pelos quais fronteiras nacionais foram estabelecidas a partir de determinado território geográfico, assim se dá também com os respectivos territórios da religião e das ciências naturais. Como as fronteiras de estados nacionais são muitas vezes mais uma consequência de ambições imperiais, conveniência política e contingências históricas do que uma atenção consciente a falhas sísmicas mais “naturais” de geografia, cultura e etnia – nesse contexto, pense nas fronteiras do Estado atual de Israel –, assim também a compartimentação da cultura ocidental moderna que deu origem às noções distintas de “ciência” e “religião” resultou não de uma consideração racional ou desapaixonada sobre como dividir a vida cultural segundo linhas de fratura naturais, mas em grau considerável

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teve a ver com o poder político – concebido de modo amplo – e com as intempéries da História. As articulações da natureza

Outro modo de pensar sobre esses dois conceitos é considerar uma analogia com o que os filósofos denominam “tipos naturais”. O rótulo “gênero natural” aplica-se a agrupamentos naturais de coisas, cuja identidade é natural no sentido de que não depende de seres humanos. As ciências da química e da zoologia, por exemplo, buscam identificar esses gêneros. Elementos e compostos químicos são bons exemplos de gêneros naturais – água, carbono e hidrocarbonetos, por exemplo. Esporadicamente, nossos conceitos cotidianos, nossas ideias de quais coisas andam juntas, não se encaixam muito bem com os gêneros naturais verdadeiros. Todos sabemos o que é o jade, por exemplo. Essa pedra lustrosa, verde e semipreciosa poderia parecer um bom candidato a ser um gênero natural, mas acontece que existem duas substâncias quimicamente distintas chamadas “jade” – jadeíte e nefrite.4 Uma é um silicato de sódio e alumínio; a outra, silicato calcário e magnésio. Uma vez que a microestrutura é levada em conta, fica claro que jade não é gênero natural, pois se trata, na verdade, de dois gêneros diferentes de algo natural. Meu argumento com relação às categorias de “religião” e “ciência” é que, em certo grau, estamos errados ao pensar que sejam análogas a gêneros naturais, porque, a despeito das semelhanças aparentes entre o que denominamos religiões e o que denominamos ciências, de fato, os conceitos e o modo como as empregamos mascaram diferenças empíricas importantes. No caso do jade, a suposição de que haja uma única entidade unitária pode ser dissipada pela medição cuidadosa de algumas propriedades menos óbvias. Os dois minerais têm gravidades específicas, índices refratário e dureza levemente diferentes. Análise espectrográfica infravermelha também revelará suas diferentes constituições químicas. No caso da religião, minha sugestão é que, além do exame detido das características empíricas das chamadas religiões – que já trazem à luz uma diversidade enorme e possivelmente irreconciliável –, sua história também é reveladora. Outro caso de gêneros aparentes reforça o ponto. Superficialmente, baleias parecem peixes, e morcegos parecem aves, de modo que taxonomias populares tendem a agrupá-los juntos. Exames detidos das estruturas


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internas revelarão padrão diferente de afinidades, mas o mesmo se daria com a história evolutiva dessas criaturas, supondo que ela pudesse ser estabelecida. As histórias familiares desses grupos tornariam aparente que baleias e morcegos deveriam ser classificados corretamente com os mamíferos. Considerações semelhantes aplicam-se tanto a “religião” quanto a “ciência”, e podemos reconstruir a história dessas ideias com precisão muito maior do que somos capazes de estabelecer a filogenia dos táxons biológicos. O que a história das categorias mostrará é como atividades díspares ou ao menos significativamente distintas vieram a ser classificadas em conjunto. No caso da ciência, “história natural” e “filosofia natural” ficam juntas sob a rubrica “ciência” pela primeira vez somente no século 19. Essas atividades envolviam abordagens muito diferentes ao estudo da natureza e, seguramente, seus descendentes modernos – biologia e física – ainda exibem os vestígios do seu passado genealógico. Portanto, como nosso uso da palavra única “jade” disfarça a composição diferente dos dois gêneros que agora portam esse rótulo, assim também o uso de “ciência” tanto para ciências históricas, como geologia e biologia evolutiva, quanto para ciências físicas, como química e física, tende a mascarar diferenças fundamentais. Essas diferenças necessariamente complicarão quaisquer afirmações globais acerca das entidades “ciência” e “religião”, bem como seu relacionamento imaginado. O que se segue dessas considerações é que distorcemos o passado se aplicarmos acriticamente nossas categorias atuais a atividades passadas que teriam sido conceituadas por quem nelas se envolvesse de maneira bem distinta. Não deveríamos utilizar nossos mapas atuais para entender o território deles. Não deveríamos supor gêneros naturais onde não há nenhum. Isso significa que a ideia do conflito perene entre ciência e religião deve ser falsa, assim como afirmações sobre um conflito no início da era moderna entre Israel e Egito devem ser falsas. E isso será igualmente verdadeiro para qualquer relação considerada entre ciência e religião antes do período moderno. Ademais, podemos dizer que relações contemporâneas entre ciência e religião, não importa como sejam interpretadas (isto é, quer positiva quer negativamente), são em grande medida determinadas pelas condições históricas sob as quais fronteiras disciplinares se originaram e se desenvolveram ao longo do tempo. Voltando mais uma vez à analogia de mapa e território, podemos perguntar se os mapas

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conceituais dos quais dependemos atualmente para navegar pelo nosso relevo cultural são, usando a expressão horrível, mas pertinente, “adequados à sua finalidade”. Assim, a questão da origem das fronteiras pode ir além da descrição e compreensão rumo à investigação crítica da adequação do modo como mapas conceituais atuais dividem o território. Bons conceitos, usando a vívida imagem de Platão, talham a natureza nas articulações (e não, segundo ele disse na sequência, desmembram-na como o faz um açougueiro grosseiro).5 Parte do encargo deste livro, então, é perguntar se estas formas específicas de dividir aspectos da cultura ocidental contemporânea – “ciência” e “religião” – são úteis. Ao lidar com esta questão, espero mostrar que “ciência” e “religião” não são modos autoevidentes ou naturais de dividir o território cultural, que a História mostra que esse é o caso (como, aliás, apresenta-o a consideração de culturas diferentes da nossa) e que persistir com essas categorias de maneira acrítica pode não apenas gerar conflito desnecessário entre ciência e religião, mas pode também disfarçar o que talvez devessem ser fontes legítimas de tensão entre os caminhos da fé e o estudo formal da natureza. Em suma, este projeto busca expor uma cartografia histórica das categorias de “religião” e “ciência” – possivelmente, as duas categorias culturais mais importantes para a compreensão da natureza da modernidade e seu legado –, tendo em vista lançar luz na sua relação presente. Tudo isso implica que há algo não totalmente correto com o modo como pensamos atualmente acerca da relação entre ciência e religião, quer pensemos nela do ponto de vista de conflito ou congruência, quer até mesmo pensemos que uma não têm muito a ver com a outra. Não apenas boa parte da nossa discussão presente se mantém desinformada das considerações históricas pertinentes – imagine uma análise comparável das tensões no Oriente Médio que não fizesse nenhuma referência à História –, mas também frequentemente alheia à natureza problemática das categorias em questão. Boa parte da discussão contemporânea sobre ciência e religião supõe que existem atividades humanas separadas, “ciência” e “religião”, que tiveram alguma essência unitária e persistente ao longo do tempo. Que isso não é verdade, espero ilustrar de inúmeros modos, um dos quais envolve atentar de perto para a história dos termos envolvidos. Nas seções restantes deste capítulo, farei alguns comentários um tanto superficiais e condensados acerca da história dos termos “religião” e “ciência” (ou ao menos seus equivalentes latinos). Abordagens mais extensas aparecerão


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nos capítulos seguintes, mas por ora busco simplesmente estabelecer uma defesa básica da importância de reconsiderar nosso entendimento histórico desses dois conceitos. A história de “religião”

Na seção da sua monumental Suma Teológica, que é dedicada a uma discussão das virtudes da justiça e da prudência, Tomás de Aquino (1225-1274), sacerdote dominicano do século 13, investiga, no seu modo tipicamente metódico e perspicaz, a natureza da religião. Ao lado de Agostinho de Hipona (354-430), Pai da igreja norte-africano, Tomás é provavelmente o escritor cristão mais influente depois dos autores bíblicos. Desde o princípio, fica claro que, para Tomás, religião (religio) é uma virtude – não, aliás, uma das virtudes teológicas preeminentes, mas, mesmo assim, uma virtude moral importante relacionada à justiça.6 Ele explica que, no seu sentido primário, religio refere-se aos atos interiores de devoção e oração, sendo essa dimensão interior mais importante do que quaisquer outras expressões exteriores dessa virtude. Tomás de Aquino reconhece que uma gama de comportamentos exteriores está associada a religio – votos, dízimos, ofertas e assim por diante –, mas os considera secundários. Como julgo imediatamente óbvio, essa noção de religião é bem diferente daquela com a qual estamos familiarizados. Não há nenhum sentido em que religio se refira a sistemas de crenças proposicionais, nem nenhum sentido de diferentes religiões (plural).7 Entre a época de Tomás e a nossa, religio transformou-se de virtude humana em algo genérico, tipicamente constituído por conjuntos de crenças e práticas. Também tornou-se o modo mais comum de caracterizar atitudes, crenças e práticas ligadas ao sagrado ou sobrenatural. O entendimento que Tomás tinha de religio de modo algum era peculiar a ele. Antes do século 17, a palavra “religião” e seus cognatos eram usados com relativa infrequência. Equivalentes do termo são praticamente inexistentes nos documentos canônicos das religiões ocidentais – a Bíblia hebraica, o Novo Testamento e o Alcorão. Quando o termo era usado no Ocidente pré-moderno, não se referia a conjuntos separados de crenças e práticas, mas sim a algo mais como “piedade interior”, conforme vimos no caso de Tomás de Aquino, ou “culto”. Ademais, enquanto virtude associada à justiça, religio era entendida segundo o modelo aristotélico

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de virtudes como o ponto médio ideal entre dois extremos – no caso, irreligião e superstição.8 O vocabulário de “religião verdadeira” que encontramos nos escritos de alguns dos Pais da igreja fornece exemplo instrutivo. “A religião verdadeira” sugere hoje um sistema de crenças distinto de outros sistemas do mesmo tipo que são falsos. Um exame detido do conteúdo de tais expressões, entretanto, revela que discussões antigas sobre religião verdadeira e falsa estavam normalmente preocupadas não com crença, mas com culto, além da questão da direção correta ou não do culto. Tertuliano (c. 160–c. 220) foi o primeiro pensador cristão a produzir escritos substanciais em latim e foi também provavelmente o primeiro a usar a expressão “religião verdadeira”. Mas ao descrever o cristianismo como “religião verdadeira do Deus verdadeiro”, ele se refere ao culto verdadeiro direcionado a um Deus real (e não fictício).9 Outro erudito escritor cristão norte-africano, Lactâncio (c. 240-320), dá ao primeiro livro das suas “Instituições divinas” o título De Falsa Religione. Novamente, no entanto, seu propósito não é demonstrar a falsidade das crenças pagãs, mas mostrar que “as cerimônias religiosas dos deuses [pagãos] são falsas”, o que significa simplesmente dizer que os objetos do culto pagão são deuses falsos. Seu projeto positivo, uma explicação da religião verdadeira, foi “ensinar de que modo ou com qual sacrifício Deus deve ser cultuado”. Esse culto corretamente direcionado era, segundo Lactâncio, “o dever do homem, e nesse único objeto consiste a soma de todas as coisas e o curso da vida feliz”.10 A opção de Jerônimo por religio em sua tradução do grego relativamente incomum, thrēskeia, em Tiago 1.27, igualmente associa a palavra com culto e adoração. Na versão Almeida 21, o versículo é assim traduzido: “A religião [thrēskeia] pura e sem mácula, para com o nosso Deus e Pai é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundo”.11 O sentido dessa passagem é que a “religião” dos cristãos é um modo de culto que consiste em atos de caridade, mais do que de rituais. No caso, o contraste se dá entre religião que é vã [vana] e aquela que é “pura e imaculada” [religio munda et immaculata].12 Na Idade Média, isso passou a ser considerado equivalente à distinção entre religião verdadeira e religião falsa. Distinctiones Abel, obra do século 12 de autoria de Pedro Cantor (m. 1197), um dos mais destacados teólogos do século 12 na Universidade de Paris, faz referência direta à passagem de Tiago, distinguindo a religião que é pura e verdadeira (munda et vera)


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daquela que é vã e falsa (vana et falsa).13 Seu pupilo, o escolástico Radulfus Ardens, também falou de “religião verdadeira” nesse contexto, concluindo que ela consiste no “temor de Deus e amor a ele e na observância dos seus mandamentos”.14 Aqui novamente não há nenhum sentido de conteúdo doutrinário verdadeiro ou falso. Talvez o uso mais evidente da expressão “religião verdadeira” entre os Pais da igreja apareceu no título de De Vera Religione [Da religião verdadeira], escrita pelo grande doutor da igreja latina, Agostinho de Hipona. Nessa obra, uma das suas primeiras, Agostinho segue Tertuliano e Lactâncio ao descrever a religião verdadeira como culto corretamente direcionado. Como ele veio a relatar em suas Retratações: “Argumentei extensivamente e de diversas maneiras que religião verdadeira significa o culto do único Deus verdadeiro”.15 Não é nenhuma surpresa que nesse caso Agostinho sugira que “religião verdadeira é encontrada somente na Igreja Católica”.16 Intrigante, porém, é que, ao escrever as Retratações, ele chegou a afirmar que, embora a religião cristã seja uma forma de religião verdadeira, ela não deve ser identificada como a verdadeira religião. Isso, segundo ele raciocinou, devia-se ao fato de que religião verdadeira existira desde o começo da História e, portanto, antes da gênese do cristianismo.17 Agostinho tratou da questão de religião verdadeira e religião falsa mais uma vez em um opúsculo, Seis Questões em Resposta aos Pagãos, escrito entre 406 e 412 e anexado a uma carta enviada a Deogracias, sacerdote em Cartago. Nela ele repete a posição familiar segundo a qual a religião verdadeira e a falsa relacionam-se ao objeto de culto: “O que a religião verdadeira repreende nas práticas supersticiosas dos pagãos é que oferecem sacrifício a deuses falsos e demônios malignos”.18 Mas novamente ele prossegue para explicar que diversas formas cultuais podem ser todas expressões legítimas da religião verdadeira e que as formas exteriores da religião verdadeira talvez variem em diferentes tempos e lugares: “não faz nenhuma diferença que as pessoas cultuem com diferentes cerimônias de acordo com as diferentes exigências de tempos e lugares, se o que é cultuado é santo”. Uma variedade de diferentes formas culturais de culto talvez seja, portanto, motivada por uma “religião” subjacente comum: “diferentes ritos são celebrados em povos diferentes unidos por uma única e idêntica religião”.19 Se a religião verdadeira pode existir fora das formas estabelecidas de culto católico, inversamente talvez falte a alguns que exibissem as formas exteriores da religião católica “a virtude invisível e espiritual da religião”.20

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