Século I - O Resgate

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C A YO CÉS AR S AN T O S


SÉCULO I — O RESGATE Categoria: Bíblia / Ficção / Vida cristã Copyright © 2016, Cayo César Santos

Primeira edição: Janeiro de 2016 Coordenação editorial: Natália Superbi Revisão: Lilian Rodrigues Diagramação: Bruno Menezes Capa: Angela Bacon Ilustração: Valter Gonçalves Jr.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Santos, Cayo César, 1967Século I : o resgate / Cayo César Santos. — Viçosa, MG : Ultimato, 2016. ISBN 978-85-7779-142-2 1. Ficção cristã I. Título. 15-10171

CDD-223.2

Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção cristã : Literatura brasileira

869.3

Publicado no Brasil com autorização e com todos os direitos reservados Editora Ultimato Ltda Caixa Postal 43 36570-000 Viçosa, MG Telefone: 31 3611-8500 Fax: 31 3891-1557 www.ultimato.com.br


A Jane, que embeleza e melhora a minha hist贸ria.



Sumário

Prefácio

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Apresentação 15 1. Acordando

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2. Juntando as peças

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3. Conversa com o benfeitor

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4. Sobre poços e fontes

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5. Pequeno homem, grande dor

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6. Mudanças à mesa

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7. Luz e misericórdia à beira do caminho

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8. Exílio e restauração — de volta à casa do pai

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9. A estrangeira — um reino que se expande

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10. Linha de comando — sobre palavra e autoridade

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1 1. Notícias de Jerusalém

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12. Um encontro inesperado

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13. Quando a vida pesa

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14. Sem descanso 15. Paradoxo — o resgate da história

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Notas 205



Prefácio

Há muitas formas de apresentar uma pessoa. Você pode ler seu currículo em uma reunião de trabalho. Pode, por outro lado, dizer da amizade que mantém com ela, e como isso lhe tem feito bem, se estiver em um grupo mais informal. Pode escolher ressaltar suas qualidades intelectuais ou artísticas, se for o caso. Pode até apresentá-la como “a solução para os nossos problemas”, se a estiver indicando para um cargo. Assim também há muitas formas e abordagens possíveis para apresentar a pessoa de Jesus. Do modo como foi feito no passado, ainda hoje é possível identificá-lo como “o Prometido”, conferindo sua vida e ensino com as profecias. Não tem sido incomum, também, dar-lhe um rosto doutrinário, eventualmente


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salientando o modo como ele lidou com a tradição do seu povo, diante dos doutores da lei. Para os hebreus, considerou-se eficaz defini-lo a partir de suas credenciais religiosas. Apresentaram-no, então, no contexto de uma elevada ordem sacerdotal, para nomeá-lo sumo sacerdote de estirpe superior à levítica, sendo considerado maior que Abraão ou Moisés; e mesmo superior aos próprios anjos, em sua missão de salvar o mundo. Há, entretanto, aqueles que preferem simplesmente relatar como se deu o seu encontro e posterior relacionamento com Jesus. Invariavelmente, essas histórias têm um antes e um depois daquele encontro. O ponto em comum é que, tendo estado com ele, nunca mais foram os mesmos, para o bem ou para o mal. Muitos desses últimos, de origem humilde, sem doutrina ou teologia a apresentar, contentaram-se em dizer: “O que sei é que eu era cego e agora vejo”. Falaram de suas próprias vidas; falaram das profundas transformações que aquele encontro lhes trouxe. E relataram a forma peculiar como aquela luz os iluminou. Sim, de muitas formas, todos andavam confusos e necessitados, e agora se veem resgatados para uma dignidade jamais sonhada: a dignidade de amigos dele. Em ousadia inesperada, chegam a afirmar que, por seu intermédio, foram alçados à condição de filhos de Deus. Esta última forma de apresentar Jesus costuma ser bela e poderosa. Se uma abordagem genealógica é capaz de inseri-lo na descendência do rei Davi, com todos os desdobramentos e títulos honoríficos que esse fato traga; se as construções doutrinárias se tornaram tão comuns, ao longo dos séculos, elas, entretanto, não são o cerne da revelação. Curiosamente, para muitos podem até mesmo ser relegadas a um segundo plano. Isso porque a força e a beleza da experiência vivida com ele são insuperáveis: “Eu precisava tanto vê-lo que subi numa árvore; ele ia passando, parou, olhou para cima, viu-me e se ofereceu para jantar em minha casa. Entre o temor e a honra, eu desci


prefácio

rapidamente e o levei para casa. E minha vida virou de cabeça para baixo”. Com efeito, ele não era uma bela ideia, ou excelente filosofia de vida; era uma pessoa. Se nos fosse permitido singela teorização, diríamos que sem uma história pessoal, sem a experiência íntima de um encontro com Jesus Cristo, tudo o que se possa dizer a seu respeito, por importante e correto que seja, permanece informação de segunda mão. “Compreendeis o que vos fiz?” — disse Jesus, certa vez. É importante notar, ao falar de histórias e relatos pessoais, que Jesus também nos legou ensinamentos. Deixou-nos mandamentos de amor que nos permitiriam edificar a casa sobre a rocha. Assim é que o encontro com ele, com o tempo, vai-se adensando em conteúdos, significados e novas compreensões. E essa narrativa, individual ou coletiva, vai sendo elaborada e reelaborada em desdobramentos sem fim. Este fenômeno foi previsto por ele mesmo, ao dizer que certas coisas não estariam ao nosso alcance logo de início, mas que as compreenderíamos depois. Por enquanto, ficaria o gesto, o fato, o momento a ser registrado, imitado e revisitado em detalhes. Com o tempo, com as conversas, com as trocas de experiências, com a prática comunitária da vida, ele seria melhor compreendido. A partir de então, o relato tenderia a se tornar mais maduro e rico, pois passaria a incorporar elaborações secundárias, provenientes das vivências que o tempo trouxe. Por exemplo, nos lábios de um idoso que esteve com Jesus, a narrativa daquela experiência, agora tão longe no passado, começa densa, rica, complexa e apaixonada. Não leia; ouça. Imagine a voz de um tarimbado discípulo: “O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios olhos, o que contemplamos, e as nossas mãos apalparam, com respeito ao Verbo da vida (e a vida se manifestou, e nós a temos visto, e dela damos testemunho,

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e vo-la anunciamos, a vida eterna, a qual estava com o Pai e nos foi manifestada)” (1Jo 1). É importante reconhecer, ademais, que as histórias transformam-se em tradição, seja oral, seja escrita. Hoje em dia, elas podem assumir outras formas, tecnologicamente mais sofisticadas; mas, ainda assim, serão histórias contadas por alguém. A tradição, em essência, é o fenômeno pelo qual o pai conta para o filho, e este conta para seu filho. Assim, ela já não narra uma experiência original, mas a forma como aquele relato nos chegou e o impacto que causou. Torna-se possível, também, a combinação de versões de um mesmo fato, ou mesmo a harmonização de informações de categorias distintas; daquilo que “temos ouvido” com “o que temos visto com os nossos próprios olhos”. É nessa dimensão que eu situaria o presente trabalho de Cayo César Santos. Ele nada mais faz do que apresentar-nos Jesus. É curioso notar como ele acaba por nos apresentar “o seu Jesus”, ou seja, o Jesus que ele encontrou e com quem tem buscado se relacionar. Mas Cayo prefere que sua experiência pessoal de havê-lo encontrado bem como o subsequente aprendizado doutrinário atuem apenas como alicerces e referências para sua narrativa, de modo que a imaginação não o afaste do relato bíblico. Dessa forma ele consegue construir, criativamente, um relato inegavelmente pessoal, a partir das histórias colhidas nos evangelhos. Está claro que Cayo optou por nos contar histórias, investindo no poder e na estética da linguagem imaginativa. Mas que histórias nos conta ele? Histórias de transformação de vidas, a partir de encontros com Jesus. Histórias da Bíblia, portanto. A força dessas histórias é potencializada, na construção do autor, por um constante solilóquio do narrador, chamado Samuel, o qual nos apresenta não apenas os casos do evangelho, mas também suas considerações e reações pessoais a eles.


prefácio

Samuel está contando, de algum modo, a sua própria história. O resultado é surpreendente, pelo quase insidioso poder de se tornar também a nossa história, à medida que os pontos de contato se estabelecem. Assim sendo, preciso dizer que você não sairá incólume dessa leitura. Estou avisando. E convidando. Minha oração e esperança, então, é que cada página, cada episódio desta coleção, nas mãos de Deus, chegue ao seu coração como um sopro de mistério e beleza, a revelar o Verbo, cheio de graça e verdade; ou como um convite pessoal de relacionamento, como uma oferta de amizade com ele; como uma proposta de caminhada em direção à vida e à luz. Porque “a vida estava nele, e a vida era a luz dos homens” (Jo 1.4). Brasília, 28 de setembro de 2015 Rubem Amorese

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Apresentação

Quando criança, minha mente viajava com os contos

fantásticos de Monteiro Lobato e com pedaços truncados de famosas histórias bíblicas que meu pai tentava contar a mim e a meus irmãos, à luz de velas nas noites em que faltava energia elétrica em nossa cidade. Adão e Eva, a criação do mundo, a arca de Noé ou a batalha épica do pequeno Davi contra Golias faziam, assim, parte de meu imaginário infantil, ainda que não frequentasse as aulas de uma escola dominical. Na adolescência, descobri o fascínio de C. S. Lewis e seu maravilhoso mundo de Nárnia. Mais crescido, o espantoso Tolkien foi o golpe de misericórdia que tornou irreversível minha rendição às narrativas. Nunca vi nada tão espetacular quanto a construção de seu Silmarillion. Nunca vi história tão bem contada.


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No encontro com nossa tradição judaico-cristã, percebi que o Ser divino e pessoal revela-se por meio de dramáticas narrativas de vida de pessoas. E mais, as histórias contadas pelo Deus encarnado por meio da vida de homens e mulheres que ousaram segui-lo nos caminhos empoeirados do mundo, no século I, constituem a mais impactante forma de compreender a trajetória humana. Aprendi, com a vida, que a vida é feita de histórias. Experiências e memórias, contudo, não existem plenamente fora de um ambiente relacional. A marca indelével de todas as narrativas que tanto me cativaram é a realidade de que elas sempre se dão no contexto das relações. Deus, com efeito, cria e busca o homem para se relacionar com ele. O homem, por sua vez, precisa do outro Eterno para dar sentido à sua própria existência, porém é no outro igual que o achará. Estes se mostram, então, como dois elementos bastante caros para o Criador: pessoas e histórias. De fato, são tão importantes que, no final, ele os fundiu em uma só realidade: Verbo e Carne. Palavra que se fez homem e habitou entre nós. É nesse mistério da encarnação que Jesus nos ensina a aprender com pessoas e suas experiências. As histórias que contava tinham a ver com a vida ao seu redor. As aves do céu ou os lírios do campo se contrapunham à ansiedade que o rodeava. É plausível, creio, pensar que ele também olhava para pessoas do cotidiano: um pastor da vizinhança profundamente entristecido pela perda de uma das ovelhas; uma velha senhora varrendo o chão, agitada, em busca de uma moeda perdida; um trabalhador desempregado que chorava por seu desalento na praça; ou um agricultor que lançava as sementes ao chão, esperando obter bons frutos. Na Meta-História, de Rubem Amorese, compreendi que há uma história por trás da história e que, talvez, um bom caminho para encontrá-la seja o de abrir-se para a imaginação. Imaginação teológica, como ensina o mestre-amigo. No ensino dominical


apresentação

ou em conversas matinais com o Rev. Ricardo Barbosa, pude sedimentar a percepção da importância das Escrituras e da fidelidade a Deus como meio de desvendar os caminhos, por vezes tortuosos, do coração. Com o professor Rikk Watts, entendi o real significado da centralidade de Jesus, seja na vida ou na história. Com seu ensino, percebi melhor a grandeza e profundidade do amor de Deus e que o belo, tanto quanto o sofrimento, não é simples de explicar, nem fácil de entender. As belas formas que Deus graciosamente escolheu para levar-me a compreender seu plano amoroso e o sentido pessoal da reflexão teológica são variadas e surpreendentes: as aulas ministradas nas classes dominicais da Igreja Presbiteriana do Planalto, os almoços semanais com amigos mais chegados que irmãos e o aconchego seguro do pequeno grupo de oração das quintas-feiras, onde, ao longo de anos, temos experimentado juntos o sublime desafio de assumirmos os lugares das personagens relatadas por João, percebendo, ao final, o quanto a Palavra se integra às experiências compartilhadas da nossa vida diária. Este livro é fruto de experiências assim, com a Palavra e com as pessoas. Fruto de reflexão teológica e de preciosos relacionamentos fraternos, comunitários, que na última década tenho tido o privilégio de vivenciar. Contagiado pela beleza revelada pelo Criador ao longo da história de tantos e de todos nós, ousei me apropriar de um personagem criado por Jesus, em uma de suas narrativas, para lhe dar vida nessa jornada de imaginação teológica. Eu o chamo Samuel e caminho com ele rumo ao conhecimento do Filho de Deus, a partir da vida, cenário e relatos de testemunhas oculares do século I. A peregrinação de Samuel em direção a pessoas cujas vidas foram impactadas pelos encontros com o homem de Nazaré, o Verbo Encarnado, inaugura minha busca pessoal pela compreensão dos mistérios e da grandiosidade da mensagem do evangelho e do reino de Deus na trajetória humana.

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Conta-me a tua história e aprenderei mais de mim mesmo e de todo ser humano. Conta-me a tua história com Jesus e aprenderei do mistério profundo, escondido por gerações, que é pelo outro, para o outro e no outro que encontramos o sentido da vida e podemos ver a face de Deus. Cayo César Santos, primavera de 2015


1 Acordando

Aos poucos percebo a luz que entra meio embaçada por minhas retinas um pouco doloridas pelo incômodo da claridade. Próximo à minha face percebo outro rosto — rígido, sério, porém sereno. Não parece alguém que vive apressado por urgências do dia a dia. Fecho os olhos novamente, pois sinto o mundo girar. Mais uma vez abro os olhos e, de novo, o mesmo rosto, a mesma seriedade e a mesma serenidade continuam no mesmo lugar. Fala comigo, mas o som que sai de sua boca soa longínquo como uma praia distante, numa ilha no meio do oceano, avistada por um náufrago que por milagre flutua em destroços de um velho pesqueiro que afundou em alto-mar.


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De novo, o mundo começa a girar, mas percebo a mão grande e forte, apoiando minha cabeça pela nuca, um agradável frescor de um úmido e limpo pano de linho passa por minha testa suada, a refrescante sensação me autoriza, enfim, a acordar. Ao discernir as palavras um pouco melhor, percebo o estranho que me acode, naquele momento; ele recomenda-me ter tranquilidade e ir devagar com os movimentos. Por certo ele tem razão, visto que a tentativa de me erguer com maior rapidez quase me leva ao chão. Subitamente, o rosto sério do cuidadoso senhor volta-se para mim e pergunta como me sinto, agora que, finalmente, recobro a lucidez depois de tanto tempo. Na tentativa de compreender melhor os fatos, pergunto: — Há quanto tempo exatamente o senhor se refere? Antes de terminar a frase, porém, um ai, um gemido e a mão levada involuntariamente à cabeça. — Calma, meu amigo — diz o velho senhor — vamos com paciência que eu explico tudo, desde o início. Há cerca de vinte dias eu estava aqui cuidando da minha estalagem, como sempre faço todo dia, quando do portão da entrada percebi um homem que, andando à frente de seu animal, o conduzia até dentro dos domínios da minha pequena hospedaria. Aproximando-se um pouco mais o viajante, notei que o lombo de seu cavalo trazia uma carga que aos poucos pude discernir tratar-se de uma pessoa. Tranquilo, conquanto bastante resoluto, o viajante me chamou para perto dele, pedindo que eu o ajudasse a tirar o pobre homem que estava sobre seu cavalo e deitá-lo em lugar confortável. Obviamente foi o que eu fiz, e logicamente era o que eu iria fazer, ainda que ele não me pedisse, afinal, sou homem hospitaleiro e hospitalidade é minha profissão (assim falava o velho hospedeiro, sempre com redundâncias e necessidade de comentários adicionais às suas falas).


Acordando

E continuando sua história prosseguiu: — O homem que viera sobre o cavalo estava desacordado e muito, muito ferido mesmo. Um pouco assustado perguntei ao condutor que chegava o que significava tudo aquilo. — Desculpe — interrompi — mas eu não estou entendendo bem o que tudo isso tem a ver comigo e minha situação? Com um sorriso tranquilo ele respondeu: — Era você, meu caro, era você. Você era o homem desacordado e ferido que chegava naquela noite escura aqui à minha hospedaria, trazido por aquele homem que depois vim a descobrir, tratava-se de um estranho para você também, um estranho que tão somente resolveu socorrê-lo num momento de extrema necessidade. Não conseguia lembrar-me de nada e minha cabeça ainda doía um pouco. Como o som de ondas que se afasta dos ouvidos enquanto caminhamos litoral adentro, rumo a densas matas, a voz do meu anfitrião foi desaparecendo. Tudo escureceu. Desfaleci novamente. Na manhã seguinte, fui despertado pelo dono da hospedaria: — Vamos, meu rapaz, acorde e se levante um pouco. Você já teve mais uma noite de sono tranquilo e, imagino, já está em condições de caminhar até a mesa para o desjejum; lá, terminarei de contar a sua história. Com estas palavras e apoiando-me, colocou meu braço direito sobre seu ombro esquerdo e me conduziu até uma grande mesa de madeira rústica repleta de iguarias típicas da região, para juntos tomarmos o café da manhã. Após um pequeno momento de silêncio, já acomodados à mesa, sentindo-me muito melhor do que na noite anterior perguntei: — Então, meu amigo, antes de eu apagar ontem à noite, o senhor começava a dizer que cheguei aqui, ferido e desacordado pelas mãos de um estranho? Ele acenou positivamente com a cabeça e, antes que começasse a falar, eu o interrompi dizendo:

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— Como é possível? O que pode ter acontecido comigo e quem será esse nobre estranho que me acudiu? O velho hospedeiro, com um discreto sorriso no rosto acalmou-me dizendo que era normal não me lembrar ainda do que havia acontecido, devido ao trauma sofrido e aos golpes na cabeça. Contudo sugeriu que ao contar-me a parte da história que conhecia, a qual lhe fora relatada pelo estranho que me salvara, provavelmente me lembraria de todo o contexto. Com um gesto de concordância pedi, então, que me contasse tudo o que sabia. — Bem, meu rapaz, começou o velho homem a falar, para de imediato, cessar novamente e, balançando a cabeça com um tom de autorreprovação em sua face dizer: Ora, ora, ora, que falta de educação a minha, sequer lhe disse meu nome e também ainda não perguntei o seu. Perdoe-me, meu jovem, sou Baltazar, o Grego, e você, meu caro, quem é? Pode se lembrar ao menos do seu nome? Para meu alívio a pergunta não paralisou minha mente que, prontamente, respondeu: — Sim, é claro, sou Samuel, filho de Zacarias, da cidade de... — após um breve momento, as informações começaram a surgir em minha mente — da cidade de Jerusalém, é claro! Exclamei animado pela lembrança. Eu estava fazendo uma viagem para negociar o azeite que produzo, era um final de tarde de sexta-feira e já estava no caminho. Oh, meu Deus! — exclamei afobado, suando frio ao recordar o terror da cena, revivendo tudo o que havia se passado. Colocando sua pesada mão sobre a minha, o velho Baltazar procurou tranquilizar-me, lembrando que tudo já havia terminado e que agora eu estava bem e seguro. De fato, isto me acalmou e pude continuar. — Oh, meu Deus, é isso! Fui vítima de um assalto tenebroso, vários homens me cercaram, me agrediram fortemente e, por certo, levaram tudo que eu tinha.


Acordando

Parei de falar engasgado e, com um olhar horrorizado que Baltazar não deixou de perceber, veio-me à mente a nítida e assustadora figura de um dos bandidos. Recobrando-me, continuei, então, meu relato: — Oh, grande e poderoso Yahweh! — exclamei mais uma vez — o rosto de um deles é tão nítido em minha mente neste exato momento em que falo, meu senhor Baltazar! A imagem parece estar aqui a minha frente. Um rosto áspero como pedras rústicas, sem nenhum polimento. Uma marca inconfundível, inesquecível também, uma profunda cicatriz em forma de ferradura posicionada como a letra ômega do alfabeto de seu povo grego — ofegante, tive que parar de falar por mais alguns instantes para depois continuar: — Lembro-me de que, ainda caído à margem do caminho, momentaneamente recobrava a consciência para logo depois, desfalecer novamente. Em um ou dois daqueles momentos de lucidez, percebi que alguém passava por perto, tentei falar, mas não era possível, apenas os via passar ao largo e, naquelas horas de aflição, pensei que seria meu fim. Certamente ninguém pararia naquele lugar perigoso para ajudar um desconhecido jogado à beira do caminho talvez até já morto e...

A emboscada

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