Ponto Final

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Pontofinal

A vida cristĂŁ como ela ĂŠ



Rubem Amorese

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Pontofinal

A vida cristĂŁ como ela ĂŠ


Ponto final — A VIDA CRISTÃ COMO ELA É Categoria: Ética e comportamento / Igreja / Vida cristã

Copyright © 2012, Rubem Amorese Primeira edição: Abril de 2012 Coordenação editorial: Bernadete Ribeiro Preparação e revisão de texto: Bernadete Ribeiro e Daniela Cabral Capa: Renan Yoshima Diagramação: Bruno Menezes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Amorese, Rubem, 1951 – Ponto final : a vida cristã como ela é / Rubem Amorese. — Viçosa : Ultimato, 2012. ISBN 978-85-7779-063-0 1. Conduta de vida 2. Cristianismo 3. Crônicas brasileiras 4. Espiritualidade 5. Vida cristã I. Título. 12-04765

CDD-248.4

Índices para catálogo sistemático: 1. Conduta de vida : Prática cristã 2. Vida : Reflexões : Prática cristã

248.4 248.4

Publicado no Brasil com autorização e com todos os direitos reservados Editora Ultimato Ltda Caixa Postal 43 36570-000 Viçosa, MG Telefone: 31 3611-8500 Fax: 31 3891-1557 www.ultimato.com.br

A marca FSC é a garantia de que a madeira utilizada na fabricação do papel deste livro provém de florestas que foram gerenciadas de maneira ambientalmente correta, socialmente justa e economicamente viável, além de outras fontes de origem controlada.


Sumário Apresentação

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Parte um – No quarto

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Entra no teu quarto Fazendo cabeças Resolução de Ano-Novo Amor e solidão Lágrimas benditas O rugido da ovelha Justificando a existência Quero voltar a ser feliz Histórias de família Haja luz! Perdão Inveja Dor e adoração Falar é prata Feliz Ano-Novo! Música essencial Os Salmos e a música essencial Vencer na vida... Vencer? O livro da minha vida

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Parte dois – Na igreja

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Franquias do reino A ostra e a pérola Eu gostaria que você me amasse Saudade e esperança – as “marias das dores” O ministério personalíssimo Sacrifício vivo O colecionador de dias Visitando a fábrica de missionários Ato falho O sonho profético da igreja Admoestação e choro Bens e bênçãos Salvação que embeleza Oportunidades de reevangelização em uma sociedade cada vez mais pluralista Serviço e realização Não se mexe em lastro de navio em meio à tempestade Gente da Palavra Bendita cruz infame Discípulos do amor O veterinário Fios de prata

75 78 81 85 90 93 96 101 104 106 109 111 113 115 118 120 122 126 128 130 133

Parte três – Na rua

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Celebração e liturgia numa sociedade pluralista Olhai os lírios do campo Ficar ou ficar Solidão pós-moderna Um “papo cabeça” com os jovens E o desafio da Aliança Algozes modernos Autoestima

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Por que precisamos de uma campanha de autoestima? Só Cristo salva Intromissão O Natal e o mistério da iniquidade Obrigado por me ouvir Executivas solitárias A era dos especialistas Voto consciente O processo do milagre

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Os sofisticados cabrestos culturais Culpa e graça Lascívia é o teu nome Sua cabeça não é lata de lixo “Inteligência Artificial” – Um lindo pesadelo Estou aqui “Matrix” e a verdadeira vida Principados, potestades e pornografia Adoração, pornografia e escravidão Sobre mercado e família O mercado e a alma Atendimento, entendimento e presença A síndrome da alienação parental “O Livro de Eli”

191 196 199 201 205 208 211 214 220 226 229 231 233 236

Parte quatro – Na mídia



Apresentação

Diz-se que para ver longe é preciso subir nos ombros de um gigante. Esta coletânea de textos não faz outra coisa. Sobe nos ombros dos gigantes da Bíblia para renovar a mente, ao olhar para o nosso cotidiano. Seguindo a recomendação do apóstolo Paulo, esses textos, tão variados em seus temas, tentam olhar para “este século” sem se conformar com ele, mas, antes, buscando renovação, pela transformação da mente. O exercício aqui retratado é um só, portanto: olhar para nosso cotidiano com o jornal em uma mão e a Bíblia em outra. A Bíblia sem o jornal pode fazer de nós cristãos alienados. O jornal sem a Bíblia nos deixará em triste situação, como quem olha para a vida sem esperança, sem bússola orientadora. Em alguns textos não serei achado de jornal na mão, pois estarei olhando para dentro de mim mesmo. Nesses momentos, tenho a Bíblia nas duas mãos e falo do meu próprio coração. Você vai notar que voltei a alguns temas. Por exemplo, escrevi sobre a esperança em mais de um Natal. Também a política nacional acaba por reapresentar pautas importantes, em contextos históricos diferentes. Voltei-me a eles, por achar que interessavam à família evangélica. 9


ponto final

A maioria dos textos aqui reunidos foi publicada na seção “Ponto final”, da revista Ultimato. Muitos lhe parecerão novidade. Outros, nem tanto. O formato e a construção do livro facilitam a leitura, quer de maneira sequencial, quer aleatória. Escritos ao longo dos últimos anos, os temas permanecem na ordem do dia e dizem respeito aos desafios da vida cristã diária. A divisão do livro em quatro partes retrata quatro ambientes de reflexão: o quarto, simbolizando o lugar da devoção íntima, o ambiente sagrado onde as grandes batalhas da alma são vencidas; a igreja, entendida como o “hospital comunitário da alma”, lugar onde todos são doentes em busca de cura; a rua, entendida como o espaço do “jornal”, da empresa, do trabalho, dos estudos, dos colegas, amigos e parentes, dos desafios à vida cristã verdadeira e também como campo de missão; e a mídia, que, onipresente, busca subverter mentes e corações para seu senhor, o todo-poderoso mercado. Ao reunir textos tão variados, buscamos um “título guarda-chuvas” que os acomodasse. A primeira sugestão que surgiu já estava tomada: “bíblia”, significando conjunto de livros. Pena. Teria sido tão apropriado! Pensamentos divertidos à parte, chegou-se à solução mais singela, por entender-se que a primeira ideia normalmente é a mais acertada: por que não “Ponto final”, se esse é o título da coluna em que a maioria dos textos foi publicada? Talvez não fosse suficiente, entretanto, indicação tão sucinta. Considerou-se a possibilidade de que esse título fosse a única informação disponível ao leitor que não tivesse familiaridade com a revista Ultimato. Sim, esse título poderia ser acessado pela internet ou em catálogos. Precisávamos de uma informação adicional. E a capa volta à prancheta. Meu reino por um subtítulo! Pensando em coletânea, alguém se lembrou de uma muito conhecida — a coleção de crônicas de Nelson Rodrigues, intitulada “A vida como ela é”. Eureca! “A vida cristã como ela é”. Em ambos os casos, passa-se ao largo da presunção de “resolver” a vida. A única ambição é dizer ao leitor: repare que interessante este aspecto da vida. Queira Deus que este novo “produto”, que veicula textos novos e antigos, possa cumprir seu papel no meio da igreja evangélica.

Rubem Amorese 10


Parte um

No quarto



Entra no teu quarto

Os ensinamentos de Krishnamurti estão em voga. Tenho assistido, pela televisão, a palestras de seus discípulos, expondo seus pensamentos, devotados ao resgate e à propagação de sua doutrina. Escolas teosóficas o citam. Também alguns mestres budistas, da ioga e da doutrina zen. E o que estão a ensinar? Pelo que pude perceber, estão preocupados com uma das enfermidades do homem moderno: a superficialidade. Um homem sem vida interior. Um homem voltado para fora, incapaz de suportar o silêncio, a solitude, o “deserto”. Dessa preocupação, surgem escolas voltadas à prática da meditação, caminho para a profundeza interior, envolvendo o silenciar dos pensamentos, do “ego psicológico”, silêncio esse que propiciará a harmonização de tudo aquilo que não é caótico e confuso — como o pensamento e o ego —, com o cosmo, entendido esse momento como o encontro com o sagrado, com a religião. Quedei-me a pensar: têm razão, em sua preocupação. De fato, o homem moderno é voltado para fora, para as coisas, para as ações e realizações, para os bens e seu valor material. Mas esqueceu-se de sua alma. O silêncio já lhe é insuportável, pois teme um encontro com sua 13


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alma, sem saber o que lhe dizer. Apressa-se, então, a ligar uma televisão — mesmo que não seja para assistir ao programa —, um rádio, o computador. Isso, se não puder sair rapidamente de casa, ir a um shopping cheio de gente, ou, se for crente piedoso, visitar algum necessitado — tudo, menos ficar sozinho consigo mesmo. Esses pensamentos me levam ao meu povo. E penso: como se darão, na vida de um crente, os processos de arrependimento, perdão ou gratidão — para citar apenas alguns fenômenos centrais da vida cristã — sem vida interior, sem uma conversa franca com sua alma? Como seremos convencidos de nosso erro, ou resolveremos nossas dúvidas, sem o diálogo interno entre o “Grilo Falante” e o “Pinóquio”? Reagiremos aos fatos como néscios, para quem o sábio recomenda uma argola no nariz, pela qual seremos conduzidos para todo lado? De onde virão as ações de graça se não dissermos à nossa alma que o livramento não veio de nosso esforço, mas da parte do Senhor? Comparando Krishnamurti com Davi, percebi uma grande diferença: Davi, acostumado ao “deserto”, à solitude do pastor, aprendeu a conversar com sua alma. No entanto, não mantinha conversas “a dois”. Sempre incluía um terceiro: Deus. Vi grande vantagem nisso, pois jamais a solidão o levou por caminhos perdidos. A Palavra que ele havia guardado no coração, bem como a presença do próprio Deus, agora lhe seriam guia e companhia nessa conversa com sua alma. De fato, na dinâmica vida interior desse poeta, ora ele se dirigia à sua alma, ora a Deus. A ela, ele dizia: “Por que estás abatida, ó minha alma? Por que te perturbas dentro de mim? Espera em Deus, pois ainda o louvarei” (Sl 42.5). A sequência dessa conversa íntima envolve o Senhor — “Lembro-me, portanto, de ti, nas terras do Jordão” (Sl 42.6) —, a quem Davi afirma: “Fiz calar e sossegar a minha alma; como a criança desmamada se aquieta nos braços de sua mãe, como essa criança é a minha alma para comigo” (Sl 131.2). Nossa geração, esquecida desse diálogo interno, abre mão de uma das mais ricas disciplinas cristãs: a oração meditativa; e a entrega a quem medita sem orar; a buscar, quase instintivamente, sobreviver em um mundo tecnológico. Sem ela, dificilmente uma experiência, uma 14


parte um – no quarto

exortação, um ensino, serão incorporados à nossa vida, como algo genuinamente nosso, pessoal. Estou convencido de que Jesus propunha encontros com nossa alma, ao nos exortar a entrar em nosso quarto e, fechada a porta, orar ao Pai que está em secreto (Mt 6.6). Talvez esse encontro a três nos seja, a nós, seres modernos, apressados e superficiais, mais difícil e temível do que o próprio ato de perdoar.

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Fazendo cabeças O drama da educação dos filhos

No mundo da pluralidade não há absolutos. Em tempos de opção, a moralidade também se relativiza, porque cada atitude pode ser justificada como sendo uma opção íntima e estribada em motivações e razões particulares que, no caso, não são da conta de ninguém. Como consequência direta, surgem os especialistas em tudo. Ninguém pode dar conta de todo o universo de conhecimentos necessários à vida moderna. Quanto mais complexa se torna a vida, mais urgente se torna a formação de especialistas. Na verdade, a especialização do conhecimento em segmentos cada vez mais restritos é uma necessidade. No entanto, os problemas surgem quando essas especializações se tornam mais que profissões: tornam-se feudos, propriedade de quem as detém. Nessa evolução, surgem os especialistas em comportamento, em sexualidade, em ética, em educação de filhos etc. Isso é interessante porque eles entram num ramo que não tem nada a ver com as herméticas especialidades técnicas da física quântica ou da rótula do joelho. Estão entrando numa área da qual não abrimos mão, ainda. Mas desandam a estabelecer seus padrões, seus critérios, e o que é pior, criar 16


parte um – no quarto

uma ideia de que você não sabe nada a respeito. Se quer educar bem seu filho, consulte os conselhos de tal pedagogo; se quer se comportar adequadamente na área sexual, siga a sexóloga fulana de tal, e assim por diante. Desnecessário dizer que, entre o velho Salomão e os modernos programas de televisão do tipo Amor e Sexo, fica-se com o último. Mas isso tem um preço. Dou um exemplo. Em 1984, eu estava às voltas com a disciplina de meu filho, que tinha, então, dois anos. Espírito forte, teimoso, era chamado por nós de sindicalista. Era preciso discipliná-lo e ensinar-lhe obediência. E como se faz isso com uma criança de dois anos? Palmada no bumbum, associada a carinho e muita coerência. Nesse dia, abro a revista Veja e encontro o título: “Quem ama não bate”. Subtítulo: “Uma psiquiatra diz que beliscões e tapas prejudicam as crianças por toda a vida e devem ser substituídos por amor e compreensão”. Debaixo da foto da entrevistada, constava a seguinte legenda: “Nunca surrei meus filhos”. É bem verdade, justiça seja feita, que a entrevista carregava mais contra espancamentos, queimaduras com ferro de passar, choques elétricos e assassinatos; muito mais comuns do que se pensa. Mas nesse bojo todo embutia-se o conceito de que qualquer tipo de disciplina, de punição, de frustração da vontade infantil, idealmente falando, era indesejável. Imagine, leitor, minha dificuldade: Fui criado sob a orientação do velho Salomão: “O que retém a vara aborrece a seu filho, mas o que o ama, cedo, o disciplina” (Pv 13.24). Ou então: “A estultícia está ligada ao coração da criança, mas a vara da disciplina a afastará dela” (Pv 22.15). Mais ainda: “A vara e a disciplina dão sabedoria, mas a criança entregue a si mesma vem a envergonhar a sua mãe” (Pv 29.15). Finalmente, para não cansar: “Corrige o teu filho, e te dará descanso, dará delícias à tua alma” (Pv 29.17). Agora, vem uma psiquiatra, especialista, representando todo um movimento (ou um partido), impondo via comunicação de massa um novo padrão, uma nova puericultura, e diz que o que está tudo errado. E não é só isso. Num daqueles dias, eu estava disciplinando minha filha, dois anos mais velha, e ela tentava “montar um barraco” de birra. Eu 17


ponto final

ainda não lhe havia dado umas palmadas. Nesse momento, um vizinho do andar de cima grita na janela: “Bate em alguém do seu tamanho!”. Bem, o tempo passou. Agora o meu filho já está crescido. E abro uma Veja. Na seção de educação, surge o título: “Pequenos ditadores: A dificuldade dos pais em estabelecer limites cria geração de crianças dominadoras”. No texto, uma pedagoga diz: “Temendo traumatizar os filhos ao impor padrões mais rígidos de educação, os pais caíram numa armadilha — passaram a ser comandados pelas crianças.” E arremata, para minha consternação: “As novas escolas da psicologia e da pedagogia foram mal interpretadas pelo público leigo”. Se tivesse aberto mão do “velho Salomão”, eu estaria com um monstro me chamando de pai dentro de casa, e “eles” não aceitariam devolução. Para terminar, este exemplo: matéria de capa de uma IstoÉ. Título: “Como educar seus filhos?” Subtítulo: “Pesquisa revela que a maioria dos pais prefere a volta da autoridade”. É ruim, hein?

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Resolução de Ano-Novo

Este ano eu quero ser curado. Convivo com uma crise de coluna há anos. E essa crise tem prejudicado muito minha qualidade de vida. “Espere um minuto!”, dirá você. “Cura como resolução de Ano-Novo? De duas uma: ou você tem sido muito negligente com sua coluna ou está se arvorando poderes sobrenaturais, para ‘resolver’ ser curado.” Nem uma nem outra. Minha resolução é de outra natureza. Vou dizê-la de outra forma: este ano quero romper com minha síndrome de geraseno. E isso não é nem fazer mais por minha coluna (pois a tenho tratado “a pires de leite”, como uma úlcera), nem dizer um “xazan!”, nem proferir uma palavra de comando ao céu. Nada disso. O que eu chamo de síndrome de geraseno é outra coisa. O registro de Lucas 8.35-39 nos conta que quando Jesus libertou o endemoninhado de Gadara, o povo da cidade veio e lhe pediu que se retirasse. A interpretação mais aceita para o fato inusitado é a de que Jesus havia prejudicado seu negócio com os porcos, que se haviam precipitado no mar. 19


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Resta, no entanto, o fato de que Jesus não pôde abençoar aquela cidade, como havia feito em Samaria, ao se revelar à mulher, no poço de Jacó. A esse povo não ocorreu “vender tudo o que tinha e comprar aquela pérola”. Em última análise, disseram a Jesus: “Sua atuação perturbou a paz de nossa cidade, que estava muito bem com nossos porcos e nosso endemoninhado; se não quiser ser visto e tratado como baderneiro, por favor, retire-se”. Sim, o endemoninhado, com o tempo, incorporou-se à identidade da cidade; tornou-se parte de sua vida, de suas tristezas. Sobre ele certamente eram lançadas as desculpas para os fracassos, para a quebra de safra, para as mazelas familiares, para as traições políticas etc. Virou folclore; era como a “doença da cidade”, a exercer o papel de bode expiatório e justificador dos pecados. O povo precisava dele, como parte de sua identidade. Talvez aquela aberração que passeava pelo cemitério da cidade aos urros e grunhidos, nas cidades de hoje tenha evoluído para as gangues de bairro, os traficantes, o simpático (e perigoso) anotador do jogo do bicho; o crime organizado. No âmbito da família, a síndrome do geraseno poderia ser encontrada no filho excepcional, no do idoso ranzinza, no filho que se sente “a vítima” da casa. No âmbito pessoal, ela pode se manifestar em um ódio antigo, resultante de um abuso, no apego aos problemas ou a uma simples crise de coluna. É claro que nem todas as vicissitudes ou doenças têm a marca do geraseno. O fenômeno se manifesta quando o “geraseno” vira “problema de estimação”, e se entranha de tal forma em nossa personalidade (pessoal ou coletiva) que passa a fazer parte de nós, da nossa história, do nosso modo de ver e lidar com a realidade. E, inconscientemente, vira moeda de troca. “Não mexam comigo: eu sou um doente”; “ah, meus pais nunca ligaram para mim, porque eu sou o caçula”; “Quero ver o que você vai fazer se meu coração falhar com essa sua rebeldia”; “Você sabe que seu pai tem pressão alta...”; “Meu divórcio, embora já tenha dez anos, me deixou muito mal, e ninguém vê isso...”. Este ano, quero me livrar do meu problema de coluna. Não sei (nem me importa) se terminarei o ano carregando peso ou correndo um cooper 20


parte um – no quarto

acelerado. Sei que, com a cura, perderei certos “poderes”, em casa, na igreja e entre os amigos. Mas resolvo fazer uma faxina em minhas dores todas. Jogo fora as muletas das lembranças, das mágoas, das deficiências físicas, das heranças malditas, da falta de oportunidades na vida, dos acidentes de percurso; enfim, das desculpas, ao mesmo tempo sinceras, reais e esfarrapadas, para que Jesus “não entre na cidade”. Em vez de lhe pedir que se retire dos meus problemas, direi a ele: “Entre e faça comigo o que o Senhor fez com o geraseno. Não há como não perceber sua felicidade. Se preciso, aprenderei a conviver com ele sem seus demônios”. E tem mais: para o inferno com os porcos! Se for preciso, saberei abrir outro “negócio”. Que Deus ouça, compassivamente, esse voto-oração. E a todos que a ele disserem amém.

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Amor e solidão Por que amar a Deus de todo o coração

Tenho caminhado todos os dias pelas quadras de Brasília. Cruzo com senhores, senhoras, moços e moças; gente indo ou voltando do trabalho, da escola, do mercado, ou simplesmente se exercitando. E imagino perceber, pelo olhar, pelo andar, uma solidão imensa em seus semblantes. Parece que todos carregam um fardo, o latejar de uma perda inexplicável. Isso transparece no olhar da senhora que passeia com seu cão de estimação, ou no jeito de olhar para o chão do executivo engravatado que passa. Estão todos sós, imagino. Irremediavelmente sós. Implacavelmente sós. E não se trata de uma solidão episódica, por não estarem acompanhados, mas um estado de alma. Persistente, resistente. E a tristeza lhes transparece no rosto. Tenho aprendido a observá-los com simpatia, tentando imaginar o que sentem, a partir da mesma experiência existencial em minha história. Experiência essa que gostaria de tentar verbalizar.

Ruptura e solidão Acredito em uma “ruptura do Éden” — uma tragédia primária, experimentada na humanidade de Adão, que, numa paráfrase ao apóstolo 22


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Paulo, “passou a todos os homens, porque todos pecaram” (Rm 5.12). Nesse sentido, a ruptura do parto, experiência secundária, mas experimentada pessoalmente por cada ser humano, produz a dor da solidão. Talvez a maior, a mais profunda, a mais duradoura e marcante dor desconhecida pelo homem. Como na hora de nosso nascimento geralmente a família está em festa, não percebe a tragédia pessoal de uma criança que acaba de ser “expulsa do paraíso”. Na sequência, não se dará conta da “agressão” envolvida no seu afastamento da mãe, do peito, do seu rosto; no terror de deixar de ouvir sua voz pela primeira vez em sua vida; de fechar os olhos para dormir no escuro, sem os sons familiares do útero. Essa criança, certamente, não sabe como lidar com essa experiência traumática de ruptura. Será que aprenderá sobre a dor de ser única — e ter de viver a própria vida, a partir da consciência de si mesma? de decidir sozinha e não poder ser ajudada nessa hora? de caminhar com as próprias pernas? Para não parecer que estou romantizando o fenômeno, reporto uma pesquisa divulgada pela CBN, em seu programa matutino sobre medicina e saúde. Diz a pesquisa que os recém-nascidos que requerem cuidados de incubadora desenvolvem vários níveis de depressão, chegando a sofrer paradas cardíacas, quando passam muito tempo sem ouvir a voz da mãe. Um médico especialista, comentando os dados estatísticos, informou que, em sua experiência prática, viu muitos bebês simplesmente desistirem de viver, como resultado do isolamento. Relata-se, também, que, em descumprimento às normas do hospital, uma enfermeira passou a tocar e conversar com os nenês que choravam à noite. O risco de infecção é alto. Mas o que ocorreu foi uma grande mudança na evolução da saúde daquelas crianças. Pesquisa feita, a enfermeira foi descoberta e identificada como a causa do grande índice de sobrevivência dos recém-nascidos.

Cauterizando a ferida Às apalpadelas, fazemos de tudo para suportar um desconforto que não compreendemos bem e criamos “calos” para ele: distraímo-nos, divertimo-nos, entretemo-nos, esquecemo-nos, sem saber bem o porquê 23


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