A Penúltima Curiosidade

Page 1


A PENÚLTIMA CURIOSIDADE



Alister E. McGrath Roger Wagner Andrew Briggs

o ajuste fino do universo em busca de deus na ciência e na teologia

A PENÚLTIMA CURIOSIDADE COMO A CIÊNCIA NAVEGA NAS QUESTÕES ÚLTIMAS DA EXISTÊNCIA tradução

Rodolfo AMoRiM TRADUÇÃO

DJAIR DIAS FILHO

PAlEstRAs GiffoRd 2009


A PENÚLTIMA CURIOSIDADE

Copyright © Roger Wagner e Andrew Briggs, 2016 Publicado originalmente por Oxford University Press, Oxford, Inglaterra. Título original em inglês: The Penultimate Curiosity Primeira edição: Junho de 2018 Coordenação editorial: Guilherme de Carvalho Roberto Covolan Editor assistente: Marcelo Cabral Tradução: Djair Dias Filho Revisão geral: Claudete Agua de Melo Lívea Araújo Lis da Matta Emerick Marcelo Cabral Revisão técnica: Roberto Covolan Diagramação: Bruno Menezes Capa: Douglas Lucas Foto da capa: Painel dos cavalos, na Caverna Chauvet, por Jean Clottes.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Wagner, Roger, 1957A penúltima curiosidade : como a ciência navega nas questões últimas da existência / Roger Wagner, Andrew Briggs ; tradução Djair Dias Filho. — Viçosa, MG : Ultimato, 2018. — (Ciência e fé cristã) Título original: The Penultimate Curiosity ISBN 978-85-7779-177-4 1. Ciências - História 2. Curiosidade 3. História da ciência 4. Religião e ciência I. Briggs, Andrew. II. Título III. Série. 18-16225 Índices para catálogo sistemático: 1. Ciência e religião 215 2. Religião e ciência 215

PUBLICADO NO BRASIL COM TODOS OS DIREITOS RESERVADOS POR: EDITORA ULTIMATO LTDA Rua A, no 4 - Caixa Postal 43 36570-000 Viçosa, MG Telefone: 31 3611-8500

www.ultimato.com.br

CDD-215


tradução

Rodolfo AMoRiM

PAlEstRAs GiffoRd 2009

AS ÚLTIMAS DÉCADAS testemunharam um florescimento mundial sem precedentes do diálogo entre a religião e as ciências, particularmente entre a teologia cristã e o campo científico. Atualmente várias associações internacionais, instituições acadêmicas, igrejas e missões cristãs contribuem para um esforço conjunto de construção de pontes entre a fé cristã e a ciência contemporânea. No Brasil, tanto as pressões laicizantes dentro e fora das igrejas quanto o próprio amadurecimento intelectual e cultural dos cristãos vêm aprofundando e expandindo o debate sobre fé e ciência, fazendo dele um imperativo espiritual e testemunhal para nossa geração. Para ajudar a comunidade cristã e a comunidade científica na compreensão da importância e do caráter desse diálogo global, e visando uma comunicação rica e significativa entre esses campos, apresentamos a série “Ciência e Fé Cristã”. Apresentará perspectivas cristãs sobre campos diversos, como a teologia natural ou teologia da natureza, filosofia da tecnologia, biologia e teoria evolucionária, história da ciência, temas de filosofia da ciência, neurociências, física e cosmologia, e a relação entre a Bíblia e a ciência.


A amostragem de obras incluídas nesta série privilegia contribuições substanciais a esse diálogo contemporâneo realizadas a partir da tradição cristã evangélica ou compatíveis com essa tradição de fé. Com isso, a série procura fertilizar a reflexão avançada sobre tais temas no contexto evangelical brasileiro e entre aqueles interessados no diálogo, com vistas a uma participação mais rica e independente na conversação pública dos evangélicos com outras tradições religiosas ou seculares. Esperamos, ainda, promover uma contribuição amadurecida para o universo acadêmico brasileiro. A série “Ciência e Fé Cristã” é, enfim, um convite a todos aqueles que queiram mergulhar nesse fantástico universo de debates, conhecimentos e questões que tocam a nossa existência. Afinal, tanto o Livro da Criação quanto o Livro da Revelação merecem lugar em nossas cabeceiras.

Soli Deo Gloria. GUILHERME DE CARVALHO e ROBERTO COVOLAN Editores MARCELO CABRAL Editor assistente

Esta publicação contou com o apoio e financiamento da Templeton World Charity Foundation, Inc. As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente aquelas da TWCF.


Para Anne e Diana



SUMÁRIO Agradecimentos 11 Prólogo 13 PARTE UM – NO PRINCÍPIO I 1. Os primeiros homens 2. Tentasali 3. Watauinaiwa 4. O momento jardim do Éden 5. Paralelos primatas 6. Horizontes de curiosidade 7. A última curiosidade

25 33 37 45 54 61 70

PARTE DOIS – CIÊNCIA MOTIVADA POR DEUS 8. Os leões de Mileto 9. A mudança para Atenas 10. Através da porta da Academia

83 91 97

PARTE TRÊS – ENCONTROS EM ALEXANDRIA 11. Os dois alunos 12. A cidade dividida 13. Jack trabalhador 14. A criação do mundo

109 116 122 126

PARTE QUATRO – A LONGA DISCUSSÃO 15. A Casa do Saber 133 16. O sonho de Aristóteles 138 17. A peregrinação de Algazali 146 18. Uma história de duas cidades 152 19. Silêncio imposto 162 20. Ciência experimental 169 21. A lei universal 174 PARTE CINCO – O LIVRO ABERTO DO CÉU 22. Contra Aristóteles 183 23. Filosofar livremente 190 24. A liberdade do intelecto 195 25. Simplício redivivo 199 26. A criação 202


PARTE SEIS – SACERDOTES DA NATUREZA 27. Uma nova era 28. Um astrólogo luterano 29. A filosofia experimental 30. As centelhas oxonianas

209 216 224 233

PARTE SETE – O OCEANO DA VERDADE 31. Le grand Newton 32. O belo sistema 33. Teologias matemáticas 34. A costa da infinidade

247 256 263 272

PARTE OITO – VIAGENS DE DESCOBERTA 35. Duas jornadas 281 36. O mistério dos mistérios 291 37. O credo da ciência 297 PARTE NOVE – NO PRINCÍPIO II 38. O inquérito literário 39. Rompendo os selos 40. A gazua intelectual 41. Em terra estrangeira 42. Junto aos rios da Babilônia 43. Adão e Adapa 44. O fio de Ariadne

307 316 318 321 325 333 338

PARTE DEZ – POR MEIO DA PORTA DO LABORATÓRIO 45. Ciência em tempo de cólera 46. Visita ao museu 47. Experimentos mentais 48. A unidade da natureza 49. As obras do Senhor

345 352 359 366 371

PARTE ONZE – EPÍLOGO 379

Notas 405 Bibliografia 426 Lista de Figuras 440


AGRADECIMENTOS

“GOSTARÍAMOS DE AGRADECER…”: com essas palavras, a maioria dos leitores imediatamente vira a página. No entanto, um livro que percorre tantas áreas diferentes deve incorrer num número muito grande de dívidas intelectuais, tanto mais quando se trata do resultado de uma colaboração. Como será que um artista e um cientista escrevem um livro juntos? Em A Divina Comédia, de Dante, o autor é guiado pelos domínios do além por um habitante daquela região: o poeta romano Virgílio. Quando os dois poetas partem, tendo Virgílio como guia de viagem e Dante como o que registra a jornada, um anjo desce até ao inferno para abrir o caminho e instruí-los aonde ir. À medida que suas viagens prosseguem até à montanha purgatória, esses auxiliadores celestiais aparecem com mais frequência. Quando partimos nesta jornada pelo mundo da ciência, tendo o cientista no papel de guia de viagem e o artista como escriba, nós também recebemos a oportuna ajuda de terceiros em estágios críticos. O primeiro desses auxiliadores foi o professor John Hedley Brooke, o primeiro a ocupar a cátedra Andreas Idreos de ciência e religião em Oxford, que leu um rascunho bem inicial de alguns destes capítulos e, ao mesmo tempo em que nos encorajava a prosseguir, abriu nossos olhos para a dificuldade da jornada que empreendíamos. Mais de uma década depois, o professor Peter Harrison, o segundo ocupante da mesma cátedra, leu o rascunho do manuscrito completo e nos ofereceu conselhos igualmente úteis. Também somos gratos aos representantes da editora da Universidade de Oxford por aprovar a publicação, e fomos ajudados pelos tão bem informados leitores anônimos da editora, cuja avaliação, tanto geral quanto


12

A PENÚLTIMA CURIOSIDADE

detalhada, fez deste um livro muito melhor do que de outro modo ele teria sido. Também agradecemos a diversos outros estudiosos e cientistas que graciosamente atenderam aos nossos pedidos de ajuda com comentários detalhados e sabedoria e incentivo em geral. Em especial, devemos agradecer ao doutor Jean Clottes, pelos seus conselhos para a parte 1 e pela sua generosidade ao permitir que usássemos suas fotografias da Caverna de Chauvet; ao professor sir Richard Sorabji, que compartilhou conosco seu vasto conhecimento do mundo clássico em geral e de João Filopono em particular; ao professor Peter Adamson, que em cima da hora nos desviou de alguns erros e nos conduziu à pesquisa mais recente na parte 4; ao professor Malcolm Jeeves, que nos orientou no mundo da investigação em CCR [ciência cognitiva da religião]; e ao professor Hugh Williamson, que nos deu conselhos bem-vindos para a parte 10. A responsabilidade por quaisquer erros que tenham persistido deve, obviamente, ser dividida entre os dois autores. Além dos que foram mencionados acima, devemos ainda agradecer ao professor Tom McLeish, ao doutor Allan Chapman e à doutora Julia Golding por lerem o manuscrito, a Mark Wagner por sugerir o título e a inúmeras pessoas que ajudaram com todas as questões práticas envolvidas no preparo deste livro. Entre elas estão Tim Kirtley, da biblioteca da Wadham College; Juliet Chadwick, da biblioteca Bodleiana; Helen Reilly, pela sua incansável busca de imagens; Nikki Macmichael e Marije Zeldenrijk, pelo heroico trabalho delas com as notas de rodapé e outros aspectos práticos do livro; Ania Wronski, Viki Mortimer e Charles Lauder da editora da Universidade de Oxford, pelo trabalho detalhado na preparação deste livro para publicação; e nosso editor, Sonke Adlung, pelo seu apoio e incentivo em todo o processo. No fim da segunda parte de A Divina Comédia, Virgílio não pôde prosseguir, e Beatriz, o antigo amor perdido de Dante, assume a condução do poeta através dos círculos do Paraíso. Nosso livro não se aventura nos domínios teológicos e deixa a cargo dos leitores irem adiante ou não, como desejarem. Não obstante, não pode haver dúvida de que o papel de Beatriz no nosso livro foi desempenhado pelas duas longânimes e incansavelmente motivadoras companheiras nesta jornada, cujos nomes se encontram na página de dedicatória.


PRÓLOGO

ALGUÉM QUE VISITE OXFORD no auge do verão, ao tentar fugir dos grupos de turistas que enxameiam os edifícios principais da universidade, pode entrar numa rua arborizada no fim da Rua Broad. Caminhando por essa rua, logo encontrará o oásis verde dos parques da universidade no qual, pouco antes de chegar ao portão do parque, um amplo gramado se estende a partir da rua à direita. Por trás do gramado ergue-se uma extraordinária versão vitoriana de um palácio gótico renano. Trata-se do Museu da Universidade de Oxford [Fig. 0.1]. Alguém que visite Cambridge nos meados do verão e esteja procurando evitar as multidões de visitantes se amontoando em torno da King’s Parade pode, do mesmo modo, entrar numa ruela lateral que passa pelo pub Eagle. Ao fazer uma curva brusca à direita, chegará à relativa tranquilidade da viela chamada Free School Lane. No meio da viela, à esquerda, encontra-se outro grandioso edifício vitoriano. Uma nova inscrição em pedra informa o visitante que essa era a antiga sede do Laboratório Cavendish [Fig. 0.2]. Esses dois edifícios compartilham a honra de estar entre as primeiras instituições construídas especialmente para a investigação científica nas suas respectivas universidades. Foram também os locais de dois momentos lendários na história da ciência. No Cavendish, o momento se deu no dia 28 de fevereiro de 1953, quando dois jovens pesquisadores do laboratório entraram no Eagle na hora do almoço para dizer a todos que pudessem ouvir que tinham “descoberto o segredo da vida”. No museu, o momento ocorrera quase cem anos antes. Em 30 de junho de 1860, o edifício recém-construído foi o local de um famoso encontro em que um


14

A PENÚLTIMA CURIOSIDADE

bispo foi insultado, uma senhora desmaiou e, entre cenas de empolgação geral, a nova teoria da evolução por meio da seleção natural segundo Darwin e Wallace foi debatida em público pela primeira vez.

0.1 O Museu da Universidade de Oxford em 1860, fotografado por Henry Wagner.

0.2 O Laboratório Cavendish na Free School Lane.

Os dois eventos ganharam um verniz de mitologia. Documentos contemporâneos sugerem que o debate no museu não foi bem um embate direto entre religião e ciência como os relatos posteriores o representaram; isso porque, já na época, James Watson sentia-se “meio constrangido” pelo fato de serem um pouco prematuras as afirmações feitas pelo seu colega Francis Crick em relação ao novo


Prólogo

15

modelo de DNA.1 No entanto, a mitificação pode ser vista como um tributo à noção de que essas duas descobertas tiveram uma relevância que ultrapassava os limites normais da ciência. Isso se aplica especialmente à primeira. Quando uma tradução francesa de A Origem das Espécies foi publicada, em 1862, dois anos depois dos eventos no museu, ela apareceu com um prefácio em que a tradutora contrastou a “revelação racional” da ciência com o que ela considerava a então obsoleta revelação da religião cristã. Então, doze anos mais tarde, em 1874, um dos protagonistas originais do debate no museu publicou sua própria History of the Conflict between Religion and Science [História do conflito entre religião e ciência], em que todo o desenvolvimento da ciência foi considerado como “uma narrativa do conflito” entre esses dois poderes rivais.2 O doutor John Draper era professor de química na Universidade de Nova York, e seu estudo On the intelectual development of Europe, considered with reference to the views of Mr Darwin and others, that the progression of organisms is determined by law [Sobre o desenvolvimento intelectual da Europa, considerado em relação às visões do senhor Darwin e outros de que o progresso dos organismos é determinado por lei] havia sido o assunto anunciado no evento no museu. A maior parte do público achou seu estudo tão longo e entediante quanto seu título (embora muitos anos depois uma senhora pudesse ainda lembrar “o sotaque americano” nas palavras iniciais da palestra do doutor Draper quando ele perguntou: “Seríamos nós um ajuntamento fortuito de átomos?”). Porém, em 1874 o professor teve êxito em prender a atenção do seu público. Sua History foi um fenômeno editorial (comparável tanto em conteúdo quanto em sucesso a Deus, Um Delírio, de Richard Dawkins, quase um século e meio depois), passando por 21 edições na Grã-Bretanha, cinquenta impressões nos Estados Unidos e traduções ao redor do mundo inteiro. O livro de Draper foi seguido em 1890 por uma obra monumental do presidente da Universidade Cornell, Andrew Dickson White, com o título A History of the Warfare between Science and Theology in Christendom [Uma história da batalha entre ciência e teologia na cristandade]. A obra de White teve menos sucesso popular, mas exerceu mais influência intelectual, e o filósofo Bertrand Russell recorreu grandemente a ela num livro publicado em 1935 com o título Religião e Ciência. A tese de Russell – de que houve uma batalha ininterrupta entre ciência e religião em que “a ciência invariavelmente tinha se provado vitoriosa”3 – pareceu ter sido perfeitamente ilustrada pelo “julgamento do macaco” que ocorrera no Tennessee dez anos antes. A instauração de um processo contra um professor de biologia por ensinar evolução tinha resultado numa notável batalha legal (posteriormente transformada numa peça e num filme de Hollywood) em que, numa conturbada sala de tribunal, o advogado militante agnóstico Clarence Darrow e William Bryant, três vezes nomeado à candidatura presidencial (e cristão fervoroso), literalmente cerraram os punhos um contra o outro sob os olhares de uma imprensa fascinada. Falando perto do fim da sua vida, Francis Crick descreveu toda sua carreira científica como tendo sido moldada por essa narrativa de conflito. Ele tinha perguntado


16

A PENÚLTIMA CURIOSIDADE

a si mesmo “quais eram as duas coisas que parecem inexplicáveis e que são usadas para dar apoio à crença religiosa: a diferença entre os seres animados e inanimados e os fenômenos da consciência”, decidindo-se buscar eliminar esses dois apoios.4 Em 1961, ele tornou públicos seus sentimentos ao pedir para ser exonerado do seu cargo acadêmico na Churchill College quando os demais acadêmicos votaram pela construção de uma capela. Não competia a uma instituição “dedicada ao conhecimento avançado e à livre especulação”, segundo ele acreditava, estar ligada ao que ele considerava o “disparate supersticioso” da religião.5 A ironia nisso tudo foi que, se Crick ou Watson tivessem fechado as portas externas do Cavendish e olhado para trás ao caminhar para o pub naquele almoço de fevereiro, eles teriam visto uma inscrição que ligava o próprio laboratório deles com o “disparate supersticioso” da religião tanto mais explicitamente quanto a nova capela na Churchill College. Talhada nas duas portas está uma inscrição em latim de um versículo do Salmo 111 [Fig. 0.3].

0.3 As portas do Laboratório Cavendish na Free School Lane. Traduzida, a inscrição diz: “Grandes são as obras do Senhor; nelas meditam todos os que as apreciam” [Sl 111.2].

Provavelmente eles não a notaram. “O conflito entre dois poderes rivais” é uma narrativa tão convincente que ficou extremamente fácil fazer vista grossa a histórias alternativas. Em 2009, ocorreu um debate no Museu da Universidade de Oxford entre Richard Dawkins e John Lennox (matemático e apologista cristão). Numa das interações, Lennox perguntou a Dawkins se a motivação por trás do museu havia sido em parte religiosa. Dawkins respondeu que nesse caso não, e o debate prosseguiu. Se por acaso qualquer um dos participantes tivesse erguido seus olhos ao entrar no edifício, teria visto talhada acima da porta a imagem de um anjo carregando um livro aberto em uma mão e três células vivas na outra [Fig. 0.4]. De acordo com o


Prólogo

17

relato de alguém da época, isso foi feito “para indicar as intenções dos fundadores do museu, cujo desejo era levar futuras gerações a estudar o livro aberto da natureza e os mistérios da vida sob a orientação de um poder superior, o único que pode capacitá-las a ler as páginas desse livro com um entendimento correto”.6 Como é que duas instituições dedicadas à ciência vieram a ter essas invocações religiosas expostas nas suas entradas? Essa pergunta, cerca de dezesseis anos atrás, foi o ponto de partida para este livro. Um dos autores, cientista, topara com a inscrição de Cambridge quanto trabalhava no Laboratório Cavendish. O outro, artista, notara o relevo no museu quando estudava arquitetura do neogótico em Oxford. Nós dois ficamos intrigados. Seriam essas invocações (como pode prever o pensamento contemporâneo) meros gestos de piedade? Não teriam talvez o propósito de apaziguar as sensibilidades religiosas das universidades à época, quando avanços da ciência estavam começando a sugerir que as nar- 0.4 Anjo com livro e células germinativas rativas bíblicas da criação pertenciam à acima da entrada do Museu da Universidade mesma categoria de qualquer outro tipo de Oxford. de mitologia? Foi a descoberta de que esse não era o caso – na realidade, essas duas entradas representavam as convicções advindas de profunda reflexão de duas figuras centrais do mundo científico vitoriano (cujas histórias contamos na parte 10) – que nos instigou a investigar mais a fundo. Se o impulso de integrar os domínios separados da religião e da ciência foi mais do que um gesto, de onde é que ele veio? Nosso primeiro passo na tentativa de responder à pergunta foi considerar, num quadro mais amplo, o que estava ocorrendo na época em que essas entradas foram construídas. As últimas décadas do século 19 viram a expansão repentina e chocante dos horizontes intelectuais em toda uma variedade de campos diferentes. Descobertas dramáticas, como a da nascente do Nilo, a revelação das ruínas de Troia e a decifração de literaturas antigas há muito perdidas aconteceram nos mesmos anos, como toda uma série de inovações científicas fundamentais. Os conflitos que a assimilação de algumas dessas novas perspectivas envolviam (senhoras desmaiando e punhos cerrados) têm a tendência natural de magnetizar nossa atenção. No entanto, como logo percebemos, isso também traz consigo a fácil tendência de passar batida a relevância de descobertas que potencialmente resolveram conflitos, em vez de criá-los, e de ignorar aqueles cientistas vitorianos e outros para os quais a abertura a novos dados expressava o compromisso religioso, em vez de destruí-lo.


18

A PENÚLTIMA CURIOSIDADE

Em especial, notamos que a descoberta e a decifração no fim do século 19 de textos antigos comparáveis aos primeiros capítulos do Gênesis (cuja história – agora olhando o livro de frente para trás – contamos na parte 9) estavam começando a revelar que, longe de pertencer à mesma categoria de outros mitos da criação, as histórias do Gênesis eram muitíssimo críticas e radicalmente distintas deles. Onde outras mitologias tinham apresentado os deuses como se eles habitassem (ou mesmo fossem identificados com) aspectos do mundo natural e tinham fornecido relatos pitorescos do modo como o mundo foi criado fisicamente, posteriormente os escritores bíblicos consideravam “idolatria” o que, na visão deles, era uma identificação falsa de Deus e da natureza. Parece que eles rejeitaram conscientemente essas mitologias e passaram a apresentar Deus como se ele estivesse fora da criação, criando todas as coisas por simples decreto ou ato de volição, sem abordarem a questão do processo físico. Os textos recém-descobertos revelaram essas ideias em muitíssimo alto relevo. Porém, não era a primeira vez que elas haviam sido notadas. Uma antiga (mas disputada) tradição dentro do pensamento tanto judaico quanto cristão chamou a atenção repetidas vezes para essas ênfases bíblicas, e as tinha usado com dois propósitos: defender que o estudo do mundo natural era um dever religioso, e sugerir que, como Deus era o criador de tudo, devemos ter a expectativa de descobrir que sua criação é governada por simples leis universais. Aparentemente, aí estava uma pista que talvez, em última instância, forneça uma resposta à nossa pergunta. É uma linha que pode ser acompanhada de volta até seu início. Na época em que nós dois ocupávamos o mesmo edifício – o ateliê do artista em cima da casa do cientista – e durante nossa ocupação conjunta, ocasionalmente nos encontrávamos no café da manhã para discutir nossas descobertas. Ao puxarmos essa linha única que tínhamos encontrado, ia se desvendando uma história muito mais extensa e abrangente do que tínhamos inicialmente imaginado. O primeiro lugar para o qual nosso desvendamento nos levou foi (um pouco para nossa surpresa) a própria teoria da evolução. A história do duelo entre o literalismo bíblico e o secularismo científico já foi contada muitas vezes; porém, logo percebemos que isso se tratava apenas de parte do que acontecera. A história (que contamos na parte 8) do modo como se tinha desenvolvido a ideia segundo a qual seria possível descobrir leis divinas subjacentes ao mundo biológico, assim como Newton descobrira leis divinas que regem o universo físico, foi contada com muito menos frequência. De fato, algo semelhante parecia se aplicar à própria história de Newton (que contamos na parte 7). Recentemente tem sido dada muita atenção ou à demonstração do modo como seu interesse em alquimia e teologia herética o isolou do cristianismo ortodoxo ou à descrição do modo como sua ciência levou alguns a uma teologia natural autodestrutiva e outros, ao racionalismo iluminista. Contudo, no centro do seu pensamento estava um senso de que havia uma profunda congruência entre “o belo sistema” de leis interligadas (que poderiam ter sido arranjadas


Prólogo

19

de outra forma) e as livres escolhas de um Deus criador totalmente sábio. A partir daí, Newton fez a inferência de que esse ser universal tinha criado leis universais. Quaisquer que tenham sido as demais idiossincrasias do seu pensamento, elas não foram excentricidades isoladas. Como descobrimos, a abordagem de Newton formava parte de uma história muito mais ampla. Essa história mais ampla (que contamos na parte 6) envolveu vários dos pioneiros da chamada “revolução científica”, os quais concebiam o estudo da natureza como um aspecto do culto religioso. Em particular, cientistas protestantes viam uma correlação significativa entre a abordagem aberta que era necessária para ler o livro das obras de Deus com precisão e a liberdade de juízo que a ordem de Paulo de “examinar tudo” aparentemente exigia na leitura do livro da palavra de Deus. Como a tradução da Bíblia tinha democratizado a leitura da Escritura e exposto a aparente idolatria de substituir os pensamentos de Deus pelos do homem, assim também lhes parecia que a “filosofia experimental” tinha democratizado o estudo da natureza e permitido que as obras do Senhor falassem por si mesmas. Porém, a história da qual esses primeiros cientistas faziam parte não tinha começado nos séculos16 e 17. Os fundadores da Sociedade Real podem até ter considerado a Reforma Protestante como a fonte e origem da sua nova filosofia (com a ênfase desta no experimento, na matemática e no mecanismo), mas a pesquisa do século 20, como rapidamente descobrimos, trouxe à luz outros tributários que tinham fluido para aquela mesma corrente. Em 1904, cerca de trinta anos depois de John Draper ter publicadp sua History, um físico francês chamado Pierre Duhem estava escrevendo um livro sobre a origem da estática quando se deparou com uma referência a um escritor medieval pouco conhecido, de nome Jordano Nemorário. Seguindo a pista dada por essa referência e usando especialmente as anotações recém-publicadas de Leonardo da Vinci, ele embarcou num programa de investigação que culminou numa enorme história da ciência medieval em nove volumes. A obra de Duhem abriu todo um campo de estudos até então desconhecido, e esse não foi o único campo a ser aberto. Em 1883, cerca de vinte anos antes de Duhem começar sua obra, Ernest Renan, o autor de uma controversa demitologização da vida de Cristo, tinha proferido uma palestra na Sorbonne que foi posteriormente publicada como livro com o título Islam et la Science [O islã e a ciência]. Nele, argumentou que o islã era intrinsecamente incapaz de produzir ciência e filosofia. Isso suscitou uma resposta do estudioso de origem iraniana Jamal al-Din Afghani e do intelectual otomano Nemek Kemal, que escreveram um livro chamado Renan Mudafanamesi [Uma refutação de Renan], destacando os feitos científicos do mundo árabe muçulmano. Em conjunto, seus escritos deram início ao longo processo de chamar a atenção para uma história que, no fim do século 20 e no início do século 21, tornou-se um imenso campo de estudos e em franca expansão. Em Nova York em 1942, Joseph Needham, destacado bioquímico de Cambridge, escreveu na margem de uma carta da BBC: “Ciência em geral na China – por que não desenvolver?”.7 O interesse de Needham foi despertado pela primeira vez


20

A PENÚLTIMA CURIOSIDADE

graças ao seu contato com jovens cientistas chineses. Isso passou a monopolizar integralmente sua atenção quando em longas viagens através da China no tempo da guerra ele começou a colecionar e ler caixas de textos antigos que deixavam clara a dimensão dos avanços científicos que tinham ocorrido no passado da China. Francis Bacon tinha identificado a pólvora, a imprensa e a navegação magnética como as três invenções que mudaram o mundo. Needham viu que todas as três tinham sido descobertas na China antes de serem conhecidas na Europa. Então, ele começou a escrever quinze volumes intitulados Science and Civilization in China [Ciência e civilização na China] (outros doze volumes foram produzidos posteriormente). A questão com a qual Needham tinha começado continuou a ocupá-lo. De fato, a pergunta: “Por que, por volta do século 16, a China perdeu sua preeminência científica e cultural?” passou a ser conhecida como “a pergunta de Needham”, não havendo nenhuma resposta específica que traga concordância entre os estudiosos. Na própria China, os triunfos tecnológicos do passado foram em grande medida esquecidos. Um livro chinês publicado em torno da época em que Needham iniciou suas investigações tinha o título Why China Has No Science [Por que a China não tem ciência]. Foi na literatura religiosa, como o cânon taoísta, que Needham fez suas descobertas e, na China maoísta, todos esses textos religiosos eram vistos com suspeita. Descobertas como essas da extensão e dimensão do interesse científico no mundo pré-moderno e sua estreita associação com a religião criaram um quadro radicalmente diferente daquele pintado por John Draper e Andrew White. Em especial, pôs a história das querelas de Galileu com as autoridades eclesiásticas, que tinha sido (e talvez ainda seja) o evento central em qualquer versão de uma “narrativa de dois poderes rivais”, numa perspectiva diferente. O pensamento de Galileu (que discutimos na parte 5), com sua insistência na “liberdade de filosofar”, poderia de certo modo, como descobrimos, estar diretamente ligado ao pensamento reformista contemporâneo. No entanto, poderia também ser visto como que surgindo de uma história muito mais antiga. Nela, a ideia de leis da natureza matematicamente definidas tinha se desenvolvido, primeiramente no mundo muçulmano e posteriormente na Europa medieval, à medida que as religiões abraâmicas lutavam para interagir com o legado da filosofia grega. O engajamento delas envolveu uma discussão que durou mais de mil anos (cuja história descrevemos na parte 4), nos quais os maiores estudiosos das três religiões tentaram distinguir as verdades da filosofia grega daquilo que, segundo lhes parecia, eram as falsas ideias religiosas embutidas nela. Ao rastrear essa discussão até seu início, chegamos, enfim, à cidade de Alexandria nos anos anteriores às invasões muçulmanas. Foi ali (como descrevemos na parte 3) que o judaísmo e o cristianismo buscaram pela primeira vez reconciliar-se com a filosofia natural grega de modo sistemático, e foi ali que aconteceu uma discussão entre um cristão e um filósofo pagão (que depois apareceria como figura central nos diálogos de Galileu) na qual a ideia de uma lei universal estabelecida por um Deus que ficava fora da natureza começou a aparecer pela primeira vez.


Prólogo

21

No entanto, mesmo ao chegar até aí, ficou-nos evidente que ainda não era de fato o começo da história. O engajamento entre a religião abraâmica e a filosofia grega pode ter começado em Alexandria, mas o enredamento entre religião e ciência não tinha tido início ali. Rebobinando ainda mais a história, logo ficou claro para nós que a notável investigação científica empreendida por Aristóteles e seus discípulos também tinha estado estreitamente ligada à revolução anterior no pensamento religioso (e, na parte 2, descrevemos como isso aconteceu). Teria sido aí, finalmente, que a história das invocações no laboratório em Cambridge e no museu em Oxford realmente começou? Em certo sentido, pareceu-nos que sim. Porque foi esse o momento em que o que hoje chamamos “ciência” começou a surgir a partir das práticas comuns do que agora chamamos “religião”; foi também o momento em que a necessidade de integração tornou-se evidente pela primeira vez. Falar nesses termos deve sempre envolver certa distorção. Nossas categorias contemporâneas não podem simplesmente ser forçadas no passado. Peter Harrison, ex-professor de ciência e religião em Oxford, sugere que, se um historiador anunciasse que tinha sido descoberto “uma guerra até então desconhecida que foi deflagrada no ano 1600 entre Israel e Egito”, a afirmação seria tratada com certo ceticismo. Isso porque “os estados de Israel e Egito não existiam no início do período moderno”.8 Do mesmo modo, o conceito de “religião” como um conjunto de crenças praticamente não existia antes do século 17, ao passo que a palavra “cientista” só apareceu no século 19 (foi cunhada por William Whewell numa reunião em 1833 da Associação Britânica “por analogia com artista”). Harrison ressalta que, para os pensadores medievais, religio referia-se a atos interiores de devoção, enquanto scientia era considerada um hábito da mente: aquela era uma virtude teológica; esta, uma virtude intelectual. A ideia de um conflito entre as duas teria sido praticamente sem sentido. O conflito que ocorreu na Grécia antiga (não importa como o descrevamos) envolveu, ainda assim, o surgimento de algo novo: uma abordagem do mundo que poderia ser percebida como ameaça a ideias estabelecidas sobre os deuses e que, portanto, precisava ser mais bem pensada. Antes daquele momento, o estudo da natureza tinha estado de tal modo entrelaçado na prática religiosa que era mais ou menos indistinguível desta. Todavia, não era essa antiga integração também uma parte da história? Será que a extensão e o escopo singulares da curiosidade humana não estariam fundamentalmente ligados à capacidade da mente humana de integrar percepções díspares do mundo? Se sim, a resposta última à pergunta que fizemos acerca da origem do impulso de integrar religião e ciência, bem como o verdadeiro início da história que decidimos contar, deve remontar ao primeiro surgimento de uma consciência humana distinta. A natureza fragmentária dos indícios faz que isso tudo seja um território difícil de discutir. Antes de 1850, esses antiquíssimos inícios eram totalmente inacessíveis. As linhas de investigação que poderiam ser seguidas se esgotavam na alvorada


22

A PENÚLTIMA CURIOSIDADE

da civilização. Porém, na segunda metade do século 19 uma série de descobertas completamente inesperadas começou a abrir pequenas e tentadoras janelas para a pré-história da raça humana. Foi aí, onde a natureza e o escopo da curiosidade humana começaram a ser vislumbrados pela primeira vez, que os primeiros esboços de uma resposta à nossa pergunta tiveram de ser encontrados. As pequenas e tentadoras janelas que se abriram consistiam essencialmente da descoberta de pinturas e esculturas pré-históricas. Esses achados extraordinários, que começaram no século 19, continuaram nos séculos 20 e 21. Na realidade, durante a redação deste livro, imagens incríveis vieram à luz. Sua importância na história da curiosidade humana não é apenas a capacidade que elas revelam da mente humana de integrar diferentes tipos de habilidade e percepções, mas também o que elas sugerem a respeito do modo como nossas investigações do mundo ao nosso redor são motivadas e sustentadas. Para nossa surpresa, começou a fazer sentido, segundo nos pareceu, que um artista e um cientista refletissem juntos a respeito dessas questões (e isso num período em que “religião” e “ciência” estavam marcadamente polarizadas). Foi naquelas mesmas décadas em que as invocações que notamos estavam sendo colocadas nos portões em Oxford e em Cambridge que essas outras descobertas tinham começado a ser feitas. Continuando, então, a puxar nossa linha única e seguindo-a até às cavernas da pré-história, é (na parte 1) com essa história de descoberta que nossa história maior, portanto, tem início.


PARTE UM

NO PRINCÍPIO I



1.

OS PRIMEIROS HOMENS

EM 16 DE DEZEMBRO DE 1832, o navio HMS Beagle navegou até a Baía do Bom Sucesso, na Terra do Fogo [Fig. 1.1]. Foi uma experiência que deixou uma marca indelével na mente do jovem Charles Darwin. Quase quarenta anos mais tarde ele conseguia recordar nitidamente o assombro que sentiu “ao avistar pela primeira vez um grupo de fueguinos numa costa selvagem e destroçada”.1 Os homens estavam “absolutamente nus e manchados com tinta, suas bocas espumavam de empolgação, e a expressão deles era de um modo selvagem entre espantada e desconfiada”.2 Ele “não conseguia acreditar quão vasta era a distância entre o homem selvagem e o civilizado”,3 e este pensamento logo adentrou sua mente: “Assim eram nossos ancestrais”.4 Quando o primeiro contato foi feito, o estranhamento dessa experiência só aumentou. “A língua dessas pessoas”, escreveu ele, “segundo nossas noções dificilmente merece ser chamada de articulada. O capitão Cook a comparou a um homem limpando a garganta, mas certamente nenhum europeu jamais limpou sua garganta com tantos sons roucos, guturais e estalados.”5 Ele observou certa vez que, quando banha pútrida estava sendo compartilhada, “um ancião cortou fatias finas e, murmurando sobre elas [...] distribuiu-as ao grupo faminto”,6 o que o fez se imaginar se isso poderia ser uma espécie de ato religioso. Ele observou que “toda família ou tribo tem um feiticeiro ou curandeiro cujo ofício nunca conseguimos determinar claramente”.7 Embora enterrassem seus mortos, “o capitão Fitzroy não conseguiu determinar se os fueguinos tinham qualquer noção distinta de uma vida futura” ou que “realizassem qualquer tipo de culto religioso”.8 Posteriormente, Darwin escreveu: “Nunca conseguimos descobrir se os fueguinos criam no que devemos chamar de um Deus”.9


26

A PENÚLTIMA CURIOSIDADE

As raças “selvagens” como os fueguinos de fato tiveram a mesma origem dos europeus? No início do século 19, havia quem argumentasse que eles não tinham – os proponentes da “poligênese”, em vez da “monogênese”. A relevância dessa proposta era que ela conseguia fornecer uma justificativa para usar outras raças como escravas, de modo que argumentos científicos e religiosos foram vigorosamente arranjados nos dois lados: para apoiar a ideia ou para opor-se a ela. Poucos meses antes de chegar à Terra do Fogo, Darwin e Fitzroy discutiram com tanta intensidade sobre o tratamento dos escravos que Darwin, que tinha sido criado em círculos abolicionistas, chegou perto de deixar a expedição. Recentemente foi argumentado que seu compromisso vitalício com a monogênese foi em certa medida alimentado pela sua ojeriza à escravidão.10

1.1 O Beagle no estreito de Murray, Canal do Beagle por Conrad Matthews.

Darwin tinha aprendido taxidermia com um escravo liberto e, ao longo de toda a viagem, geralmente conseguiu encontrar terreno comum com os povos com os quais eles se deparavam. Ele ficou particularmente intrigado com a facilidade com que Jemmy Hutton (um fueguino que o capitão Fitzroy estava levando de volta para o seu lar) conseguiu se deslocar, primeiro, de modos de pensar “selvagens” para “civilizados” e, então, de volta ao primeiro. Não obstante, as experiências religiosas dos povos “selvagens” pareciam-lhe opacas demais, assim como a outros viajantes – por exemplo, a sir Samuel Barber, que, em 1861, relatou à Sociedade Geográfica Real que os habitantes do Sudão do Sul, “como todas as outras tribos do Nilo branco [...] não têm nenhuma ideia de divindade nem sequer o vestígio de superstição; são meros brutos”.11 Se Darwin estava correto ao pensar que “nossos ancestrais” tinham características semelhantes às dos fueguinos, era razoável esperar que, além da ausência de tecnologia e ausência de roupas, também teriam manifestado igual ausência de


Os primeiros homens

27

religião. Quase quarenta anos depois do seu primeiro encontro na Baía do Bom Sucesso, ele concluiu que “há ampla evidência [...] de que numerosas raças existiram e ainda existem que não têm nenhuma ideia de um ou mais deuses, nem têm palavras em sua língua para expressar essa ideia”.12 O BISÃO NA CAVERNA

Mesmo com toda sua aparência primitiva, os fueguinos de Bom Sucesso eram, ainda assim, contemporâneos de Darwin. Vinte anos após o Beagle navegar até a baía de Terra do Fogo, uma espécie de primeiro contato com seres humanos realmente primevos se deu numa caverna às margens dos Pireneus. Embora artefatos pré-históricos tivessem sido descobertos há séculos por todo o mundo, não havia nenhum parâmetro que permitisse saber a idade deles. Então, em 1852, Édouard Lartet, um magistrado francês aposentado que se dedicava à paleontologia, estava escavando uma caverna em Aurignac quando descobriu ossos humanos e ferramentas de pedra, bem como os ossos de mamíferos extintos na era do gelo. Pela primeira vez, isso estabeleceu uma cronologia e, em 1861, Lartet publicou New Researches respecting the Co-Existence of Man with the Great Fossil Mammals, regarded as Characteristic of the latest Geological Period [Novas pesquisas a respeito da coexistência do homem com os grandes mamíferos fósseis, considerada como característica do último período geológico]. No início da década de 1860, Lartet, ao lado do seu amigo Henry Christy, banqueiro e etnólogo amador inglês, começou a escavar toda uma série de cavernas na Dordonha; em 1864, numa caverna conhecida como La Madeleine, próxima à vila de Les Eyzies, descobriram um pedaço da presa de um mamute com a imagem gravada do animal que parecia decisivamente provar sua tese. Quatro anos depois, um grupo de operários estava abrindo o caminho para uma estrada para a estação ferroviária de Les Eyzies. Sob uma saliência de um penhasco calcário conhecido pelos locais como “Cro-Magnon”, notaram algumas ferramentas de pedras e pedaços de ossos no solo. Louis Lartet, filho de Édouard descobriu, numa cavidade atrás do abrigo, esqueletos parciais de três homens adultos, uma mulher e uma criança enterrados entre artefatos que eram estilisticamente parecidos com aqueles que seu pai tinha encontrado na caverna de Aurignac. O surpreendente com esses esqueletos era que, diferentemente daqueles que tinham sido encontrados em 1856, no vale de Neander, na Alemanha, esses eram essencialmente idênticos aos humanos modernos. Quando os artefatos descobertos por Lartet e Christy foram exibidos na feira de Paris de 1867, causaram sensação. O primeiro Congresso Internacional de Pré-história ocorreu mais para o fim daquele ano, e colecionadores começaram a oferecer grandes somas de dinheiro por mais artefatos, criando uma corrida de escavações semelhante à corrida do ouro. Consequentemente, uma coleção de artefatos ainda maior foi posta em exibição na grande Exposição Universal de Paris em 1878, onde foram vistos pelo pré-historiador amador espanhol Dom Marcelino de Sautuola.



Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.