O Mundo Perdido de Adão e Eva

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O mundo perdido de AdĂŁo e Eva



John H. Walton Com a participação de N. T. Wright

O mundo perdido de Adão e Eva O debate sobre a origem da humanidade e a leitura de Gênesis

tradução

Rodolfo Amorim Carlos de Souza


o mundo perdido de adão e eva Categoria: Apologética / Estudo bíblico / Ética

Copyright © 2015 John H. Walton Publicado originalmente por InterVarsity Press, Downers Grove, IL, Estados Unidos. Título original em inglês: The Lost World of Adam and Eve Primeira edição: Outubro de 2016 Coordenação editorial: Bernadete Ribeiro Tradução: Rodolfo Amorim Carlos de Souza Revisão técnica: Igor Miguel Revisão geral: Marcelo Meireles Braga Cabral

Raquel H. C. Bastos

Diagramação: Bruno Menezes Capa: Douglas Lucas

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Walton, John H., 1952-

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O mundo perdido de Adão e Eva : o debate sobre a origem da humanidade e a leitura de Gênesis / John H. Walton ; com a participação de N.T. Wright ; tradução Rodolfo Amorim Carlos de Souza. — Viçosa, MG : Ultimato, 2016. — (Série ciência e fé cristã) Título original: The lost world of Adam and Eve : Genesis 2-3 and the human origins debate Bibliografia. ISBN 978-85-7779-157-6 1. Adão (Personagem bíblico) 2. Antropologia teológica - Cristianismo 3. Bíblia. A.T. Gênesis 2-3 - Crítica e interpretação 4. Eva (Personagem bíblico) I. Wright, N.T. II. Título. III. Série.

16-07771

CDD-222.1106

Índices para catálogo sistemático: 1. Gênesis : Interpretação e crítica

222.1106

Publicado no Brasil com autorização e com todos os direitos reservados Editora Ultimato Ltda Caixa Postal 43 36570-000 Viçosa, MG Telefone: 31 3611-8500 www.ultimato.com.br


As últimas décadas testemunharam um florescimento mundial sem precedentes do diálogo entre a religião e as ciências, particularmente entre a teologia cristã e o campo científico. Atualmente várias associações internacionais, instituições acadêmicas, igrejas e missões cristãs contribuem para um esforço conjunto de construção de pontes entre a fé cristã e a ciência contemporânea. No Brasil, tanto as pressões laicizantes dentro e fora das igrejas quanto o próprio amadurecimento intelectual e cultural dos cristãos vêm aprofundando e expandindo o debate sobre fé e ciência, fazendo dele um imperativo espiritual e testemunhal para nossa geração. Para ajudar a comunidade cristã e a comunidade científica na compreensão da importância e do caráter desse diálogo global, e visando uma comunicação rica e significativa entre esses campos, apresentamos a série “Ciência e Fé Cristã”. Apresentará perspectivas cristãs sobre campos diversos, como a teologia natural ou teologia da natureza, filosofia da tecnologia, biologia e teoria evolucionária, história da ciência, temas de filosofia da ciência, neurociências, física e cosmologia, e a relação entre a Bíblia e a ciência.


A amostragem de obras incluídas nesta série privilegia contribuições substanciais a esse diálogo contemporâneo realizadas a partir da tradição cristã evangélica ou compatíveis com essa tradição de fé. Com isso, a série procura fertilizar a reflexão avançada sobre tais temas no contexto evangelical brasileiro e entre aqueles interessados no diálogo, com vistas a uma participação mais rica e independente na conversação pública dos evangélicos com outras tradições religiosas ou seculares. Esperamos, ainda, promover uma contribuição amadurecida para o universo acadêmico brasileiro. A série “Ciência e Fé Cristã” é, enfim, um convite a todos aqueles que queiram mergulhar nesse fantástico universo de debates, conhecimentos e questões que tocam a nossa existência. Afinal, tanto o Livro da Criação quanto o Livro da Revelação merecem lugar em nossas cabeceiras.

Soli Deo Gloria. Guilherme de Carvalho e Roberto Covolan Editores Marcelo Cabral Editor assistente

Esta publicação contou com o apoio e financiamento da Templeton World Charity Foundation, Inc. As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente aquelas da TWCF.


Sumário

Introdução

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Proposição 1: Gênesis é um documento antigo

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Proposição 2: No mundo antigo e no Antigo Testamento, o foco do “criar” é estabelecer a ordem pela atribuição de papéis e funções

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Proposição 3: Gênesis 1 é um relato de origem funcional, não material

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Proposição 4: Em Gênesis 1, Deus ordena o cosmos como um espaço sagrado

43

Proposição 5: Quando Deus estabelece a ordem funcional, ela é “boa”

49

Proposição 6: ʾādām é utilizado em Gênesis 1-5 de formas variadas

55

Proposição 7: O segundo relato da criação (Gn 2.4-24) pode ser continuação, não recapitulação, do sexto dia do relato anterior (Gn 1.1–2.3)

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Proposição 8: “Formado do pó” e “feita da costela” são afirmações arquetípicas, não enunciados sobre origem material

65

Proposição 9: A ideia da criação da humanidade no Antigo Oriente Próximo é arquetípica, não sendo, portanto, incomum para os israelitas pensarem nestes termos

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Proposição 10: O Novo Testamento está mais interessado em Adão e Eva como arquétipos do que como progenitores biológicos

85

Proposição 11: Embora alguns dos interesses bíblicos em Adão e Eva sejam arquetípicos, eles são pessoas verdadeiras que existiram em um passado real

89

Proposição 12: Adão é designado como sacerdote no espaço sagrado, com Eva para auxílio

97

Proposição 13: O Antigo Oriente Próximo relaciona o jardim a espaço sagrado e as árvores a Deus como fonte de vida e sabedoria

109

Proposição 14: A serpente teria sido vista como uma criatura do caos do reino não ordenado, promovendo desordem

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Proposição 15: Adão e Eva escolheram fazer de si mesmos o centro da ordem e a fonte de sabedoria, acolhendo a desordem no cosmos

133

Proposição 16: Nós vivemos atualmente em um mundo com não ordem, ordem e desordem

141

Proposição 17: Todas as pessoas são sujeitas ao pecado e à morte por causa da desordem no mundo, não por causa da genética

145

Proposição 18: Jesus é a pedra angular do plano de Deus para resolver a desordem e aperfeiçoar a ordem

153

Proposição 19: O emprego de “Adão” em Paulo diz respeito ao efeito do pecado mais no cosmos do que na humanidade, nada dizendo sobre as origens humanas

161


Proposição 20: Não é essencial que todas as pessoas tenham descendido de Adão e Eva

173

Proposição 21: Os seres humanos podem ser vistos como criaturas distintas e uma criação especial de Deus, mesmo que tenha havido uma continuidade material

181

Conclusão e resumo

189

Notas

201

Glossário

227

Leitura complementar

231

Índice de nomes

237

Índice de assuntos

241

Índice de referências bíblicas

247



Introdução

Das controvérsias atualmente enfrentadas pela igreja, uma das

mais acirradas e proeminentes é a que diz respeito ao relacionamento da Bíblia com a ciência, particularmente com o início da humanidade. Acaso existe um conflito essencial, inerente, entre as afirmações bíblicas e o consenso científico atual sobre as origens humanas (o qual envolve a evolução biológica, a teoria do ancestral comum, a genômica comparada, o registro fóssil e a antropologia, apenas para mencionar alguns dos maiores contribuintes)? É verdade que a ciência se modifica a todo momento, mesmo que apenas nos detalhes. Em contraste, é fácil pensar que a Bíblia seja estática e imutável. No entanto, sabemos que, embora a própria Bíblia não mude, nossa interpretação é muito mais dinâmica, resultando em uma teologia constantemente sujeita à reavaliação (mais no perímetro do que no centro). Dois milênios de história da igreja testemunharam diferenças dramáticas em hermenêutica, em controvérsias teológicas arraigadas (algumas opções descartadas como heréticas, outras trazendo amplas divisões e, ainda, outras permanecendo lado a lado) e em discordâncias


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substanciais sobre o significado de passagens particulares. A história da interpretação de Gênesis 1-3, em especial, é tudo menos monolítica. Nem a doutrina nem a exegese se caracterizam por uma completa homogeneidade. Este fato pode ser observado até mesmo nos períodos iniciais. Uma característica se torna clara, até mesmo em um estudo apressado deste período [os primeiros dois séculos depois de Cristo]: nós não encontramos uma leitura unívoca ou um método único... No entanto, encontramos um padrão de leitura consistente e coerente, cujo caráter teológico é consideravelmente diferente da principal corrente moderna.1

Isso significa que o cristianismo foi forçado a se contentar em ter várias alternativas sobre a mesa para interpretar os primeiros capítulos de Gênesis. Infelizmente, é verdade que alguns adotaram a visão de que apenas a sua leitura particular, paroquial, seria a legítima para um “verdadeiro” cristão. Para nossa vergonha corporativa, precisamos confessar que até mesmo sangue foi derramado em decorrência disso. Como teólogos e intérpretes da Escritura, devemos prestar contas ao texto bíblico. Uma vez que as interpretações e até as hermenêuticas se modificaram pelos séculos, nós não podemos ser sempre escravos irredutíveis das tradições teológicas, mesmo sabendo que elas possuem extrema importância. Novos insights e informações podem emergir a qualquer momento. Há alguns séculos, o acesso ampliado às línguas originais teve um impacto significativo na interpretação bíblica. Em décadas recentes, a disponibilidade de documentos do mundo antigo ofereceu um recurso notável para nossa leitura do texto bíblico. Não temos o direito de negligenciarmos essas ferramentas quando elas podem contribuir de forma tão significativa para nossa interpretação. No lado científico da equação, os últimos cento e cinquenta anos foram revolucionários. O desenvolvimento da teoria evolutiva foi apenas o princípio. Talvez, a empolgante informação disponibilizada pelo mapeamento do genoma humano seja o avanço mais recente para investigar as origens humanas, mas certamente não será o último. Para o desânimo daqueles que tomam a Bíblia seriamente, os vários campos da ciência são geralmente utilizados para atacar a Escritura e a fé, o que, infelizmente, leva muitos a se omitirem em relação à ciência, ou até mesmo a se oporem a ela. Isso não deveria ocorrer com os cristãos, posto que afirmamos a importância tanto da revelação especial (na Bíblia e em Jesus), quanto


INTRODUÇÃO

da revelação geral (no mundo que Deus criou e que a ciência ajuda a compreender). O fato de alguns utilizarem a ciência como uma arma contra a fé não justifica pensarmos que a ciência – ou os cientistas – sejam o problema. A filosofia do naturalismo é o problema, pois as mesmas pessoas que usam a ciência como uma arma usariam a Bíblia como uma arma contra aqueles que a têm como a Palavra de Deus. Nossa resposta deveria ser simplesmente tentar explicar melhor a Bíblia, tornando claro aos abusadores como eles a enxergam equivocadamente. É o mesmo que podemos fazer com a ciência. Neste livro, argumentarei que a percepção de ameaça colocada pelo consenso atual sobre as origens humanas – o qual aceita os princípios do ancestral comum e da teoria evolutiva como explicação para a existência da vida – é exagerada. Embora não devamos aceitar cegamente tal consenso se seus resultados forem cientificamente questionáveis, nós podemos entender que, independentemente de ele resistir ou não ao teste do tempo, ele não é uma ameaça à crença bíblica. No entanto, uma percepção de conflito não é incomum. Com isso em mente, não darei muita atenção à questão da legitimidade das afirmações científicas. Em vez disso, conduzirei uma leitura atenta da Bíblia como um documento antigo e como Escritura para explorar suas afirmações. O foco será Gênesis, mas estarei considerando a totalidade do cânon. Tentarei não isolar a resposta ou interpretação correta, mas demonstrar que existem leituras fidedignas da Escritura que, ao mesmo tempo em que possam diferir de alguma forma das leituras tradicionais, encontram suporte no texto e são compatíveis com o contexto do Antigo Oriente Próximo e com algumas das mais recentes descobertas científicas. Paralelamente, o espectro amplo do núcleo teológico é mantido: que a Escritura possui autoridade;2 que Deus teve papel íntimo e ativo enquanto criador, independentemente dos mecanismos que ele utilizou ou o tempo que gastou; que a criação material foi ex nihilo; que fomos todos criados por Deus; e que houve um ponto no tempo em que o pecado entrou no mundo, gerando a necessidade, portanto, de salvação. Nós não somos obrigados a conformar a Bíblia, seja com o seu contexto cultural, seja com a ciência moderna. Porém, se há uma interpretação do Gênesis, por exemplo, que coincida com o que encontramos como característica do mundo antigo ou com o que parecem ser conclusões científicas sólidas, melhor. Mesmo em uma abordagem “primeiro-a-Bíblia”

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(em contraste com uma “primeiro-a-ciência” ou até mesmo uma abordagem “primeiro-extra-bíblica”), nós podemos estar atentos ao mundo antigo ou à ciência moderna sem que comprometamos nossas convicções. Tanto informações da literatura do mundo antigo, quanto novos insights da investigação científica podem, da forma apropriada, levar-nos de volta à Bíblia para reconsiderarmos nossas interpretações. Isso não significa que forçamos cegamente o texto a se conformar às demandas de outros campos. A Bíblia precisa reter sua autonomia e falar por si só. Todavia, isso também se aplica a interpretações tradicionais que muitas vezes abraçamos como se fossem a própria Bíblia. O texto bíblico precisa reter sua autonomia sobre a tradição. Precisamos sempre estar desejosos de retornar ao texto e o considerar com um olhar renovado. Essa é a meta deste livro. Certamente, não tenho todas as respostas, mas, impulsionado por novas informações sobre o mundo antigo e os novos insights da ciência moderna, retorno ao texto bíblico para ver se existem opções que foram perdidas ou verdades que foram submersas sob a superfície congelada das leituras tradicionais. Não tenho a intenção de minar a teologia tradicional – eu trabalho a partir de uma firme convicção sobre a autoridade da Escritura e das tradições construídas na sua interpretação. Porém, dentro de nosso quadro de referência teológico existe espaço suficiente para lermos o texto de forma renovada e, talvez, sermos até surpreendidos por ele.


proposição 1 Gênesis é um documento antigo

A autoridade bíblica é inseparável da intenção do autor. Deus

investiu sua autoridade em autores humanos, o que torna necessário considerarmos a intenção comunicativa (o que se quer comunicar) do escritor humano para que possamos entender a mensagem divina. Duas vozes falam, sendo que a do autor humano é a porta ao quarto em que se encontram o sentido e a mensagem divinos. Isso significa que, ao lermos Gênesis, estamos diante de um documento antigo, e nossa interpretação deve partir das suposições próprias do mundo naquele momento. Ou seja, devemos entender como os antigos pensavam e quais ideologias permeavam sua comunicação.1 Em certo sentido, todo ato de comunicação bem-sucedido só ocorre depois de vários níveis de acomodação por parte do comunicador em razão da audiência que ele tem em mente. Se o comunicador e a audiência não compartilham a mesma linguagem, cultura ou experiências, cabe à acomodação preencher as lacunas. Porém, não se pode esperar que um comunicador se acomode a um público que não conhece ou antecipa.


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Chamamos de comunicação de alto contexto aquela que ocorre exclusivamente entre “nativos”,* quando comunicador e audiência têm muito em comum. Em tais situações, pouca acomodação é necessária para que ocorra uma comunicação efetiva, o que possibilita deixar muito sem dizer. No entanto, se algum “estrangeiro” quiser participar plenamente da comunicação, é provável que seja necessário explicitar o “não dito”. Pode-se ilustrar isso pelas reportagens de tráfego que ouvimos constantemente em Chicago, nas quais as referências às durações de trajetos e à localização de problemas assumem que o ouvinte conhece intimamente as vias de tráfego. Como um motorista habituado, considero muito significativas essas reportagens, que oferecem as durações de vários trajetos e a identificação de pontos de lentidão em congestionamentos. Quando ouço que o trajeto entre “a caverna” e “a junção” durará trinta e oito minutos e que está congestionado desde a “descida da curva Nagle”, entendo exatamente o que esperar. Porém, essa informação apenas confunde pessoas de fora da cidade que estejam visitando. Eles não sabem onde está a descida nem a caverna (e seriam incapazes de achá-las em um mapa), quão distantes estes lugares estão um do outro, nem que, em um dia bom, eles podem ir da caverna à junção em apenas oito minutos. Por outro lado, em comunicação de baixo contexto, quando um “nativo” tenta se comunicar com um “estrangeiro”, muitos ajustes são necessários. Uma reportagem de tráfego nessa situação teria de identificar os pontos locais de referência e os períodos normais de tráfego entre eles para ouvintes de fora da cidade ou transeuntes inexperientes. Reportagens assim seriam muito mais longas. Assim sendo, uma reportagem compreensível para alguém de fora da cidade seria interminável e incômoda ao transeunte local, que é, na verdade, o público que ela tenta servir. Eu proponho que na Bíblia Deus buscou uma comunicação de alto contexto, empregando o comunicador apropriado ao seu público. Por exemplo, um profeta e sua audiência compartilham história, cultura, língua e experiências da vida de seus contemporâneos. Quando lemos a Bíblia, entramos no contexto desta comunicação como “estrangeiros” de baixo contexto que necessitam utilizar todas as ferramentas inferenciais para discernir a natureza da locução e do significado do comunicador. Precisamos * Os termos insider e outsider foram aqui traduzidos por “nativo” e “estrangeiro” para reforçar o contexto comunicacional em que são empregados. (N.T.)


Gênesis é um documento antigo

recorrer a pesquisas para preenchermos todas as informações que o profeta não tinha de dizer em uma comunicação de alto contexto. É assim que nós, como leitores modernos, devemos interagir com um texto antigo. Aqueles que encaram a Bíblia seriamente acreditam que Deus inspirou locuções (palavras, tanto faladas quanto escritas) que o comunicador utilizou para construir suas elocuções2 (que levam a um entendimento das intenções, afirmações e, por fim, significado) conjuntas (autor divino + humano), mas que as locuções fundamentais estão ligadas ao mundo do comunicador. Ou seja, Deus realizou uma acomodação ao alto contexto de comunicação entre os comunicadores e suas audiências para otimizar e facilitar a transmissão de significado via uma elocução cheia de autoridade. Inspiração se conecta a locuções (elas têm sua fonte em Deus); elocuções definem o caminho necessário ao significado que pode ser definido como caracterizado por autoridade. Em alguns momentos, nossa distância do comunicador antigo pode significar que não entendemos a comunicação, ou por elementos que são estranhos a nós, ou por não compartilharmos formas de pensamento com o comunicador. Estudos comparativos nos ajudam a entender mais plenamente a maneira que os autores bíblicos utilizaram para empregar gêneros, além da natureza de suas retóricas. Isso evita que nós confundamos esses elementos com algo que eles nunca foram. Longe de comprometer a autoridade da Escritura, tal exercício atribui autoridade àquilo que o comunicador estava de fato comunicando. Também necessitamos de estudos comparativos para reconhecermos aspectos do ambiente cognitivo do autor,3 externos a nós, e para lermos o texto à luz de seu mundo e de sua cosmovisão. Consequentemente, somos obrigados a respeitar o texto reconhecendo seu tipo e a natureza da mensagem que ele oferece. Neste sentido, temos por muito tempo reconhecido que a Bíblia não é um compêndio científico. Ou seja, a intenção de Deus não é nos ensinar ciência nem revelá-la. Ele revela, de fato, sua obra no mundo, mas ele não revela como o mundo funciona. Como um exemplo de aspectos externos do ambiente cognitivo, as pessoas no mundo antigo não tinham categorias para o que chamamos de leis naturais. Quando eles pensavam em causa e efeito, mesmo que pudessem observar o mesmo que nós (por exemplo, quando você empurra algo ele se move; quando você solta um objeto ele cai), eles eram inclinados a ver as operações do mundo em termos de causa divina. Tudo funcionava de

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determinada maneira porque era assim que Deus havia estabelecido, sendo também assim que ele mantinha tudo funcionando. Para eles o cosmos não era como uma máquina, mas como um reino – e Deus falava sobre o mundo com eles por meio destes termos. Sua revelação a eles não focava em um entendimento mais sofisticado da mecânica do mundo natural. Semelhantemente, ele não escondeu informações desse tipo no texto para leitores posteriores descobrirem. Uma suposição nossa de que ele teria feito isso não poderia ser verificada de maneira confiável. Por exemplo, nos dias em que acreditávamos em um universo com curso estável, as pessoas poderiam facilmente ir à Bíblia para confirmarem essa teoria científica. No entanto, atualmente já não cremos que tal teoria seja verdadeira. Hoje nós podemos pensar que encontramos confirmação para a teoria do Big Bang ou a do universo em expansão, mas é possível que um dia não as consideraremos verdadeiras. Tais abordagens não podem ser aceitas como referências de afirmações dotadas de autoridade. Da mesma forma, a autoridade do texto não é respeitada quando afirmações na Bíblia que são parte da ciência antiga são utilizadas como se fossem descrições divinas do entendimento científico moderno. Quando o texto fala sobre pensar com o coração ou com o intestino, ele não está propondo ideias científicas que precisemos confirmar para encarar seriamente a autoridade bíblica. Não é necessário elaborarmos propostas sobre como nossos órgãos de bombeamento de sangue ou nosso sistema digestivo estejam fisiologicamente envolvidos nos processos cognitivos. Isso é simplesmente a comunicação no contexto da ciência antiga. Igualmente, ao lermos sobre as águas acima do firmamento (Gn 1.6), nós não temos que construir um sistema cósmico com água acima e abaixo. Todos no mundo antigo acreditavam haver águas acima, porque, quando chovia, a água descia. Portanto, quando o texto bíblico fala sobre as “águas acima” (Gn 1.7), ele não está oferecendo uma revelação de fatos científicos. Chegar à conclusão de que não há, estritamente falando, águas acima não significa identificar um erro na Escritura. Pelo contrário, significa reconhecer que a autoridade que Deus atribui ao texto está em outro lugar, na mensagem que o autor intenciona comunicar como um agente da revelação divina. Deus acomodou-se ao mundo do Israel antigo para iniciar sua revelação. Nós, portanto, reconhecemos que, embora a Bíblia também tenha sido escrita para nós (de fato, para todos), nós não somos seu público alvo, sua audiência primeira. Assim sendo, ela não comunica em nossa língua, não


Gênesis é um documento antigo

é direcionada a nossa cultura e não antecipa as questões sobre o mundo e suas operações que emergem de situações e temas modernos. Ao lermos o texto a partir de ideias modernas, diminuímos sua autoridade e o comprometemos, conferindo autoridade para nós mesmos e para nossas ideias. Isso é especialmente verdadeiro quando interpretamos o texto como se ele estivesse se referindo à ciência moderna, da qual tanto o autor quanto o público não tinham conhecimento. O texto não pode significar o que ele nunca significou. Suas afirmações podem convergir com a ciência moderna, mas não transformam a ciência moderna em palavra final (por exemplo, algumas afirmações podem coincidir com a cosmologia do Big Bang, mas isso não confere autoridade à cosmologia do Big Bang como sendo irrevogável). O que o autor intencionou dizer e o que a audiência do momento entendeu colocam restrições sobre quais informações têm autoridade. A única forma com a qual podemos nos mover com certeza além do que autores do Antigo Testamento intencionaram é se outra voz capaz de conceder autoridade (como um autor do Novo Testamento) nos fornece essa extensão de significado. Em contrapartida, proponho que nossas afirmações doutrinárias sobre a Escritura (autoridade, inerrância, infalibilidade, etc.) se vinculem à mensagem intencionada pelos comunicadores humanos (como concedida pelo comunicador divino). Isso não significa dizer que acreditamos em tudo o que eles acreditavam (eles acreditavam de fato que havia um céu sólido), mas que estamos comprometidos com o ato comunicativo. Uma vez que toda mensagem se fundamenta em sua linguagem e cultura, é importante fazer a diferença entre o que os comunicadores podem ter sido inferidos a acreditar e o foco de seu ensinamento intencionado.4 Então, por exemplo, não é surpresa que Israel acreditava em um céu sólido nem que Deus tenha acomodado sua comunicação a este modelo ao dialogar com Israel. Porém, uma vez que a mensagem do texto não é uma afirmação sobre a verdadeira forma da geografia cósmica, podemos rejeitar esses detalhes de forma segura, sem comprometermos a autoridade ou a inerrância da Escritura. Tal geografia cósmica está no grupo de crenças dos comunicadores que é empregado na estrutura de sua comunicação, não no conteúdo de sua mensagem. É possível discernir crenças especialmente na forma pela qual elas estruturam ideias ou, geralmente, no contexto do comunicador. É comum julgarmos que as crenças do autor sobre este mundo são irrelevantes ou imateriais à mensagem e, portanto, não relacionadas com a autoridade do texto. De igual modo, a ideia de que alguém pensa com

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