No Chamado [A História de José]

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ISBN 978-85-86539-96-1


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No Chamado

A História de José Gênesis 37–50

Meu objetivo na vida é unir Meu trabalho e minha vocação Como meus dois olhos formam uma única visão. Robert Frost

Agachei-me ao lado de um estudante de doutorado na Universidade de British Columbia. Aquele jovem indiano era brilhante, talentoso e faminto por Deus. — Quer convidar Jesus a entrar em sua vida? — perguntei. — Espero há dois dias que você viesse e orasse comigo — ele respondeu. Depois que oramos, eu lhe disse: — Agora você é um discípulo de Jesus. E, como discípulo dele, você possui uma vocação maior que a de se tornar primeiroministro da Índia. — Como você sabia? — ele perguntou. — Sabia o quê? — Esse é o meu alvo na vida. (Ele retornou à Índia e tornouse uma pessoa influente, tanto na liderança do país como na igreja, mas não um primeiro-ministro!) Infelizmente a palavra vocação é mal usada hoje em dia e, seu eu pudesse, a eliminaria por completo e a substituiria por outra

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tradução da palavra latina vocatio, a saber, chamado. Enquanto a palavra vocação está vinculada ao conceito de ocupação, a palavra chamado sugere a pergunta: “Quem?” Quem está fazendo o chamado? O fato mais importante sobre o chamado e a vida vocacional é que primeiro somos chamados por alguém antes de sermos chamados para fazer algo. Essa é uma lição que Jacó está aprendendo lentamente e que culmina na sabedoria que acompanha sua idade avançada, quando ele desce para o Egito a fim de se reconciliar com seu filho José. O próprio José está aprendendo a viver vocacionalmente. Trata-se de algo de que precisamos desesperadamente e que aos poucos estamos perdendo.

O mundo pós-vocacional Os sinais estão todos ao nosso redor. As pessoas se identificam por meio de suas ocupações: “Eu sou dentista”, “eu sou professor universitário”. Há então aquela sentença infeliz: “Eu sou apenas uma dona-de-casa”. Além disso, as pessoas que falam sobre serem “chamadas por Deus” acabam se tornando profissionais da religião, pastores e missionários. No mundo dos negócios poucos falam de serem chamados para o mundo corporativo e, se o fizerem, talvez sejam considerados insensatos. O chamado de Deus para se fazer um trabalho santo certamente não tem nada a ver com ganhar dinheiro — ao menos é o que se presume. Em muitas regiões do mundo a obsessão pela carreira impera, auxiliada e encorajada pela filosofia popular dominante da autorrealização — eu tenho uma tarefa a ser cumprida e tenho de escolher uma trajetória de vida que leve à felicidade pessoal e à expressão de todos os meus talentos. Em outros lugares, a vida é encarada a partir da perspectiva da sorte ou do carma. A reclamação de Lutero contra os sacerdotes e monges de seus dias tinha a ver com isso: eles não eram chamados para serem profissionais da religião; eles escolhiam o ministério ou o


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sacerdócio como um caminho superior, como um meio de obter mérito ou provar a seriedade de sua decisão de seguir a Jesus.1 O chamado implica exatamente o oposto: nós não elegemos um chamado; somos escolhidos e comissionados. Assim, em certo sentido é um paradoxo falar de “escolha vocacional”. Se víssemos a nossa vida como totalmente sob o convite capacitador de Deus — incluindo o trabalho, a família, as amizades, o sono, o lazer, a responsabilidade cívica e a missão —, ela teria uma direção e um propósito dinâmicos. Não faríamos da busca pelo emprego perfeito a nossa principal preocupação. Trabalhar ou servir na igreja não seria tudo. Em vez de sermos pessoas determinadas a provar nosso valor por meio da atividade intensiva (muitas vezes porque fomos criados em um ambiente de ausência de afirmação), devemos servir, trabalhar e nos relacionar por amor e gratidão. Assim o fazemos porque estamos convencidos de que nossa vida não é uma sequência de acasos, e sim resposta a um propósito maravilhoso que se desenrola sob a determinação graciosa e doadora de vida de Deus. Nesse sentido, Deus não tem um plano maravilhoso para a nossa vida; ele tem algo melhor — um propósito maravilhoso. Se fosse um plano, teríamos de segui-lo meticulosamente e, no caso de cometermos um erro, teríamos de voltar ao “ir” (que na maioria das vezes é impossível) e começar de novo. Ao contrário, fazemos “a segunda opção divina”. Ser parte do propósito de Deus é como descer um rio com uma forte correnteza. Temos mobilidade; remamos ora de frente, ora de costas, nos movendo de um lado para o outro. Mas estamos seguindo o fluxo, envolvidos e abraçados pela correnteza. Foi assim com Jacó e seu filho José.

O garoto mimado A vida de José sempre chama a atenção por causa de seus muitos eventos dramáticos — um autêntico conto de fadas. Mas, para

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além de sua característica dramática, a história de José ilustra como poucas a vida vocacional. Em seu aspecto mais simples, ela conta a trajetória de um dos onze filhos de Jacó, que é o seu preferido, vestido (mais um disfarce) com um manto ricamente ornamentado, de modo que ele não precisa trabalhar, como trabalham seus irmãos. Eles o odeiam por causa de sua posição como preferido, por causa de seus sonhos nos quais eles aparecem curvados diante dele e porque ele leva más notícias a respeito deles a seu pai (Gn 37.2). Certo dia, quando José sai para o campo a fim de conferir como vão as coisas, eles tentam dar fim a ele. Primeiro o lançam dentro de uma cisterna seca para que morra de fome e sede, e então o vendem como escravo a mercadores midianitas que passam por ali levando especiarias para o Egito. Por meio do mesmo tipo de engano que havia sido passado de geração a geração, os irmãos levam a Jacó o manto especial de José manchado de sangue de um animal. Sem na verdade mentirem, o convidam a tirar suas próprias conclusões: “Achamos isto. Veja se é a túnica de teu filho” (v. 32). Jacó conclui que um animal selvagem partiu José em pedaços, quando na verdade foram os seus irmãos selvagens quem o afastaram da família. Jacó se recusa a ser consolado porque sua vida está unida aos filhos de sua esposa preferida, Raquel, e a José em particular. Enquanto isso, José desce ao Egito, onde é vendido como escravo para trabalhar na casa de Potifar. Ali, e em qualquer lugar que fosse, José se destaca como líder e é colocado na posição de responsável geral pela casa. Quando seduzido pela mulher de Potifar ele foge, deixando apenas sua túnica para trás. Falsamente acusado (por meio de outra peça de roupa enganadora), ele acaba em outro poço — uma prisão. Ali ele interpreta os sonhos do açougueiro e do padeiro de Faraó, acrescentando, ao final de sua profecia alvissareira ao açougueiro:


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“Quando tudo estiver indo bem com você, lembre-se de mim e seja bondoso comigo; fale de mim ao faraó e tire-me desta prisão, pois fui trazido à força da terra dos hebreus, e também aqui nada fiz para ser jogado neste calabouço” (Gn 40.14-15). O açougueiro esquece, por um longo tempo, até que o próprio Faraó tem um sonho perturbador, e seus sábios e magos não conseguem interpretá-lo. José entra em cena. Ele confessa: “Isso não depende de mim, mas Deus dará ao faraó uma resposta favorável” (Gn 41.16). Muitas pessoas imaginam que Deus não pode ser encontrado nas altas rodas políticas ou nas salas de reunião das multinacionais. Mas o próprio Faraó é quem diz: “Deus lhe revelou todas essas coisas” (v. 39). Em parte como sugestão do próprio José, o Faraó então o contrata para ser o segundo no reino a fim de armazenar alimento durante os sete anos de fartura para distribuição nos sete anos de escassez. De acordo com os sonhos de Faraó, essa situação havia sido predita. Essa história descreve como poucas a saga de quem sai de uma prisão e chega a um palácio! José recebe um nome egípcio (Zafenate-Paneia), uma esposa egípcia de fortes laços com a tradição religiosa local, uma carruagem e poder quase ilimitado. Nessa função ele salva o Egito e, como veremos, a sua própria família. José é um exemplo extraordinário de servo de Deus em tempo integral em uma situação definida como secular. Além disso, ele está em um “ministério de tempo integral” sem um chamado específico, existencial, de Deus, ainda que verdadeiramente vivendo o seu chamado. Com a fome, a trama se intensifica. Os irmãos de José são enviados por Jacó ao Egito para comprar comida. Mas Jacó, agora com seu favoritismo transferido de José para o filho remanescente de Raquel (Benjamin), envia todos, exceto o caçula, “para que, porventura, não lhe suceda algum desastre” (Gn 42.4).

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Os filhos de Jacó se apresentam a José e se curvam diante dele. José os reconhece, mas mantém seu disfarce egípcio (mais um fingimento), e, usando um intérprete como se não pudesse entender o que estavam dizendo, reconhece que seus sonhos estão se cumprindo. Mas não se revela, não se identifica. Estaria ele ainda lutando para perdoar? Ocultaria a sua identidade a fim de saber se seus irmãos estão conscientes daquilo que lhe fizeram? Estaria se perguntando se eles teriam se arrependido? Ele tenta descobrir isso colocando-os em uma situação que simula suas próprias experiências terríveis — acusando-os de serem espiões (assim como ele os havia “espionado” para seu pai), lançando-os na prisão (assim como ele havia sido lançado no poço em Dotã), e então libertando-os sob a condição de que um (Simeão) ficasse como refém, enquanto os outros retornariam para trazerem consigo o irmão remanescente, Benjamin. Finalmente, depois de um longo tempo, eles convencem Jacó a deixar que Benjamin, o filho remanescente de Raquel, vá ao Egito. Segue-se uma das cenas de reconhecimento mais tocantes da história da literatura. É Judá quem finalmente amolece o coração de José e consegue a reconciliação dos irmãos. Então José diz: “Não foram vocês que me mandaram para cá, mas sim o próprio Deus” (Gn 45.8) e “pois foi para salvar vidas que Deus me enviou adiante de vocês” (v. 5).2 José reconhece sua vida como uma expressão vocacional mais por uma percepção tardia que por uma previsão, embora haja indicações passadas de que Deus o está conduzindo.

Três papéis Temos muito que aprender com José sobre viver o chamado. Trata-se de muito mais que uma ocupação. Primeiro, José tem uma carreira. Durante os primeiros dezessete anos de sua vida (do privilégio à cisterna), ele segue os passos de seu pai como pastor: “Pastoreava os rebanhos com os seus irmãos” (Gn 37.2). Uma carreira é uma ocupação que alguém espera exercer por


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um longo período, possivelmente por toda a vida, embora hoje as pessoas tenham quatro ou cinco carreiras (com várias tarefas em cada uma delas) e tenham de continuar sempre se reinventando. Então José arranja uma profissão (esse é o período da cisterna à prisão), trabalhando como escravo na casa de Potifar. Um emprego é um trabalho realizado visando simplesmente a sobrevivência. Em grande parte do mundo hoje o trabalho é executado visando apenas sobrevivência, sem a percepção de que as pessoas estejam cumprindo um propósito mais elevado ou realizando uma atividade apropriada a seus dons e talentos. Mas, quando José é elevado da prisão para o palácio, ele descobre uma vocação, um chamado. Vocação é muito mais que simplesmente trabalhar. É a escolha de Deus de que o escolhido pertença a Deus, viva da maneira que Deus quer e faça a obra de Deus no mundo. Eu sou pastor, obreiro entre estudantes, carpinteiro, comerciante e professor. Mas isso é apenas parte do meu chamado. Eu sou chamado também para ser marido e pai, filho e avô, amigo, cidadão. Eu entendo o chamado como viver minha vida como um todo para a glória de Deus. Assim, José, possivelmente tendo uma visão mais clara a respeito disso no final da história, percebe que foi enviado por Deus como um missionário ao Egito. Sua santa missão era assumir a administração dos recursos da terra não somente para os egípcios, mas também para a família da promessa. Até mesmo o trabalho escravo pode fazer parte do chamado de Deus e ter um propósito. José é um modelo de consultor administrativo. Ele obtém uma visão global, define o problema, recomenda a estratégia e assume para apoiar o presidente (no caso o Faraó) no processo de implementação. Nesse caso, José realmente se “autocontratou”, não como fruto de ambição pessoal, mas tomando uma inspirada iniciativa empreendedora. No entanto, José também foi tentado na área de seu chamado.

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Três tentações A primeira tentação de José foi ser o arquiteto de sua própria realização. Quando jovem, ele teve um sonho no qual viu seus irmãos se curvando diante dele. De posse desse sonho de grandeza, ele o utiliza de maneira manipuladora em relação a seus irmãos. Seria de se esperar que, após a reação deles ao primeiro sonho (onze feixes se curvando diante de um), José guardasse a visão em seu coração. Mas ele narra impensadamente o segundo sonho — o sol e a lua (pai e mãe) e onze estrelas (seus irmãos), todos se curvando diante dele. Acrescente-se a isso o fato de que José entrega (Gn 37.2) seus irmãos ao dar notícias ruins a respeito deles a Jacó. Então eles passam a odiá-lo ainda mais. A impressão que se tem é que ele está tentando fazer com que o sonho se torne realidade. Quando temos uma grande visão, uma missão que nos domina, um “chamado” em nossa vida, é quase sempre tentador fazer com que ele se viabilize sem esperar em Deus, sem depender do Deus que nos criou e que nos sustenta para o próximo passo. José tem de aprender essa lição da maneira mais difícil. Sua segunda tentação é na área sexual. Ele é seduzido pela mulher de Potifar, convidado a ir para a cama com ela. Ninguém ficaria sabendo se ele fizesse isso; além do mais, um relacionamento assim lhe traria benefícios a longo prazo. No entanto, corajosamente, ele confronta sua própria consciência e a dela: ele tem um compromisso com o seu senhor (“nenhuma coisa me vedou, senão a ti”). Então ele dá nome aos bois: “Como poderia eu, então, cometer algo tão perverso e pecar contra Deus?” (Gn 39.9). O assédio se repete dia após dia até que ela apanha sua túnica. Ele escapa sem ela, que depois é usada como “evidência” de seu erro, assim como antes seus irmãos haviam usado seu manto rasgado como “prova” de sua morte. A tentação na área do sexo é comum no ambiente de trabalho. Do mesmo modo, as tentações relacionadas a poder e posição.


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Todas precisam ser tratadas pelo nome, como José chamou a sua de pecado contra Deus e contra o próximo. Às vezes podemos lutar contra elas diretamente; na maioria das vezes, como no caso de José, devemos fugir. A terceira tentação de José foi estabelecer a sua identidade a partir de sua ocupação. No Egito, ele havia sido conduzido da prisão ao palácio por Faraó. José tinha um nome egípcio, uma esposa egípcia, a cultura egípcia e um trabalho extenuante. Ele era o sr. Segundo-no-Comando. Muitas pessoas têm sobrenomes derivados da atividade de seus antepassados, por exemplo. Assim, é compreensível, porém perigoso, alguém acabar se identificando com a própria ocupação. Isso acontece em festas: “O que você faz?” E, então, estar aposentado ou desempregado implica não ter identidade. Com grande sabedoria, Agostinho aconselhou que, se quisermos conhecer as pessoas, não lhes perguntemos o que fazem, mas o que amam.3 Com relação à carreira, é fácil pensar que somos os arquitetos de nossa própria realização. Em nosso trabalho podemos nos comprometer moralmente. Também podemos permitir a nós mesmos sermos identificados apenas por dimensões profissionais, enquanto que o chamado é muito mais que isso. Mas José possui recursos para viver vocacionalmente. E nós também os temos.

Três recursos O primeiro é uma visão capacitadora de grandeza. Trata-se do “propósito maravilhoso” sobre o qual já falamos. Aos dezessete anos José teve um sonho da parte de Deus. Alguns tentam interpretá-lo como um narcisismo adolescente, o ego inflado de um garoto mimado. Mas seus sonhos não são meramente uma revelação de sua jovem mente narcisista e egoísta. Essas visões são retratos do propósito de Deus dados por ele. Uma visão de grandeza revelada por Deus. Sem um sonho assim,

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nossa vida não tem inspiração. Regras, assim como cercas, podem nos limitar e nos proteger das maneiras terríveis (embora interessantes) de pecar. Os princípios podem nos guiar. Mas precisamos de algo mais para nos inspirar. No interior da Austrália se diz que um poço é mais importante que uma cerca. Coloque um poço onde você quer que seus animais fiquem e você não precisará de uma cerca. O chamado de Deus é assim. Deixe-me ilustrá-lo. Antes de os nossos três filhos se casarem e saírem de casa, tivemos o privilégio de viajar à Grécia, ao Egito e a Israel. Na Grécia (junto com alguns bodes e camponeses carregando fardos pesados), tomamos o ônibus para Delfos, o local do oráculo antigo. No mundo antigo, as pessoas iam até Delfos a fim de consultar a vontade dos deuses. Uma sacerdotisa, assentada num tripé sobre um disco de pedra, inalava fumaças narcotizantes de um fogo feito com muitas folhas e dava uma resposta. O rei Croesus veio de Sardes, na Turquia, antes de declarar guerra, buscou conselho com a sacerdotisa. Ela tomou fôlego e disse: “Um grande rei tombará nessa guerra” (sem dizer se seria Croesus ou o outro). Uma mulher grávida pergunta se dará à luz um menino ou uma menina, e a resposta é: “Filho... não — filha” (deixando a pergunta totalmente em aberto mais uma vez). A vontade dos deuses da Grécia é ambígua, complicada. Então voamos para o Cairo. Em um restaurante, iniciamos conversa com um norte-americano na mesa ao lado: — O que você está fazendo por aqui? — perguntamos. — Estou treinando pilotos de caça egípcios. — Que trabalho interessante. Qual a maior dificuldade que enfrenta em seu trabalho diário? (Eu gosto dessa pergunta.) — Quando os sinais luminosos de advertência acendem na cabine, eles não fazem nada. — Por quê? — Porque eles dizem que, se é vontade de Alá que o avião


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caia, assim será. E meu maior desafio é convencê-los de que podem fazer alguma coisa. No Islamismo, a vontade de Deus é inexorável e o verdadeiro adorador deve submeter-se a ela.4 Então cruzamos o deserto em um ônibus árabe sem ar condicionado, passando por assentamentos beduínos horríveis, que mal podiam ser vistos no meio da areia quente, até que chegamos à fronteira de Israel. Ali vimos flores exuberantes, árvores repletas de frutas e trigo dançando ao vento. As flores estavam literalmente desabrochando no deserto. Como? A vontade de Deus para o seu povo não é ambígua, nem inexorável. É uma visão capacitadora. E o verdadeiro adorador é inspirado a tomar a iniciativa de cumprir o maravilhoso chamado que está posto diante dele. Somos chamados a ser parte da obra transformadora de Deus sobre a terra. Trata-se de uma visão do reino. Que recurso! O segundo recurso é a soberania de Deus. José confessa a seus irmãos: “Vocês planejaram o mal contra mim, mas Deus o tornou em bem, para que hoje fosse preservada a vida de muitos” (Gn 50.20). Não somos fruto do acaso. Deus está envolvido com nossas vidas desde o momento da nossa concepção. Ele estabelece soberanamente nosso contexto familiar, nossa educação, nossas experiências de vida, nossa personalidade e nossos talentos. Até mesmo as experiências adversas podem, pelo poder de Deus, resultar no bem daqueles que o amam. As piores experiências de nossas vidas, estar dentro de poços e em prisões — físicas, profissionais, emocionais ou relacionais —, acabam por se tornar as melhores experiências, embora não seja isso o que pareça quando ocorrem. Eu jogo xadrez, mas sou muito ruim. Quando enfrento um especialista, sinto-me totalmente livre para fazer qualquer jogada — nos primeiros quatro movimentos. Então o especialista me pega. Deus me pega.

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Há um mistério na história de Jacó e de José, o mistério da liberdade humana e da ação providencial de Deus. Ele está exemplificado no resumo que José faz de sua vida: “Vocês planejaram..., mas Deus...” (Gn 50.20). Do mesmo modo, o texto destaca que José havia sido levado para o Egito (39.1), que é exatamente onde Deus quer que ele esteja. Mas Deus realiza seus propósitos inescrutáveis por meio de ações humanas tomadas “livremente”: uma esposa preferida, um filho preferido, um plano de assassinato idealizado pelos próprios irmãos, a passagem providencial de uma caravana, um emprego na casa de Potifar, uma sedução pela mulher de Potifar, uma estadia na prisão do rei, que coloca José em contato com os servos reais, a reabilitação providencial do açougueiro do rei e um sonho interpretado! Onde acaba a vontade de Deus e começa a vontade humana? Ou, será que há alguma liberdade humana? Um midrash judeu explora essa questão por meio de um provocativo desafio ao conceito de liberdade humana absoluta: Não leia “José foi levado ao Egito”, mas “José levou seus pais e irmãos ao Egito...” É como uma vaca, sobre a qual seus donos querem colocar uma canga. Ela recusa o jugo. O que eles fazem então? Tiram seu bezerro de perto dela e o colocam no campo que querem arar. Ele berra pela mãe, que ouve e, involuntariamente, segue o filhote. Do mesmo modo, Deus buscou cumprir o decreto da Aliança, de forma que engendrou o plano de toda essa narrativa, e a família foi até o Egito e cumpriu esse mandato — “Terríveis para o homem são teus planos” (Tanhuma, 4).5

Avivah Zornberg comenta que o midrash apresenta os seres humanos como participantes em um drama arquitetado por Deus. Thomas Mann certa vez disse: “É possível estar dentro de uma trama e não compreendê-la”.6 Zornberg afirma: “É da própria natureza da vida estar dentro de uma... trama que


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ninguém compreende como um todo em sua estrutura”.7 Com certeza, essa é a nossa situação: os seres humanos são, na maioria das vezes, atores inconscientes na trama de Deus. Podemos nos ressentir disso e insistir que devemos ser absolutamente autônomos, estar no controle total de nossa vida e de nosso futuro. Ou, como Paulo, na conclusão de sua reflexão sobre o propósito providencial de Deus em relação aos judeus e aos gentios em Cristo, podemos viver doxologicamente, o que significa viver vocacionalmente: Ó profundidade da riqueza da sabedoria e do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos e inescrutáveis os seus caminhos! Quem conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi seu conselheiro? Quem primeiro lhe deu, para que ele o recompense? Pois dele, por ele e para ele são todas as coisas. A ele seja a glória para sempre! Amém. (Rm 11.33-36)

Além disso, o terceiro recurso de José foi o povo de Deus. Com toda a sua pompa e circunstância, sua identidade e seu papel egípcios, José está separado de seus irmãos. E, enquanto exerce o violento papel de coloca-los na mesma situação que eles lhe proporcionaram, ele deve estar lutando com suas emoções, na dúvida se revela-se a eles ou não. Quando finalmente confessa: “Eu sou José”, ele se junta ao povo de Deus desprezado e pobre, à família da promessa, e novamente tem uma identidade integrada. Na cena final do filme The Quarrel (A Discussão), um rabino observa que no Egito José era grande e poderoso. Somente Faraó estava acima dele. José tinha tudo, mas até a chegada de seus irmãos ele estava só. Não existem cristãos individuais. Somos incluídos pela fé não apenas na igreja (como organização humana), mas na

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família de Deus, adotados na vida de amor do Deus triúno. Não podemos viver vocacionalmente sozinhos. Não podemos nem sequer discernir nossas vocações sozinhos. Um dos ministérios mais negligenciados na igreja é o do discernimento vocacional. Na família de Deus podemos ajudar uns aos outros a discernir a direção de Deus, a paixão e os talentos que ele tem inspirado e as circunstâncias que afetam a nossa trajetória de vida. Somos chamados juntos.

Jacó desce Tudo isso foi revelado antes que o próprio Jacó fosse chamado a descer ao Egito. Ele havia sido chamado para ocupar a terra e agora é chamado para abandoná-la. Não se trata de um degrau a mais na “carreira”. É preciso uma revelação divina para assegurá-lo de que ele ainda está em peregrinação e não é um colonizador que se estabelecerá na nova terra. No caminho, ele para em Berseba para oferecer sacrifícios ao Deus de seu pai, Isaque. E mais uma vez Deus fala com ele diretamente: “Eu sou Deus, o Deus de seu pai. Não tenha medo de descer ao Egito, porque lá farei de você uma grande nação. Eu mesmo descerei ao Egito com você e certamente o trarei de volta. E a mão de José fechará os seus olhos” (Gn 46.3-4). A presença de Deus, a família de Deus, a terra — essas são partes essenciais da promessa. Deus está assegurando a Jacó que essa mudança para o Egito não é uma mudança para longe de Deus, nem de sua família (a mão de José fecharia seus olhos), nem uma mudança definitiva para longe da terra (uma vez que o Egito seria o útero da nação e ela retornaria). Isso deve encorajar a muitos de nós que nos mudamos, de acordo com a média na América do Norte, a cada quatro ou cinco anos. Podemos encontrar a Deus “em trânsito”. Mas e quanto à parte final da promessa-chamado — a bênção das nações?


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Quando Jacó chega na carruagem de Faraó, José já havia ordenado que a sua estivesse pronta e parte ao encontro de seu pai. Que encontro mais emocionante deve ter sido esse — não diferente do encontro que Jacó havia tido anos antes com Esaú, e como aquele descrito por Jesus na parábola dos dois pródigos, quando o pai abraça o filho que retorna para casa. Neste caso, é o pai quem vem para casa e é o filho quem lhe dá as boas-vindas. José “lançou-se ao seu pescoço, e chorou sobre o seu pescoço longo tempo” (Gn 46.29). E o próprio Jacó sente que há um desfecho na história: “Morra eu agora, já que tenho visto o teu rosto, pois que ainda vives” (v. 30). Mas Jacó ainda não está pronto para morrer. Primeiro ele deve encontrar Faraó. O encontro do velho patriarca e do faraó deve ser, por certo, um dos mais estranhos de todos os tempos. O líder de uma família de Canaã, com o rumor dos anjos e o chamado de Deus, encontra um dos homens mais poderosos da terra, o grande soberano de seu tempo e que representa uma religião pagã (embora tenha reconhecido o espírito do Deus de Abraão em José). Jacó abençoa Faraó duas vezes: primeiro, quando entra em sua presença e, então, depois que Faraó lhe pergunta sobre a sua idade e sua peregrinação. “Então, Jacó abençoou o faraó e retirou-se” (Gn 47.10), abençoando por meio dele os gentios e as nações com o bem espiritual que ele tinha a oferecer como fruto de sua longa jornada com Deus, assim como José, seu filho, abençoou as nações por meio de sua administração da criação. A essa altura, as vocações de José e de Jacó se unem. Junto com eles, somos convidados a viver vocacionalmente. Podemos agora resumir aquilo que aprendemos sobre viver com um chamado. Quem são os chamados de Deus? Todos, especialmente agora que Cristo veio e nos convida a todos para caminhar de maneira digna do nosso chamado (Ef 4.1). Para onde esse chamado nos leva? Para o mundo, a fim de que sirvamos aos propósitos de Deus em todas as circunstâncias de

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nossa vida. Como cumprimos esse chamado? Ao assumirmos com Abraão, Isaque, Jacó e José a vocação humana de termos comunhão com Deus, formarmos comunidade (família, vizinhança, igreja e nação) e fazermos parte da criação contínua de Deus como mordomos sobre a terra por meio das atividades humanas que enriquecem a vida humana e liberam o potencial da criação divina. Algumas pessoas são chamadas para o ministério “em tempo integral”?8 Não há opção para ministério em tempo parcial.


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