Deus e Darwin

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Deus e Darwin



Alister McGrath

Deus e Darwin Teologia natural e pensamento evolutivo

tradução

Thaís Semionato


DEUS E DARWIN – teologia natural e pensamento evolutivo Categoria: Apologética / Ética / Teologia

Copyright © 2011 Alister E. McGrath Publicado originalmente por Wiley-Blackwell, West Sussex, Reino Unido. Título original em inglês: Darwinism and the Divine Primeira edição: Setembro de 2016 Coordenação editorial: Bernadete Ribeiro Tradução: Thaís Semionato Revisão técnica: Igor Miguel

Kétyllen Reis Andrade

Revisão geral: Lis da Matta

Marcelo Meireles Braga Cabral

Diagramação: Bruno Menezes Capa: Douglas Lucas

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) McGrath, Alister E., 1953Deus e Darwin : teologia natural e pensamento evolutivo / Alister E. McGrath ; tradução Thaís Semionato. — Viçosa, MG : Ultimato, 2016. ISBN 978-85-7779-154-5 1. Evolução (Biologia) 2. Evolução (Biologia) - Aspectos religiosos - Cristianismo 3. Fé e razão 4. Teologia natural I. Título.

16-06615

CDD-231.7652

Índices para catálogo sistemático: 1. Origem da vida : Criação ou evolução : Religião e ciência : Cristianismo 231.7652

Publicado no Brasil com autorização e com todos os direitos reservados Editora Ultimato Ltda Caixa Postal 43 36570-000 Viçosa, MG Telefone: 31 3611-8500 Fax: 31 3891-1557 www.ultimato.com.br


As últimas décadas testemunharam um florescimento mundial sem precedentes do diálogo entre a religião e as ciências, particularmente entre a teologia cristã e o campo científico. Atualmente várias associações internacionais, instituições acadêmicas, igrejas e missões cristãs contribuem para um esforço conjunto de construção de pontes entre a fé cristã e a ciência contemporânea. No Brasil, tanto as pressões laicizantes dentro e fora das igrejas quanto o próprio amadurecimento intelectual e cultural dos cristãos vêm aprofundando e expandindo o debate sobre fé e ciência, fazendo dele um imperativo espiritual e testemunhal para nossa geração. Para ajudar a comunidade cristã e a comunidade científica na compreensão da importância e do caráter desse diálogo global, e visando uma comunicação rica e significativa entre esses campos, apresentamos a série “Ciência e Fé Cristã”. Apresentará perspectivas cristãs sobre campos diversos, como a teologia natural ou teologia da natureza, filosofia da tecnologia, biologia e teoria evolucionária, história da ciência, temas de filosofia da ciência, neurociências, física e cosmologia, e a relação entre a Bíblia e a ciência.


A amostragem de obras incluídas nesta série privilegia contribuições substanciais a esse diálogo contemporâneo realizadas a partir da tradição cristã evangélica ou compatíveis com essa tradição de fé. Com isso, a série procura fertilizar a reflexão avançada sobre tais temas no contexto evangelical brasileiro e entre aqueles interessados no diálogo, com vistas a uma participação mais rica e independente na conversação pública dos evangélicos com outras tradições religiosas ou seculares. Esperamos, ainda, promover uma contribuição amadurecida para o universo acadêmico brasileiro. A série “Ciência e Fé Cristã” é, enfim, um convite a todos aqueles que queiram mergulhar nesse fantástico universo de debates, conhecimentos e questões que tocam a nossa existência. Afinal, tanto o Livro da Criação quanto o Livro da Revelação merecem lugar em nossas cabeceiras.

Soli Deo Gloria. Guilherme de Carvalho e Roberto Covolan Editores Marcelo Cabral Editor assistente

Esta publicação contou com o apoio e financiamento da Templeton World Charity Foundation, Inc. As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente aquelas da TWCF.


Sumário

Prefácio Introdução

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Parte 1 | Esclarecimentos conceituais acerca do significado dos termos

1. Teologia natural: Uma estrutura mais profunda do mundo natural

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2. Darwinismo: Uma narrativa da evolução

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Parte 2 | Exposição histórica Darwin e a tradição inglesa de teologia natural

3. Teologia natural inglesa da Era Augusta (1690-1745)

57

4. Um clássico popular: A Teologia Natural de William Paley (1802)

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5. Para além de Paley: Mudanças na teologia natural inglesa (1802-1852)

115

6. Charles Darwin, seleção natural e teologia natural

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Parte 3 | A discussão contemporânea Darwinismo e teologia natural

7. Uma teleologia mais abrangente: Design, evolução e teologia natural

189

8. O conceito de criação: Reflexões e reconsiderações

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9. Darwinismo universal: A teologia natural como um produto evolutivo? 245 Parte 4 | Conclusão

10. As perspectivas para a teologia natural

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Notas

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Índice

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Prefácio

A teologia natural passa por um processo de renascimento, movido tanto pelo espírito inquisitivo dos cientistas naturais quanto pelas reflexões de teólogos cristãos e estudiosos da Bíblia. Ela oferece uma estrutura conceitual importante para se abordar a teologia cristã como um empreendimento racional, e esclarece como a lógica interna da fé cristã se assemelha à racionalidade científica. A teologia natural, no sentido integral do termo, exige uma interação rigorosamente informada e embasada com a realidade, tanto de um ponto de vista teológico quanto científico. Ela tem o potencial de abrir novas perspectivas para o diálogo crítico, mas muito positivo entre as culturas e comunidades científicas e religiosas. Contudo, prevalece a percepção geral de que a teoria da seleção natural de Charles Darwin anunciou e continua a anunciar o fim de qualquer teologia natural viável, e especialmente daquela constante da obra de William Paley (1743-1805). A teoria de Paley é frequentemente considerada como a representação do ápice do pensamento cristão, e foi, por sua vez, derrotada e desacreditada pela teoria da seleção natural de Darwin.


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Na verdade, a exposição de Paley consistiu no desabrochar tardio e popular de uma abordagem relativamente recente e distintamente inglesa, cujas origens remontavam ao século 17, e que já enfrentava algumas dificuldades à época em que Darwin elaborou sua teoria da seleção natural. A teologia natural pode ter tomado novas direções após Darwin; se este é o caso, ela tão somente desviou-se de algumas de suas formulações do século 17, e não fracassou como uma visão intelectual. O que fora desacreditado por Darwin não era exatamente o empreendimento cristão da teologia natural, mas um tipo específico de tal teologia, que surgira na Inglaterra após 1690, e que já havia sido rejeitado por muitos teólogos cristãos antes de 1850. Os debates darwinianos acerca da ciência e da religião eram, de certa forma, profundamente ingleses, refletindo mais abordagens locais à teologia natural do que aquelas da tradição cristã em geral. Há uma clara necessidade de se examinar, de forma extensa e detalhada, as implicações do pensamento evolutivo para a teologia natural, tanto à época do próprio Darwin quanto em períodos mais recentes. O objetivo de Deus e Darwin é justamente: 1. Identificar as formas de teologia natural que surgiram ao longo do período de 1690–1850, e analisar como as mesmas foram afetadas pelo advento das teorias de Darwin; 2. Explorar e avaliar as reflexões do século 21 acerca da relação entre o pensamento evolutivo e a teologia natural. Este livro consiste numa versão estendida de seis palestras proferidas na Conferência Hulseana da Universidade de Cambridge, que marcaram o 200º aniversário do nascimento de Darwin, e o 150º aniversário da publicação de sua obra A Origem das Espécies. Cambridge era o lugar ideal para explorar essas questões. Tanto Charles Darwin quanto William Paley estudaram na Universidade de Cambridge; na verdade, acredita-se até mesmo que eles ocuparam a mesma sala na Christ’s College, em Cambridge. Essas palestras pautaram-se por um novo interesse que surgia por Darwin e pela teoria da evolução, aproveitando a oportunidade para reabrir toda a questão acerca da relação entre o pensamento evolutivo e a teologia natural, como também acerca de questões históricas e contemporâneas. Sempre sustentei que haveria muito a se ganhar a partir do encontro criativo e, ao mesmo tempo, embasado entre uma ciência evolutiva consciente de suas limitações e uma teologia pautada pela autocrítica, ciente do mistério que, em última análise, constitui seu


prefácio

objeto de estudo. Espero que esta obra fomente um aprofundamento das discussões acerca desses temas, mesmo sendo incapaz de resolvê-los. Agradeço aos Eleitores Hulseanos da Universidade de Cambridge pela gentileza em me convidar para proferir essas palestras, e ao grande público que prestigiou o evento por seus comentários e questionamentos perspicazes, os quais foram de grande valor na reformulação do material. Em especial, gostaria de agradecer aos meus colegas de Cambridge, Professor Eamon Duffy, Professor David Ford, Dr. Peter Harland e ao Dr. Fraser Watts por sua hospitalidade durante o tempo em que os visitei. Também agradeço a gentileza da Fundação Templeton em seu apoio à extensa pesquisa por trás desta obra. A longa interação com fontes primárias dos séculos 17, 18 e 19, que foi uma característica importante da segunda parte desta obra, foi realizada principalmente nas Bibliotecas Bodleiana e Tate do Harris Manchester College, em Oxford. Sou profundamente grato a ambas as instituições pelo auxílio prestado. Embora muitas dessas fontes estivessem disponíveis na internet à época em que escrevi esta obra, a experiência de manipular fisicamente livros antigos e de partilhar um senso de solidariedade com as gerações de leitores ao longo dos séculos é ímpar. Em última análise, a atividade de pesquisa depende do apoio e do incentivo de uma comunidade de estudiosos. Portanto, tenho o grande prazer de dedicar essa obra ao diretor, aos membros e à equipe do Harris Manchester College de Oxford. Tive o privilégio de me tornar um pesquisador sênior nessa faculdade enquanto atuava como professor de Teologia Histórica na Universidade de Oxford. É um privilégio permanecer membro desta instituição, a qual admiro muito, e agradeço a essa dinâmica comunidade acadêmica por sua colegialidade, afabilidade e generosidade. Alister E. McGrath King’s College Londres, maio de 2000.

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Introdução

As ciências naturais lançam questões que exigem constantemente

uma avaliação; infelizmente essas questões muitas vezes estão além da capacidade do método científico de respondê-las. As ciências levantam questionamentos de enorme interesse e importância que, por sua própria natureza, muitas vezes ultrapassam sua competência. Uma série dessas questões é abordada tradicionalmente como teologia natural. O mundo natural poderia ser um sinal, uma promessa, um símbolo ou um vestígio de outro domínio ou reino? Será que o mundo tal como o conhecemos poderia ser apenas uma sombra de algo maior? Há uma certa resistência em discutir tais questões em setores da comunidade científicae da religiosa. Alguns cientistas naturais, por exemplo, temem que as reflexões metafísicas possam minar o caráter específico das ciências naturais. Mesmo sem negar a validade dessas questões, alguns cientistas as enxergam, contudo, como inadequadas, dado o escopo característico e os limites do método científico. O “problema de demarcação” permanece tão importante no século 21 quanto era no final do século


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19. Muitos cientistas naturais atribuem certas características específicas àqueles que exercem as ciências e às suas premissas, métodos e valores, estabelecendo uma fronteira social que distingue as ciências de outras atividades intelectuais.1 De fato, fronteiras devem ser demarcadas e respeitadas. Os cientistas, como todos os demais profissionais, são bastante territorialistas e se ofendem quando aqueles que não são membros de sua comunidade invadem sua área. A teologia natural, conforme sustentam alguns dentre eles, representa uma invasão acadêmica e abriria o caminho para uma espécie de contaminação intelectual. Nesse ponto, há uma importante consideração a ser feita a respeito da autoridade e da competência intelectual, que infelizmente pode , com facilidade, se degenerar na forma de uma disputa por território cultural. Embora a manutenção de uma separação absoluta entre as ciências e as demais disciplinas de fato continue sendo importante em muitos sentidos, há muitos – e me incluo neste rol – que consideram que a ciência se torna muito mais interessante quando dialoga com outras disciplinas – inclusive a teologia, a religião e a espiritualidade. Contudo, concepções equivocadas em relação à teologia natural não se limitam à comunidade científica. Alguns pensadores religiosos também possuem reservas em relação a níveis mais elevados de diálogo com as ciências naturais. Será que uma maior compreensão científica poderia minar crenças religiosas fundamentais? Será que poderia surgir uma versão religiosa mais capaz de comportar a ciência, distanciando-se de suas versões mais tradicionais? Essa foi uma possibilidade sutilmente levantada pelo psicólogo Paul Bloom num artigo recente, no qual ele sugeria que uma compreensão científica cada vez maior inevitavelmente conduziria à erosão de crenças religiosas tradicionais e, assim, à secularização gradual da perspectiva religiosa. “Visões científicas se espalhariam pelas comunidades religiosas. Crenças sobrenaturais gradualmente desapareceriam, enquanto a versão teologicamente correta de uma religião se tornaria gradualmente consoante à visão de mundo secular”.2 Bloom pode ter razão em certo sentido. Conforme veremos no próximo capítulo, no final do século 17, a teologia natural inglesa distanciou-se de uma abordagem de “sinais e maravilhas” das gerações anteriores e passou a enfocar a racionalidade e a ordem do mundo natural. Tal teologia natural possui pouco em comum com uma visão de Deus como um poder ativo e transformador, encontrada, por exemplo, no pentecostalismo moderno.


INTRODUÇÃO

Será que isso representaria o tipo de acomodação científica à qual Bloom se referia? Por mais compreensível que isso fosse ao contexto cultural da revolução científica inglesa, tal ocorrência implicou inevitavelmente no distanciamento da noção de um Deus que é experienciado como atuante na história, em direção a um Deus cuja atuação no passado poderia ser discernida nas estruturas da natureza. A obra Deus e Darwin busca explorar o impacto do darwinismo na teologia natural em um sentindo amplo, seja ela descrita (pois sua miríade de interpretações é tão grande que não se presta a uma definição) em termos de “provas” da existência de Deus a partir do mundo natural, ou da exploração dos níveis de consonância intelectual entre a visão cristã da realidade e o que de fato se observa na natureza. O termo “teologia natural” é aberto a múltiplas interpretações e não designa uma única narrativa ou programa.3 Embora o termo seja normalmente interpretado como “prova da existência de Deus a partir da natureza”, essa é apenas uma forma de conceituá-lo. Contudo, um alto grau de “familiaridade” pode ser discernido entre essas diversas abordagens, principalmente em sua interação com o mundo natural na expectativa de que ele poderia, de alguma forma, e até certo ponto, revelar alguma coisa acerca da natureza divina. A teologia natural refere-se à maximização da tração intelectual entre a visão cristã da realidade e a observação do mundo natural. Este trabalho busca explorar o impacto do pensamento evolutivo na teologia natural cristã, refletindo, em parte, a importância histórica dessa questão, e também a necessidade de avaliar os conceitos concorrentes de teologia natural à luz de sua capacidade de comportar tal pensamento. Em outras obras, desenvolvi e defendi um conceito de teologia natural considerada não como uma tentativa de provar a existência ou o caráter de Deus a partir da natureza, mas como uma forma trinitária de enxergá-la.4 Por essa abordagem, a teologia natural seria a compreensão do mundo natural que surge quando o vemos por meio das lentes interpretativas da fé cristã, permitindo que sua rica ontologia trinitária esclareça tanto o status do mundo natural quanto a tentativa humana de extrair sentido dele. Essa, contudo, é apenas uma de muitas abordagens. Avaliar sua capacidade de fornecer mapas teológicos no panorama evolutivo é potencialmente um indicativo importante de sua utilidade. A primeira parte deste trabalho visa trazer algum esclarecimento em relação aos múltiplos sentidos dos termos “darwinismo”e “teologia

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natural”, observando como questões relativas à definição são fundamentais para qualquer juízo acerca de seu relacionamento. Enfatiza-se, especialmente, o relacionamento problemático, e muitas vezes ignorado, entre o darwinismo, considerado como uma teoria científica provisória, e o darwinismo como uma teoria universal – o que alguns chamariam de uma visão de mundo ou metanarrativa. A segunda parte do estudo lida com uma espécie de abordagem à teologia natural que surgiu na Inglaterra ao longo do século 17, e que permaneceu importante de um ponto de vista cultural e religioso até o final do século 19. A análise histórica apresentada nesta parte do trabalho não pode ser vista como um desvio desnecessário de seu verdadeiro tema. Os debates atuais acerca do impacto da evolução sobre o pensamento progressivo assumem, invariavelmente, premissas históricas, valem-se implicitamente de uma análise histórica, e exercem juízos teológicos que foram moldados por memórias do passado. As discussões atuais acerca desses temas refletem, muitas vezes, as sombras de debates anteriores, os quais, por sua vez, nem sempre são relatados ou avaliados de forma precisa. Parte substancial deste estudo consiste numa releitura crítica da tradição da teologia natural que se desenvolveu na Inglaterra ao longo dos séculos 17 e 18, e numa revisão do seu papel na formatação das dimensões teológicas da discussão pública da teoria darwiniana da seleção natural. A análise é inaugurada com um estudo dos tipos de teologia natural que surgiram na Inglaterra durante a Era Augusta (1690-1745). Em seguida, procedo a uma reavaliação da abordagem de William Paley, especialmente em sua obra clássica Natural Theology [Teologia natural] (1802),* além da recepção e da revisão dessa abordagem na Inglaterra até o momento da publicação de A Origem das Espécies, de Darwin (1859). Esses capítulos, baseados numa leitura crítica e detida de fontes primárias, destacam a necessidade de se reavaliar alguns dos juízos tradicionais a respeito dos tipos de teologia natural que se desenvolveram na Inglaterra nesse período, e como as mesmas influenciaram a recepção das teorias de Darwin. Preocupei-me, por algum tempo, com o fato de que parecia haver certos vícios de pensamento em parte da literatura secundária, especialmente no tocante à obra clássica Teologia Natural (1802), de Paley. Portanto, *Por ser mencionada exaustivamente neste livro, optou-se por usar, daqui em diante, a tradução Teologia Natural em lugar do título da publicação original em inglês. (N.E.)


INTRODUÇÃO

decidi ler as fontes primárias uma vez mais – especialmente as principais obras de Wilkins (1614-1672), John Ray (1627-1705), William Derham (1657-1735), William Paley (1743-1805) e William Whewell (1794-1866) – em ordem cronológica, tendo o cuidado de contextualizá-las no plano de fundo da cultura intelectual de sua época. Por motivos óbvios, a mesma abordagem foi posteriormente adotada para as obras de Darwin e de autores a ele associados, especialmente Thomas H. Huxley (1825-1895). Somente realizei essa leitura mais detida de Darwin e de seu círculo após finalizar a compreensão e a avaliação das obras de teologia natural inglesas até 1837, de forma que pudesse ler Darwin à luz das redes conceituais lançadas sobre a interpretação da natureza por esses diversos estilos de teologia natural, em vez de expor avaliações e opiniões mais modernas à sua época. Após essa releitura crítica, ficou claro que alguns dos juízos tradicionais referentes ao darwinismo e à teologia natural – incluindo muitas que eu adotara há não muito tempo – eram insustentáveis com base nas evidências. A conclusão mais óbvia, e talvez a mais importante, é que não se pode afirmar que a teoria de Darwin causou um “abandono da teologia natural”.5 Esse empreendimento poderia ter sido até refinado e redirecionado, mas de forma alguma havia sido abandonado, nem na Inglaterra, tampouco em outros lugares. Ademais, não se pode afirmar que as obras de Darwin, vistas nesse contexto, “aboliram” a ideia de teleologia. As obras de Darwin acerca da evolução nãosão apenas marcadas por afirmações teleológicas implícitas e explícitas, mas fica claro que sua abordagem não requer a abolição da teleologia, e sim sua reforma e reformulação – uma “teleologia mais abrangente” da qual falava corretamente Huxley. Essa análise histórica mais abrangente considera como a tradição inglesa de teologia natural foi moldada por seu contexto intelectual e cultural. Em especial, ela demonstra como certas características do protestantismo inglês do século 17 – especificamente, por um lado, seu “desencantamento” implícito da natureza e seu compromisso explícito com a crença na cessação dos milagres na natureza, e, por outro, na direção providencial do mundo natural – levaram ao surgimento de abordagens na teologia natural que enfatizavam sua capacidade de extrair sentido,* e enfocaram

* No original, “sense-making capacities”. (N.R.)

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provas de design aparente no reino biológico. A Teologia Natural, de Paley, que é considerada de forma detalhada nesta seção, deve ser vista como um desabrochar tardio dessa abordagem. Essas formas distintamente inglesas de teologia natural provaram-se extremamente importantes para a Aufklärung alemã. Assim, a influente obra de Johann August Eberhard, Vorbereitungzurnatürlichen Theologie [O desenvolvimento de uma teologia natural] (1781), que serviu como uma fonte importante para a visão de Immanuel Kant acerca de teologia natural,6 identifica explicitamente uma série de autores ingleses como as principais influências na remodelagem da teologia natural em resposta às novas correntes intelectuais do século 18.7 O impacto de Kant sobre as discussões em língua alemã em torno de teologia natural foi considerável. De fato, pode-se dizer que a crítica de Karl Barth à noção genérica de “teologia natural” é, de fato, e inadvertidamente, uma crítica indireta a essa abordagem especificamente inglesa. Contudo, à época em que Victoria ascendeu ao trono britânico em 1837, mudanças na cultura inglesa forçavam uma revisão de tais abordagens à teologia natural. Mudanças na postura pública acerca da avaliação das evidências, que transpareciam nos debates parlamentares acerca do direito penal em 1830, apontavam na direção de abordagens mais inferenciais a elas. Os célebres Tratados de Bridgewater da década de 1830 adotavam uma abordagem mais sutil à teologia natural, muitas vezes destacando a harmonia ou consonância entre a fé cristã e a observação científica da natureza. É neste complexo e cambiante plano de fundo intelectual que se deve enquadrar a teoria de Darwin de descendência com modificações por meio de seleção natural. As principais características dessa teoria são aqui consideradas em seu contexto intelectual e cultural, e são avaliadas suas implicações para as formas preponderantes da teologia natural inglesa. É impossível desviar-se da conclusão de que este se trata de um debate distintamente inglês. O contexto teológico que estabeleceu as estruturas conceituais que poderiam causar tensões entre a teoria de Darwin e a teologia natural era distintamente inglês, refletindo premissas e debates que haviam definido o surgimento da teologia natural inglesa a partir do século 17. Embora o biólogo americano Asa Gray (1810-1888) tenha exercido um grande papel na avaliação da relação entre a teoria de Darwin e a teologia natural, os parceiros de diálogo de Darwin nesta


INTRODUÇÃO

discussão eram predominantemente ingleses. Se a teoria de Darwin tivesse se desenvolvido num contexto marcado por abordagens alternativas à teologia natural, tais como aquelas características da tradição patrística grega, o resultado poderia ter sido bastante diferente. Após explorar detalhadamente o contexto histórico da relação entre o pensamento evolutivo e a teologia natural, passo a considerar a avaliação contemporânea desta relação. A terceira parte desta obra enfoca os desafios, os problemas e as oportunidades mais importantes para a teologia natural, que surgem a partir de compreensões científicas contemporâneas do desenvolvimento da vida biológica. O que significa falar em “criação”? Como o sofrimento e o desperdício constantes do processo darwiniano se encaixam numa visão de mundo teísta? Seria possível considerar a evolução como um processo direcionado por Deus? Seria possível falar da própria crença em Deus como fruto de um processo evolutivo? Um capítulo conclusivo oferece algumas reflexões tanto acerca do futuro da teologia natural enquanto empreendimento intelectual quanto acerca de qual de seus tipos mais se adequaria aos desafios e às oportunidades com a qual ela se depara hoje. O pensamento evolutivo, como todos os aspectos do empreendimento científico, deve ser considerado como algo em andamento. Há, inevitável e naturalmente, um alto grau de provisoriedade implícita nas teorias científicas, entre as quais se encontra o pensamento evolutivo. Este estudo, portanto, deve ser visto como uma exploração da compreensão contemporânea de uma série de questões importantes acerca do relacionamento entre a teoria evolutiva e a teologia natural. É primordial destacar que as gerações futuras poderão compreender e avaliar a relação entre o “darwinismo e o divino” de formas bastante distintas. Uma vez que este livro pretende explorar a relação entre a teologia natural e o pensamento evolutivo, é inevitável que tenhamos que iniciar nossa análise considerando algumas questões de definição e abordagem, buscando alcançar certa clareza em relação à forma como os termos “teologia natural” e “darwinismo” devem ser utilizados. Conforme já notamos, o termo teologia natural denota uma série de abordagens, mais do que um método único ou conjunto específico de ideias. O uso do termo “darwinismo” também resulta em algo um pouco problemático e requer uma atenção cuidadosa. Atualmente, há um debate importante na comunidade de biologia evolutiva acerca da manutenção deste termo

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e, entre os que defendem sua permanência, acerca de sua definição. Há, portanto, uma certa ambiguidade no termo “darwinismo”. É impossível avançar sem explorarmos ambos os conceitos de forma detalhada. Assim, daremos início à nossa exploração com uma reflexão acerca do que significa a expressão “teologia natural”.


Parte 1

Esclarecimentos conceituais Acerca do significado dos termos



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Teologia natural:

Uma estrutura mais profunda do mundo natural

Não é exagero afirmar que o próprio evangelho não pode ser

completamente compreendido até que a natureza e o homem sejam completamente compreendidos”.1 Nas palestras proferidas durante a Conferência Hulseana, em 1871, na Universidade de Cambridge, F. J. A. Hort (1828-1892), colocou-se um manifesto para a exploração teológica e o esclarecimento do mundo natural. Essas palavras são uma introdução que condiz com a temática abordada neste trabalho. Como podemos conhecer a Deus por meio de uma compreensão mais profunda da própria natureza e da natureza humana? As palestras de Hort coincidiram com a publicação da obra Descent of Man [A descendência do homem], de Charles Darwin,2 levantando, assim, o questionamento acerca de como os debates sobre o mundo natural e a natureza humana, resultantes da teoria de Charles Darwin a respeito da descendência com modificação por meio da seleção natural, poderiam afetar nosso conhecimento de Deus. Portanto, seriam as estruturas e símbolos observados no mundo autocontidos e autorreferenciados? Ou será que elas poderiam apontar


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para uma estrutura ou nível de significado mais profundos do mundo, transcendendo o que se pode conhecer por meio da experiência ou da observação? O cristianismo vê a natureza como um horizonte que impõe limites à perspectiva humana autônoma, mas que, quando corretamente interpretada, possui uma capacidade inerente e criada de apontar para o divino. A filósofa e romancista Iris Murdoch (1919-1999) utilizava o termo “imaginação” para se referir à capacidade de enxergar além do empírico, de forma a discernir verdades mais profundas sobre o mundo. Isso, defendia ela, deveria ser contraposto ao pensamento “estrito” ou “científico”, que foca meramente no que é observado. Uma interação imaginativa com o mundo ergue-se acima de uma leitura superficial das coisas, tomando a forma de uma “espécie de reflexão acerca de pessoas, eventos, etc., que fornece detalhes, dá cor, levanta possibilidades, ultrapassando aquilo que se afirma ser estritamente factual”.3 O argumento de Murdoch aqui é que a imaginação suplementa o que é observado pela razão, revelando assim – sem distorções – uma visão mais rica da realidade. Se nos limitarmos a um relato exclusivamente empírico da natureza, deixaremos de valorizar seu pleno significado, seu valor e atuação.4 A fé cristã também é capaz de oferecer uma abordagem da natureza que se baseia na realidade empírica, embora dotada da capacidade de discernir além dos horizontes do que é passível de ser observado. Ela fornece as lentes por meio das quais podemos explorar questões relativas a significados mais profundos, e enfocá-las com maior precisão. Embora alguns restrinjam o significado do termo “teologia natural” a uma tentativa de provar a existência de Deus com base em argumentos puramente naturais, essa é apenas uma de muitas acepções.5 Hoje, considera-se, de forma geral, que o campo da teologia natural denota uma ideia de conexão entre o mundo que observamos e outro reino transcendente. A ideia possui um forte apelo à imaginação, convidando-nos a conceber – e, em algumas de suas interpretações, a esperar habitar – um mundo muito mais belo do que aquele que conhecemos, desprovido de dor e feiúra. Entretanto, o apelo a essa ideia não é algo puramente emocional ou estético; ela pode oferecer uma estrutura para a reflexão intelectual e moral acerca da ordem atual das coisas. Uma teologia natural cristã é fundamentalmente receptiva a uma interação mais profunda com a realidade. Ela fornece um palco intelectual que nos permite compreender nossa capacidade de interagir com o mundo e reafirmar sua objetividade.6


Teologia natural

Por exemplo, as faculdades matemáticas em nós implantadas nos permitem discernir e representar os padrões racionais do universo em que habitamos, assim coo as nossas faculdades morais permitem que nos orientemos em direção ao bem. Uma teologia natural cristã permite que os cristãos acampem “na fronteira entre o manifesto e o inefável”.7 Trata-se de um empreendimento cumulativo,8 que une a observação e a reflexão acerca das estruturas mais profundas do universo e as particularidades da experiência humana. Uma das afirmações mais conhecidas dessa abordagem pode ser encontrada no Saltério Hebraico, no qual as maravilhas da natureza são ligadas, explicitamente, a um conhecimento mais profundo da aliança do Deus de Israel como a grande realidade transcendente:9 Os céus declaram a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos. (Salmos 19.1)

Aqui, a afirmação fundamental éque a glória do Deus a quem Israel já conhecia por meio da Lei seria revelada também no reino da natureza. O Deus específico já conhecido por Israel por meio de sua autorrevelação é, assim, entendido num nível mais profundo, por meio do mundo natural. Essa passagem não sugere que a natureza provaria ou implicaria a existência de Deus; na verdade, ela afirma que a natureza atesta, declara e torna manifesto este Deus conhecido. Uma linha de raciocínio similar, embora desprovida de qualquer presunção teísta, pode ser encontrada na teoria das formas de Platão, talvez a explicação filosófica mais conhecida dessa ideia. Pode-se afirmar que a teoria de Platão surgira a partir da reflexão filosófica acerca da imperfeição do mundo perceptível.10 A experiência revela exemplos imperfeitos de beleza num mundo de sombras. Platão defende que existe um mundo das formas, onde se encontra a verdadeira beleza, em contraposição às suas manifestações opacas e imperfeitas no mundo da experiência humana. Há uma ligação entre esses dois mundos, mesmo que se considere que Platão fracassou em construir uma ponte sólida que os ligasse.11 Assim, que razões poderiam ser dadas para a crença na existência de tal reino transcendente, visto que ele não pode ser diretamente observado? Para muitos autores da era clássica, a resposta para essa pergunta residiria na estrutura mais profunda e no design aparente do mundo natural.

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