As Controvérsias de Jesus

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As

controvĂŠrsias de

Jesus



John Stott

As

controvérsias de

Jesus

Tradução: Valéria Lamim Delgado Fernandes


as controvérsias de jesus Categoria: Estudo bíblico / Liderança / Vida cristã

Copyright © 1970 por John Stott Publicado originalmente por Inter-Varsity Press, Nottingham, Reino Unido Título original em inglês: “But I say to you…” Primeira edição: Maio de 2015 Coordenação editorial: Bernadete Ribeiro Tradução: Valéria Lamim Delgado Fernandes Preparação e revisão: Raquel Bastos Projeto gráfico e diagramação: Bruno Menezes Capa: Rick Szuecs

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Stott, John, 1921-2011. As controvérsias de Jesus / John Stott ; [tradução Valéria Lamim Delgado Fernandes]. — Viçosa, MG : Ultimato, 2015. ISBN 978-85-7779-122-4 Título original: But i say to you. Bibliografia 1. Bíblia - Crítica e interpretação 2. Controvérsias religiosas 3. Jesus Cristo - História das doutrinas I. Título.

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Índices para catálogo sistemático: 1. Jesus Cristo : Cristologia

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Publicado no Brasil com autorização e com todos os direitos reservados Editora Ultimato Ltda Caixa Postal 43 36570-000 Viçosa, MG Telefone: 31 3611-8500 Fax: 31 3891-1557 www.ultimato.com.br

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Sumário

Prefácio Prólogo

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Fundamentos A. Um pedido de clareza

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B. Por que o termo evangélico?

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Capítulos 1. Religião: natural ou sobrenatural? 2. Autoridade: tradição ou Escritura?

41 57

3. A Bíblia: meio ou fim? 4. Salvação: mérito ou misericórdia?

73 89

5. Moralidade: exterior ou interior?

111

6. Adoração: de lábios ou de coração?

137

7. Responsabilidade: afastar-se ou envolver-se? 8. Ambição: a nossa glória ou a de Deus?

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Pós-escrito: Jesus, nosso Mestre e Senhor

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Notas

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Prefácio

Foi como aluno do primeiro ano da universidade, em 1970, que li pela primeira vez este livro incisivo. Entrei em um mundo completamente novo para mim, confrontado por um capelão que tinha uma visão muito diferente da Bíblia, por grupos religiosos hostis à afirmação da unidade de Cristo e por irmãos evangélicos que tentavam trabalhar juntos, mas tinham dificuldades por causa de controvérsias sobre questões secundárias. Este livro de Stott foi um raio de luz para um calouro muito confuso. Stott descreveu o espírito daquela era, mas é impressionante perceber, ao reler o livro depois de mais de quarenta anos, que ele é ainda mais relevante hoje. Seu notável prognóstico foi observado em muitas das atividades que iniciou, dando frutos ao redor do mundo. Além de suas previsões sobre a intolerância da tolerância, a marcha da secularização e o compromisso de um islamismo mais confiante, também são evidentes neste livro as contestações sobre a fidelidade bíblica na igreja, a perda da centralidade da cruz de Cristo e a necessidade de os evangélicos viverem a verdade e crerem nela.


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Então, para que haja um novo dia, ainda há uma necessidade urgente de confrontar. Os evangélicos agora vivem em uma atmosfera de pluralismo filosófico no qual sustentar nossas convicções em relação à verdade evangélica está cada vez mais difícil. Nas mídias da maioria dos lugares remotos do mundo – incluindo, mais recentemente, o Ocidente – há uma propaganda anticristã. Dentro da comunidade cristã, a perda da centralidade de Cristo e do conhecimento bíblico é típica dos grandes desafios que confrontam a saúde e o crescimento da igreja. Há também uma necessidade de confrontar com sabedoria. O texto de Stott ajuda-nos a identificar com mais precisão quais batalhas devem ser travadas e quais problemas precisam ser esclarecidos. Com destreza, ele indica quais problemas são principais e quais podem ser deixados de lado. E, se pensamos que sempre estamos certos na controvérsia, talvez percebamos que as visões e aplicações bíblicas perspicazes de Stott também servem como crítica a alguns aspectos do nosso evangelicalismo. Além disso, há uma necessidade de confrontar com respeito. Stott tornou-se conhecido pelo mundo não somente como um defensor notavelmente corajoso e articulado da verdade evangélica, mas também como um homem de grande humildade e graça. Um dos valores especiais deste livro é ser um modelo do modo como os cristãos devem se envolver com a controvérsia. Isso é, sem dúvida, necessário em um momento em que as vozes evangélicas muitas vezes são agudas e estridentes e a maneira com que defendemos a verdade às vezes contradiz nosso compromisso com essa verdade. Sempre me surpreendeu o modo como Stott demonstrava a qualidade de um grande líder sendo um homem de mente firme e coração sensível. Como na primeira edição, este livro traz uma oração tipicamente modesta no prólogo: “Que Deus perdoe suas imperfeições, anulando todo erro contido nele para que não cause mal a ninguém e usando toda verdade contida nele para trazer bênçãos a algumas pessoas”. Desde que Stott escreveu essas palavras, centenas de milhares de cristãos se beneficiaram muito com seus textos e seu exemplo pessoal. Por isso, oramos para que o lançamento deste livro traga bênçãos a uma nova geração de leitores em todo o mundo. Jonathan Lamb

Diretor da Langham Preaching, Oxford, Reino Unido Maio de 2013


Prólogo

O título da edição original deste livro era Christ the Controversialist [Cristo, o controversista]. A intenção de John Stott não era mostrar que Jesus Cristo foi uma figura controversa, mas que ele participava de controvérsias. Grande parte dos discursos públicos de Cristo assumiu a forma de debates com os líderes religiosos contemporâneos na Palestina. Eles não concordavam com ele, e vice-versa. O objetivo de John Stott ao estudar essas controvérsias era esclarecer as questões que estavam sendo debatidas para demonstrar que eram as mesmas vigentes em 1970 – e que continuam ainda hoje – e provar que a posição que Cristo adotou em cada debate é igual à que os cristãos evangélicos sempre tentaram manter. Em dois capítulos introdutórios (intitulados “Fundamentos”) ele explica por que considerava esse exercício necessário. No primeiro capítulo, ele defende a busca de uma definição teológica. Essa não era uma tarefa popular quando ele escreveu sobre isso pela primeira vez e ainda não é hoje. O mundo não cristão está impregnado do


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espírito de pragmatismo e, consequentemente, está cansado do modo pouco prático de teologizar usado pela igreja. O mesmo espírito prevalece em algumas áreas da igreja de hoje. Muitos abandonaram a esperança de certeza e mesmo de acordo doutrinários. John Stott tenta, portanto, desenterrar as raízes dessa hostilidade à definição teológica e argumentar que ainda não devemos abandoná-la, mas insistir na tarefa. No segundo capítulo da seção “Fundamentos”, ele argumenta em favor do cristianismo evangélico. Ou seja, tendo enfatizado a necessidade de uma definição teológica, ele insiste que ela deve ser feita de modo evangélico. Seu interesse é a verdade e, em particular, a posição doutrinária adotada pelos chamados cristãos evangélicos. O nome que levamos ou o que os outros nos dão é uma questão trivial em comparação com as grandes doutrinas pelas quais procuramos viver, e se essas são ou não verdadeiras. As doutrinas que adotamos normalmente são conhecidas como fé evangélica. A questão não é se está correto usar essa expressão; o que importa é a essência, não o estilo. E a essência, segundo afirma John Stott, é o cristianismo bíblico, original, fundamental. Ele acreditava (com convicção e, esperava ele, com humildade) que essa fé é a verdadeira fé de Cristo, como ele a ensinou aos seus apóstolos e, especialmente, como ele a defendeu de seus adversários e detratores. Os capítulos que seguem a seção “Fundamentos” dedicam-se a considerar as controvérsias de Jesus. John Stott não tenta tratá-las de forma exaustiva, mas se concentra nos principais temas que (ao que lhe parecem) predominavam tanto na época de Cristo como ainda hoje. Ele opta por considerar questões básicas, como o caráter da religião cristã e do Deus dos cristãos, a autoridade e o propósito da Escritura, o caminho da salvação, o tipo de moralidade e de adoração aceitáveis para Deus e a natureza da responsabilidade e da ambição cristãs. Em cada um desses temas, Jesus Cristo discordou do ensino dos fariseus ou dos saduceus, e em cada um deles, os cristãos evangélicos discordam de outros na igreja de hoje. Na verdade, o raciocínio de John Stott é que, quando reunimos as verdades nas quais Cristo insistiu durante essas controvérsias, o resultado é uma exposição bem abrangente do que significa religião evangélica. O tema deste livro persistiu e se desenvolveu na mente de John Stott durante muitos anos. Ele o usou em duas séries de sermões na igreja


prólogo

All Souls: em 1962 e, já mais desenvolvido, em 1968–1969. Também ministrou uma série de palestras populares sob o mesmo título, Christ the Controversialist [Cristo, o controversista], em Edimburgo, em novembro de 1968 (para o Concílio Evangélico de Edimburgo), e em Auckland, em maio de 1969 (para a Aliança Evangélica da Nova Zelândia). Convencidos da importância permanente deste livro, os responsáveis pela publicação póstuma dos textos de John Stott têm a satisfação de relançá-lo nesta nova edição. Agradecemos a Canon David Stone por seu exímio trabalho na revisão do texto para o século 21. Ao fazer isso, algumas aplicações que agora seriam somente de interesse histórico foram omitidas. Tomamos o cuidado, no entanto, de não omitir ou diluir qualquer um dos desafios do autor ao pensamento ou prática cristã. Também não introduzimos material novo, o que teria implicado em imaginar como ele poderia interagir com problemas ou escritores de hoje. Repetimos o que John Stott escreveu no prefácio original: “Envio agora este livro com a oração sincera de que Deus perdoe suas imperfeições, anulando todo erro contido nele para que não cause mal a ninguém e usando toda verdade contida nele para trazer bênçãos a algumas pessoas”.

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Fundamentos



[A]

Um pedido de clareza

O objetivo deste livro é simples: afirmar que o cristianismo evangélico é o cristianismo real – autêntico, verdadeiro, original e puro – e mostrar isso segundo o ensino do próprio Jesus Cristo. Uma tentativa como essa de explicar e estabelecer um tipo particular de cristianismo não será bem aceita por todos – longe disso! Então, deixe-me tentar de uma vez antecipar algumas possíveis críticas. Aversão ao dogmatismo A primeira objeção ao tema deste livro resultará de uma aversão ao dogmatismo. O espírito de nossa era é hostil às pessoas que expressam suas opiniões com clareza e se apegam firmemente a elas. É provável que uma pessoa de convicção, por mais inteligente, sincera e humilde que possa ser, seja vista como fanática. Em nossos dias, considera-se realmente brilhante a mente que é ampla e aberta – ampla o suficiente para absorver toda ideia nova que lhe é apresentada e aberta o suficiente para continuar a fazer isso sempre.


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Em resposta a isso, é preciso dizer que a fé cristã é, em essência, dogmática, pois declara ser uma fé revelada. Se o cristianismo fosse apenas uma coletânea de ideias humanas, então a convicção dogmática não teria propósito. Contudo, se (como alegam os cristãos) Deus falou – tanto há muito tempo por meio dos profetas como nestes últimos dias por meio de seu Filho1 –, qual é o problema de crer no que ele disse e de insistir para que outras pessoas também creiam? Afinal, se há uma Palavra de Deus que pode ser lida e recebida hoje, seria tolice e um erro ignorá-la. Naturalmente, o fato de Deus ter falado e de sua Palavra estar registrada em um livro não significa que os cristãos sabem tudo. Podemos, às vezes, dar a impressão de que pensamos isso – neste caso, precisamos ser perdoados por nossa arrogância. Como deixa claro o apóstolo João em sua primeira carta, “ainda não se manifestou o que havemos de ser”.2 No Antigo Testamento, Moisés foi um homem a quem Deus se revelou de forma extraordinária. Contudo, ele tinha plena certeza de que Deus só havia começado a “mostrar ao teu servo a tua grandeza...”.3 Nesse mesmo sentido, o apóstolo Paulo comparou nosso presente conhecimento parcial ao balbucio incoerente de uma criança.4 Se Moisés, no Antigo Testamento, e João e Paulo, no Novo, admitem humildemente sua ignorância sobre tantos aspectos da verdade, quem somos nós para dizer que sabemos tudo? Precisamos ouvir novamente as duras palavras de Jesus: “Não lhes compete saber...”.5 Ele estava se referindo aos tempos e datas “que o Pai estabeleceu pela sua própria autoridade”. Contudo, o mesmo princípio se aplica a outros aspectos da verdade. Os limites de nosso conhecimento não são determinados pelo que decidimos que queremos saber, mas pelo que Deus decidiu nos revelar. Talvez a afirmação mais equilibrada nesse sentido esteja no final do livro de Deuteronômio, no Antigo Testamento: “As coisas encobertas pertencem ao Senhor, o nosso Deus, mas as reveladas pertencem a nós e aos nossos filhos para sempre...”.6 Aqui a verdade como um todo está dividida em duas partes: “as coisas encobertas” e “as reveladas”. A Bíblia diz que as coisas encobertas pertencem a Deus. E, uma vez que ele não quis transmiti-las a nós, não devemos tentar arrancá-las dele à força, mas nos contentar em deixá-las com ele. As coisas reveladas, por outro lado, “pertencem a nós


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e aos nossos filhos para sempre”. Ou seja, uma vez que Deus as deu para nós, ele deseja que nós mesmos as tenhamos e as passemos para a próxima geração. O propósito de Deus, portanto, é que desfrutemos do que é nosso (porque ele o revelou) e que não nos preocupemos com o que é só dele (porque ele não o revelou). Devemos entender o que foi claramente revelado e admitir nossa ignorância com relação ao que não foi revelado; e é esta combinação cristã de dogmatismo e agnosticismo que, para nós, é tão difícil entender. Os problemas surgem quando permitimos que nosso dogmatismo invada o terreno das “coisas encobertas” ou que nosso agnosticismo ofusque “as reveladas”. Precisamos ter a capacidade de dizer a diferença entre essas duas áreas da verdade. É sinal de maturidade dizer “não sei” sobre um assunto, assim como dizer “eu sei” sobre outro – desde que nossa admissão de ignorância esteja relacionada a algo encoberto, e nossa afirmação de conhecimento, a algo revelado. Portanto, o dogmatismo cristão é (ou deveria ser) limitado. Está muito longe de saber tudo. Porém, em se tratando daquilo que está claramente revelado na Bíblia, os cristãos não devem ser duvidosos nem apologéticos, procurando justificativas para essas revelações. O Novo Testamento está repleto de afirmações claras que começam com “sabemos”, “estamos certos”, “estamos convictos”. Basta ler a primeira carta de João, na qual verbos com o sentido de “saber” aparecem cerca de quarenta vezes. Eles expressam uma alegre convicção que, infelizmente, está faltando em muitas áreas da igreja hoje e precisa ser resgatada. “É um grande erro pensar que a humildade exclui a convicção” – escreveu o professor James Stewart – “G. K. Chesterton, uma vez, escreveu algumas palavras sábias sobre o que chamou de ‘deslocamento da humildade’ [...] ‘O mal que sofremos hoje é de uma humildade no lugar errado’. ” 7 O que ele quer dizer é que devemos admitir nossas limitações para compreender a verdade sem duvidar da realidade da própria verdade. O problema é que isso tem sido invertido. Como diz Chesterton, “estamos caminhando para produzir uma raça de pessoas com uma mente muito modesta para crer na mesa da multiplicação”. “Devemos ser sempre humildes e abdicados” – continua o professor Stewart – “mas nunca desconfiar

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ou justificar o evangelho.” O dicionário que define dogma como uma “declaração arrogante de opinião” está equivocado. Ser dogmático não necessariamente significa ser orgulhoso ou teimoso. Em outras palavras, uma mente ampla e aberta, tão valorizada em nossos dias, não é necessariamente algo bom. Sem dúvida, devemos manter a mente aberta quanto a questões sobre as quais a Bíblia parece não ser clara e receptiva para que nossa compreensão da revelação de Deus continue a se aprofundar. Devemos também fazer a distinção entre a essência de uma doutrina e nossas formas imperfeitas de compreendê-la e explicá-la. Contudo, quando o ensino da Bíblia é claro, então continuar a manter a mente aberta não é sinal de maturidade, mas de imaturidade. Paulo chama de “crianças” aqueles que não conseguem decidir em que acreditar, que são “jogados para cá e para lá por todo vento de doutrina”.8 E ter pessoas que estão “sempre aprendendo, e jamais conseguem chegar ao conhecimento da verdade”9 é uma característica dos “tempos terríveis” em que estamos vivendo. Ódio da controvérsia A segunda forma pela qual o espírito da nossa era é hostil ao tema deste livro é o ódio da controvérsia. Em outras palavras, segundo dizem, é muito ruim ser dogmático. “Mas, se você quiser ser dogmático” – continuam nossos críticos – “pelo menos guarde seu dogmatismo para si mesmo. Mantenha suas convicções definidas (se for preciso), mas deixe que as outras pessoas tenham as delas. Seja tolerante. Cuide de sua própria vida e deixe que os demais cuidem da deles.” Outra forma pela qual se expressa esse ponto de vista é por meio da insistência para que sejamos sempre positivos. Se necessário, positivos de forma dogmática, mas nunca negativos. “Defenda aquilo em que você crê” – dizem –, “mas não fale contra aquilo em que as outras pessoas creem.” O problema com essa abordagem é que, conforme a Bíblia, o líder cristão deve não só “encorajar [...] pela sã doutrina”, mas também “refutar os que se opõem a ela”.10 A oposição à intolerância surge naturalmente de uma aversão ao dogmatismo. Na verdade, as duas andam juntas. É muito fácil tolerar as


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opiniões dos outros se nós mesmos não tivermos opiniões fortes. Mas não devemos concordar com isso. Precisamos fazer uma distinção entre a mente tolerante e o espírito tolerante. O cristão deve sempre ser tolerante em espírito – amoroso, compreensivo, capaz de perdoar e de ser paciente com os outros, tendo consideração por eles e dando-lhes o benefício da dúvida, pois o amor verdadeiro “tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”.11 Porém, como podemos ter uma mente tolerante com relação ao que Deus revelou claramente que é errado? É claro que toda pessoa sensata evitará a controvérsia desnecessária. Precisamos evitar discutir por discutir. “Evite as controvérsias tolas e inúteis” – escreveu o apóstolo Paulo – “pois você sabe que acabam em brigas.”12 Há algo errado conosco se gostamos de controvérsias. Devemos hesitar antes de nos envolvermos em uma discussão. Devemos também ter cuidado para evitar qualquer sinal de amargura. A controvérsia inserida em um contexto hostil, que se transforma em insulto e abuso pessoal, mancha muitas das páginas da história da igreja. Mas não podemos evitar a controvérsia em si. “Defender e confirmar o evangelho”13 faz parte do que Deus nos chama para fazer. Talvez a melhor maneira de respaldar a afirmação de que a controvérsia é, às vezes, uma necessidade dolorosa seja lembrar que nosso próprio Senhor Jesus Cristo foi um controversista. Ele não tinha a “mente aberta” no sentido de que estava preparado para aceitar qualquer ponto de vista. Pelo contrário, como veremos nos capítulos seguintes deste livro, ele sempre se envolvia em discussões com os líderes religiosos de sua época – escribas, fariseus, herodianos e saduceus. Ele dizia que ele mesmo era a verdade, que havia vindo para testificar a verdade e que a verdade libertaria seus seguidores.14 Sua lealdade à verdade significava que ele não tinha medo de discordar publicamente de declarações oficiais (se soubesse que estavam erradas), de expor o erro e de advertir seus discípulos sobre os falsos mestres.15 Ele também foi extremamente direto em seu modo de falar, chamando-os de “guias cegos”, “lobos em pele de ovelha”, “sepulcros caiados” e até “raça de víboras”.16 Não foi só Jesus. As cartas do Novo Testamento deixam claro que os apóstolos também eram controversistas. Judas, por exemplo, apelou a seus

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leitores que batalhassem “pela fé de uma vez por todas confiada aos santos”.17 Como seu Senhor e Mestre, eles precisaram advertir as igrejas sobre os falsos mestres e exortá-las a permanecerem firmes na verdade. Às vezes, há quem diga que essa atitude é incompatível com o amor. Entretanto, consideremos o exemplo de João, conhecido como o apóstolo do amor. Temos dele a sublime declaração de que Deus é amor, e suas cartas estão repletas de apelos para que os cristãos amem uns aos outros. No entanto, ele declara abertamente que quem nega que Jesus é o Cristo é um mentiroso, um enganador e um anticristo.18 Da mesma forma, Paulo, que em 1 Coríntios 13 nos dá o grande hino ao amor e declara que o amor é a marca suprema do Espírito, pronuncia uma maldição solene sobre qualquer um que distorcer o evangelho da graça de Deus.19 Em nossa geração, parece que nos distanciamos muito deste zelo veemente pela verdade apresentada por Cristo e seus apóstolos. Contudo, se amássemos mais a glória de Deus e nos preocupássemos mais com o bem eterno de outras pessoas, estaríamos mais preparados para participar de discussões quando a verdade do evangelho estivesse em jogo. A ordem é clara. Devemos “[seguir] a verdade em amor”.20 Ou seja, não esquecer a verdade em nosso amor, nem o amor em nossa verdade, mas manter os dois em equilíbrio. O chamado para que estreitemos nossas fileiras Um terceiro argumento contra a tentativa de definir a fé cristã de forma muito clara ou rigorosa está baseado na situação atual de nosso mundo. Os fatos nos lembram de que a igreja está constantemente perdendo terreno em muitos lugares do Ocidente. Não se trata apenas de que a explosão populacional esteja superando o índice de conversões, mas de que as forças contrárias ao cristianismo estejam ficando mais fortes. Em algumas áreas, o islamismo afirma estar ganhando mais adeptos do que o cristianismo. As antigas religiões do Oriente estão passando por um renascimento em vários países onde, junto com um compromisso apaixonado com o nacionalismo, o cristianismo é desprezado como a religião de estrangeiros indesejáveis. Então, há a forte corrente do secularismo no mundo moderno, atraindo indivíduos e sociedades para seu vórtice poderoso. É certo – dizem – que,


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diante dessas ameaças à religião cristã, devemos estreitar nossas fileiras. Não podemos mais nos dar ao luxo da divisão. Estamos lutando por nossa sobrevivência. Este apelo à unidade é comovente, e não devemos ignorá-lo. Ele contém muitos aspectos com os quais concordamos plenamente. Algumas de nossas divisões são não apenas desnecessárias, mas também uma ofensa a Deus e um empecilho para a propagação do evangelho. Acredito que a unidade visível da igreja é biblicamente correta e desejável na prática, e que devemos buscá-la efetivamente. Ao mesmo tempo, precisamos nos fazer uma pergunta simples, mas inquisitiva: Se quisermos enfrentar aqueles que se opõem a Cristo com uma frente cristã unida, que tipo de cristianismo vamos promover? A única arma que pode derrotar os inimigos do evangelho é o próprio evangelho. Seria uma tragédia se tivéssemos de abandonar a única arma eficaz de nosso arsenal. Um cristianismo unido que não seja o verdadeiro não ganhará a vitória sobre as forças anticristãs. O espírito de ecumenismo A quarta influência contemporânea que se opõe ao tema deste livro é o espírito de ecumenismo. Ao dizer isso, não tenho intenção alguma de condenar os esforços daqueles que participam do movimento ecumênico para aproximar mais os cristãos uns dos outros, pois muito do que foi alcançado no entendimento mútuo e em projetos como os da agência Christian Aid é bom e correto. Estou tentando, em vez disso, descrever o que talvez possa ser chamada de “perspectiva ecumênica”. De acordo com este ponto de vista, nenhum indivíduo ou igreja tem o monopólio da verdade, mas todos os cristãos, sejam quais forem suas opiniões, têm seus próprios “discernimentos” da verdade e, portanto, sua própria “contribuição” para a vida comum da igreja. Aqueles que adotam essa visão aguardam ansiosamente o dia em que todos os cristãos e igrejas se juntarão e compartilharão o que têm a oferecer. Muitos veem a mistura resultante, por mais difícil de imaginar, como o objetivo principal. Em uma perspectiva como essa, o desejo evangélico de definir algumas verdades e, consequentemente, excluir outras, só pode ser visto como algo equivocado e prejudicial.

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