Como Anunciar o Evangelho entre os presos

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Antonio Carlos Junior Cristiano Rezende Franco Elben M. Lenz César

COMO A N U N C I A R o EVANGELHO ENTRE OS PRESOS Teologia e prática da c a p e l a n i a p r i s i o n a l


Como anunciar o evangelho entre os presos Categoria: Evangelização / Missão / Vida cristã Copyright © 2016

Primeira edição: Agosto de 2016 Coordenação editorial: Bernadete Ribeiro Revisão: Natália Superbi Diagramação: Bruno Menezes Capa: Ale Gustavo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Silva Junior, Antonio Carlos da Rosa, 1984-

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Como anunciar o evangelho entre os presos : teologia e prática da capelania prisional /Antonio Carlos Junior, Cristiano Rezende Franco, Elben M. Lenz César . — Viçosa, MG : Ultimato, 2016. ISBN 978-85-7779-151-4 1. Capelania prisional 2. Evangelização 3. Obras da Igreja junto aos presidiários 4. Presidiários Aspectos religiosos - Cristianismo 5. Religião e sociedade I. Franco, Cristiano Rezende. II. César, Elben M. Lenz. III. Título. 16-05137

CDD-259.4

Índices para catálogo sistemático: 1. Capelania prisional : Cristianismo

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Publicado no Brasil com autorização e com todos os direitos reservados Editora Ultimato Ltda Caixa Postal 43 36570-000 Viçosa, MG Telefone: 31 3611-8500 Fax: 31 3891-1557 www.ultimato.com.br


Sumário

Introdução

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1. A teologia da capelania prisional

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2. A capelania prisional na prática

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3. A experiência da revista Ultimato

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Considerações finais

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Notas

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Referências

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Introdução

Estamos diante de um sistema prisional caótico. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, em diagnóstico lançado em junho de 2014, somos o quarto país no mundo com a maior população encarcerada, com mais de 560 mil presos (dados de dezembro de 2014 já apontam 622 mil). Se contarmos as cerca de 150 mil pessoas cumprindo prisão domiciliar, ficamos com o terceiro lugar, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. Não bastasse a superlotação, fazem parte desse quotidiano massacres, rebeliões, tratamentos desumanos e toda sorte de intempéries. Mas a grande maioria da população não enxerga os presos. A “invisibilidade social” os assola. É por isso mesmo que muitos querem que os encarcerados explodam – literalmente. “Bandido bom é bandido morto” – eis um jargão muitas vezes repetido. Mas isso só vale quando um dos nossos não está atrás das grades...


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Precisamos entender que, em maior ou menor medida, todos estamos sujeitos à prisão. Mesmo que não tenhamos cometido crimes, pouco pode impedir de sermos detidos de maneira arbitrária ou injusta. Ainda, não é demais lembrar que, no Brasil, não existe pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, e que ninguém pode ficar preso por mais de trinta anos ininterruptos. Ou seja: queiramos ou não, todos os que estão atrás das grades serão soltos. Como eles retornarão à sociedade depois de terem passado pelas escolas do crime? Aliás, quem pode mudar esse quadro desolador? Se é Deus, quem ele usa como instrumento senão aqueles que dedicam suas vidas à transformação física e espiritual desses presos? Como Anunciar o Evangelho entre os Presos foi escrito para você que entende o chamado divino para a sua vida ou mesmo que tem dúvidas sobre ele. Algumas igrejas cristãs têm prestado assistência religiosa nesse contexto, o que é garantido pela Constituição da República (art. 5º, VII), além de ser uma ordenança bíblica (Hb 13.3). A maioria delas vai às prisões com um coração sedento por anunciar o evangelho que salva e liberta, mas sem um mínimo de conhecimento sobre o sistema prisional. Falta-lhes até mesmo a elaboração de um projeto de capelania que contemple as demais necessidades dos presos. Como a prática cristã nos cárceres não pode dispensar um sólido fundamento teológico, no primeiro capítulo trazemos justamente a interpretação da teologia com foco neste trabalho. Tudo em uma linguagem simples e profunda, voltada para a Igreja e seus membros, os principais responsáveis por estarem perto dos presos. Por isso, todas as notas desta parte são bibliográficas. No segundo capítulo, abordamos as atividades práticas da assistência religiosa. Sem querer responder a todas as questões,


introdução

pautamos aquilo que é essencial ser pensado, discutido e aplicado. Você encontrará um amplo roteiro para as atividades, tudo com vistas a que sua equipe seja capaz de elaborar um projeto efetivo de capelania prisional. Por sinal, as referências, aqui, estão separadas por temas, para que você localize, com mais facilidade e se necessário, algum assunto específico. O terceiro capítulo, por sua vez, aponta a experiência da revista Ultimato, em seus 48 anos de história, no envolvimento com a causa dos presos. Porém, mais do que isso, você terá a oportunidade de ler vários trechos de cartas – vindas dos presídios de todo o Brasil –, verdadeiros testemunhos recebidos pela Editora Ultimato, que lhe permitirão conhecer um pouco mais de perto boa parte do que passa na cabeça daqueles que estão detidos. Finalmente, apesar de escrito a seis mãos, em cada capítulo você reconhecerá o estilo peculiar de cada autor. O primeiro ficou a cargo do reverendo Cristiano Franco; o segundo, do presbítero Antonio Carlos Junior; e o terceiro, do reverendo Elben César. Desejamos que você seja ricamente abençoado com a leitura e que ela seja capaz de fomentar que mais igrejas e irmãos se aproximem dos presos para lhes prestar socorro nesse momento de aflição. Os autores

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1 A teologia da capelania prisional

Escrever sobre um tema prático na vida da Igreja e de seus

ministros, abordando a teoria teológica, é um desafio prazeroso. Vamos discutir sobre a capelania prisional e sobre qual deve ser a percepção correta dos envolvidos, do meio onde ela é vivenciada e do papel da Igreja nesse processo. Isso nos ajudará a cumprir a vontade do Senhor no exercício de nossas vocações nas prisões que ele mesmo nos conduzir como luz e sal. Esperamos, com sinceridade, que estas letras possam ajudar a Igreja na árdua tarefa de pastorear os convertidos e proclamar a justiça do reino de Deus. Umas das grandes dificuldades na área da capelania é a clara compreensão do papel da reflexão teológica relacionada à prática. Pensar sobre essa questão é importante a fim de que


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a práxis seja lapidada e se torne mais efetiva no que se refere à instrumentalidade dos que servem, ao conforto dos que recebem ajuda e ao apoio ao Estado, tudo para que Deus seja mais glorificado. Assim, arrazoar sobre quais doutrinas se relacionam com a capelania nos remete a quatro entes: Deus, o prisioneiro (e sua família), o capelão (e a Igreja) e o sistema prisional (e as vítimas). As doutrinas abordadas aqui apontarão para eles. Diante disso, qual a relação da capelania prisional com as doutrinas cristãs da Imago Dei, da graça comum, da salvação, da vocação pastoral, da santificação e do juízo final? É o que veremos agora.

A imago dei Por Imago Dei entende-se que o homem, como criação de Deus, é “imagem e semelhança do Criador” (Gn 1.26) no que se refere à constituição ontológica e à moralidade.1 “A Imago Dei alcança todos os seres humanos, nascidos e por nascer; faz parte da nossa natureza.”2 O homem, como parte do mundo, é o único ser que traz em si o senso de que existe um Criador (Rm 1.21) e de que esse Criador estabeleceu normas morais a serem cumpridas (Rm 2.15). Tais características distinguem o ser humano de todo o resto da criação, trazendo responsabilidade e dignidade em seu relacionamento com as coisas criadas e com aquele que o criou. Mas, com o pecado, a capacidade de cumprir essas normas morais, de modo a agradar o Criador num relacionamento de obediência e amor, foi perdida. Ainda assim, ficou preservado em seu coração que existe uma moralidade a ser vivenciada e que isso se relaciona com o eterno Deus. A prisão do homem por quebrar as normas estabelecidas se relaciona com essas questões em pelo menos dois aspectos: o preso deve ser tratado com dignidade por ser “imagem e semelhança”


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do Criador e, ao mesmo tempo, ele não pode afirmar ignorância das normas daquele que o criou.

O preso também é “imagem e semelhança” do Criador Um desafio enfrentado pela capelania prisional dentro do próprio arraial eclesiástico é convencer os cristãos da necessidade desse trabalho para com aqueles que descumpriram a lei. Há uma falta prática quanto ao entendimento da doutrina da Imago Dei, e essa percepção nasce da noção equivocada de termos alguma justiça própria. O texto de Lucas 19.1-9 nos apresenta esse quadro na vida de um publicano chamado Zaqueu. A tradução usual de τελώνης (telṓnēs) como cobrador de impostos limita muito o termo. Τελώνης “denota uma pessoa que adquire os direitos do Estado para cobrar impostos e taxas oficiais, sendo esta a melhor ideia da função”.3 Duas frases que contam a história iluminam a questão: “Todos os que viram isto murmuravam, dizendo que ele se hospedara com homem pecador” (Lc 19.7); e “Porque o Filho do Homem veio buscar e salvar o perdido” (Lc 19.10). Os judeus odiavam essas pessoas. Eles os enxergavam como traidores e ladrões. Em todo o Império Romano eram chamados de roubadores, corruptos e bajuladores. E as palavras dos judeus exprimem bem a falta de uma percepção clara de duas questões. Primeiro: todos somos pecadores. Segundo: eles, os judeus, não eram melhores que Zaqueu. A confiança na justiça própria é evidenciada aqui. As pessoas estão no caminho da falta de amor, endurecendo seus corações. E, nesse ponto, o erro dos judeus é repetido pela Igreja. A Igreja se esquece da realidade do homem como feito para relacionar-se com Deus, dando a ele toda glória,4 sendo distinto de tudo o que o próprio Deus chamou à existência.

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O “ser humanidade” não se limita a uma etnia, condição socioeconômica ou sexo. Quando esse esquecimento acontece, a Igreja, na prática, não ama aqueles que estão à margem, pois se coloca acima deles. Não nos lembramos de que um dia estivemos na mesma situação, ou até em situação pior. O preso, pois, deve ser alvo do ministério da Igreja, assim como Zaqueu foi alvo do ministério do próprio Cristo. Aqueles que hoje são Igreja foram alvo do cuidado de outras pessoas que obedeceram a Cristo. O outro verso do texto de Lucas afirma: “Porque o Filho do Homem veio buscar e salvar o perdido”. Qual a condição daqueles que Cristo veio buscar? E o que essa afirmação de fato quer dizer? Jesus ataca frontalmente a justiça própria usada como um meio de se ter comunhão com Deus. Agostinho enfatizou: “Todos se perderam. A partir do momento que o homem pecou, [...] toda a raça se perdeu. Mas um homem sem pecado veio. Ele iria salvá-los do pecado”.5 O fato evidenciado por Jesus é a situação daqueles para quem ele veio – homens perdidos. Após o pecado de Adão, todos estamos na mesma condição, e não há nada que o homem faça de si mesmo que consiga ser aceito por Deus. É aí, na incapacidade humana, que o eterno Deus manifesta misericórdia e amor para com um homem sem capacidade moral de se achegar a ele, de se relacionar com ele. Jesus, no encontro com Zaqueu, ataca toda confiança firmada na justiça própria pela guarda da lei e, consequentemente, em qualquer ação autossoteriológica. Jesus vai ao encontro daqueles que foram rejeitados. “Na busca de hospitalidade com um desprezado pelos párias do sistema sociorreligioso, Jesus está simplesmente cumprindo a vontade divina.”6 A Igreja precisa viver sua fé humilde, afirmando que o livre e o preso estão na mesma situação, tanto no que se refere à dignidade intrínseca do homem, quanto na condição de pecado. Se isso acontecer, não haverá lugar para omissão e orgulho na nossa relação com aqueles que estão encarcerados.


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Ninguém ignora as leis de Deus Existe uma norma jurídica, adotada pela atual Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/1942) em seu artigo 3º, que é assim exposta: “Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”. Esse princípio jurídico afirma que ninguém pode alegar ignorância para não cumprir a lei. Mas, de fato, como existe a possibilidade real do desconhecimento de algum aspecto da legislação (pensemos nos indígenas isolados na Amazônia), pode haver uma atenuante na aplicabilidade da pena, ou mesmo a isenção dela. Sendo assim, a exceção ao artigo 3º é um fato, já visto nos tribunais do nosso país, que aponta a excelência da lei moral. Essa é a aplicabilidade do senso de justiça advindo do próprio Criador. Interessante notar que, no que se refere ao descumprimento das normas estabelecidas diretamente por Deus por meio da revelação geral, ninguém se tornará isento, alegando ignorância. Ao longo de toda a Bíblia somos ensinados sobre a revelação geral. A revelação de Deus começou na criação e continua na sustentação e no governo de todas as coisas. Ele se revela na natureza ao nosso redor, exibe nela seu eterno poder e divindade e, em bênçãos e juízos, mostra alternadamente sua bondade e ira. Ele se revela na história das nações e das pessoas. Ele se revela também no coração e na consciência de cada indivíduo.7

Isso porque, segundo a Palavra de Deus, a revelação geral é em si capaz de afirmar, “pela natureza, pela história e pelo ser humano”,8 que existe um Criador e que ele estabeleceu normas a serem cumpridas, normas que também se revelam na consciência e no coração do homem. Mesmo após a queda, essa semente permaneceu na imagem de Deus revelada em nós. O apóstolo Paulo, em Romanos 2.15, afirma que a lei de Deus foi “escrita no coração” dos homens. Ele escreve sobre gentios que manifestam em seu comportamento uma consciência inata de

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demandas morais de Deus. A questão paulina é que os gentios, ocasionalmente, cumprem a lei, o que indica que eles estão cientes das normas morais. Assim, em relação aos gentios, tanto o conhecimento da lei quanto sua condenação são introduzidos aqui para mostrar aos judeus que a mera audição da norma não é de vantagem alguma. Ambos, judeus e gentios, serão julgados pela incapacidade de guardá-la. Tal qual esses dois grupos, os encarcerados serão julgados pela inaptidão de cumprir as normas divinas. Os presos descumpriram a lei estabelecida pelo legislador civil; os judeus e gentios, a lei gravada no coração de todos. Então, todos – presos e livres – somos advertidos de que não há justificativa absoluta para defraudarmos as normas do Criador. Um fato que acontece nos presídios e fora dos muros das prisões é aquilo que Ronaldo Lidório chama de racionalização dos nossos pecados.9 Isso se dá quando, em vez de reconhecer nossos erros, começamos a argumentar e nos explicar, numa tentativa de justificar nossas atitudes erradas. Há duas percepções fundamentais quando falamos de culpa. A primeira decorre das violações legais, seja quando fazemos o que a lei proíbe, seja quando não realizamos aquilo que ela determina. Por isso, há uma espécie de culpa universal em relação às leis divinas, pois “todos pecaram”. A segunda noção está ligada aos nossos sentimentos: remorso, vergonha e autocondenação costumam surgir quando fazemos aquilo que consideramos errado. Assim, apesar de uma pessoa ser culpada, ela pode não se sentir assim. A atitude de Jesus para com uma mulher apanhada em adultério a surpreendeu. Ela era efetivamente culpada – tinha violado as proibições da lei divina e das leis humanas da época – e talvez até se sentisse assim. Jesus não desculpou o seu pecado, pois o que ela havia feito era errado, mas lhe ofereceu perdão e um estímulo para abandonar suas atitudes incorretas.


A teologia da capelania prisional

Assim Deus faz com você! Ele não vai tirá-lo da cadeia como num passe de mágica, pois a prisão é a punição humana àquilo que você fez. Admita sua culpa, confesse-a a Cristo, ore pedindo perdão e deseje sinceramente arrependimento e mudança de atitude. Creia, com a ajuda de Deus, que fomos perdoados e aceitos pelo Senhor do universo!10

Mas a busca por desculpas é o que muitos de nós fazemos, nos presídios e nas igrejas, mesmo quando os fatos são incontestáveis. Precisamos ensinar que ninguém pode se eximir diante dos equívocos; e essa verdade deve ser afirmada àqueles que estão presos. Reconhecer as falhas diante de Deus é um passo necessário para todos.

A graça comum “Tanto o incrédulo como o crente se beneficiam da bondade do Pai.”11 “Todos os homens, pois, indistintamente, são alcançados por essa graça, inclusive aqueles que sequer acreditam que Deus existe.”12 Essa é uma parte essencial daquilo que os estudiosos chamam de graça comum. A contenção do processo destrutivo do pecado é a essência dessa doutrina. Abraham Kuyper usa uma interessante ilustração: ele se refere a um cadáver em decomposição, que foi contida, em parte, para que as consequências do pecado sejam ainda percebidas; tudo a fim de que, na preservação de sua criação, o Senhor seja glorificado.13 No mesmo passo, Wayne Grudem afirma que graça comum é a graça de Deus pela qual ele dá às pessoas inúmeras bênçãos que não fazem parte da salvação.14 Ela opera no mundo iluminando a revelação divina (em conexão com a Imago Dei) por meio dos governos civis, da consciência dos homens e dos juízos e bênçãos de Deus. As consequências dessa graça são a certeza da justiça divina, a restrição do pecado, a preservação do senso de moralidade e religião,15 a integridade na vida do cidadão comum

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e inúmeras dádivas relacionadas à ciência, à arte e a todas as esferas sociais. Como afirmou Calvino, “seremos considerados inventores de tantas artes e de tantas coisas úteis, e Deus será privado de seu louvor?”.16 É claro que não! Essa doutrina pode ser notada, quando olhamos para os entes envolvidos na capelania, tanto ao admitirmos o sistema prisional como parte do cuidado de Deus para com a sociedade, quanto nas injustiças cometidas por esse mesmo sistema em relação aos encarcerados.

Deus cuida da sociedade O Estado, em alguma medida, é parte do cuidado de Deus. A Confissão de Fé de Westminster afirma: “Deus, o Senhor Supremo e Rei de todo o mundo, para a sua glória e para o bem público, constituiu sobre o povo magistrados civis que lhe são sujeitos, e a este fim, os armou com o poder da espada para defesa e incentivo dos bons e castigo dos malfeitores”. O governo civil é uma instituição divina e, portanto, o dever de obediência aos governantes legítimos é uma obrigação que temos com Deus e com nossos semelhantes. Pela graça comum, Deus institui o governo civil para o bem de toda a sociedade. Nesse sentido, “Deus preserva nos homens que o não reconhecem e que, consequentemente, não estão associados à sua Igreja as virtudes necessárias à conservação social”.17 O texto clássico para se entender essas questões é Romanos 13.1-4.18 O trecho ensina que o governo civil tem duas funções básicas: administrar a justiça, punindo os malfeitores, e promover o bem público. O sistema prisional, então, é parte do governo civil para a preservação da ordem social, o cuidado com os justos e a punição dos maus. Assim, não podemos nos esquecer de que o Estado não é um ente em si, mas parte do governo de Deus.19


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Alguns supõem que o direito ou a autoridade legítima do governo humano tem o seu fundamento, “em última instância, ‘no consentimento dos governados’, ‘na vontade da maioria’ ou em algum imaginário ‘pacto social’ celebrado por antepassados​​ da raça na origem da vida social. É evidente, porém, que a vontade divina é a fonte de todo governo”.20 Desse modo, quando a prisão de alguém é efetuada de forma legítima, tal fato exalta a lei moral de Deus, expressão de seu caráter, e manifesta no mundo criado o governo divino em todas as esferas, inclusive na preservação da sociedade organizada. Sem punição e sem lei, o mundo seria entregue ao caos. Mas, pela rica e graciosa providência, Deus, o Senhor, estabelece ordem social em certa medida, e essa ação do Criador deve ser vista como evidência de seu amor por sua criação. Isso traz ao mundo, pela revelação geral, a existência factual de justiça exercida pelos meios por ele escolhidos.

O sistema prisional é injusto Mas nem tudo são flores. Há uma face triste e manchada no sistema prisional. A graça comum, como já vimos, limita as consequências do pecado, mas não as anula na criação, no homem ou nas estruturas sociais. Millard Erickson chama essa realidade pecaminosa na sociedade de “pecado social”.21 Kuyper afirma que a graça comum precisa ser vista à luz da depravação do homem.22 Se Deus preserva o mundo criado, ele preserva uma criação que sofre as consequências do pecado, o qual afetou o cosmos em toda a sua extensão. A miséria humana e sua rebeldia, contrapondo-se à graça de Deus, imprimem sobre as estruturas sociais as mazelas do coração afastado dos princípios do Criador. Nesse ponto, a injustiça, a corrupção, a indiferença e a desigualdade são realidades no sistema prisional. E não há melhor

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exemplo bíblico do que a prisão, o martírio e a condenação do próprio Deus encarnado, Cristo Jesus. Em primeiro lugar, a prisão de Jesus foi incomum. De acordo com os Evangelhos, os soldados, após a traição de Judas, apareceram para prender Jesus armados de todos os modos (Mt 26.47; Mc 14.43; Lc 22.52; Jo 18.7); conforme o próprio Cristo, como se ele fosse mesmo um ladrão (Mc 14.40; Lc 22.52). Ainda, os soldados amarraram um homem que não esboçou qualquer reação violenta. O verbo grego δέω (déō) significa atar ou prender com cadeias, que consistia em prender as mãos atrás das costas e colocar uma corrente de ferro em volta do pescoço do prisioneiro a fim de puxá-lo pelo caminho.23 Qual o motivo de se fazer isso com um homem que, segundo os Evangelhos (Mt 26.52-54; Jo 18.11), se entregou sem resistência alguma? Em segundo, a prisão de Jesus foi ilegal. Os homens que o prenderam não tinham amparo legal nem acusação legítima. Seu julgamento foi articulado por testemunhas falsas (Mt 26.59; Mc 14.55-59). A prisão ocorreu à noite, numa clara violação à lei. Nenhuma ação oficial dessa natureza era permitida depois do pôr do sol, exceto em casos de crimes extremamente graves. Em terceiro, a prisão de Jesus foi efetivada com violência física. Os Evangelhos (Mt 26.67-68; Mc 14.65; Lc 22.63) afirmam que ele foi espancado pelos soldados do Sinédrio de modo vil e covarde, além de ter sido humilhado com cuspes na face e insultado com escárnios, que remetiam aos abusos sofridos pelos profetas e à morte do filho relatados na parábola da vinha (Lc 20.9-18). Em quarto, o julgamento de Jesus foi parcial. No processo do julgamento de Cristo constavam três falsas acusações, todas descritas em Lucas 23.2: “Encontramos este homem pervertendo a nossa nação, vedando pagar tributo a César e afirmando ser ele o Cristo, o Rei”. As acusações se referiam a ser um subversivo quanto à ordem social israelita, a se levantar contra o governo do império e a ser um revolucionário e usurpador do trono de César.


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Tais acusações não foram aceitas por Pilatos (Lc 23.22), mas isso não impediu a manipulação do processo por causa do desejo popular da morte de Jesus. Sem vistas dos autos, e com a aquiescência do omisso juiz, Pilatos proferiu a palavra final e o condenou à pena capital. Não queremos dizer que essa é a regra do sistema prisional de nossos dias, mas que todos os abusos sofridos pelo próprio Deus encarnado são também sofridos hoje por diversos presos, inocentes ou não. Tudo isso é consequência do pecado social, enraizado em cada parte das entranhas da nossa sociedade. Como nos calar diante dessas ações que ofendem a Deus, sua santa lei e sua criação? A Igreja não pode ficar quieta. O anúncio das injustiças precisa ter como voz o povo de Deus!

A salvação em Cristo Onde a maravilhosa salvação concedida pelo Deus triúno tem lugar na assistência aos encarcerados? Qual o lugar da mais maravilhosa notícia nas celas de cada presídio em todo o Brasil? E que notícia é essa? John Wesley conta-nos sobre a esperança de um homem que deu crédito à boa nova: George Whitefield. No sepultamento de Whitefield, Wesley pregou um sermão baseado no texto de Números 23.10: “Quem contou o pó de Jacó ou enumerou a quarta parte de Israel? Que eu morra a morte dos justos, e o meu fim seja como o dele”. A fé de Whitefield, afirmou Wesley, “não era outra senão a fé no Senhor que sangra, a fé no ‘poder de Deus’; foi a ‘esperança viva da herança incorruptível, imaculada e imarcescível’; era ‘o amor de Deus derramado em seu coração pelo Espírito Santo que foi dado a ele’”.24 Whitefield foi lembrado por seu amigo como alguém que vivenciara a mais extraordinária experiência humana: a salvação em Cristo pelo anúncio da boa notícia, o evangelho.

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