A Arte Moderna e a Morte de Uma Cultura

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A ARTE

MODERNA E A

MORTE DE UMA CULTURA



H. R. ROOKMAAKER

A ARTE MODERNA E A MORTE DE UMA CULTURA

Tradução Valéria Lamim Delgado Fernandes


A ARTE MODERNA E A MORTE DE UMA CULTURA Categoria: Ética / Liderança / Vida cristã

Título original: Modern Art and the Death of a Culture Publicado originalmente por InterVarsity Press, Nottingham, Reino Unido © InterVarsity Press 1970, 1973 © Maria Helena Hengelaar-Rookmaaker, 1994 Copyright da tradução © Ultimato, 2015. Direitos reservados em língua portuguesa, no Brasil, pela Editora Ultimato. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da editora.

Primeira edição: Fevereiro de 2015 Coordenação editorial: Bernadete Ribeiro Tradução: Valéria Lamim Delgado Fernandes Preparação e revisão: Natália Superbi Projeto gráfico e diagramação: Bruno Menezes Capa: Ale Gustavo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Rookmaaker, H. R., 1922-1977. A arte moderna e a morte de uma cultura / H. R. Rookmaaker; tradução Valéria Lamim Delgado Fernandes. — Viçosa, MG : Editora Ultimato, 2015. Título original: Modern art and the death of a culture ISBN 978-85-7779-119-4 1. Arte - Filosofia 2. Arte e sociedade 3. Arte moderna - Século 20 - História I. Título. 14-13429

Índices para catálogo sistemático: 1. Arte moderna : Século 20 : História

CDD-709.04

709.04

Publicado no Brasil com autorização e com todos os direitos reservados Editora Ultimato Ltda Caixa Postal 43 36570-000 Viçosa, MG Telefone: 31 3611-8500 Fax: 31 3891-1557 www.ultimato.com.br

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Sumário

1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9.

Apresentação à edição brasileira Prefácio do editor Introdução

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A mensagem no meio As raízes da cultura contemporânea O primeiro passo para a arte moderna O segundo passo para a arte moderna Os últimos passos para a arte moderna Na nova era A arte moderna e a rebelião do século 20 Protesto, revolução e a resposta cristã Fé e arte

21 39 61 93 113 143 171 203 239

Notas Bibliografia Índice remissivo

269 273 277



Ilustrações

1. A mensagem no meio

Duccio: Madona com Criança Rubens: Martírio de São Livino Rembrandt: Cristo no Caminho de Emaús Jan van Goyen: Paisagem Poussin: O Corpo de Fócio Sendo Levado de Atenas

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Jan Steen: A Véspera de São Nicolau Ticiano: Vênus e a Música

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3. O primeiro passo para a arte moderna

Goya: O Sonho da Razão Produz Monstros A Execução dos Espanhóis pelos Franceses, 3 de Maio de 1808 A Maja Vestida Turner: Chuva, Vapor e Velocidade Constable: A Carroça de Feno Courbet: Moças Peneirando Trigo Daumier: Narciso Blake: Página de rosto de Canções de Inocência Klombeck: Paisagem Cabanel: Phèdre Leys: Mulheres Orando Junto ao Crucifixo Ciseri: Ecce Homo Holman Hunt: A Sombra da Morte

62 63 64 66 68 70 71 75 76 79 80 82 85


4. O segundo passo para a arte moderna

Renoir: Le Moulin de la Galette, detalhe Monet: Quai du Louvre, Paris Álamos em Giverny, Nascer do Sol Gauguin: Visão Depois do Sermão Seurat: Poder-Possa (Le Chahut)

94 95 97 100 103

Caran d’Ache: O Pintor Impressionista Bradley: Pôster

104 109

5. Os últimos passos para a arte moderna

Matisse: Jeannette Kandinsky: Xilogravura de Klänge Picasso: As Senhoritas de Avignon Braque: Maisons à L’Estaque Picasso: Nu Mulher na Poltrona Delaunay: A Torre Eiffel Derain: As Duas Irmãs Duchamp: O Rei e a Rainha Rodeados por Rápidos Nus

6. Na nova era

Anderson: Pôster para a Shell, Londres Marc: Tierschicksale Klee: Zwitscher-Maschine Kandinsky: Im Blau De Chirico: As Musas Inquietantes Picasso: A Banhista L’Indicatif Présent Rouault: Placa da série Miserere

116 120 126 129 131 132 136 137 139

147 149 151 153 155 165 166 169

7. A Arte moderna e a rebelião do século 20 Appel: Litografia em Reflex Arman: O Esqueleto de Aquiles Bacon: Cabeça VI

176 182 185


Wesselmann: Grande Nu Americano 2 Warhol: Latas de Molho de Tomate Campbell Vasarely: Composição Paolozzi: Desenho Contracapa da revista Seed 8. Protesto, revolução e a resposta cristã

Niki de Saint Phalle: Nana Derrick Woodham: Blue César: La Grande Duchesse Capa da Retorno à Divindade Capa da International Times

187 188 189 191 197

205 206 211 219 228



Apresentação à edição brasileira

A realidade do mundo contemporâneo das artes é experimentada por cada um de nós diariamente, influenciando-nos em nosso contato com a cultura que nos cerca. Quem negaria que os filmes aos quais assistimos, as músicas que escutamos, as esculturas que contemplamos e os livros que lemos contribuem para formar o tipo de pessoas que somos? Esta rica realidade não apenas é motivo de gratidão e desfrute por parte dos cristãos, mas também requer o mínimo de discernimento sobre os conteúdos e formas que trazem consigo. Toda obra cultural carrega – em maior ou menor grau – sentidos existenciais profundos, moldando a forma como nos relacionamos com o mundo, com as pessoas e, em última instância, com Deus. Mas como ter discernimento sobre as forças que conduzem o universo das artes em nosso tempo? Quando visitamos uma galeria de arte contemporânea ou quando vamos ao cinema, como podemos ir além do simples contato com a obra de arte e interagir com estes sentidos culturais


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mais profundos que ela carrega, vivenciando o mandamento divino de examinar todas as coisas, retendo o que é bom? A Arte Moderna e a Morte de Uma Cultura, de H. R. Rookmaaker, finalmente traduzida para a língua portuguesa, ajuda-nos como poucas nesta importante tarefa. Rookmaaker enxergava seu próprio trabalho como historiador, teórico das artes, palestrante e articulador cultural como uma forma de servir a Deus e as pessoas de sua geração.* A leitura dos movimentos culturais à sua volta partia de alguém que vivenciou a seriedade e a riqueza da tarefa de produção e desfrute da arte, conferidas ao homem pelo Criador. Convertido em um campo de prisioneiros nazistas na atual Ucrânia, ele discernia o poder das orientações básicas de vida contidas nas distintas produções artísticas de seu tempo. Pois os próprios nazistas revolucionaram no uso da produção artística como instrumento de propaganda ideológica e manipulação das massas. Rookmaaker concordaria plenamente com a afirmação de que “a arte tem poder”. Poder tanto para enriquecer a vida do ser humano quanto para empobrecê-la. Alguns livros marcam a história de um campo cultural devido à ousadia da tese defendida e à força dos argumentos apresentados, modificando de forma definitiva a compreensão de determinada realidade e o diálogo sobre determinado tema. Após mais de quarenta anos de sua publicação, pode-se dizer que A Arte Moderna e a Morte de Uma Cultura realizou esta proeza na compreensão cristã das artes em sua expressão ocidental contemporânea. O argumento de Rookmaaker é simples e bem elaborado. Segundo ele, grande parte da produção e compreensão do universo das artes no último século representa o abandono de crenças fundamentais que formavam a base da cultura ocidental, seja em sua rica visão cristã ou em sua modificação humanista, gerando uma visão questionável da realidade e, consequentemente, de produção e gozo artístico. Por mais que soe excessivamente crítico, o argumento de Rookmaaker dificilmente pode ser evitado. A clareza com que ele demonstra o caminho traçado pela arte até sua expressão contemporânea tem poucos paralelos na literatura ocidental, o que levou a obra que o leitor tem em * Ver a biografia de Rookmaaker. Rookmaaker; arte e mente cristã. Viçosa: Ultimato, 2012.


apresentação à edição brasileira

mãos a receber o reconhecimento da crítica em vários países. O jornal inglês The Observer elegeu-a como o Livro do Ano em 1971. Esta obra é de interesse de todos aqueles que se encantam pelas realidades do mundo da arte, seja por meio da produção musical, da arte performática, das artes visuais em geral ou do cinema contemporâneo. Útil tanto para o leigo quanto para o profissional e estudante de artes, ela nos introduz a uma preciosa interpretação histórica dos desdobramentos culturais e estéticos posteriores à decisão humanista de excluir Deus do centro da nossa compreensão do universo, cujas raízes estão na Renascença europeia do século 14. Com a maestria de quem dominava a sua área de conhecimento – a história da arte e a teoria estética –, Rookmaaker traça com clareza e erudição a relação entre o solo cultural que determinada sociedade nutre e os frutos da arte produzida a partir de tal contexto, abrindo a percepção dos menos entendidos para realidades que afetam diariamente a nossa caminhada cristã. Que a leitura destas páginas gere discussão e apropriação frutíferas não somente no nosso gozo artístico, mas também na produção de uma arte feita por cristãos a partir de um conhecimento mais aprofundado sobre os sentidos culturais que aproximam ou distanciam a cultura humana dos propósitos do Criador e Redentor de todas as coisas. Rodolfo Amorim C. de Souza, obreiro de L’Abri Brasil Novembro de 2014

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Prefácio do editor

Ao publicar o livro pela primeira vez em 1970, Malcolm Muggeridge escolheu A Arte Moderna e a Morte de Uma Cultura como um dos livros da série Observer do ano, e este logo se tornou um sucesso de vendas do gênero. Para seus primeiros leitores, era um livro que tratava profundamente da questão “o que está acontecendo agora”. Como tal, trouxe uma brilhante perspectiva crítica no que diz respeito à agitação cultural da “década radical de 1960”, especialmente no que se refletia na arte da época. Mas, de certo modo, as reflexões de H. R. Rookmaaker são tão oportunas hoje como o eram há uma geração e, por essa razão, são reapresentadas nesta nova edição. De fato, Rookmaaker teria reconhecido grande parte do cenário artístico atual. Não se contesta ainda a falácia de que o verdadeiro artista é anárquico e rebelde, um tipo de profeta ou xamã com percepções misteriosas de seu próprio tempo. Rookmaaker também teria reconhecido aspectos do pós-modernismo. Na década de 1970, ele sugeriu que talvez fosse necessário reescrever a história da arte moderna reconhecida como tal.


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Segundo ele, não estávamos diante de um progresso inevitável e firme para formas anárquicas antibelicistas. Ele afirmou que talvez a arte moderna seja uma espécie de culto gnóstico e niilista que é apenas um movimento entre muitos outros do século 20. Sem dúvida, podemos ver hoje outros diversos movimentos com uma tendência gnóstica, como, por exemplo, a Nova Era. Um novo gnosticismo pode, de fato, resultar no tema comum que permeia nossa cultura pós-cristã e pós-tudo. Rookmaaker apontou outro trabalho contemporâneo em que um novo interesse na linguagem visual não significava uma rejeição a uma visão mais comum, menos bizarra e anormal da experiência humana. Desde meados da década de 1980, tornou-se evidente que algo assim tem acontecido, o que Rookmaaker teria gostado de ver. O entusiasmo que o livro causou quando foi publicado pela primeira vez não foi simplesmente um resultado daquele tempo de contracultura e de revolução estudantil. Também era fruto da capacidade que Rookmaaker tinha de expressar sua fé e seu conhecimento à altura da ocasião. Quando jovem, durante a guerra na Holanda, ele foi preso por distribuir folhetos antinazistas. Durante a prisão, tornou-se cristão por meio da leitura da Bíblia que havia ganhado e por meio do contato com cristãos presos. Para Rookmaaker, não havia conflito entre a fé e o estudo acadêmico. No início da década de 1950, foi crítico de arte do Trouw, um dos jornais diários da Holanda. Em alguns círculos, era mais conhecido por seus conhecimentos de jazz primitivo. Durante esse tempo, começou uma amizade com Francis Schaeffer e L’Abri que durou toda a vida. Em 1959, com a publicação de sua tese de doutorado sobre Gauguin, suas credenciais acadêmicas foram reconhecidas, junto com seu interesse pela gênese das ideias que sustentam a arte moderna no século 20. Portanto, isso serviu de pano de fundo para o interesse de Rookmaaker em 1970: compartilhar com o não especialista e com a Igreja o que ele havia descoberto como cristão em seus estudos. O livro em si surgiu de uma série de palestras que Rookmaaker proferiu no final da década de 1960 em escolas de arte e em universidades britânicas e norte-americanas. A popularidade do livro deve-se, em grande parte,


prefácio do editor

à sua capacidade de transitar livremente e com um senso de urgência entre os mundos da “cultura de elite”, da arte popular, da música e das questões relacionadas à fé cristã. A morte de Rookmaaker em 1977, em meio a planos de novas obras, pareceu repentina e precoce. Ele estava estudando princípios bíblicos que esclareciam o surgimento e o declínio de culturas e civilizações, além de começar um trabalho pioneiro sobre simbolismo bíblico. Na época, uma publicação comentou que “o mundo cristão havia perdido um de seus pensadores mais formativos na era pós-guerra”. Portanto, é um privilégio, como editor, disponibilizar sua obra mais importante a uma nova geração. O editor

Primavera de 1994

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Introdução Está acontecendo algo aqui Mas você não sabe o que é, Sabe, senhor Jones? Bob Dylan, Ballad of a Thin Man

Vivemos em uma época de grandes mudanças, de protesto e de

revolução. Estamos cientes de que está acontecendo algo radical ao nosso redor, mas nem sempre é fácil vermos o que é. Também estamos cientes de uma grande mudança que ocorreu nas artes no século 20. Por quê? Quais são as forças que estavam por trás dessa mudança? Qual é o verdadeiro significado da arte moderna? Meu objetivo neste livro é mostrar a relação entre a grande revolução cultural do nosso tempo e o espírito geral da época – uma época que, como veremos, ao que parecia, estava chegando ao fim. Para isso, devemos primeiro voltar a observar a arte de uma época anterior à nossa. Em seguida, examinaremos as novas forças que criaram o mundo moderno como ele é e veremos os vários passos decisivos por meio dos quais a arte se desenvolveu como resultado dessas novas forças. Quanto às ilustrações, o objetivo é simplesmente ilustrar: elas são essenciais para a compreensão do texto, e não houve intenção alguma da


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minha parte em incluir ilustrações puramente decorativas onde não são necessárias. Grande parte dos exemplos é de pintura; como historiador de arte, esta é a área que melhor conheço. Porém, não excluirei as outras artes, embora elas não terão todo o espaço que merecem. Em todo caso, acredito que as artes visuais são, na verdade, as mais importantes hoje (com uma aura quase religiosa sobre elas), por isso não passarei por cima das questões realmente importantes. Este livro também foi escrito tendo em mente as necessidades de artistas mais jovens, principalmente dos cristãos. Estou plenamente ciente de que os temas em jogo não são apenas culturais e intelectuais, mas também espirituais. O que está em questão é toda uma forma de pensamento que não leva em consideração – e, em grande parte, nega – aspectos vitais da nossa humanidade e da nossa compreensão da realidade. Os cristãos hoje devem entender o espírito da época. Eles devem compreender que os manifestantes e revolucionários, muitas vezes, lutam contra os mesmos males da sociedade que eles enfrentam. Mas também devem ver a deficiência de todas as respostas que não lidam com a raiz do problema. No último capítulo, tenho principalmente em mente os artistas cristãos para quem os problemas espirituais e artísticos, muitas vezes, são insuportáveis. Como devemos reagir como cristãos às pressões que nos cercam? O que significa confiar em Cristo em uma época como a nossa? Na batalha contra o espírito da nossa época, como podemos usar as armas que nos foram dadas, nossa humanidade, nosso entendimento, nossas emoções, nossos talentos artísticos – e, sem dúvida, a revelação escrita de Deus? Entretanto, seja qual for o nosso ponto de partida, se somos cristãos ou não, artistas ou não, minha esperança é que este livro nos ajude a compreender as atitudes, os problemas e as preocupações dos tempos nos quais vivemos.


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A mensagem no meio Por meio da arte podemos conhecer a forma como o outro vê o universo. Marcel Proust, Maxims

O objetivo deste livro é discutir a arte moderna, seu significado e

sua relação com o cenário cultural contemporâneo em geral. Mas a arte moderna não aconteceu do nada. Ela é fruto de uma profunda inversão de valores espirituais na Era da Razão, um movimento que, no decorrer de pouco mais de dois séculos, transformou o mundo. Se quisermos entender como é a nova arte moderna e por que ela transmite o tipo de mensagem que transmite, precisamos confrontá-la com a arte do período anterior ao começo das grandes mudanças. Por essa razão, eu gostaria de examinar neste capítulo algumas obras específicas da “arte antiga”. Não é minha intenção fazer um estudo histórico completo. Meu objetivo, pelo contrário, é analisar brevemente algumas obras em particular para entender seu significado, seu conteúdo, sua mensagem espiritual. Ao fazer isso, também surge um fato que é comum a todas elas e vital para a compreensão do papel particular que a arte, e especialmente a pintura, foi chamada a desempenhar na sociedade.


a arte moderna e a morte de uma cultura

Escolhi obras que representam os principais movimentos históricos que contribuíram para a cultura do período anterior ao Iluminismo. As obras pertencem à grande tradição que começou no final da Idade Média e terminou durante o século 19: o período em que o novo mundo surgiu e em que a arte moderna, aos poucos, foi tomando forma.

O ícone Para ilustrar o que quero dizer, escolhi, primeiro, uma madona de Duccio, pintada por volta do ano de 1300. Eu poderia ter escolhido muitas outras pinturas de madonas. Cada uma teria alguma característica particular própria e, sem dúvida, as pinturas variariam em termos de qualidade. Mas todas elas, ou quase todas, são similares nos pontos que quero discutir. A pintura é sobre madeira e muito pequena. Quando olhamos para ela, podemos nos perguntar o que o artista queria dizer quando a estava pintando. Ou podemos nos perguntar o que as pessoas queriam que o artista criasse, pois ele não era o único artista criativo, mas estava intimamente ligado à sua comunidade. O que significa a pintura? Reprodução. Wikimedia Commons

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Duccio: Madona com Criança Museo dell’Opera del Duomo, Siena


a mensagem no meio

Deveria ser essa uma pintura de algo que pudesse ser visto em Belém, no ano 1 depois de Cristo, uma reconstrução do tipo de fotografia que teria sido feita se eles tivessem uma câmera? Se observarmos o quadro – e talvez, mais ainda, se observarmos as representações de outras cenas bíblicas –, logo veremos que não é o que acontece aqui. Para o homem medieval, na verdade, o ar em Belém não era dourado! E é possível que ele até tenha percebido que a moda havia mudado desde então. Ele poderia muito bem retratar sua madona com um vestido suntuoso, mesmo sabendo que ela era pobre, como nos dizem os escritores do evangelho (se ele mesmo não lia a Bíblia, o sacerdote lhe teria dito). Portanto, não se trata do ano 1 depois de Cristo. Então, o que deveria ser? Uma cena no céu? Mas o homem medieval era bem informado teologicamente e não teria tolerado o pensamento de que Cristo ainda seria um bebê no céu. Não há coisa alguma que indique que a cena deveria ser colocada no futuro. Mas também não parece representar uma cena específica na terra. Então, o que significa? Vejamos o que diz o próprio quadro. É evidente que ele nos fala da Madona, conhecida como “Mãe de Deus”, o que por si só seria razão suficiente para representar Cristo como um bebê. A Madona está olhando para nós e parece interessada em nós, ainda que, mais precisamente, de um modo indiferente. É óbvio que ela não é uma pessoa comum – nem mesmo o pior blasfemo poderia transformá-la em uma modelo seminua em um pôster, nem o quadro serviria para um anúncio em favor do cuidado infantil. Ela é mais que humana, mas ainda humana. É isso que o quadro nos diz. Digamos que é um sermão sobre Maria. Em um profundo sentido religioso, o quadro é um “pôster” que pede às pessoas que “vão a Maria com todos os seus problemas”. Nas igrejas católicas romanas que deram a Maria uma posição exaltada, esses quadros são universais. Os mais antigos são anteriores ao ano 500 depois de Cristo e o mais recente, provavelmente de ontem. Eles não falam de uma realidade de importância histórica, nem de um evento histórico, ainda que a pintura esteja, de fato, relacionada a um evento como o nascimento de Cristo. Na verdade, essas pinturas falam de uma realidade reivindicada para este momento, uma realidade na qual se deveria crer e que não pode ser vista: que Maria, a “Mãe de Deus”, pode ajudá-lo se você orar a ela.

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