Yves Bonnefoy

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Agradeço antes de tudo ao júri do Prêmio de Literatura da Feira do Livro de Guadalajara por ter-me concedido este galardão neste ano. Conheço a qualidade dos premiados de anos anteriores e não posso evitar de dizer que o fato de elegerem minha obra é uma grande honra, e espero ser digno. Mas, quero agradecer ainda a todos aqueles que com suas iniciativas, seu apoio ativo e seu trabalho asseguram a existência deste prêmio e o levaram a ocupar um lugar de grande importância no cenário internacional. Essas palavras saem de um coração que neste mesmo instante está alegre por se encontrar aqui, no México, neste país onde tenho gosto de contar com bons amigos, alguns dos quais estão entre nós hoje.


Dito isso, queria agora refletir um pouco ante vocês acerca da justificativa sobre existência de um prêmio que, consagrado à literatura, tem por isso o poder de chamar a atenção sobre essa forma particular de questionamento do mundo e da existência a qual chamamos poesia. Pensar nela hoje não é algo natural nem simples. Não duvido que a poesia seja ainda muito amplamente conhecida, amada, praticada, neste país e nos demais da América Latina. Há ainda em sua sociedade de língua espanhola, ancorada num rico passado préhispânico, esta bela continuidade entre a cultura popular e as preocupações do intelecto que é o lugar do espírito onde a poesia bebe vigorosamente. Vejo grandes obras aparecer entre vocês e reter a atenção por bastante tempo. Mas noutras partes do mundo a tecnologia e seus empregos comerciais incitam a ver a realidade natural e social não sem prejuízos devido a insensibilidade poética e por sua vez a compreensão sobre a vida. Na França, por exemplo, nossas universidades têm a tendência a colocar as ciências humanas e o debate de ideias em primeiro plano de seus interesses e poesia não é considerada uma necessidade fundamental. Logo, o prêmio que agora me é outorgado aqui neste dia põe acento sobre essa necessidade. É maravilhoso que sua irradiação permita a esta ideia verídica ser escutada além das fronteiras do México.


Mas, por que é necessário pensar na poesia? É porque talvez nela haja aproximações da condição humana mais significativas ou mais importantes que o que, por exemplo, sabem reconhecer os filósofos da existência? Ou por que seriam formulados com mais imaginação e eloquência que nos escritos em prosa? Sim, é verdade que as grandes obras da poesia – as quais não são só poemas, e situo em primeiro lugar entre elas um Shakespeare ou um Cervantes – se apresentam muito antes pelos labirintos da consciência de si mesmos. É nas dúvidas angustiadas de Hamlet onde a modernidade do espírito encontrou seu solo mais fértil. E há em cada um de nós uma relação interna conosco que não se liberta das muitas ilusões da existência comum quando escutamos um ritmo apropriar-se das sílabas longas e breves das palavras de nossa língua natal. E ainda não devemos deixar nos levar pela embriaguez fácil da música verbal. O ritmo das palavras pode colocar-se a serviço da simples eloquência. A mentira também pode usá-lo. Mas não por isso deixa de ser um chamado que nos atinge muito profundamente, seduzindo nossas emoções, fazendo perder força nossas convicções mais fossilizadas. Por esse alargamento da palavra começamos a existir de novo, por sua via podem reaparecer seguramente entre alguns enganos, necessidades e intuições que são nossa verdade mais essencial. Porque a existência, esta vida humana que nasce e deve morrer, que é finitude, que se encontra incessantemente com os imprevistos do acaso, é, antes de mais nada, uma relação com o tempo; e como acessar à compreensão do tempo se não ouvindo os ritmos, essa memória do tempo, atuando sobre as palavras fundamentais da língua?


Há na poesia uma relação específica e fundamental com o tempo; é o que faz com que ela seja a aproximação mais imediata com a verdade da vida. Em francês, por exemplo, devemos a Villon, a Racine, a Baudelaire, saber perceber os aspectos da condição humana que ninguém como eles soube reconhecer. O papel decisivo da relação com o outro no despertar do eu, em sua intelecção do que é do que não é, nunca foi experimentado com maior intensidade que nos poemas de As flores do mal. Mas o essencial da poesia não se dá nesse nível em que a verdade do humano se desprende e se manifesta. Está por baixo, na vida mesma das palavras, e nessa profundidade da palavra onde há que encontrar a ação da poesia e, a partir daí, compreender sua importância. Compreender que a poesia é o fundamento da vida em sociedade. Compreender que a sociedade sucumbirá se a poesia for extinta, pouco a pouco, em nossa relação com o mundo. O essencial da poesia é sua relação com as palavras? Sim, e agora me explico. Que são essas palavras? É o que permite pensar as coisas, analisar sua natureza, deduzir suas leis, enunciá-las, em resumo elaborar nosso conhecimento do mundo e organizar nossas ações? Sim, as palavras são isso; sabemos que são portadoras de conceitos que constroem para nós o que chamamos a realidade e que explicam para nós. Mas esta realidade que devemos ao pensamento conceitual é realmente, plenamente, o que existe fora de nós e em nós, na intimidade de nossas vidas, não será só uma imagem esquemática que ao ser parcial pode estar afetada pela falta fundamental? O pensamento conceitual é generalização, de fato, do intemporal, não pode perceber em nós esta experiência do tempo que, como disse antes, é nosso ser mesmo. As palavras nos traem?


Mas escutemos algumas delas, escutemo-las em si mesmas, sem pensar em nada. Pronunciemos a palavra “árvore” ou a palavra “rio”, ou como Mallarmé, “fleur”, ou essas outras palavras que evocam seres e não coisas, e que chamamos nomes próprios. Que vejo quando digo “árvore” ou “rio”? Nenhuma figura precisamente definida das propostas pelo dicionário. Penso na árvore tal como existe, com seus galhos, suas folhas, mas também no que é plantado à beira do caminho, em seu possível lugar em minha vida. E esta ideia é evidentemente imprecisa, mas o que sei, em todo caso, o que sinto no mais profundo de mim é que essa árvore, qualquer que seja, está num lugar onde posso caminhar, é como eu, como cada um de nós, presa do tempo que permite nascer e morrer. É, pois, uma palavra, uma palavra o que me permite este reencontro com uma realidade vivente. A palavra que enuncia as leis pode também ser a que revela existências. Pode servir desta maneira à causa desta memória da existência e sua verdade própria que chamo poesia. E esta, por sua vez, pode ir adiante das palavras, libertá-las de sua prisão conceitual, regressá-las à sua vocação nomeadora. Como? Precisamente por esses ritmos que a palavra carrega. Apoiando-se nos sons, longos e breves, as assonâncias, os ritmos do poema tomam as palavras por outro lado diferente do estabelecido, impedem seu espírito reduzir-se a isso. No poema, a palavra retoma sua capacidade de mostrar, de render as coisas a sua imediata e plena evidência.


A poesia ama as palavras, deve amá-las, deve reconhecer e encontrar nelas a memória da plena realidade existencial. E logo, como consequência dessa evidência primordial, uma segunda observação. As palavras, pois, as palavras cujo lugar poético é o poema. Mas que são essas palavras que não se reduzem ao seu conteúdo conceitual? A vida que tem alentado através dos séculos homens e mulheres nas circunstâncias particulares de sua língua, entre essas os dados geográficos e climáticos, os feitos históricos, e as grandes ideias, e às vezes os momentos de cegueira. As palavras não são um simples reflexo da natureza igual em todos lados, elas trabalharam nesses lugares diversos de diversas maneiras; em cada língua têm uma história que as fazem reencontrar o mundo fundamental com olhos que mudam de uma língua para outra. Em francês eu digo “le soleil”, “la pierre”; e não será exatamente o que vocês veem quando dizem “sol” e “pedra”. Daqui se diz que é mais importante para a poesia, a poesia de cada nação, de cada língua, é importante saber que há outras línguas. O feito é que os grandes vocábulos fundamentais de uma língua são uma aproximação particular da realidade, com intuições que podem ir direto à verdade da vida mas que também podem deixar-se obnubilar por seus enganos e assim cada uma das línguas que existem podem dar lugar a comparações, tomando consciência de suas próprias insuficiências e logo a possibilidade de acessar uma maior compreensão verdadeira da vida. Que maravilha que é a Torre de Babel tenha sido derrubada! Haveríamos sido prisioneiros de uma língua única, que nunca haveria tomado consciência de seus limites no contato com outra. Fatalmente língua solitária não haveria sido senão um grande sonho, encerrada numa ideologia.


Escutemos uns aos outros, já que falamos línguas diferentes. E antes de tudo, traduzamo-nos. Mas cuidado! O interesse pela tradução que é tão felizmente característico da poesia hoje, em França sobretudo, não deve ignorar que traduzir é também uma tarefa tão difícil como a invenção poética original. Transpor de sua língua as significações de um texto escrito para outra é passar ao lado da poesia, já que a mesma é precisamente a transgressão da significação conceitual. Quando encontramos um poema noutra língua é necessário reviver a luta que autor manteve com e contra as palavras. E como essas palavras do poeta falam nele de seu passado ao invés de seu presente, é necessário que a tradução de sua obra se tenha em conta toda a história dessa língua, o que não é possível evidentemente e em todo caso bem realizado se não amando a língua. Amemos as outras línguas. Amemo-las hoje, neste século em que são tão acessíveis a todos, o apreço pelas línguas supostamente estrangeiras é um dos raros grandes recursos que nos restam. Da minha parte, sempre quis fazer a tradução de poesia uma atividade estritamente complementar à escrita poética. E acredito que uma das coisas que mais lamento é não haver chegado muito ainda que longe do espanhol. Antes que os acasos da vida me tivessem conduzido a eleições diferentes, havia lido, no final da guerra e com muita emoção o Cante Jondo de Federico García Lorca no original, que oferece poucas dificuldades de vocabulário e de sintaxe. Logo pude aproximar-me de Góngora, e de outros poetas do Século de Ouro e finalmente os poemas e a pessoa de Octavio Paz, e embora não possua o domínio do espanhol, devo muito à língua em minha relação com a poesia.


E o que devo ao espanhol? Bem, uma boa parte deste pensamento sobre a importância das palavras que acabo de formular ante vocês. De início o que mais me impactou em sua língua é a beleza dos grandes vocábulos, a pedra, o vento, o fogo, a serra, a solidão, a dor, para retomar palavras de um soneto famoso do Século de Ouro sobre as ruínas de Itálica. Sinto como a poesia mesma dessas palavras parecem formar um só corpo com a terra e o céu. Amo as palavras do espanhol. Naqueles distantes anos de minha leitura de García Lorca ou de Góngora, essas palavras me apoiaram em meu regresso à prática poética depois de alguns estágios de exercício com a prosa surrealista. Depois disso, a amizade de Octavio Paz, em seguida as de Homero Aridjis e de outros poetas me orientaram até esse interesse instintivo que fazia do México. Por que? Porque as palavras da poesia têm por primeira função, acabo de dizer, formular a verdade, mas que antes de tudo querem reunir para todos nós os grandes aspectos de uma terra que seja sem fim humanamente, poeticamente habitável. Agora, esses poetas de seu país não deixaram de por as grandes palavras da língua espanhola a serviço desta terra em todos os planos necessários, mas em particular no plano da justiça social e da proteção das margens planetárias. Confirmando-me assim na ideia de que a invenção poética e o cuidado da sociedade são uma só coisa. Este ensinamento de sua civilização deve ser aprendido no mundo inteiro. Muito obrigado.



O pintor a quem chamam tempestade trabalhou bem esta tarde, Figuras de grande beleza se reuniram Sob um pórtico à esquerda do céu, ali onde se perdem Esses terraços fosforescentes no mar. E há agitação neste tropel, Como se um deus houvesse aparecido, Rosto de ouro entre as outras sombras numerosas. Mas estes gritos de surpresa, quase cantos, Estas músicas de pífano e estes risos Não nos vem desses seres mas de sua forma. Os braços que se abrem se rompem, se multiplicam, Os gestos se dilatam, se diluem, Sem cessar a cor se torna outra cor. E algo diferente da cor, como ilhas, Restos de grandes órgãos entre nuvens negras. Se aquela é a ressurreição dos mortos, esta parece-se A crista das ondas no instante em que se quebram, E agora o céu está quase vazio, Só uma massa vermelha que se movimenta Com um lenço de pássaros negros, ao norte, piando, à noite. Aqui ou acolá Um charco ainda, cheio de crateras Por uma brasa ardente da beleza em cinzas.


O verão passou violento pelas salas frescas, Seus olhos estavam cegos, seu flanco nu, Gritou, e o grito perturbou o sonho Dos que ali dormiam na simplicidade do seu dia. Estremeceram-se. Mudou o ritmo de sua respiração, Suas mãos abandonaram o topo do sonho. Já o céu outra vez caía sobre a terra, Chegou a tormenta das sestas de verão, no eterno.


Estrelas cadentes; e o pastor se reclina Sobre a felicidade da terra; e tanta paz Como esse grito irregular de inseto Que um deus pobre modela. De teu livro Subiu o silêncio até teu coração. Corre um vento sem ruído nos ruídos do mundo. Ao longe sorri o tempo, por deixar de existir. Simples no pomar são os frutos maduros. Envelhecerás E, ao perder tua cor nas árvores Ao formar uma sombra mais devagar sobre o muro, Ao ser ameaçada a terra, a última alma, Retornarás ao livro onde o abandonastes, E dirás: Eram essas as últimas palavras obscuras.



YVES BONNEFOY Textos 1. O “Discurso de recepção do Prêmio FIL de Literatura do poeta francês Yves Bonnefoy (2013)” foi publicado no jornal El País. Tradução de Pedro Fernandes de Oliveira Neto. 2. Os poemas foram publicados na Revista Letras libres. Tradução de Pedro Fernandes de Oliveira Neto. Imagens 1. capa: Hafiz Ismail. 2. Yves Bonnefoy por Derek Hudson, 2008. 3. Manuscrito do poema “A árvore”, de Yves Bonnefoy.




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