Cinco poemas de Joan Margarit

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Joan Margarit

Cinco poemas



Relação com o leitor ou a leitora Por Joan Margarit

Existem dois momentos-chave, o nascimento do poema em si mesmo e seu fim no leitor ou leitora desconhecidos. Para mim ficou claro muito cedo que eu não encontraria nenhum poema olhando para fora: que qualquer pessoa, sentimento ou coisa que se torna parte de um poema deve primeiro pertencer ao mundo interior, para fazer parte do mais profundo e mais

secreto do ou da poeta.


Há uma divisão que é o que mais distingue cada poeta dos demais: uma distinção que elimina o que só lhe pertence e que guardaria nenhum interesse para os leitores. Ou seja, para mim, escrever um poema é, antes de tudo, procurar os “universais”, o que a vida vai deixando em mim. Todo mundo é muito parecido,

por isso um artista pode comover alguém distante que não conhece. O que nos diferencia perante qualquer acontecimento, digamos por exemplo, um infortúnio pessoal, não é “o que nos acontece”, mas a diferente capacidade e modo de o explicar. Alguns intelectuais elitistas erram em confundir as duas coisas e pensar aquilo que se passam com eles como

coisas muito especiais. Esses universais ― pouquíssimos e, portanto, difíceis de encontrar na imensidão da vida interior ― poderiam formar o núcleo de um poema muito antes que uma estrutura linguística pudesse ser pensada. Esse material está misturado com milhões

de questões que nunca interessarão a ninguém, nem ao próprio poeta e muito menos a esse leitor ou leitora desconhecidos para quem o poema é escrito. Quando formalizei esta primeira e enorme dificuldade que encontra o poema, entendi por que perseverava durante os primeiros vinte anos malsucedidos: não foram malsucedidos nesta primeira ocasião, antes de

chegar a zona linguística do processo de criação. Desvendada a questão da língua materna, os vinte anos de trabalho realizado


na identificação interna dos universais não foram, portanto, inúteis. Identificá-los é a missão de uma ferramenta misteriosa que chamamos de “inspiração”. Se esta ferramenta não for utilizada

de forma inata ― se a pessoa não for poeta ― os imprescindíveis “universais” essenciais nunca serão encontrados. Mas mesmo quando são encontrados, sua conversão em palavras torna-se novamente uma dificuldade que pode tornar inútil todo o esforço inicial, e que tampouco pode alcançar o poema, este poema ― o único válido ― que faz,

ao lê-lo, o leitor ou leitora desconhecidos se surpreenda descobrindo e reconhecendo a si mesmo, essa surpresa sentimental que, misteriosamente, consola. É como se o poema fosse uma partitura que o poeta escreveu e que o leitor tivesse um “instrumento” para interpretá-lo. Sozinho. Parece-me que muitas pessoas nem sabem que têm este “instrumento”, e que

outras sabem, mas nunca tiveram interesse em aprender a “tocá-lo”. Estes são todos aqueles que vivem fora da poesia. Mas muitos deles buscam uma justificativa (diante de quem sabe qual dúvida ou remorso) reclamando de uma suposta impossibilidade intransponível de sentir qualquer coisa ao “ler um poema”. Essa declaração, que deve parecer o resultado de

uma experiência irrefutável, geralmente contém uma considerável falta de lógica elementar. Se compararmos um livro de poemas a um romance, supondo que sejam esforços


semelhantes, veremos que ― “a peso” ― “ler um poema” deve significar investir pelo menos o tempo e esforço na leitura e reflexão que é dedicado ao trinta ou sessenta páginas equivalentes de prosa. Esse seria o tempo e o esforço mínimo e razoável que seriam exigidos do pretendido leitor ou leitora

antes de afirmar sua incapacidade de “ler um poema”. A realidade é que um bom poema nunca exigiu um esforço especial para ser compreendido. É por isso que os leitores de poesia, aqueles que conhecem seu misterioso instrumento interior e são capazes de interpretar as partituras dos poemas,

de fazer sua interpretação pessoal, nunca leem o mesmo poema, aqueles versos que passam sem intermediários em seu interior a partir do interior de o poeta. Por muitos anos, isso significou para mim um sentimento que, longe de diminuir, se tornou mais intenso. Afeta o mundo

íntimo, este no qual, em cada um de nós, tudo se relaciona com as pessoas que, em grupo ou sozinhas, em vários âmbitos concêntricos, constituem a nossa pátria pessoal: desde o casal e os filhos aos familiares e amigos, próximos ou distante, presentes ou ausentes.

A certa altura, os leitores da minha poesia formaram uma, digamos, sombra (porque não sei nem saberei quem são, nem eles quem eu sou) próxima e cordial. Quero dizer que há coisas


que eles e elas sabem sobre minha intimidade que as pessoas próximas a mim, mas que não leem meus poemas, ignoram. E que, vice-versa, tenho conhecimento de alguma vaga intimidade deles e delas que alguém mais próximo e alheio à minha poesia nem mesmo supõe. É uma situação como a de uma

pessoa que estou olhando ou ouvindo como uma estranha, enquanto surge um sinal que estabelece um vínculo através dos meus poemas, deixo de senti-la assim e entra em funcionamento uma importante máquina sentimental, independentemente da ignorância e da distância.

Tudo começou para mim na infância e na adolescência. Então eu já entendia, sem saber que entendia, que para mim o conceito de conhecimento acadêmico ou cultural nunca existiria em si, mas que conhecimento e cultura nunca poderiam ser mais do que reconhecimento. Que só sou movido pelo conhecimento que me surpreende ao colocar um nome e

uma estrutura a algo que, de alguma forma, já fazia parte de mim. Que eu já era imune a todos os tipos de “transfiguração” da realidade, que era refratário a qualquer intenção de identificar vida e poesia. E isso simplesmente porque minha experiência fundamental já não podia mais aceitar essa herança cristã conservadora que continuamente pensa no futuro como a única

maneira de lidar com um passado que não pode ou não quer entender. Este é um atalho conveniente pelo qual os jovens tendem a sentir uma forte atração, mas a criança que saiu da


Guerra Civil com pouco mais do que o que estava vestindo ― digamos assim ― não podia arriscar (nem teria sabido como fazê-lo) para buscar a salvação, não dando nenhum passo fora da realidade. Era lógico que, anos depois, eu não me sentisse mais atraído pela mais pura poesia romântica: em geral, a

sentia sobrecarregada, com poemas muitas vezes longos, enquanto a Ilíada ficava mais curta. O que eu já gostava era da poesia romântica que não me parece ― o Bécquer de alguma das Rimas ― e os poemas precisamente não vanguardistas de grandes poetas que entraram para a história como pertencentes a este novo Romantismo chamado Vanguarda.

Joan Salvat-Papasseit de Tot l’enyor del demà [Todas as saudades de amanhã] ou de Nocturnperacordió [Noturnoparaacordeón], por exemplo. Ou J. V. Foix de Tots hi ser a port amb la Desconeguda [Estaremos todos no porto com a Desconhecida], os Poemas a Lou de Guillaume Apollinaire, ou Vladimir Maiakóvski da Camarada Nette. E eu confiava mais em

Hardy do que em Keats. E outra observação: os bons poemas nunca são tristes, mesmo que usem, ou narrem, ou insinuem algo desolador ou patético: é como se a verdade que os define e os justifica não os deixe abandonar sua luminosidade, como se o poema fosse tão intimamente ligado à vida que sempre esteve além de qualquer história, dentro ou ao seu redor. Sinto-me

próximo de Pla quando ele argumenta que as biografias devem ser escritas com poesia. Queria dizer que com um poema você tem mais garantia, porque sem verdade não existe um bom


poema. Porque a verdade não é condição suficiente para um bom poema, mas é necessária. Eu acrescentaria uma espécie de solidão, relembrando este poema, que me parece um dos melhores de Emily Dickinson:

There is another Loneliness That many die without — Not want of friend occasions it Or circumstances of Lot But nature, sometimes, sometimes thought

And whoso it befall Is richer than could be revealed By mortal numeral — Esta solidão é o centro, construído com uma infância e juventude nômades em Tenerife onde encontrei a ilha do

tesouro — tanto o exterior como o interior — e onde fundamentar a alegria. A alegria que às vezes chamamos de beleza e que imediatamente chamei de “poesia”. Para terminar esclarecendo um dia que “a poesia é a última Casa da Misericórdia”. É a que o menino já procurava, sem saber e forçado pelas duras circunstâncias do pós-guerra. Desde a minha juventude, decidi não ler tantos ensaios, tantos textos sobre teoria literária, nem conhecer tantos romances,


como conheceria se me tivesse dedicado ao que então se conhecia como “as letras”. Mudei essa possibilidade pela substituição de muitos desses saberes — que ainda acho que, para um poeta que precisava escrever uma poesia como a que escrevi, não eram essenciais — para poder me dedicar a saber o

cálculo de estruturas e da construção edifícios. Minha poesia precisava mais dessa formação matemática e lógica em que se baseia a segurança de nossas casas — de nossas vidas — do que de um excesso de informação literária. Era uma questão de estratégia.

Quando foi publicado Idade vermelha, Benjamín Prado perguntou a Pere Rovira se eu tinha algo a ver com aquele poeta espanhol de “Ocnos”. “Mas ele não tinha morrido?” Exclamou o poeta e crítico madrilenho, ao ouvir Pere afirmar — cujo riso naquele momento bem imagino — que se tratava da mesma pessoa. Ele não se enganou: o personagem poético em espanhol

havia, de fato, morrido no final dos setenta, e das suas cinzas emergiu um poeta tardio em catalão e castelhano ao mesmo tempo com o entusiasmo que só se dá — em temas como o amor e a poesia — aos poentes e crepúsculos. Escrevi os poemas que, já na juventude, queria escrever, mesmo sem saber em que consistiriam. Felizmente, nunca imaginei que levaria mais de

um quarto de século para alcançá-lo, mas assim pude deixar tantas ambições, arrogâncias e erros pelo caminho que mais


tarde, mais leve do que nunca, me reconciliei com minha história poética e pronta para desfrutar de sua continuação. Resta a alegria de saber que em algum lugar alguém lê os poemas que alguém escreveu, mas ao mesmo tempo penso, por

mais que a luxúria do autor às vezes me conquiste, que poucas coisas são mais banais do que “a glória”. Como se pode ter dado uma mínima olhadela em profundidade sobre a história pessoal e coletiva e pensar na possibilidade de alguma glória, presente ou futura? Quão estúpido é um velho glorioso. Que falsa, para quem sabe o que é a velhice e a morte, a atual imagem luminosa

do velho Goethe. A velhice entrou na vida — e portanto na poesia — com o desaparecimento do sentimento do futuro, que foi substituído pelo de um mero presente. A velhice é, antes de tudo, este presente sem amanhã composto de perda, solidão e um desinteresse confortável pelo que se diz novo ou exótico, um retorno ao lema de Diderot: “A mediocridade é

caracterizada pelo seu gosto pelo extraordinário”.





Ser velho Entre as sombras dos galos e os cães dos pátios e currais de Sanaüja, abre-se uma fenda que se enche com tempo perdido e chuva suja enquanto as crianças vão ao encontro da morte. Ser velho é um pós-guerra Sentados à mesa na cozinha, limpando as lentilhas nos anoiteceres de braseiro, vejo os que me amaram. Tão pobres que no fim daquela guerra tiveram que vender o miserável vinhedo e aquele frio casarão. Ser velho é que a guerra já terminou. É saber onde estão os refúgios, hoje inúteis.


Um pobre instante A morte não é mais que isto: o quarto, a luminosa tarde pela janela, e este rádio na cabeceira tão silencioso como teu coração com todas tuas canções cantadas para sempre. Seu último suspiro segue dentro de mim ainda suspenso: não deixo que termine. Sabes quando é, Joana, o próximo concerto? Escutas como no pátio da escola Brincam os meninos? Sabes, ao cair da tarde, como será esta noite, noite de primavera? Virá gente. A casa acenderá todas as luzes.


Não jogues fora as cartas de amor Elas não te abandonarão. O tempo passará, se apagará o desejo ― essa flecha de sombra ― e os sensuais rostos, belos e inteligentes, estarão ocultos em ti, ao fundo de um espelho. Cairão os anos. Os livros te cansarão. Cairás ainda mais e até perderás a poesia. O ruido da cidade nos vidros acabará por ser tua única música, e as cartas de amor que terás guardado serão tua última literatura.


Mulher de primavera Por trás das palavras só tenho a ti. Triste quem não perdeu por amor uma casa. Triste quem morre com uma aura de respeito e prestígio. Eu me importo com o que acontece na noite estrelada de um verso.


Boa sorte Boa sorte a quem ama este silêncio da palavra escrita e uma amiga com uns olhos de cor castanha para envelhecer juntos. Só um vago medo por esta filha que não deixará jamais sua meninice, tesouro e ruína daquele mármore de sua juventude. A fumaça da fogueira está nos seus olhos: Boa sorte a quem ama este silêncio da palavra escrita e uma amiga com uns olhos de cor castanha para envelhecer juntos.






Textos 1. “Relação com o leitor ou a leitora” e os cinco poemas aqui apresentados foram publicados no El Cultural. Tradução de Pedro Fernandes de Oliveira Neto. Imagens 1. Capa: Vera Molnár. 2. Joan Margarit. Foto de Carlos A. Schwartz




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