Revista 7faces 17

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Obra da homenageada Poesia Livro de Mágoas (1919) Livro de Sóror Saudade (1923) Charneca em Flor (1931) Prosa As Máscaras do Destino (1931) O Dominó Preto (1982) Diário do Último Ano (1981)

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Natal – RN 7faces • 5


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O mundo quer-me mal porque ninguém Tem asas como eu tenho! Porque Deus Me fez nascer Princesa entre plebeus Numa torre de orgulho e de desdém. Porque o meu Reino fica além... Porque trago no olhar os vastos céus, E os oiros e clarões são todos meus! Porque eu sou Eu e porque Eu sou Alguém! Florbela Espanca, “Versos de orgulho”

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sumário Apresentação 13 Um retrato Por Jonas Leite O enigma do feminino: Florbela Espanca 32 Por Eliana Luiza dos Santos Barros Florbela e a expressão de um corpo desejante 44 Por Isa Margarida Vitória Severino Florbela feminista? Vestígios feministas na poesia inicial de 55 Florbela Espanca Por Michelle Vasconcelos Oliveira do Nascimento POESIA (Caderno 1) Franco Bordino 67 Lucas Grosso 73 Augusto de Sousa 77 Juan Manuel Palomino Domínguez 83 Carolina Pazos 89 Daniel Jonas 93 ENTREMEIO 101 A Sóror e o trapista (Florbela Espanca e Antonio Nobre) Por Maria Lúcia Dal Farra

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Florbela, de Hélia Correia. Uma metáfora da leitura 123 da vida e da obra de Florbela Espanca Por Clêuma de Carvalho Guimarães Florbela, a morte e o tempo: “A vida é um cacho de lilás…” 141 Por Fabio Mario da Silva POESIA (Caderno 2) Rebeca Rose dos Santos Leandro 151 Nathalia Catharina 157 Alaor Rocha 163 Paulo Emílio Azevedo 169 Moira Marques Portugal 173 Tibério Júlio de Albuquerque Bastos 179 Do criador ao inventor: o jogo autoficcional em Florbela Espanca 185 Por Andreia Lima Andrade Acerca dos romances traduzidos por Florbela Espanca 203 Por Chris Gery A carta: território literário em Florbela Espanca 221 Por Iracema Goor Xavier

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apresentação

UM RETRATO Florbela era filha de um fotógrafo, por isso é tão rica a sua iconografia. João Espanca, seu pai, fazia de Florbela a musa preferida. Ela adorava as poses: pérolas falsas enfeitando o pescoço, estola de pele de raposa sobre os ombros, semblante grave à Pola Negri, quase sempre não sorria, olhar vago, de um verde-água traído pelo preto e branco dos retratos da época. Depois do pai, tantos outros, a modos diversificados, pintaram um retrato da poetisa. Não faltou quem acentuasse um defeito ou uma qualidade, até criaram novos matizes para enfeitar a imagem que queriam destacar. Amada e temida como as sereias, seu canto poético seduziu e irou um pequeno país, espremido entre o mar e a montanha, no início do século XX. Às vésperas do centenário do seu primeiro livro de poemas, o Livro de Mágoas, de 1919, qual retrato pode-se apreender hoje de Florbela? A dimensão artística da palavra lhe deu o condão de resistir à voragem do tempo e este, senhor de todas as respostas, apagou tantos traços irresponsavelmente sobrepostos ao retrato da escritora.

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Dessa maneira, não é mais possível (nem salutar) a constituição de perfis apenas díspares, pois com o passar dos anos, como um vinho que ganha sabores e aromas complexos, depreenderam-se da obra e da vida de Florbela diversas maneiras de apreensão: de uma fatura literária relativamente curta e de uma vida (abreviada de maneira precoce, infelizmente!) imbrincada nas palavras que escreveu sobressaíram perspectivas variadas e ricas, como a questão da emancipação feminina, das engrenagens de uma escrita calcada em si, do trabalho voltado à tradução literária, do diálogo e ruptura com a Tradição, de um erotismo pulsante e uma dor plangente, da irmanação geográfica com a terra natal, bem como certo atavismo cultural de uma saudade eminentemente lusitana... tudo isso amalgamado num conjunto literário que rendeu à Literatura Portuguesa um acervo dos mais belos versos já escritos nas Terras d’Além Mar. Portanto, essa multiplicidade caleidoscópica está retratada nos ensaios colecionados neste número da Revista 7faces em homenagem à Florbela Espanca. Agradeço a Pedro Fernandes a oportunidade de se construir, em momento extremamente oportuno, um belo, justo e variado retrato da poetisa, na observação crítica da riqueza da sua obra e na contemplação da beleza da sua escrita. Viva Florbela! Jonas Leite Coorganizador

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Florbela Espanca (1894 – 1930)

© Armando Alves

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a homenageada

Florbela Espanca nasceu em Vila Viçosa, Alentejo, em 1894. Começou a escrever poesia quando ainda era aluna do secundário em Évora. Casou-se pela primeira vez aos 19 anos no dia do seu aniversário, 8 de dezembro. Este acontecimento é o motivo de sua mudança para Redondo, de onde inicia colaborações esparsas na mídia, com textos literários em suportes como Modas & Bordados, um suplemento de O século, de Lisboa e Notícias de Évora. É aí também que volta à sua produção poética, agora de maneira organizada, interessada em compor um grande livro batizado como Trocando Olhares; a coletânea composta por quase uma centena de poemas e três contos que lhe serviu para as futuras publicações. Depois do divórcio, mudou-se para Lisboa com o interesse de cursar Direito; nesse mesmo ano, em junho de 1919, graças a Raul Proença, um intelectual e crítico influente da época, publica seu primeiro livro numa tiragem de duzentos exemplares, que passa despercebido pela crítica. Igual destino teve, em vida, toda sua obra. Dois anos depois casa-se pela segunda vez e vai viver no Porto; em 1922 volta para Lisboa. O segundo casamento dura pouco tempo; divorciase novamente para se casar pela terceira vez e, agora, a poeta recolhe-se em Matosinhos, onde se suicida na noite do dia 7 para o dia 8 de dezembro, em 1930. Antes, em 1923, publica seu segundo e último livro em vida, Livro de Sóror Saudade, edição custeada pelo pai. Postumamente, foi publicado, do gênero poesia, Charneca em Flor (1931), livro para o qual nunca encontrou editor, Juvenília (1931) e Reliquiae (1934), estes dois últimos livros não pensados por Florbela e organizados a partir de poemas do Trocando Olhares; da prosa, no mesmo ano, As Máscaras do Destino (1931). Na mesma ocasião de Charneca em Flor, preparava também Diário do Último Ano, publicado só em 1981 e a antologia de contos O Dominó Preto, que só virá a lume em 1982.

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Vaidade Sonho que sou a Poetisa eleita, Aquela que diz tudo e tudo sabe, Que tem a inspiração pura e perfeita, Que reúne num verso a imensidade! Sonho que um verso meu tem claridade Para encher todo o mundo! E que deleita Mesmo aqueles que morrem de saudade! Mesmo os de alma profunda e insatisfeita! Sonho que sou Alguém cá neste mundo... Aquela de saber vasto e profundo, Aos pés de quem a terra anda curvada! E quando mais no céu eu vou sonhando, E quando mais no alto ando voando, Acordo do meu sonho... E não sou nada!...

De Livro de Mágoas

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Eu Eu sou a que no mundo anda perdida, Eu sou a que na vida não tem norte, Sou a irmã do Sonho, e desta sorte Sou a crucificada... a dolorida... Sombra de névoa tênue e esvaecida, E que o destino amargo, triste e forte, Impele brutalmente para a morte! Alma de luto sempre incompreendida!... Sou aquela que passa e ninguém vê... Sou a que chamam triste sem o ser... Sou a que chora sem saber por quê... Sou talvez a visão que Alguém sonhou, Alguém que veio ao mundo pra me ver, E que nunca na vida me encontrou!

De Livro de Mágoas

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Desejos vãos Eu queria ser o mar de altivo porte Que ri e canta, a vastidão imensa! Eu queria ser a pedra que não pensa, A pedra do caminho, rude e forte! Eu queria ser o sol, a luz intensa, O bem do que é humilde e não tem sorte! Eu queria ser a árvore tosca e densa Que ri do mundo vão e até da morte! Mas o Mar também chora de tristeza... As Árvores também, como quem reza, Abrem, aos Céus, os braços, como um crente! E o Sol altivo e forte, ao fim de um dia, Tem lágrimas de sangue na agonia! E as Pedras... essas... pisa-as toda a gente!

De Livro de Mágoas

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Verdades cruéis Acreditar em mulheres É coisa que ninguém faz; Tudo quanto amor constrói A inconstância desfaz. Hoje amam, amanhã esquecem, Ora dores, ora alegrias; E o seu eternamente Dura sempre uns oito dias!...

De Trocando Olhares

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Poetas Ai as almas dos poetas Não as entende ninguém; São almas de violetas Que são poetas também. Andam perdidas na vida, Como as estrelas no ar; Sentem o vento gemer Ouvem as rosas chorar! Só quem embala no peito Dores amargas e secretas É que em noites de luar Pode entender os poetas. E eu que arrasto amarguras Que nunca arrastou ninguém Tenho alma pra sentir A dos poetas também!

De Trocando Olhares

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Fanatismo Minh’ alma de sonhar-te, anda perdida. Meus olhos andam cegos de te ver. Não és sequer razão do meu viver Pois que tu és já toda a minha vida! Não vejo nada assim enlouquecida... Passo no mundo, meu Amor, a ler No mist’ rioso livro do teu ser A mesma história tantas vezes lida!... “Tudo no mundo é frágil, tudo passa...” Quando me dizem isto, toda a graça Duma boca divina fala em mim! E, olhos postos em ti, digo de rastros: “Ah! Podem voar mundo, morrer astros, Que tu és como Deus: princípio e fim!...”

De Livro de Sóror Saudade

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Esfinge Sou filha da charneca erma e selvagem. Os giestais, por entre os rosmaninhos, Abrindo os olhos d’oiro, p’los caminhos, Desta minh’alma ardente são a imagem. Embalo em mim um sonho vão, miragem: Que tu e eu, em beijos e carinhos, Eu a Charneca e tu o Sol, sozinhos, Fôssemos um pedaço de paisagem! E à noite, à hora doce da ansiedade Ouviria da boca do luar O De Profundis triste da saudade... E à espera, enquanto o mundo dorme, Ficaria, olhos quietos, a cismar... Esfinge olhando a planície enorme...

De Livro de Sóror e Saudade. Nas páginas anteriores, manuscrito do poema “Esfinge” com correções da própria poeta em versão do Livro de Sóror Saudade de 1919 (Espólio de Florbela Espanca. Biblioteca Nacional de Portugal). Na página 27, desenho de Florbela Espanca vista pelo irmão Apeles Espanca (Arquivo Biblioteca Nacional de Portugal)

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Amar Eu quero amar, amar perdidamente! Amar só por amar: Aqui... além... Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente... Amar! Amar! E não amar ninguém! Recordar? Esquecer? Indiferente!... Prender ou desprender? É mal? É bem? Quem disser que se pode amar alguém Durante a vida inteira é porque mente! Há uma Primavera em cada vida: É preciso cantá-la assim florida, Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar! E se um dia hei de ser pó, cinza e nada Que seja a minha noite uma alvorada, Que me saiba perder... pra me encontrar...

De Charneca em Flor

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© Luís Feito

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Por Eliana Luiza dos Santos Barros

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Neste ensaio esboçaremos algumas considerações a partir da psicanálise sobre o enigma do feminino, sobre este mundo misterioso que enfoca a complexidade do tornar-se mulher, para logo em seguida tecer algumas reflexões sobre Florbela Espanca e a sua poesia. O ato fundador de Sigmund Freud foi reconhecer na histérica o valor de suas palavras. Neste sentido, a psicanálise contribuiu incessantemente para a legitimação do desejo de liberação das mulheres oprimidas. E foi justamente a escuta do sofrimento das mulheres de seu tempo que levou Freud a fundar a psicanálise. Nesta linha de pensamento freudiano interrogamos como Florbela Espanca nos apresenta o drama da mulher. Freud não dissimulou sua insatisfação em relação ao saber que a psicanálise pôde constituir a respeito do feminino. O que quer, afinal, uma mulher? Indagava, depois de estudar a chamada alma feminina por longa data. O que Freud intuitivamente percebeu é que havia aí um impasse, embora não dispusesse de instrumentos para resolvê-lo¹. Em seu texto “A feminilidade” Freud nos diz: “Se desejarem saber mais a respeito da feminilidade, indaguem das suas próprias experiências de vida, ou consultem os poetas, ou aguardem até que a ciência possa dar-lhes informações mais profundas e mais coerentes.” (FREUD, 1996, p. 134). Podemos dizer, com Freud, que os poetas antecipam os psicanalistas, e daí a proximidade entre a psicanálise e a poesia, pois ambas têm como base a palavra e as duas se ancoram na força do verbo. Florbela Espanca desde muito cedo questionou a condição feminina e o papel tradicional da mulher, trazendo na alma inquietações, sonhos e desejos. O feminino nos apresenta aspectos obscuros, como já dizia Freud, e pertence a um “continente negro.” (FREUD, 1996, p.205). Certamente não pode ser totalmente desvelado, porque o seu sentido é inesgotável e o seu segredo é da ordem do indizível. Diante desta dimensão enigmática, tratada como incógnita, a psicanálise não tenta descrever o que é a mulher, mas se empenha em indagar como a mulher se forma e se desenvolve desde a criança dotada de disposição bissexual , uma vez que todo ser humano é uma síntese mais ou menos harmoniosa e mais ou menos bem aceita de traços masculinos e femininos. 7faces • 33


Para Freud, a menina pode chegar à feminilidade ou não, pois existe um processo em tornar-se mulher que acontece em tenra idade, no atravessamento das lutas edípicas com as figuras parentais. A descoberta do complexo de Édipo remete a Psicanálise a se incluir entre as mais preciosas aquisições da humanidade – este é um conceito fundamental da psicanálise – estruturante do psiquismo. No entanto, Freud não apresentou uma exposição sistemática para falar do complexo de Édipo, uma vez que este passa por uma incessante evolução ao longo de sua obra conforme as suas descobertas e os seus estudos foram avançando. O complexo de Édipo se verifica na fase fálica quando a criança se dá conta da diferença sexual. Freud durante muito tempo admitiu que este complexo seria análogo para meninos e meninas. Para o fundador da psicanálise, no início a menina é um homenzinho, mas depois rebate esta formulação inicial. O menino pensa que o pênis na menina poderá crescer. Ao perceber que ela não o tem, supõe que este foi retirado, se confrontando assim com a castração. Com medo de ser castrado pelo pai, identifica-se a este, recalcando o desejo incestuoso pela mãe. A ameaça de castração faz com que abandone o complexo de Édipo. A menina vivencia um destino diferente na trama edípica. A angústia de castração que promove no menino o declínio do Édipo, representa, na menina, a entrada no mesmo. O primeiro objeto de amor da menina, assim como do menino, é a mãe, mas o menino não precisa realizar a troca deste objeto amoroso, a mãe continua neste lugar e ao longo da vida o homem faz um deslizamento da mãe para a mulher. A menininha, ao comparar o clitóris com o pênis do menino, percebe que se “saiu mal”, e se dá conta da falta do pênis, aparecendo o sentimento de inferioridade. Por algum tempo achava que possuiria um órgão igual ao do menino, mas, ao se perceber castrada, instaura-se a inveja do pênis. A menina deve ter como primeiro objeto de amor sua mãe, sua vinculação pré-edipiana é com sua mãe, é o amor pela mãe fálica. Entende-se por fase pré-edipiana a fase de ligação exclusiva à mãe. No texto “Sexualidade Feminina” Freud reforça: Vemos, portanto, que a fase de ligação exclusiva à mãe, que pode ser chamada de fase pré-edipiana, tem nas mulheres uma importância muito maior do que a que pode ter nos homens. Muitos fenômenos da vida sexual feminina, que não foram devidamente 7faces • 34


compreendidos antes, podem ser integralmente explicados por referência a essa fase. (1996, p. 238). Na situação edipiana, a menina tem o seu pai como objeto amoroso, e no decorrer de seu desenvolvimento ela passará desse objeto paterno para sua escolha objetal definitiva. O que põe fim à poderosa vinculação da menina com sua mãe se situa no complexo de castração, pois as meninas responsabilizam sua mãe pela falta do pênis e não a perdoam por terem sido colocadas em desvantagem, sentem-se injustiçadas e com inveja do pênis. Passam a ter com a mãe uma relação de rivalidade que pode se prolongar vida afora. O que faz a menina voltar-se para o pai é, sem dúvida, o desejo de possuir o pênis que a mãe não lhe proporcionou e agora espera receber de seu pai. Por isso, Freud conclui que: A descoberta de que é castrada representa um marco decisivo no crescimento da menina. Daí partem três linhas de desenvolvimento possíveis: uma conduz à inibição sexual ou à neurose, outra, à modificação do caráter no sentido de um complexo de masculinidade, a terceira, finalmente, à feminilidade normal. (1996, p.126) Esta primeira atitude que leva à inibição sexual ou à neurose, a renúncia da menina a toda sexualidade, é a consequência da abdicação à atividade fálica. Nesta atitude, o recalcamento domina e compromete igualmente a atividade da menina em outros domínios. Na segunda atitude, há uma modificação do caráter, a formação de um complexo de virilidade, no qual a menina entra no complexo de masculinidade, enfatizando-o e mantendo a esperança e a vontade de ter um pênis semelhante ao do menino. Esta atitude consiste na renegação da castração, onde a menina fantasia que possui o pênis cobiçado e se comporta como um homem, posição que a pode conduzir à homossexualidade. É a terceira via que Freud considera como a da verdadeira feminilidade, quando a menina se volta para o pai na esperança de receber dele um filho, simbolizando aquilo que a mãe não lhe pode dar. A posição feminina só é estabelecida quando o anseio pelo pênis é substituído pelo desejo de um filho, segundo a velha equivalência simbólica, tomando o lugar do pênis. O que pode haver de melhor que um pênis, senão um filho?

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Se pensarmos com Freud, Florbela não alcançou a feminilidade, uma vez que ela não pode ser mãe, o que poderia ter lhe proporcionado um suporte imaginário através desta equação filho-falo. No poema “Filhos” ela sustenta este desejo: Filhos são as nossas almas Mensageiros da felicidade... Filhos, sonhos adorados, ...Filhos! Na su´alma casta, A nossa alma revive. Eu sofro pelas saudades Dos filhos que nunca tive! (ESPANCA, 1996, p.67) É tentador levantarmos a hipótese de que Florbela, ao escrever versos como este, apontando sua incapacidade de dar a luz, sofre pela ausência de não perpetuar a sua espécie, visto que ela nunca conseguiu ter filhos. Mas sabemos, com Lacan, que a feminilidade não se reduz apenas à maternidade, o filho entra na série de objetos fálicos. No ensino de Lacan o desejo feminino não é obturado pelo desejo de ter um filho como no texto freudiano. A situação edipiana para as meninas é o resultado de uma difícil e longa evolução. O complexo de castração prepara a menina para o complexo de Édipo, em vez de destruí-lo como acontece com os meninos. O complexo de castração é a origem do Édipo na menina, procedendo à renúncia da mãe e à eleição do pai. As meninas permanecem no complexo de Édipo por tempo indeterminado, apagam-no tardiamente e, mesmo assim, de forma incompleta. Coutinho Jorge (2003), em comentário ao livro A relação mãe e filha, de Malvine Zalcberg, sobre a complexa questão do feminino nos indica: Se Freud abordou a feminilidade, de início, a partir da relação da menina com o pai e acabou desembocando na importância da relação entre ela e mãe, Lacan trará como grande inovação a concepção de um resto na operação edípica presente no destino feminino. Trata-se do desdobramento da figura da mãe em duas funções distintas e igualmente fundamentais: a função materna e a função feminina. (não paginado)

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A respeito destas considerações, nos remetemos à dolorosa trajetória de vida de Florbela, uma vez que a relação primitiva mãe e filha é de enorme importância, visto que é o que possibilita a constituição psíquica do sujeito, ancorada neste primeiro encontro com o outro. Lembremo-nos de que Florbela foi criada praticamente pela sua madrasta, Mariana Inglesa, esposa legítima de seu pai. Sua mãe, empregada dos Espanca, trabalhava na casa do pai de Florbela, João Maria Espanca, com conhecimento da esposa, mas, depois que Florbela cresce, ela a deixa com o pai. Neste sentido, achamos deveras importante o que diz Florbela a respeito da mãe e das mulheres em carta dirigida à amiga Júlia Alves e datada de 16 de junho de 1916: Mãe, já não a tenho há muito tempo: tenho 22 anos e não me recordo nem da cor dos seus cabelos; irmãs nunca tive e amigas tenho as que toda a gente tem. Amigas... conhecidas, por outra, tenho muitas, principalmente nesse meio de luxo e opulência em que a principal felicidade consiste num chapéu ou num vestido de moda. Eu não as entendo, nem elas a mim me entendem, e eu não sei se serão elas ou eu a razão, neste mundo em que cada um vive para si. Eu sou refractária a todas as altas questões de elegância, e se um vestido ou um chapéu me encanta é apenas pela porção de arte que eles podem conter, e nada mais. (ESPANCA, 2002, p.207). Capenga neste laço materno, neste encontro com o outro primordial e com as outras mulheres, Florbela esboça um descontentamento nestas relações marcando uma falta que não pode ser preenchida. Parece interrogar continuamente o lugar da mulher, apontando que os modelos femininos não foram representativos em sua vida. Permanece a presença desde cedo do enigma quanto ao desejo da mãe. O que queria essa mulher? Lacan no texto intitulado “Aturdito” diz que “uma mulher espera mais substância de sua mãe do que de seu pai, ele vindo em segundo.” (LACAN, 2001, p. 465). Sabemos que Florbela sofreu por falta da figura materna, apesar da sua madrasta lhe ser uma figura de apreço. Aparenta-nos que para Florbela faltou o que Lacan diz ser essencial para o tornar-se mulher, ou seja, essa “substância” que deve advir da mãe. Florbela, como indica seu perfil biográfico, teve uma vida marcada por perdas: a mãe faleceu ela tinha 14 anos e embora ela tenha sido criada pela 7faces • 37


madrasta, comparece na sua escrita uma mágoa, um apelo a esta mãe que nunca a reivindicou. Encontramos traços dessa perda materna em um poema publicado no Livro de Mágoas (1919), intitulado “A Maior Tortura”: E nem flor de lilás tenho que enfeite A minha atroz, imensa nostalgia!… A minha pobre Mãe tão branca e fria Deu-me a beber a Mágoa no seu leite! (ESPANCA, 1996, p. 143) Florbela parece impregnada, pela vida afora, por uma mãe mortificada que a amamentou com um leite cheio de mágoas. De acordo com Fabio Mario, nos quartetos do soneto “A maior Tortura”, “o sujeito lírico revela a frustração e a dor que carrega em si. A Mãe, aquela que a gerou... talvez tenha sido a culpada de sua dor, pois deu-lhe de beber 'a Mágoa de seu leite!'” (2009, p.139) Refletindo ainda sobre a tal substância citada por Lacan, pensamos também que Florbela pode ter buscado nos seus três malfadados casamentos um lugar, uma palavra, uma substância que pudesse acalmar o seu ser mulher. Para a mulher é o amor que funciona como suporte à sua falta estrutural de identidade. Outra questão importante, levantada pelo psicanalista francês Jacques Lacan, se centra no aforismo “A mulher não existe” (1985, p.98), que denota que não há um significante que nomeie o feminino, o que não se traduz em depreciação ao feminino, mas enfatiza a dimensão de impossibilidade do que seja, em última instância, a feminilidade. Do ponto de vista psíquico não é evidente a diferenciação entre homem e mulher. Lacan, ao longo de sua obra, afirma que não há inscrição do significante mulher no inconsciente. Dizer que a “mulher não existe” implica, portanto, referir que cada mulher se invente com o semblante a partir de seu vazio estruturante, descobrindo uma maneira única e criativa de suturar a falta, construindo uma resposta para sua inexistência. Com isso, entendemos que não se pode generalizar como no dizer da cultura popular: “As mulheres são todas iguais...” Voltando às considerações de Freud, lembremos que o mesmo reúne as mulheres em um conjunto, na medida em que assinala a inveja do pênis como o núcleo central no desenvolvimento da sexualidade feminina. Lacan vai mais além deste conceito e considera que as mulheres não fazem conjunto e podem somente ser “vistas” uma a uma. 7faces • 38


Em relação à lógica do ter, que se refere a ter ou não ter o falo², Freud aponta as posições do homem e da mulher. Ambos se referem à função do falo, mas o homem é aquele que tem o falo e a mulher é aquela que não tem. Na mulher a falta a ser não é recoberta, porque apesar dela estar referida ao falo, ela é não toda na norma fálica, porque não tem o suporte imaginário do falo, o rigor viril, o pênis. Em Lacan o conceito de feminilidade é ampliado, pois a relação ter ou não ter o falo, trabalhada por Freud, é desdobrada em ter ou ser o falo. Masculino e feminino são apresentados como posições subjetivas que independem da anatomia. O feminino, em psicanálise, trata-se de uma posição aberta a todos, o feminino não é a mulher, mas sim uma posição subjetiva que independe da fisiologia, do destino anatômico, podendo aceder à feminilidade tanto homens como mulheres. Dessa forma, o que “define” a escolha de uma posição ou outra é “ter” o falo, lugar ocupado prioritariamente pelos homens ou “ser” o falo, lugar ocupado principalmente pelas mulheres. Lacan questionou o complexo de Édipo em Freud, ele nos fala de um além do Édipo. Traz como novidade a concepção de um resto na operação edípica que comparece no destino feminino. Reformula a diferença entre os sexos, pela oposição de duas lógicas: a do todo fálico nos homens e do não todo na mulher. No estudo crítico que acompanha o livro Sonetos, de Florbela Espanca, José Régio se dirige à mesma como um caso que diz da verdade do sujeito feminino: A obra de Florbela é a expressão poética de um caso humano. Decerto para infelicidade da sua vida terrena, mas glória de seu nome e glória da poesia portuguesa, Florbela viveu a fundo esses estados quer de depressão, quer de exaltação, quer de concentração em si mesma, quer de dispersão em tudo, que na sua poesia atinge tão vibrante expressão. Mulheres com talento vocabular e métrico para talharem um soneto como quem talha um vestido; ou bordarem imagens como quem borda missanga; ou (o que é ainda menos agradável) se dilatarem em ondas de verbalismo como quem se espreguiça por nada ter o que fazer, o que dizer – naturalmente as houve, e há, antes e depois da vida de Florbela. [...] Também, decerto, apareceram na nossa poesia autênticas poetisas, antes e depois de Florbela. Nenhuma, porém, até hoje, viveu tão a 7faces • 39


sério um caso tão excepcional e, ao mesmo tempo, tão significativamente humano. Jorge de Sena dirá: “tão expressivamente feminino” (1950, p. 8) Régio aponta, neste texto, o vazio do feminino e as formas de mascará-lo. Florbela soube acolher este vazio, pois em seu texto, deixa escapar uma intimidade com a falta. A escrita não dá garantias, não garante contra todos os riscos, mas é uma forma de bordejar a falta experimentada pela mulher. Tanto quanto a palavra falada, a palavra escrita pode dar sustentação ao feminino. Neste sentido Rita Manso de Barros, em seu texto, Escrita feminina, realça que a mulher para dar conta de uma falta, usa as palavras, e estas servem como linha de bordado, tricô ou crochê: todas tecendo em torno do vazio. A mulher nesta posição, não nega a falta – ela a enfeita em seus contornos. As mulheres, através da palavra, bordam flores e sonham com a tentativa de findar com este mundo inacabado e faltoso. Em carta para a amiga Júlia Alves, Florbela garante que vai desnudar-se dos disfarces, das vestes que lhe recobrem: “Prometo-lhe para si despir a minha capa vermelha, farfalhante de guizos, com que me mostrou ao mundo; prometo-lhe conversar muito, tagarelar muito consigo de todas as coisas onde nós mulheres, possamos bordar a flor azul do sonho” (ESPANCA, 2002, p.207). A escrita de Florbela evoca o vazio que permite a interpretação da feminilidade. Foi a psicanálise que descobriu que a mulher é múltipla, muitas em uma, a mulher é desdobrável. No poema “A Mulher I”, Florbela atesta artisticamente esta pluralidade feminina: “Um ente de paixão e sacrifício, / De sofrimento cheio, eis a mulher!” E ainda reforça: “Ó Mulher! Como és fraca e como és forte! / Como sabes ser doce e desgraçada!” (ESPANCA, 1996, p. 52-53). É neste processo de trocas, avanços e recuos que se alcança a tal subjetividade feminina. Florbela sempre observou o mundo, questionou-o e exprimiu sua angústia diante da realidade. A introspecção não a tentou, e talvez a escolha da escrita fosse o melhor meio de reivindicar um outro lugar na sociedade. A escrita pode suprir o vazio de representação da mulher no lugar onde o significante é falta. Os mistérios que circundam a mulher permanecem, pois, sobre o feminino, por mais que se diga algo resta. A mulher permanece fugidia e intangível.

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Rastros de uma escrita gerida nas entranhas, tecendo uma rede sobre o inabordável do feminino, marcam a poesia de Florbela Espanca. Notas ¹ Cabe ressaltar que Freud não teve uma postura antifeminista ou misógina. Não há, na teoria freudiana, uma hierarquização de homem e mulher. As mulheres sempre lhe foram caras e foi através das histéricas que gritavam no corpo seus sintomas que Freud entendeu que havia ali algo a ser dito. O falo, para a psicanálise, é um conceito abstrato que não expressa masculinidade e não pertence a nenhum dos “gêneros”. Homens e mulheres não são construções anatômicas, mas psíquicas e o caminho trilhado para se chegar neste lugar é árduo, longo e espinhoso. Freud não estudava genitálias mas sim afetos e desejos que se incluem numa esfera inconsciente. ² Denise Maurano (2003), no texto “As delícias do diabo: aproximações entre a psicanálise e a Mulher”, traz uma definição de falo na psicanálise: “Na psicanálise desde Freud, e reiteradamente na obra de Lacan, o phallus tem a função de operador da dessimetria indispensável ao desejo, o que vai indicar uma certa organização da sexualidade do sujeito, que vai lhe permitir acesso ao gozo sexual. Se, na Grécia antiga, o phallus diz respeito a um simulacro do sexo masculino investido de poder, de saber e de fecundidade, celebrado em rituais religiosos, enquanto conceito psicanalítico o phallus indica a emergência do sujeito humano como sujeito de um desejo não referido às forças vitais metafísicas, mas exatamente ao ponto de ligação do sexo com a palavra, ponto que conjuga a inauguração do logos com o advento do desejo, como se o significante fosse extraído da carne”. A respeito do phallus, encontra-se no verbete do Dictionnaire Larousse de la psychanalyse a seguinte definição: “Significante do gozo sexual ele é o ponto onde se articulam as diferenças na relação ao corpo, ao objeto e à linguagem”. Dessa forma, não lhe sendo atribuída substância mágica alguma metafísica ou religiosa o phallus para a psicanálise tem a função lógica de situar-se no hiato entre homens e mulheres, indicando a possibilidade, em última instância, de uma significação fundamental que se coloca, entretanto, sempre velada e alhures”. Referências BARROS, Rita M. Manso. “A adolescência e o tornar-se mulher”. In: FARIAS, Francisco R. de; DUPRET, Leila (Orgs.). A pesquisa nas Ciências do Sujeito. Rio de Janeiro: Revinter, 1998. ESPANCA, Florbela. Afinado desconcerto. São Paulo: Iluminuras, 2002. ESPANCA, Florbela. Poemas. São Paulo: Martins Fontes, 1996. FREUD, Sigmund. “Organização genital infantil”. In: Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. 14. FREUD, Sigmund. “A questão da analise leiga”. In: Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. 20.

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FREUD, Sigmund. “Feminilidade”. In: Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. 14. FREUD, Sigmund. “Sexualidade feminina”. In: Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. 14. LACAN, Jacques. O Aturdito, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. LACAN, Jacques. Seminário 20. Mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. MAURANO, Denise. “As delícias do diabo: aproximações entre a psicanálise e a Mulher”. In: NAZAR, Sérgio. (Org.). O diabo é o sexo. Rio de Janeiro: Editora UERN, 2003, v. 1. RÉGIO, José. “Estudo crítico”. In: ESPANCA, Florbela. Sonetos. Lisboa: Bertrand Editora, 1950. SILVA, Fabio Mario da. Da metacrítica à psicanálise: a angústia do “eu” lírico na poesia de Florbela Espanca. João Pessoa: Ideia, 2009. JORGE, Marco Antônio Coutinho. “Orelha de livro”. In: ZALCBERG, Malvine. A relação mãe e filha. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.

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Š Tamara de Lempika

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A POESIA DE FLORBELA E A EXPRESSÃO DE UM CORPO DESEJANTE Por Isa Margarida Vitória Severino

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A vida de Florbela foi marcada por um elenco de vicissitudes que lhe trouxe mágoas, contrariedades, epítetos ultrajantes, comentários displicentes, interpretações difamatórias ao ponto de se recusar veemente uma homenagem na sua terra natal, culminado com a remoção do seu busto. Recordemos, portanto, algumas passagens da sua vida que contribuíram para o ostracismo que recaiu sobre a sua vida e teve também reflexos na sua obra. O estatuto insólito que marcou o seu nascimento, pois, de acordo com os registos, era “filha ilegítima de pai incógnito”, (o pai de Florbela só a reconheceu como filha 19 após a sua morte), aliado à sua vida atribulada. A morte prematura do seu único irmão, Apeles, por quem nutria um profundo afeto, como reflete no conto intitulado “O Aviador”, que dedica ao “Ao meu querido irmão” “ao meu querido morto”. Também este amor foi vilipendiado, considerado incestuoso. Ainda a presença de Florbela na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde apenas se encontravam catorze mulheres, num universo de 347 inscritos, suscitou estranheza entre os pares, pois, naquele tempo, a condição da mulher estava confinada ao espaço do lar e a participação na vida social era restrita, sendo a sua instrução relegada para segundo plano. De igual modo, os três matrimónios contraídos granjearam à autora uma reputação pouco favorável naquela época. Os acontecimentos mencionados impulsionaram Florbela a um exílio, um exílio ontológico, que procurou alento nas palavras e se repercute na sua obra poética, mas cavou distâncias entre o eu e o outro. Fundou-se no silêncio, numa comunicabilidade que se afigura impossível, pois ao afirmar-se num meio predominantemente masculino, pretendeu quebrar as amarras e evadir-se de clima de opressão: A ter vivido num outro tempo, vindouro, pelo menos seria poupada a esta incompreensão, o que não significa que a sua dor existencial, os seus sofrimentos pessoais não fossem reais, ou dito doutra forma que a génese da sua obra fosse exterior à sua vivência (MATIAS, 1998, p. 26). Recuperando as palavras de Matias, consideramos que a veracidade dos sentimentos e da dor ontológica de Florbela não foi transposta ipsis verbis para a escrita. O mecanismo da escrita não se baseia em sentir – escrever, mas antes na recuperação do sentir, na sua reinvenção e consequentemente na transmudação para a escrita. O exercício de escrita era para Florbela um exercício de ousadia e transgressão, uma vez que estava ciente que não se coadunava com o 7faces • 45


padrão instituído, visto que a mulher estava confinada às tarefas do foro doméstico. Assim, num contexto cultural que lhe era pouco favorável, “a máscara da feminilidade” (ALONZO, 2012, p. 20) torna-se um recurso através do qual se oculta e concomitantemente ousa escrever e dizer-se. Pretendemos, partindo do olhar do eu que escreve, narrating sel”, a analisar a imagem que faculta do eu-outro, experiencing self, de forma a perceber que a configuração que este eu veicula perante a presença de um tu, objeto de desejo que o faz oscilar. Para tal, invocamos o poema “O nosso mundo”, do Livro de Sóror Saudade, onde Florbela desenha um sujeito para o qual tudo o que é desejado é a união com o outro: A Vida, meu Amor, quero vivê-la! Na mesma taça erguida em tuas mãos, Bocas unidas, hemos de bebê-la! Que importa o mundo e as ilusões defuntas?... Que importa o mundo e seus orgulhos vãos?... O mundo, Amor!... As nossas bocas juntas!... (ESPANCA, 2012, p. 115). Neste poema, exalta-se o amor como sendo o único sentimento capaz de dar um sentido ao mundo; o mundo sem amor é como se não existisse. É na união com o outro, simbolizado pela união das bocas, que o sujeito poético encontra a completude. Neste âmbito, importa atentar no poema que se segue, “Prince Charmant...”: No lânguido esmaecer das amorosas Tardes que morrem voluptuosamente Procurei-O no meio de toda a gente. Procurei-O em horas silenciosas! Ó noites da minh’ alma tenebrosas! Boca sangrando beijos, flor que sente... Olhos postos num sonho, humildemente... Mãos cheias de violetas e de rosas... E nunca O encontrei!... Prince Charmant... Como audaz cavaleiro em velhas lendas Virá, talvez, nas névoas da manhã! Em toda a nossa vida anda a quimera 7faces • 46


Tecendo em frágeis dedos frágeis rendas... – Nunca se encontra Aquele que se espera!... (ESPANCA, 2012, p. 116). Florbela aborda o tópico do homem idealizado, o qual, por ser vítima da idealização, não poderá ser encontrado. O sujeito poético busca alguém que simbolize talvez uma perfeição inspirada nas personagens dos contos de fadas – observe-se o título do poema, “Prince Charmant...” – e que não terá, portanto, equivalente no mundo real, o que o próprio sujeito parece reconhecer, ao falar nos seus “olhos postos num sonho, humildemente”, ou quando o compara a “audaz cavaleiro em velhas lendas”, que “virá, talvez, nas névoas da manhã!” A quimera apresenta-se aqui, e em outros poemas, como fator determinante no estado de profunda solidão dos sujeitos poéticos de Florbela. A quimera, como é dito no último terceto, produz um sujeito frágil, incapaz de lidar com as vicissitudes da existência física real. Neste estado de profunda alienação, que resulta de uma entrega total ao mundo do sonho e do ideal, não admira que este sujeito poético nunca chegue a encontrar o homem que busca, porque tal homem não poderia sequer existir. Como consequência, o sujeito vê-se condenado à solidão, numa espera eterna. Por outro lado, quando o amado chega, tal acontece demasiado tarde, como podemos observar no poema “Tarde demais...”: Quando chegaste enfim, para te ver Abriu-se a noite em mágico luar; E para o som de teus passos conhecer Pôs-se o silêncio, em volta, a escutar... Chegaste, enfim! Milagre de endoidar! Viu-se nessa hora o que não pode ser: Em plena noite, a noite iluminar E as pedras do caminho florescer! Beijando a areia d’oiro dos desertos Procurara-te em vão! Braços abertos, Pés nus, olhos a rir, a boca em flor! E há cem anos que eu era nova e linda!... E a minha boca morta grita ainda: Porque chegaste tarde, ó meu Amor?!... 7faces • 47


(ESPANCA, 2012, p. 242). O sujeito poético testemunhou a chegada do seu amado, mas tal funciona de modo ainda mais devastador do que a solidão expressa no poema anterior. O aparecimento do objeto de desejo serve para acentuar a espera sem frutos que lhe precedeu e que acabou por matar o sujeito poético. O desacerto temporal entre os dois sujeitos é explorado no terceto final, quando menciona que há cem anos era “nova e linda”, e agora, embora ainda viva, tem a boca já morta. Lembrando a função simbólica da boca na poesia de Florbela, apercebemo-nos de que esta morte simboliza não a ausência de vida, mas a incapacidade de materializar o amor, como se a espera tivesse secado a lubricidade do corpo deste sujeito, impossibilitando-lhe o acesso às loucuras do amor físico. Contudo, por vezes, Florbela escreve poemas em que os prazeres sensuais são o fator predominante, afastando as problemáticas da solidão e da frustração sexual para segundo plano. O poema “Horas rubras” é disso exemplo: Horas profundas, lentas e caladas, Feitas de beijos sensuais e ardentes, De noites de volúpia, noites quentes Onde há risos de virgens desmaiadas... Oiço as olaias rindo desgrenhadas... Tombam astros em fogo, astros dementes, E do luar os beijos languescentes São pedaços de prata p’las estradas... Os meus lábios são brancos como os lagos... Os meus braços são leves como afagos, Vestiu-os o luar de sedas puras... Sou chama e neve branca e misteriosa... E sou, talvez, na noite voluptuosa, Ó meu Poeta, o beijo que procuras! (ESPANCA, 2012, p. 129). A sensualidade perpassa este soneto, os beijos são “sensuais e ardentes”; as noites são “de volúpia, noites quentes”, mencionando-se o riso de virgens desmaiadas. O sujeito' poético é simultaneamente chama 7faces • 48


e neve. Num estranho paradoxo, sugere-nos o calor, emanado pela chama, e o frio gélido, representado pela neve, também branca e misteriosa, culminando com a sugestão de que é um beijo que o destinatário do poema procura. Em "Horas rubras", a vida não é um fardo de soturnidade e tristeza, sendo celebrada através da sensualidade dos corpos, num êxtase sexual com paralelo noutros poemas de Florbela. O último poema do Livro de Sóror Saudade, “Exaltação”, é outro exemplo paradigmático deste movimento: Viver!... Beber o vento e o sol!... Erguer Ao Céu os corações a palpitar! Deus fez os nossos braços p’ra prender, E a boca fez-se sangue p’ra beijar! A chama, sempre rubra, ao alto, a arder!... Asas sempre perdidas a pairar, Mais alto p’ra as estrelas desprender!... A glória!... A fama!... O orgulho de criar!... Da vida tenho o mel e tenho os travos No lago dos meus olhos de violetas, Nos meus beijos extáticos, pagãos!... Trago na boca o coração dos cravos! Boémios, vagabundos, e poetas: – Como eu sou vossa irmã, ó meus Irmãos!... (ESPANCA, 2012, p. 260) Se anteriormente se referia o rosto de monja dos sujeitos poéticos, o eu poético assume-se, aqui, como possuidor de olhos de violetas e de beijos extáticos e pagãos. O poema inicia-se com o termo “viver” seguido de um ponto de exclamação que aproxima, desde logo, este poema ao hedonismo do anterior. A vida é exaltada, bem como a capacidade de entrega a esta, em oposição ao movimento que verificámos noutros poemas de Florbela, em que o sujeito fugia da vida, refugiado na sua “torre de marfim”. Novamente o rubro surge associado a ideias de hedonismo, e novamente os beijos são evocados como elemento simbólico por excelência da celebração dos corpos. Se o erotismo, em Florbela, iniciouse timidamente, estava já, por esta altura, a irromper pelos seus versos, 7faces • 49


oferecendo-lhes uma sensualidade celebratória e despudorada, como sucede nomeadamente no poema “Passeio ao Campo”: Meu Amor! Meu Amante! Meu Amigo! Colhe a hora que passa, hora divina, Bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo! Sinto-me alegre e forte! Sou menina! Eu tenho, Amor, a cinta esbelta e fina... Pele doirada de alabastro antigo... Frágeis mãos de madona florentina... – Vamos correr e rir por entre o trigo! – Há rendas de gramíneas pelos montes... Papoilas rubras nos trigais maduros... Água azulada a cintilar nas fontes... E à volta, Amor... tornemos, nas alfombras Dos caminhos selvagens e escuros, Num astro só as nossas duas sombras!... (ESPANCA, 2012, p. 271) É curioso assinalar a audácia que brota desta construção poética, numa clara inversão do topos instituído, já que se trata não só um poema de autoria feminina, como também de um sujeito poético feminino que se diz “menina”, “alegre e forte” e convida ao deleite, ao prazer e inclusive à comunhão dos corpos, numa época em que a mulher estava sujeita a regras restritas. A própria subversão não reside unicamente no convite que este eu dirige ao amado como também na descrição física que faculta. Se em outras construções analisadas, os elementos que irrompiam com maior notoriedade eram os olhos cobertos de lágrimas, o rosto e, por vezes, as mãos, a menina de “Passeio ao Campo”, faz referência à sua cinta esbelta, não esquecendo a sua pele doirada metaforizada em “alabastro antigo”, assim como as suas delicadas mãos que evocam as de uma “madona florentina”. Esta descrição contrasta com a caracterização física e psicológica dos sujeitos poéticos analisados em poemas anteriores e salienta a “dimensão mítica e intemporalidade” de Florbela (ALONSO, 1997, p. 183). Com efeito, a frescura, vitalidade e jovialidade deste eu tem um efeito contagiante que se percebe, inclusive pela invocação que faz ao amado ‒ 7faces • 50


“Meu Amor! Meu Amante! Meu Amigo!” ‒, incentivando-o a “colhe[r] a hora que passa” numa atitude de carpe diem, envolta num agudizado erotismo expresso logo no segundo verso, “Bebe-a dentro de mim”, como se ela fosse um relicário, ofertando, neste caso, um convite à consumação do prazer. O cenário campestre comunga da frescura, do gáudio e da receptividade do eu lírico, pois também ele parece estar disponível para albergar este encontro amoroso, como assinalam os elementos neles presente – “Há rendas de gramíneas pelos montes.../ Papoilas rubras”, “trigais maduros” –, os quais destacam exuberância e fertilidade. Também a água que cintila nas fontes confere uma imagem de leveza, alegria e frescura, partilhando com o sujeito poético as mesmas sensações. Neste contexto, não podemos deixar de estabelecer um paralelismo com o poema de Ricardo Reis “Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio”, no qual, o sujeito poético, um eu masculino, revela um desejo epicurista de fruir o momento presente: Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio. Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas. (Enlacemos as mãos.) O que os versos supracitados ressaltam não é a emoção de contemplar a natureza, mas, essencialmente, a atitude amorosa que resulta da sua interpretação enquanto símbolo de fugacidade. Contrariamente ao que sucede em “Passeio ao Campo”, neste poema de Fernando Pessoa heterónimo, assiste-se a uma clara contenção da postura e dos afetos, o amor reveste-se de uma insólita frieza, imposta pela atitude calculada, que coarta a espontaneidade ao mais singelo ato de ternura. Na segunda parte do poema, o sujeito poético de “Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio” anuncia o refrear do impulso amoroso: Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos, Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias, Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro Ouvindo correr o rio e vendo-o. Assim, convida à tranquilidade nas emoções, “Amemo-nos tranquilamente”, e numa clara negação da paixão refere que “pensando que podíamos, / Se quiséssemos, tocar beijos e carícias”. O uso do 7faces • 51


pretérito imperfeito aponta para a interrupção da ação, mas, como assinala o uso do pretérito imperfeito do conjuntivo “quiséssemos”, trata-se de uma interrupção voluntária, própria de quem reclama uma contenção nos afetos e na imposição de uma quase irremediável comunicabilidade. Enquanto o eu lírico deste poema impõe uma incontornável contenção, o sujeito poético de “Passeio ao Campo” demarca-se pela atitude oposta, adota um comportamento descomprometido e convida a fruir o momento em união: “tornemos, nas alfombras / Dos caminhos selvagens e escuros, / Num astro só as nossas duas sombras!... (ESPANCA, 2012, p. 271). Estamos perante um convite transgressor, como salienta o cenário envolvente, campestre e selvagem que incita ao isolamento do casal, num completo secretismo ‒ "os caminhos são selvagens e escuros” ‒, mas a força do amor é transfiguradora e emana um feixe de luz, “num só astro”. Os poemas de Florbela “Passeio ao Campo” assim como “Se tu viesses ver-me” constituem dois exemplos paradigmáticos do poder subversivo da poesia de Florbela, uma mulher criadora e extemporânea, que ousou escrever um corpo no corpo do texto. Ousou expressar desejo ao mesmo tempo que facultou representações de um corpo feminino desejante e sedento de ser e de se dizer. Referências ESPANCA, Florbela. Obras Completas de Florbela Espanca. Lisboa: Editorial Estampa, 2012. MATIAS, Liliana Maria Rodrigues Queirós. Poesia, Errância e Mito em Florbela Espanca. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1998. (Dissertação de mestrado).

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FLORBELA FEMINISTA? VESTÍGIOS FEMINISTAS NA POESIA INICIAL DE FLORBELA ESPANCA Por Michelle Vasconcelos Oliveira do Nascimento

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O feminino, ou a condição feminina, é um dos principais temas da poesia de Florbela Espanca, tema este já abordado em vários estudos que se debruçam desde a dor existencial feminina aos aspectos do erotismo feminino em sua obra, passando pela questão do reconhecimento em ser poeta, em sua época. Entretanto, todos estes aspectos do feminino ou da condição feminina expressam, de certa maneira, o que é ser mulher em Portugal no início do século XX e, sobretudo, refletem as questões acerca das construções histórica e social do sujeito mulher e do feminismo embrionário. Florbela em seu tempo: feminista? Florbela d’Alma da Conceição Espanca nasceu a 8 de dezembro de 1894, no município de Vila Viçosa, região do Alentejo, sul de Portugal, filha de Antónia da Conceição Lobo e do republicano João Maria Espanca. Foi criada pela esposa do pai, Mariana do Carmo Ingleza, também sua madrinha, como aconteceu com Apeles, seu único irmão que, fruto daquela mesma união, nasceu a 10 de março de 1897. Antónia da Conceição Lobo faleceu em 1908, ano em que a família se mudou para Évora para dar continuidade aos estudos de Florbela, que ingressou no Liceu. Mas, datam de 1903, as primeiras composições de Florbela. Em 1913, interrompeu o Liceu, e se casou em Évora, no dia do seu aniversário de 19 anos, com Alberto de Jesus Silva Moutinho, seu colega de escola desde 1904, indo residir em Redondo. Voltam a Évora e retornam a Redondo em 1916, onde dá início, em meados de abril, ao caderno Trocando Olhares, que contém oitenta e oito poemas e três contos. No ano de 1917, Florbela matriculou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, que abandonou em meados de 1920. Em 1919, é publicado pela Topografia Maurício, o Livro de Mágoas, coletânea de trinta e dois sonetos, dedicada “A meu Pai. Ao meu melhor amigo” e “A querida Alma irmã minha. Ao meu irmão”. São duzentos exemplares franqueados pelo pai. Divorciou-se de Moutinho em 30 de abril de 1921 e casou-se, em 29 de junho, no Porto, com António Marques Guimarães, alferes de Artilharia da Guarda Republicana, que conhece desde princípios de 1920. O casal passou a residir no Porto, mas no ano

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seguinte já se encontrava em Lisboa, onde Guimarães se tornou chefe de gabinete do Ministro do Exército. A segunda coletânea de sonetos de Florbela, Livro de Sóror Saudade, veio a lume em janeiro de 1923, composta de trinta e seis sonetos. Foram também duzentos exemplares custeados pelo seu pai. Em 23 de junho de 1925, Florbela divorciou-se mais uma vez, agora de Guimarães e casou-se a 15 de outubro, com o médico Mário Pereira Lage, que conhece desde 1921, com quem vivia desde 1924, em Matosinhos, e com quem moraria, a partir de 1926, na casa dos sogros até a sua morte, em 8 de dezembro de 1930, em virtude de uma dose de barbitúricos. (NASCIMENTO, 2011) Fazer essa breve linha biográfica de Florbela Espanca é importante por ser necessário mostrar a escritora como uma mulher de seu tempo, que vivia em uma nação que passava por profundas transformações políticas e sociais, as quais ela acompanhava e fazia parte, a exemplo do direito a frequentar instituições de ensino superior e também o direito ao divórcio. Tais transformações são frutos do advento da I República, em 1910, que, por sua vez, foi consequência da grave crise política monárquica, que já durava décadas, e que impulsionou diversos movimentos sociais, a exemplo do feminismo. O feminismo, enquanto luta pela igualdade de direitos e de representação e participação política, data ainda de final do século XVIII, com a Primeira Onda Feminista, que tinha como pauta o acesso à educação, a igualdade de salários, o direito ao voto e à representação política, movimento que se estende, ou melhor, ganha força na segunda metade do século XIX e, podese dizer, chega a Portugal, tendo como marco inicial a constituição da Federação Socialista do Sexo Feminino, em 1897, seguida pela criação do Grupo Português de Estudos Feministas, em 1907, presidido por Ana de Castro Osório (1872-1935), um dos nomes mais significativos deste feminismo embrionário, que culminou com a formação da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, em 1909. As feministas apoiaram a implantação da República e lutaram, dentre outras coisas, pelo direito ao voto, o qual não foi concedido durante o período republicano, apesar das outras mudanças ocorridas. É neste período, ainda, que, aproveitando uma ambiguidade na lei¹ e munida de decisão judicial a seu favor, Carolina Beatriz Ângelo consegue ser a 7faces • 57


primeira mulher a exercer o direito ao voto em Portugal. Após isso, a lei foi mudada² para que as mulheres não conseguissem votar, sendo o direito ao voto (censitário) conquistado apenas em 1933, o que mostra uma transformação, ainda lenta, da conquista dos direitos pelas mulheres, apesar da organização social e do fluxo de ideias feministas que havia no período. (GORJÃO, 2002) Os acontecimentos pré-república e as lutas travadas durante o período deixam claro o desenvolvimento do pensamento e de ideais feministas em Portugal no início de século, principalmente no que diz respeito às pautas de igualdade de direitos e à participação e representação política das mulheres, pautas estas democráticas, sendo algumas delas vinculadas e defendidas também pelos republicanos. São ideias e pautas progressistas, contrárias ao conservadorismo que dominava a política, a sociedade e a cultura portuguesas da época, mas que encontravam algum eco dentro da nova organização política da segunda década do século XX. Ora, Florbela nasce e cresce numa família declaradamente republicana. O seu pai, João Espanca, se declarava republicano, corrente política com que Florbela também irá se identificar, sendo incutida pelos valores e ideais pregados pelo republicanismo cujo governo se instaura em 1910. O que, de certa forma, se refletirá na abordagem dos temas em sua obra. Entre 1910 e 1926, Portugal passa por profundas mudanças sociais e políticas e também uma crise advinda de tais mudanças. Dentre elas estava a luta pela participação da mulher na política, o seu acesso à educação superior e ao mundo do trabalho, este último também uma demanda da participação portuguesa da Primeira Grande Guerra. E, devido à ruptura do governo com a Igreja, a lei do divórcio também foi instituída. Numa sociedade conservadora, majoritariamente cristã e em que Estado e Igreja estiveram interligados durante muito tempo, tais transformações não ocorreram sem crises, o que ocasionou, mais adiante, no golpe civil-militar, em 1926, que instaurou a ditadura. (NASCIMENTO, 2016) Ser Mulher: uma poesia de época? Ser mulher na época de Florbela era ser um sujeito em transformação política, social e cultural. Isto é, um sujeito que 7faces • 58


fora “gestado” sob a mentalidade conservadora portuguesa, dirigida pelo cristianismo, mas que cresce, desabrocha, numa realidade política que lhe concede direitos que confrontam tal mentalidade, isto é, as regras da Igreja. Neste contexto de transformações, o sujeito feminino se confronta com a imagem secular feminina, a imagem construída pelo imaginário cristão, e com essa “nova” mulher, uma mulher que se quer independente e autônoma, forte. Ao mesmo tempo, o sujeito feminino começa a refletir sobre a condição a que foi imposta, a moral construída em torno de si e as injustiças advindas do meio social e cultural em que vive, em que a mulher é indivíduo de segunda categoria. (BEAUVOIR, 2009). Mulher e artista de seu tempo, Florbela condensa em sua obra várias questões sobre a condição feminina, mas é em sua poesia inicial, no manuscrito Trocando Olhares (1915-1917), que os conflitos entre o masculino e o feminino assim como a construção social feminina surgem, levando-nos a compreender um pouco acerca das reflexões da escritora e de sua época. Trocando Olhares é um manuscrito escrito entre 1915 e 1917, com 87 poemas, alguns deles incompletos. Os poemas do manuscrito não podem ser limitados a um tema específico, contendo, assim, os mais diversos temas, desde temas nacionais/regionais, o amor romântico/dor de amar, a morte. Mas dentre o grupo de 87 poemas, dois deles se destacam pelo título: “A Mulher (I)” e “A Mulher (II)”, sendo este último datado de 13/03/1916. Ambos os poemas são aqui trazidos para esta breve reflexão sobre os vestígios do feminismo na poesia inicial de Florbela Espanca porque, não só pelo título geral “A mulher”, traçam uma visão de como é construída a imagem e o sujeito feminino naquela sociedade, qual o imaginário em relação à mulher, em contraposição ao masculino, numa sociedade que passa por grandes mudanças. Em “A Mulher (I)”, na primeira estrofe, o eu lírico retoma a imagem cristã feminina: ente de paixão, sacrifício, sofrimento, que representa o sacrifício feminino e maternal de Maria Mater, o sacrifício de amor que se espera de qualquer mulher. Entretanto, no poema, o que se expressa é a relação de amor entre uma mulher e um homem, uma relação que surge, desde o início desigual, e que assim se desenvolve nas estrofes seguintes, expondo o que é ser mulher, amar e sentir prazer

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nesta sociedade conservadores:

com

mentalidade

e

comportamento

A Mulher I Um ente de paixão e sacrifício, De sofrimento cheio, eis a mulher! Esmaga o coração dentro do peito, E nem te doas coração, sequer! Sê forte, corajoso, não fraquejes Na luta; sê em Vênus sempre Marte; Sempre o mundo é vil e infame e os homens Se te sentem gemer hão de pisar-te! Se às vezes tu fraquejas, pobrezinho, Essa brancura ideal de puro arminho Eles deixam p’ra sempre maculada; E gritam então os vis: “Olhem, vejam É aquela a infame!” e apedrejam A pobrezita, a triste, a desgraçada! (ESPANCA, 2016, p. 73) O poema que, inicialmente, pode ser visto como um poema de amor, suscita ao leitor outras questões: a condição feminina neste mundo “vil”, que fica mais explícita na relação desigual por que se trata socialmente o homem e a mulher na relação amorosa. A relação fica expressa pelo “doar o coração”, na primeira estrofe, e por “Vênus” e “Marte”, na segunda estrofe, que representam o feminino e o masculino. A mulher representa o desejo, a sexualidade, a emoção; e o homem representa a força, a coragem e a razão: “Na luta, sê em Vênus sempre Marte”, mostrando o que se espera do sujeito feminino e do masculino: “os homens / Se te sentem gemer hão de pisar-te!” Ora, não fraquejar, ter coragem e enfrentar são características esperadas do homem, do sujeito masculino nesta sociedade. O contrário, a fraqueza, é o feminino. Entretanto, a fraqueza masculina também é atribuída à mulher, que parece como a responsável pela falta cometida pelo homem: E gritam então os vis: “Olhem, vejam / É aquela a infame!” e apedrejam / A 7faces • 60


pobrezita, a triste, a desgraçada!”, e tal passagem remonta ao imaginário cristão da queda: a mulher como responsável pela corrupção do homem. Se o homem tem a imagem maculada, a mulher é vista como a desgraçada, é apedrejada, tal qual Maria Madalena, o que conduz a uma reflexão sobre a construção histórica e social desse sujeito na sociedade portuguesa e as permanências dessa mentalidade ainda no século XX. No poema em questão, em que mulher é responsabilizada pelas ações e corrupção do homem, o que sugere, ainda, uma relação amorosa, se constrói um quadro crítico social desta mulher, que pode ser qualquer uma, porque é “A Mulher”: a desgraçada. É expressando essa “desgraça” feminina que a poesia florbeliana tenta buscar o que seria a força feminina, que consiste, muitas vezes, em suportar a dor desta condição, condição que é desamor, abandono; condição que é não poder se expressar e expressar socialmente e publicamente seus sentimentos, pois se espera de uma mulher que seja comedida (PERROT, 2008). Ser Mulher nesta poesia inicial florbeliana é ser A Mulher, em que identidade, amor e dor se misturam ainda, tentando construir uma face desse sujeito feminino em crise: A Mulher II Ó mulher! Como és fraca e como és forte! Como sabes ser doce e desgraçada! Como sabes fingir quando em teu peito A tua alma se estorce amargurada! Quantas morrem saudosas duma imagem Adorada que amaram doidamente! Quantas e quantas almas endoidecem Enquanto a boca ri alegremente! Quanta paixão e amor às vezes têm Sem nunca o confessarem a ninguém Doces almas de dor e sofrimento! Paixão que faria a felicidade

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© Constança Araújo Amador

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Dum rei; amor de sonho e de saudade, Que se esvai e que foge num lamento! 13/3/1916 (ESPANCA, 2016, p. 74) Se em “A Mulher (I)”, é construída uma relação entre ser homem e ser mulher nesta sociedade a partir da relação amorosa e da doação feminina, em “A Mulher (II)”, há uma construção paradoxal deste sujeito feminino, fraca e forte, doce e desgraçada, expressando a força e a fraqueza, a desgraça e a doçura da mulher na condição de silêncio e resignação em que vivem e na qual sobrevive. Ao mesmo tempo, tal condição de vida é fraqueza e força, ambiguidade que provoca uma reflexão acerca da condição da mulher nesta sociedade, sempre posta como fraca e sensível. As ações de fingir os sentimentos e se calar são as desencadeadoras de sua dor, mas, ao mesmo tempo, os atributos de força desta mulher, porque são forma de sobrevivência neste mundo. O que leva a uma reflexão sobre este sujeito que, embora tenha sido construído como passivo e alheio socialmente, percebe a realidade que lhe rodeia e também atua sobre ela, dentro de suas limitações. No poema, o fingimento e resignação, o suportar a dor e sofrimento, ao passo que remetem a um suposto estereótipo feminino, são, em contrapartida, características de força dessa mulher, e não de fraqueza, o que leva à reflexão de um possível feminismo embrionário na poesia inicial de Florbela Espanca, feminismo este que se dá por pensar a condição feminina neste mundo: de desgraçada pelos homens vis a mulher forte por suportar toda a dor e saber viver neste mundo. Assim, Florbela, como mulher de seu tempo, suscita em sua poesia, pela imagem feminina e por elementos comuns à sua época, como a imagem da mulher sofredora, do sofrer de amor, da mulher resignada e desgraçada, reflexões sobre o ser mulher naquela sociedade conservadora do início do século XX. Os homens vis em sua poesia representam a mentalidade social da época, sexista, que atribui à mulher a culpa cristã e a silencia de seus sentimentos e desejos, negando-lhe o direito fundamental da liberdade, vigiada, sobretudo, pelo moralismo que vigorou durante mesmo a época mais progressista em que a escritora viveu, a I República.

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Embora seja arriscado afirmar que Florbela foi feminista e escreveu uma poesia feminista, a partir do significado político do termo, não é de todo problemático afirmar que em sua poesia contém vestígios do que veio, em sua época, e viria a ser o feminismo posteriormente, isto é, de pensar e refletir sobre o que é o ser mulher, indivíduo de segunda categoria, em relação ao homem, ambos os modelos construídos culturalmente e legitimados socialmente. Florbela suscita em “A Mulher” a reflexão sobre a dor e o estigma de ter nascido mulher em Portugal no final do século XIX. Notas ¹ A lei republicana de 1911 permitia que qualquer cidadão português, maior de 21 anos, que soubesse ler e escrever e que fosse chefe de família teria o direito ao voto. Considerando que a lei não especificava o sexo do cidadão, Carolina Beatriz Ângelo e Ana de Castro Osório reclamaram na justiça o direito ao voto por preencherem todos os requisitos necessários, tendo apenas a primeira conseguido exercer por esta via o direito. ² Após o incidente, a lei foi reformulada, e foi especificado que apenas os chefes de família do sexo masculino poderiam votar. Referências BEAUVOIR, Simone de. O segundo Sexo. Trad. Sérgio Milliet. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009, vol. 1. ESPANCA, Florbela. Poesias. São Paulo: LiberArs, 2016. GORJÃO, Vanda. Mulheres em tempos sombrios: oposição feminina ao Estado Novo. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2002. NASCIMENTO, Michelle Vasconcelos Oliveira do. Trocando Olhares: desejo, amor e dor na poesia de Florbela Espanca. Rio Grande, RS: Pluscom editora, 2011. NASCIMENTO, Michelle Vasconcelos Oliveira do. Por uma estética trágica: os desdobramentos do feminino na poesia de Florbela Espanca. São Paulo: LiberArs, 2016. PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. Tradução: Ângela M. S. Côrrea. São Paulo: Contexto, 2008.

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Franco Bordino Buenos Aires – Argentina

Nasceu em 1989, em Buenos Aires. O poeta é autor de Los primeros indicios, livro com o qual recebeu, em Madri, o prestigiado Prêmio de Poesia Casa de América em 2018; o júri considerou que esta primeira obra de Bordino é “um livro meditativo, cujas fontes líricas nos fazem recordar poetas como Jorge Luis Borges”. Colabora com as revistas (em tradução, textos ensaísticos, resenhas e poemas) La traición del Hombro Topo, Hablar de poesia, Buenos Aires Poetry e Fénix. Os poemas enviados pelo poeta e apresentados nesta edição fazem parte do livro premiado; as traduções são de Pedro Fernandes de Oliveira Neto.

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As primeiras evidências A Luciana Não vi logo nossa casa. Vi primeiro a porta e vi a rude chave adormecida no vão da fechadura para que ninguém mais pudesse entrar. Vi o espontâneo fluir da palavra; o fogo que aquece e me ilumina tua pele adormecida e clara na penumbra, e o doce amor solícito que lavra o ouro silencioso dos dias felizes como um pão. Vi-te perdida no profundo rumor da leitura. Só vi a substância, vi a vida da casa, sem notar que suas tardias paredes são tão só uma figura.

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Bouvard e Pécuchet A Juan M. Dardón O tempo foi forjando-nos um código de devotos elogios, de indiscretas aversões. Deu-nos uma linguagem prodigiosa em rudes ironias e em secretas confabulações. Logo acabamos perdidos numa conversa que nunca termina. (Embora variemos os nomes dos livros, sua paixão e sua substância, são sempre as mesmas.) O tempo nos talha e vai nos desgastando segrega-nos do mundo de sofismas que desprezamos, corre assemelhando-nos. Sua injúria é nossa gris simplicidade. Seu involuntário dom, nossa amizade.

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Uma noite O íntimo silêncio da noite. O rumoroso rito das apostas. Na mesa, os absurdos macabros de um tétrico filósofo. O esbanjar minucioso do tempo na feitura de um tímido poema. Eu não sei o que vejo nestas coisas nem por que, triviais como são, em sua banalidade, se me suscitam coisas misteriosas de uma simples e sutil felicidade. Que me guardem o destino ou a Deidade de ambições aladas ou grandiosas. Só peço um rosário infinito de noites de trabalho literário

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Elogio à mesmice Não deverá ser muito ousada minha mente se dedico à mesmice um elogio. Mas para mim, esse monstro de lentas garras, que devora implacável os signos do amor e o brilho novo das coisas, e o interesse fugaz nas tarefas, ao invés de me oprimir, me reconforta e me acalma. Sinto-me livre onde as coisas se ajustam facilmente às minhas necessidades, e são as coisas que eu quero, ou, simplesmente, são minhas coisas. Recordo uma cidade quando desfiz inumeráveis vezes por suas ruas os maquinais passos que levavam de regresso à minha porta. Recordo apenas aquelas praças nas que alguma vez li com prazer, da morosa página de um livro, os versos memoráveis de um poema. Deixo a outros as viagens, o afã de aventuras. Prefiro os tênues prazeres da constância. No fim a viagem é uma só, e só um é o destino: a vida é a viagem; nós e nosso verdadeiro ser, somos o destino. A eternidade trabalha e simplificas as coisas; ajusta-as à sua essência, vai convertendo-as em signos. É a mesmice seu eco em nossa hora inútil e gasta. É o esquecimento das coisas presentes que carecem de importância Resta a nós decifrar o desenho que seus rasos traços nos esboçam. São o símbolo de uma felicidade íntima e verdadeira

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Lucas Grosso São Paulo Formado em Letras. Mestre em Literatura. E trabalha como professor. Escreve por vocação e já publicou em revistas como Zunái, e SubVersa.

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Carmen Dom José querido você está bravo porque tem ciúmes ou inveja ou raiva de mim que sou livre para amar e desamar com a velocidade de uma soprano leggero ou está com raiva de si próprio que não soube entender quando eu disse lá no primeiro ato “o coração é o filho cigano e aquele a quem eu amo -cuidado”? Vamos fazer igual o Cole Porter: Let’s do it, let’s fall in love! Dê uns beijos na Micaela enquanto eu enrolo o Escamilho com minha aria cigana – depois a gente troca. Abaixe essa faca e vamos dançar flamenco na festa da Violetta na taverna do Lilas Pastia e se você quiser eu te apresento Mimi e Brunilda e Lucia di Lammermoor. Também não vou reclamar se você fizer um divertissement com Pinkerton e o Fígaro mais tarde se você pagar uma bebida recitativa pra Ainda ou participar de um vira-vira com o Boris Godunov. O que você quiser Don José só não me venha com esse drama todo -que no fim das contas a vida é uma ópera cômica!

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Barrosa nº 1 Desde minha primeira infância sou Editor de alfarrábios inventados E observador de prédios silvestres Escriturário de gotas de chuva E cartógrafo de calçadas E todo o dia destilo litros de horas Nos filtros de um livro de poesias Tenho muitas profissões Muitas vocações Muitos trabalhos Nenhum porém é tão difícil Quanto esse De parar Para ver

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Augusto de Sousa Itajaí – Santa Catarina

Nasceu no Paraná e vive em Itajaí, onde trabalha como professor. É formado em Filosofia.

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Seis de copas Anunciada uma nova manhã, Corre a Vênus às pálpebras abertas e Atentas do insone entusiasmo. A estrela dançarina é perpétua Criança a brincar de desatar e Reenlaçar o fio espesso do caos.

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Oito de paus O viajante de órbita irregular Interrompe seu curso repentinamente Antes que alvoreça, uma chuva cai: Bastões flamejantes se desprendem da lua e Precipitam-se sobre a terra sonolenta. No limiar dos dois mundos só há silêncio e A intuição perpetua seu passeio, Felina silhueta negra sob o luar.

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Valete de copas Do suspenso andino nasce um regato, Moroso e inesgotável fio d’água Envolto por um cálice transbordante, Soerguido pelas mãos dum menino Lépido e esguio que avança sorrindo Sem medir o passo e sem pensar caminho. Ao seu toque tudo é novo e lívido e Aos seus olhos tudo é espanto.

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Juan Manuel Palomino Domínguez Brusque – Santa Catarina

É cineasta e escritor. Já foi professor de fotografia na Universidade de Buenos Aires e professor de cinema em instituições públicas como o Ministério de Desenvolvimento Social Federal na Argentina. Dirigiu um média-metragem e vários documentários. Ganhou concursos de fotografia, representando a Argentina como fotógrafo-jornalista especializado em Direitos Humanos. Atualmente dirige o projeto “Sarau na Câmera” com o qual participou em 2018 de cinco festivais de cinema ao redor do mundo, incluindo o Brasil. Escreve artigos de crítica de cinema, filosofia e sociedade para o jornal O Município, de Brusque. Também organiza debates sobre cultura, literatura e pensamento contemporâneo.

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I Talvez o segredo consista em pular nas águas agitadas, Sem saber nadar, e sem ninguém para te salvar, no caso, Por perto, Sem um galho do qual se aferrar, Sem nada mais do que o corpo. Ser apenas um corpo que pula e, Mesmo assim, Não cair no clichê de acreditar que tudo isso é um símbolo, De coragem. O negócio é pular no mar escuro se assumindo sombra, Que vai se amalgamar ao, Indefinível, Por sempre. Um fantasma que teme os furacões, A brisa mais leve, que teme ser invisível, etéreo, eterno. E lá no fundo, ininteligível E sem oxigênio, Aceitar tudo, sem esperança de glória, Para que, finalmente, A porta possa se abrir.

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III Nenhum poema desejado, Devém pássaro nascente nas mãos, Porém, gritos ocos de almas tempestuosas, Conformam aqueles reluzentes e extraordinários cristais, Que habitam nos espaços inconciliáveis da palavra invasora.

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V Abrir os sonhos, Abri-los para um outro, como quem oferece um fruto fresco, Permitir que a mão alheia penetre com seus dedos, Na carne húmida, suculenta, do teu sonho, Senti-la estrondosamente perfurá-lo E abri-lo, E o coração do fruto se revelando, nu, ante uma ávida boca, Uma boca alheia faminta.

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VII Chega até mim, Chega até mim, Sem roupa que adorne os ossos, E vamos caminhar, Só caminhar, Que a carne não significa nada para Deus, E significa demasiado para o Diabo, Saiamos dessa guerra, Que os nobres, Nunca entregam a recompensa, Por mais que prometam, e prometam, Isso nunca virá. Chega até mim, por favor, E pronto, que estou me quebrando, Para dentro. Que sou um gelo numa brahma sem gás, E sei que não serei suficiente, Para esfria-la. Mas quando o frio chegue, E as arvores secas pareçam rir, No horizonte, Eu serei o primeiro em pular pela janela, E ameaçar o vento, Para ele não entrar na casa.

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Carolina Pazos Petrópolis – Rio de Janeiro

Nasceu no Rio de Janeiro em 1988. É poeta, compositora, professora e doutoranda em História Social da Cultura. Publicou poemas nas revistas Oceânica, Subversa e Garupa. Participou da antologia do III Prêmio Literário Cidade Poesia (Associação de Escritores de Bragança Paulista – ASES) e da antologia virtual Isoporzinho Arrastão (Oficina Experimental de Poesia).

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Portuária Dormi com um árabe e acordei sonhando aeronaves entre cochilos esparsos foi-se a noite das distâncias Meus ossos desenham performances no mundo sob tua camisa perfeita azul como uma bandeira Maravilhoso beijo que não te dei Os corpos não penetrados Era tudo que eu desejava O insuspeito é aconchegante demais limpar-nos dos óbvios públicos caminharmos na penumbra de uma praça em construção O Amanhã Khalil é uma baleia branca esqueleto como nós essa estrutura difícil como escrever nossos nomes em poemas é um exercício de desidentificação.

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Moringa oleífera Um cortador de cana me contou como se limpa água no sertão sementes de moringa servem trituradas sedimentam o lodo no interior puro da cabaça se pode beber com confiança Enxadas batucam deitando folhas fracas de batata doce arrimo de pedra esse silêncio O lavrador e a taboa Esmagado por guindastes altos o horizonte vermelho fraturado campos de eólicas desorientando as aves de arribação migrantes como nós incrédulas como nós instintivas como nós buscando calor como buscávamos o amor interdito (hiato no tempo) abafado na pele como estufa seu riso cúmplice lavrado com restos de laranja Agora me parece que as rosas do deserto as flores de lavanda não são suficientes para impedir o esgarço Meu companheiro, o progresso quando picota as paisagens não tem cascalho que impeça o aborto das tradições.

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Daniel Jonas Porto – Portugal Autor de uma obra em contínua expansão, Daniel Jonas dedica-se, ainda a outros dois ofícios de seu interesse, a tradução e a dramaturgia. É autor, dentre outros, de Os fantasmas inquilinos, Sonótono (que lhe valeu o prêmio PEN de Poesia), Nó (Grande Prêmio de Poesia Teixeira de Pascoaes da APE), Passageiro frequente, Bisonte, Oblívio e Canícula. Na tradução é reconhecido seu trabalho por Paraíso perdido, de John Milton (editado no Brasil, inclusive), Shakespeare, Waugh, Pirandello, Huysmans, Berryman, Dickens, Lowry, Henry James e William Wordsworth. Nenhures é um de seus títulos para teatro. O poeta chega ao Brasil pela primeira vez através da obra Os fantasmas inquilinos, organizada por Mariano Marovatto e publicada pela editora todavia; os poemas exclusivos para esta edição integram esta antologia.

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No dia em que fui imenso o medo e a dúvida me contrataram e de essa hora em diante fui travando o coração de mim que era gigante. Um mar encapelado via eu em tudo e na mãe e na lixa das bainhas fui perpassando os lábios apenas permitindo as órbitas dos meus mundos como faróis globosos contra o piche, contra os sonhos tubulares que me esperavam. A noite que era límpida ainda e ainda branda achou-me e deu-me conchas e vieiras e búzios para amansar o latido dos mares e luzes para amar por entre as docas, ignorando eu ainda a podridão da escura água e a dimensão obscura da gangrena. Fui-me demorando em vielas de mim conquanto fosse lindo como os templos e deportando-me o tempo da tenda do holocausto num circo de mim mesmo me achei sorrindo ao espelho dos palhaços e da itinerância: Que é do menino lindo, que fizeste dele?, perguntavam-me sebes e címbalos e eu sem mais resposta que o arrojo dos mancos e dos anões e dos potros e dos gastos me achei perante mim sem a mim mesmo. Como Moisés, gaguejo desde então com o meu bordão, separando as águas do silêncio inscrevendo na terra a errância da passagem, a tinta fugaz do polvo que se enleou na fuga de si mesmo.

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Façamos um soneto, tu e eu. Será a tua parte nele escassa. Já que partiste, és parte do que passa, De tudo o que foi já e se perdeu. Façamos dessa figura a sua arte, Em busto, um monumento ao momento, Qualquer coisa de gesso, de cimento, Porque não de amarante, que não parte? Sejamos criativos, ó nictémera; Afinal, nada tenho contra ti. E bem que gostaria de aqui Espetar na coleção mais uma efémera. Se ficas cá ou não é lá contigo Que amigo não empata, diz-se, amigo.

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Daqui se enxuga a lágrima passada E o mar é um futuro cristalino E os barcos nele vogam e o salino Marulho suspendeu a carneirada. Parece tudo plano deste cais; A lousa azul no céu listrada a giz, Antípoda, marítima, feliz, Encobre a grande noite ao pobre arrais. Assim a inocência, além da calma, Não tenho horizonte além de si, Não vê o grande pélago que eu vi Que negro se agiganta além da alma. O puro coração só vê barquinhos. E tudo crê conforme aos seus caminhos.

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Dói-me o que não escrevi, e não tive em sorte, Como um condor que, abrindo as suas braças No mais profundo céu, chora as carcaças Do que não teve em vida nem em morte; Tudo o que não escrevi é passageiro, Estação que nestas folhas não detive; Do que escrevo sou escravo e o mantive Por fardo alijado ao mar negreiro (Que os versos são só palha e porém fardo). Sofri, mas foi por pouco que o sofri. Melhor: murchei. Fui flor e nem flori. Melhor errei. Honrosa a flor que é cardo. Escrever é dor. Esquecer dor é. Que vício! É uma hérnia na alma este ofício...

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Seus olhos de erva verdes ver não quis Por medo de outra vez correr querer nela – Adulto que não sou – saltar cancela Aos pastos onde os olhos meus os fiz. Herbívoros, meus olhos os desejam Carnívoros, doentes de uma febre, E caçadores creem uma lebre Já ver ali. São galgos. Já fraquejam. Que bela planície, área protegida Que um dia desguardei! A carabina Tratei de disparar sobre os meus dias... Pois, olhos, olhai bem por vós, que a vida É curta de vistas, velha flausina! Pascei a erva, o mais... são aporias...

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A estreia do livro de versos de Florbela, em 1919, foi saudada, no ambiente acadêmico da Faculdade de Direito de Lisboa e da parte de seus colegas, com muita má vontade e laivos de maledicência. José Gomes Ferreira, contemporâneo e admirador permanente da Poetisa, testemunhou as acusações que lhe foram dirigidas, e refere, talvez, a mais grave delas: que a obra da colega não era de lavra própria 2. Para além disso, havia ainda um fato incontornável de época: de se julgar pejorativamente e por antecipação qualquer mulher que, como ela, “assaltasse” uma Faculdade que, até bem pouco tempo, era privilégio apenas de homens3. Assim, essa hostilidade “de unhas e cardos”, com que ela foi recebida, se comprazia em atribuir o sentido de pecha deveras execrável àquele traço fundamental da criação artística: aquilo a que, depois, se convencionou chamar de “ansiedade da influência”, ou seja, a legítima interlocução da obra com a tradição literária de que se origina4. Era assim que tais comentários maldizentes modulavam, numa única inflexão, misoginia e plágio: o Livro de Mágoas se dava a ler aos acadêmicos contemporâneos de Florbela Espanca como um volume “licoroso para homens”, escrito por “um António Nobre de saias, de dor imaginária”. Segundo eles, além de Nobre, dividia também a autoria da obra da poetisa o colega e poeta Américo Durão... Anto e Durão foram, de fato, as duas benquerências poéticas de Florbela, cujo influxo sobre a sua produção ela jamais negou. Antes exibiu-o “com orgulho de artista suficientemente pujante para transformar em ouro tudo o que tocasse”. Ainda nos dizeres de Gomes Ferreira, ambos comparecem em sua obra apenas para desencadear, na alentejana, “o ímpeto da originalidade própria”5. É bem verdade que é possível ouvir, em toda a produção de Florbela, ecos de Anto. E logo porque se trata de uma poesia, como a dele, feita para ser escutada, para ser lida em voz alta, onde a sonoridade (a música e o ritmo) é o primeiro indício de sentido, já que o ouvido de ambos lhes é finíssimo e fidedigno. Depois, pela intimidade obtida junto ao leitor, logo arrebatado pelo tom coloquial e pela familiaridade com que ambos se achegam espontâneos ao receptor, graças a uma espécie de sinceridade que nada ostenta de postiço. E ainda pela funda raiz de panteísmo e de animização da natureza; pela ardente e excitável fantasia; pela acuidade dolorosa no trato geral da temática polar da vida e morte; pela fascinação da tópica popular; pela obsessão dos núcleos semânticos de Mágoa e Quimera; pela concepção da vida como um doloroso desterro; pela predileção do crepuscular. Enfim, pela tonalidade sentimental pessimista e 7faces • 103


melancólica que torna as páginas de ambos “sulcadas pelo arado da Dor e umedecidas pelo rocio da Tristeza”6. Mas alguém me dirá que, com alguma miúda variação, tais características, antes de serem imputadas propriamente a Nobre, poderiam integrar a obra de quaisquer poetas finisseculares portugueses. É bem verdade. Só que ocorre que Florbela escolhe a Anto. E com ele vem, acompanhando-o, toda uma constelação poética de fin-de-siècle, aquela que vai irradiar para ela (sem que disso Florbela tome praticamente consciência) a tradição garrettiana, o embate entre a poesia transcendente de Antero e a inspiração oceânica de Junqueiro, a reenvestidura da tonalidade maldita baudelaireana, certos relâmpagos de Musset, alguns absintos schopenhauereanos, etc, etc. Na sua primeira correspondência intelectual mais alentada, nas cartas à Júlia Alves, Florbela confessa, repetidas vezes, entre julho e outubro de 1916 (quando contava ainda 21 anos), sua completa e entusiástica predileção por Nobre. Reparo que esta fase é decisiva para a formação poética da escritora. Neste momento, ela trabalha o seu primeiro manuscrito, o Trocando Olhares (composto de 145 poemas e 3 contos), donde, mais tarde, emigrarão diferentes projetos: precisamente o Trocando Olhares, o Alma de Portugal, o Minha Terra, Meu Amor, O Livro d’Ele; duas antologias, a Primeiros Passos e a Primeiros Versos, bem como a sua futura estreia poética: o Livro de Mágoas7. É, portanto, simultaneamente à produção desses poemas, que, de início, de Vila Viçosa (carta sem data, escrita entre 19 e 28 de julho), Florbela indica o livro de Anto para a leitura de Julinha. Ela o sublinha, primeiro, como um consolo, como um daqueles volumes confortam seus leitores por se mostrarem em igual sintonia de sofrimento quanto aqueles. Depois, porque se perfaz como um amigo receptivo de que elas, mulheres, necessitam tanto para identificarem os seus sentimentos. E já agora Florbela o chama de “meu”: Não te achas um pouco consolada? E dizes tu que os livros te não consolam?! Que te irritam?! Que blasfémia, minha Júlia! Pois há lá melhores amigos?! Os livros, mas os livros destes em que a alma dos bons anda sangrando por todas as suas páginas; livros que eu beijo de joelhos, como se enternecidamente beijasse as mãos benditas dos que os escreveram! Lê os versos de António Nobre, o meu santo poeta da Saudade. 7faces • 104


Em carta posterior (de Pavia, a 22 de agosto), Florbela discorre sobre a condição feminina, realçando a sua própria que é, afinal, muito diferenciada daquela das outras mulheres suas contemporâneas, que se comprazem em se ocuparem do lar e das prendas domésticas. E é aí, nesse contexto, que então Anto aparece novamente, e que ela o escolhe como o seu companheiro de lágrimas: Zango-me comigo própria, tento fazer qualquer coisa, mas a leveza aérea das sedas, a fluidez ideal das rendas, fazem tremer-me as mãos que não tremem nunca ao folhear os livros que mais fatigam toda a gente, irritamme e maçam-me a um ponto que tenho de atirar com aquilo tudo para outro regaço mais de mulher, mais acariciante, mais doce e com todas as carícias e doçuras que o meu não teve, não tem e não terá nunca. Que desconsolo ser assim, minha Júlia! Ter apenas paciência para penetrar os arcanos duma alma que se fecha nas páginas dum livro; ter apenas gosto em chorar com António Nobre, pensar com Victor Hugo, troçar com Fialho de Almeida. Na mesma linha de discussão do feminino, a propósito de um volume de poemas que Julinha lhe enviara para ler, o de “Virgínia Águas”, Florbela (em carta de Vila Viçosa, a 2 de setembro) discerne entre aquilo que elas, mulheres, redigem, e aquilo que os homens, poetas, escrevem. E Anto é novamente visado por ela, já então como um mestre: Li o livro e não me desagradou, embora aquela poesia seja tudo quanto há de menos artístico e literário; é como a minha, talvez, e como a de dezenas de mulheres na nossa situação. Poetisas por instinto, sem mestres, sem escola, sem método, nem norte, podemos cantar, sonhar e chorar, nunca fazer versos! Versos chamo eu aos de G. Junqueiro, aos do Augusto Gil, aos do António Nobre. São lá versos aquilo que nós escrevemos!... E na carta seguinte (de Vila Viçosa, sem data, mas enviada após 2 de setembro), Florbela escancara definitivamente sua idolatria por Nobre. Ela o considera, então, o “único”: 7faces • 105


Eu confesso que em matéria de versos o único que me faz chorar, o único que é para mim Poeta, é António Nobre. Não é desdenhar o resto, pois sei que temos adoráveis poetas, mas... o Anto é o único que eu sinto e por isso é o único que eu amo. Numa das derradeiras missivas enviadas à Júlia Alves (de Évora, em 21 de outubro), devaneando sobre a convivência que encetariam se pudessem se conhecer pessoalmente e se pudessem passar algum tempo juntas, Florbela realça que, dentre todos os poetas que admira, ela havia de ensinar-te a amar o mais suave de todos: o meu poeta da Saudade, o meu triste António Nobre! Ele tem versos que nos entram na alma, ritmos e harmonias que ficam fazendo parte do nosso ser íntimo. Num universo epistolográfico, portanto, em que são comentados outros poetas, tais como Augusto Gil, Junqueiro, Victor Hugo, Antero, Goethe, Júlio Dantas, Silva Pinto, José Duro, Cesário Verde, Antero de Figueiredo, Fialho de Almeida, Correia de Oliveira – António Nobre pontifica como o mais amado, o único Poeta em maiúscula, o único que a toca intimamente com suas harmonias e ritmos, com sua tristeza e suavidade. É o santo que a consola, cuja dor se identifica com a dela - aquele cuja obra acaba fazendo parte de si mesma, do seu ser mais íntimo. Por esse tempo, Florbela já nomeara a Anto num poema datado de 18 de janeiro de 1916, intitulado “Dantes...”, transcrito no seu primeiro manuscrito. E também já dedicara a ele, em 21 de junho (portanto, na altura da primeira das referidas cartas à Julinha), o soneto “A Anto!”, ali presente e em seguida publicado em Notícias de Évora em 3 de agosto do mesmo ano. Na edição póstuma de Juvenília, Júlia Alves, que o recebeu de Florbela, vai inseri-lo nessa primeira publicação de 1931. Acho, entretanto, bizarro que, no conjunto do manuscrito inaugural Trocando Olhares, tal poema seja um dos poucos a não estarem ali apontados para participarem de algum dos projetos poéticos ou de alguma das antologias que se originaram desse caderno. Pressagiaria Florbela que esse poema assim tão direto pudesse se tornar uma

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espécie de “prova” do tão temido “plágio”?! Evitaria expô-lo por que razão?! Em dois poemas de Livro de Mágoas, “Languidez” e “Impossível”, Anto também comparece nomeado textualmente, isto sem referir por toda a obra de Florbela, como já apontei, a presença implícita da leitura que ela efetuou da obra dele. Vejamos, por exemplo, como ela reatualiza aquele “signo mofino” que rege a vida do “menino” em Só – um dos preciosos motivos de Anto. Em António Nobre, tal enunciado, contido logo nos poemasepígrafe do Só (no segundo “Memória”) vai concorrer como um anátema, no transcorrer do livro, para a conclusão de que melhor fora não ter nascido, do que errar, como “degredado / Por esta Costa d’África da Vida.”8 Se acrescentarmos a este traço, a sensação de despaisamento e de nostalgia do passado perdido, que perpassa toda a obra de Nobre – nos daremos conta de que eles também perfazem a travessia poética de Florbela. Nesta, a constatação de “deserdada” é sempre muito forte e patética porque remete ao sofrimento ditado pela ausência de uma “outra vida”, pela saudade funda do “país” do qual se separou ao nascer. É isso que a torna “exilada”, estrangeira, “degredada”, enfim, uma “pobre de longe” (p. 251).9 Mas, desigual a Anto, o passado de que Florbela sente nostalgia é, digamos assim, “transcendental”. A sua outra vida transcorreu, como ela sublinha, em “outras esferas” (p. 136), em “Além-Mundos ignorados” (p. 254), quando a Poetisa era “Essas que eu fui” (p.293). Tal existência concerne a um “País de lenda”, a um “Reino” de que ela era “Infanta” (p. 233), que se converterá, enfim, no “País de Luz” (p. 267) que Florbela tanto almeja alcançar, vislumbrável apenas na terra do “Não-ser” (p. 243), espaço em que habita a Senhora Dona Morte, a “Iluminada” (p. 300). É assim que o nascimento se afigura, para ela, como um corte abrupto que, injustamente, a desligou da sua fonte primeva e a baniu para o seu “desterro”: Dum estranho país que nunca vi Sou neste mundo imenso a exilada. (p. 180) Florbela Espanca é por isso mesmo, como considero em outra parte, uma cidadã do aquém: ela pertence a uma nação que é anterior à vida e à qual se sente imantada, puxada para ali regressar. O “estranho mal” (p. 178) de que nos fala decorre, pois, de ter-se 7faces • 107


desgarrado de suas origens, de ter-se distanciado dessa terra primeva e, portanto, de ter perdido a sua cidadania, a sua nacionalidade cósmica. Tudo que sua ânima atormentada almeja é reconduzir-se ao cosmos. A dor de Florbela, diferente da de Anto, é aquela do desligamento da mãe primordial, e o panteísmo (a irmandade com as coisas da natureza, o prolongar-se e o ecoar-se nos elementos, numa sintonia analógica com tudo quanto existe) lhe aparece, por último, como a maneira de recuperar a “inocência das coisas brutas” (243), de regressar às origens. Eis por que concebe sua alma como uma urna, como o túmulo profundo Onde dormem, sorrindo, os deuses mortos! (p.250)10. Outra releitura que Florbela realiza para si, a partir da obra de Anto, é aquela que rege a natureza do poeta que ambos julgam ser. Em Anto, o fado que o norteia nada esconde sobre a sua condição: do alto do firmamento, diz-lhe a estrela (em “Viagens na minha terra”) – ´Serás Poeta e desgraçado!’ Assim se disse, assim se fez. (p.76)11 Além de “desgraçado”, o poeta é também um “torturado”. Anto refere-se ao Só como ao “Missal d’um Torturado” (p. 143), além de considerá-lo “o livro mais triste que há em Portugal”. Não é possível deixar de notar no soneto de abertura da estreia literária de Florbela, no poema “Este livro...”, tais índices (cuja recorrência vocabular é semelhante) que, tanto em Anto quanto nela, se tornam reincidentes por toda a respectiva obra. Este livro é de mágoas. Desgraçados Que no mundo passais, chorai ao lê-lo! Somente a vossa dor de Torturados Pode, talvez, senti-lo... e compreendê-lo. (p. 131) Tal como em Anto, o livro de Florbela é uma “Bíblia de tristes”, é um “Livro de Mágoas”, de “Sombras”, de “Névoas”, de “Saudades”,

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de “Dores”, de “Ansiedades”, e o terceto final convida o leitor a que o leia chorando: Irmãos na Dor, os olhos rasos de água, Chorais comigo a minha imensa mágoa, Lendo o meu livro só de mágoas cheio!... Florbela também se apropria da “Torre de Anto” e do seu “Castelo”, dando-lhes a direção que lhe interessa. A Torre vai se converter, por fim, em signo absoluto de ascensão ao sublime, em orgulho de águia, em espaço para além do sonho, em lugar de onde ela se desprende da vida e de si para ser a “Perdida”, “a que se não encontra”, a “Intangível”, a “Turris Ebúrnia”, e, então, a “Mulher” - na sua encarnação de humanidade absoluta, sendo, pois, aquela que acolhe, nos seus braços, “o mal da vida” (p. 240)12. Ora, enquanto encarnação humanizada da Virgem Maria, Florbela não seria o feminino daquilo que, em Anto, ela concebe como o “santo”? Vejamos. De início, a Torre é, ainda, no livro de estreia, o ponto de encontro de Florbela com os poetas mortos, o lugar onde se falam e trocam mágoas. Neste caso, a sua Torre é “de névoa” (p. 137). No entanto, a partir daqui, a Torre vai emprestar a sua arquitetura ao Castelo, emblemática da “Dor”, e acolher nele a “Castelã da Tristeza” que, ali, há de viver sozinha, preparando-se para a clausura, visto que já lê, ...toda de branco, um livro de horas, À sombra rendilhada dos vitrais. (p. 134). Dor e solidão transmutam, portanto, a Torre e o Castelo (de Anto) em Convento. E o soneto “A minha Dor”, ainda do Livro de Mágoas, o esclarece sobejamente: A minha Dor é um convento ideal Cheio de claustros, sombras, arcarias, Aonde a pedra em convulsões sombrias Tem linhas dum requinte escultural. (p.138) A partir daqui, portanto, Torre e Castelo se confundem, dando arquitetura ao Convento, e a Poetisa, de Princesa e Infanta, se investe de Monja, sacramentando-se, no segundo livro, na Sóror que, depois, em Charneca em flor (1931, póstumo), há de libertar-se dessa cela monástica. 7faces • 109


Nesta transição, todavia, é preciso não perder de vista que a Sóror Saudade (e o título dessa obra de 1923 é Livro de Sóror Saudade) pode ser concebida como uma espécie de encarnação feminina de Anto. Porque, no Só, também Anto (o estudante) troca a sua “capa” pelo “burel” – daí que o “santo” que Florbela vislumbre nele não esteja tão distante da verdade poética. No poema 13 de “Sonetos”, no movimento de derrocada que o rege, o signo da Torre reaparece para ser tombado por terra enquanto se erige o Claustro: Falhei na Vida. Zut! Ideais caídos! Torres por terra! As árvores sem ramos! Ó meus amigos! todos nós falhamos... Nada nos resta. Somos uns perdidos. Choremos, abracemo-nos, unidos! Que fazer? Por que não nos suicidamos? Jesus! Jesus! Resignação... Formamos No Mundo, o Claustro-pleno dos Vencidos. Troquemos o burel por esta capa! Ao longe, os sinos místicos da Trapa Clamam por nós, convidam-nos a entrar: Vamos semear o pão, podar as uvas, Pegai na enxada, descalçai as luvas, Tendes bom corpo, Irmãos! Vamos cavar! (p. 155) O convite final do soneto de Anto, que acena para uma mudança radical de vida, da “capa” para o “burel”, da doença para a saúde e, invertidamente, da vida espiritual de poeta (que falhou), para a vida material do trapista (que pode ser promissora) – põe, como na Florbela posterior à vestição, o foco sobre o “corpo” (sem considerar o convite para o “suicídio”...) É certo que, em Anto, no contexto em que este soneto está inserido, a ironia perpassa a convocação final: trata-se de “cavar”, sim, mas para fazer que tipo de “cova”?! Para plantar? Para encerrar o corpo? Enquanto em Anto (ainda que patética ou dubiamente), o corpo seja apreciado no domínio da cultura física, valorizado enquanto força de trabalho, em Florbela, a estamenha, o “burel”, vai tratar de 7faces • 110


escondê-lo e de abafar as suas legítimas prerrogativas - os seus desejos carnais. No poema “Renúncia” do Livro de Sóror Saudade, a poetisa, em plena mocidade, presa no “tranquilo convento da Tristeza”, com as “magras mãos em cruz”, vê o “burel” como a “mortalha” que lhe encerra o corpo, gelando-o, enquanto que, Lá fora, a Lua, Satanás, seduz! Desdobra-se em requintes de Beleza... É como um beijo ardente a Natureza... A minha cela é como um rio de luz... (p. 194) Não aproximo, de propósito, “o lua”, que Anto diz ser, a esta sedutora “Lua, Satanás” de Florbela. Mas até deveria, pois que simbolicamente um remete a outro. Apenas lembro que a Natureza, em Anto – tal como comparece também em Florbela – está, em muitos momentos, em perpétua palpitação mística, o que é um provável disfarce metafórico da libido encarcerada. Um exemplo desse comportamento poético é a maneira popular como Anto promove alegorias conventuais entre os elementos que, já em Florbela, são reatualizados em alegorias nupciais. Um exemplo do procedimento de António Nobre é o poema número 1 do “Lusitânia no Bairro Latino”13, onde o poeta desenha o mar como um convento de águas, como um verde Convento, Cuja Abadessa secular é a Lua E cujo Padre-capelão é o Vento... (p. 31). Em “Os Cavaleiros” da “Lua Quarto-Minguante” (e as luas são nesta obra profícuas, sendo a “Lua Cheia” título de um outro capítulo do Só), Anto chama a Lua de “Convento do Ar” (p. 117), e assim por diante. Florbela, no último poema existente no seu manuscrito inicial, intitulado “Noivado Estranho”, cria ali um “místico noivado” entre a Terra e o Luar, entre uma feiticeira e um monge. Nela, a lua é masculino (como “o lua” antoneano): é o Luar que “inunda a minha rua toda inteira”, que é “lenda de balada” – O Luar vem cansado, vem de longe, Vem casar-se co’a Terra, a feiticeira Que enlouqueceu d’amor o pobre monge... (p. 122) 7faces • 111


À luz deste poema escrito em 30 de abril de 1917, podemos compreender a contento a referência de 1923 à “Lua, Satanás” do poema “Renúncia” do Livro de Sóror Saudade, deste, cuja poetisamonja encarna, segundo creio, o feminino do Anto-trapista. A semântica, donde se evade a tentadora Lua que, do contexto de Trocando Olhares (ainda de tonalidade puramente antoana) vai habitar o segundo livro da poetisa - é, portanto, mística, como o era, aliás, no Só. De resto, há ainda em Florbela, casos muito notórios da possessão de Anto. Lembro que o “menino e moço” (de que ele se apropria de Bernardim Ribeiro) presente em tantos passos do Só, reaparece nela – e com muita propriedade! – quando a poetisa se dedica, num soneto, à terra em que viveu, “à minha cidade, como eu soturna e triste” (é assim que Évora fica identificada na dedicatória), cidade que pertence à região natal do próprio Bernardim – o Alentejo. No terceto final de “Évora”, Florbela diz que há ali ... Em cada viela o vulto dum fantasma... E a minh’alma soturna escuta e pasma... E sente-se passar menina-e-moça... (p. 269). Num outro poema cuja primeira versão se encontra no manuscrito Trocando Olhares, depois publicado em Livro de Mágoas, Florbela cita, entre aspas, um verso de Nobre que se encontra no “Sestança” de Despedidas, e que assim se encerra: Bendito seja Deus que me escutou! Bendito seja o Pai que te há procriado! Bendita seja a Mãe que te gerou!14 O referido soneto de Florbela, o “De joelhos”, começa de maneira semelhante, e – atenção! – com aspas: ‘Bendita seja a Mãe que te gerou.’ Bendito o leite que te fez crescer. Bendito o berço aonde te embalou A tua ama, pra te adormecer! (p. 152)

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Mas talvez a mais espantosa apropriação que Florbela empreende do Só seja um verso que ela torna todo seu e que é marca do seu arquétipo de leveza e de busca de altura. Lê-se no Anto de “Purinha”: Manhã cedo, com luar ainda no Firmamento, Quando ainda no Céu não bole uma Asa (p. 47). Lê-se na Florbela de “Pobre de Cristo”: Minha terra de tardes sem uma asa, Sem um bater de folha..., a dormitar... (p. 251). Mas é tempo de nomear a diferença fundamental entre ambos. Em todo o Só, com exceção apenas de “Purinha”, nenhum outro poema faz referência direta, como ocorre em Florbela, à paixão ardorosa ou ao amor arrebatador. Como o reitera Eduardo de Souza, “no Só não há uma mulher a cujos pés mimosos o poeta deponha numa galante, cavalheiresca, suprema oblata, o colorido dos seus versos, a música das rimas”. Segundo ele, apenas Purinha reina leve, cheia de véus, “como um suspiro brando que se esvai, perdendo-se na aragem”, pois que simboliza a Mulher universal.15 Na restante obra de António Nobre, em Despedidas, há, no entanto, poemas dedicados à figura feminina: à irmã, à Virgem Santíssima e a algumas outras mulheres com as quais parece ter convivido nos tempos de sanatório na Suíça, na França, na Madeira, em Portugal. Todavia, nenhum dos poemas ostenta traços do entusiasmo ou da obsedante afeição amorosa impetuosa que perpassam os poemas de Florbela. Os de Anto figuram, ao pé dos dela, como desmaiados arroubos onde o amor se encontra em estado espiritualizado e assexuado. Quanto à maneira como Florbela concebe a Anto nos dois poemas do Livro de Mágoas em que o cita, não é difícil de se reconhecer a proveniência da qualificação que ela lhe confere. Em “Languidez”, é o pendor crepuscular de Nobre o invocado, e que ela adotará como seu: Tardes da minha terra, doce encanto, Tardes duma pureza d’açucenas, Tardes de sonho, as tardes de novenas, Tardes de Portugal, as tardes d’Anto... (p. 153)

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Tais horas são de “fumo e cinza”, “horas de dor”, traço que se repete na citação de António Nobre no soneto que encerra o Livro de Mágoas. Aliás, a moldura que abre e fecha este Livro é toda ela antoana. A obra tem início com o já referido “Este livro...”, onde Florbela nomeia implicitamente o Só, na medida em que convida os seus leitores a folhearem, agora, o seu “livro só de mágoas cheio!...” (p.131). E encerra-se com o soneto “Impossível” que, explicitamente, referindo António Nobre, acentua a superioridade da dor de Florbela sobre a dele: Os males d’Anto toda a gente os sabe! Os meus... ninguém... A minha Dor não cabe Nos cem milhões de versos que eu fizera!... (p. 162) Bem. É hora de explicitar que, no transcorrer da poética de Florbela, vai-se formulando uma “estética da dor”, certamente de raiz antoana. Todavia, Florbela toma egoisticamente a dor de Anto – a dela não cabe nos cem milhões de versos que escreverá! –, e a concebe enquanto específico dote feminino, enquanto matéria-prima capaz de criar, apurar e transfigurar o mundo, enquanto única e autêntica senda de conhecimento reservada à mulher. Esta é, aliás, a sua maneira de transmutar em força produtiva a histórica inatividade social da mulher.16 E já agora posso regressar ao manuscrito Trocando Olhares. Como citei, a poetisa já nomeava explicitamente a Anto em 18 de janeiro de 1916. “Dantes...” é um extenso poema em quartetos decassílabos, que encerra uma canção de ausência, visto que se nutre da lembrança dos fulgores da perdida mocidade. O poema versa, assim, sobre um hábito do casal, o de passeio ao campo, e se realiza como um jogo especular entre o que se passa na intimidade do par amoroso e aquilo que se surpreende na natureza. Ao entardecer, são as rosas que coram envergonhadas, os ninhos que ganham mais palpitação; inversamente, as canções cantadas pelo amado fazem as relvas da campina sonhar e a cotovia se imobiliza para escutá-lo. É nesse ambiente de grande harmonia telúrica que são ouvidos, então, os versos de Anto: Olhando tanta estrela, tu dizias: Olha a chuva de prata que nos cobre! Depois, numa expressão amarga e branda 7faces • 114


Recitavas, chorando, António Nobre!... Eu tinha medo, um medo atroz infindo De passear pelos campos a tal hora, Mas, olhando os teus olhos cintilantes, A noite semelhava uma aurora! (p. 29) É, primeiro, por este canal (que o poema em causa expressa tão bem!) - o da visão encantatória própria da cultura popular e oral - que a poesia de Florbela se irmana à de Anto. De maneira que não é gratuitamente que o poeta português é invocado nesse contexto. De fato. À imitação das trovas de “Para as raparigas de Coimbra”, de “Entre Douro e Minho” do Só, e dos versinhos de “Dispersos” do Despedidas – Florbela produz, no seu primeiro manuscrito, quatro extensos conjuntos de quadras nutridas por tal concepção de mundo, que se intitulam “As quadras dele”. Cito (apenas para exemplificar) uma dessas quadras de Anto: Os teus peitos são dois ninhos Muito brancos, muito novos, Meus beijos os passarinhos Mortinhos por porem ovos. (p.58) Cito (do mesmo modo) uma dessas quadras de Florbela: Teus lábios cor das papoilas, Vermelhos como o carmim, Não são lábios nem papoilas São pedaços de cetim. (p.41) Creio que o leitor se apercebeu que tenho vindo, muito fragmentariamente, aliás (e por diferentes instâncias), buscar surpreender a maneira como Florbela vai traduzindo, para si, a obra de António Nobre, ao mesmo tempo em que tenta incorporá-la como sua. Deixei por derradeiro, no entanto, o que julgo ser a culminância quase explícita desse processo e que, paradoxalmente, surge quase nas suas primeiras criações, como a grafar deveras e permanentemente essa ascendência, a ponto de deixá-la como um timbre ao qual não será preciso retornar. Trata-se, eu diria, de uma declaração de princípios, de uma profissão de fé – de uma clave que dará o tom que conhecemos à sua obra. E o soneto também nos oferta 7faces • 115


a luz inteiriça sobre a função da obra de Anto junto à sua estreante poética. Trata-se de um poema que tem por título “A Anto!” - o nome íntimo que Nobre se outorga, soneto que se encontra, na nossa Poetisa, ainda no manuscrito inaugural Trocando Olhares. Situado aí em 71o. lugar, o soneto dodecassílabo foi produzido, como já adiantei, em 21 de julho de 1916. Nele, Florbela enuncia (é verdade que um tanto enigmaticamente) que tipo de influxo sofre a sua locução poética com Nobre. Assim, o poema versa sobre as tristes e estranhas vicissitudes de Anto que, de maneira nenhuma a maltratam, despertando-lhe antes a adoração que nutre pelo poeta português. O seu procedimento, então, é o de reconhecer e recolher os “soluços” espalhados por toda a obra dele, amalgamando-os numa unidade em que, comungando-os, parece lhe fornecer o estatuto da sua própria obra, também ela de mágoa. Eis o soneto “A Anto!”: Poeta da saudade, ó meu poeta qu’rido Que a morte arrebatou com o seu sorrir fatal, Ao escrever o “Só” pensaste enternecido Que era o mais triste livro deste Portugal. Pensaste nos que liam esse teu Missal, Tua Bíblia de dor, o teu chorar sentido, Temeste que esse altar pudesse fazer mal Aos que comungam nele a soluçar contigo! Ó Anto! Eu adoro os teus estranhos versos Soluços que eu uni e que senti dispersos Por todo o livro triste! Achei teu coração... Amo-te como te não quis nunca ninguém Como se eu fosse ó Anto a tua própria mãe Beijando-te já frio no fundo do caixão! (p. 104) Reparem que Florbela atesta ter lido o “Missal”, a “Bíblia de dor”, e ter comungado, com Anto, no “altar” em que ele deposita essa mesma mágoa. É, portanto, de início, como leitora, que ela se dá a conhecer neste soneto. Mas, em seguida, no primeiro terceto, transmutada já em produtora, ela une para si os soluços que sentiu dispersos na obra do 7faces • 116


ancestral, desenhando, afinal, o “coração” de Anto. Assim: a essência da poesia de António Nobre é aquilo que Florbela, tendo captado como sinais espalhados na obra dele, ajuntou para si. Esse esforço de união de tais sintomas é um trabalho produtivo, de maneira que não é difícil convir que o “coração” de Anto é metáfora para a obra poética que Florbela está preparando, ou seja, é a formulação que ela elabora da obra dele enquanto obra sua. Identificado o Só como o livro da dor, resta à obra que Florbela está realizando ser concebida como a da “mágoa” (tal como ela o dirá com todas as letras no soneto introdutório do seu futuro livro, no já referido poema “Este livro...”). Reparo, pois, como, já em 1916, começa a se delinear para a nossa Poetisa, a partir da leitura da obra de Anto, o seu Livro de Mágoas – aquele que marca a sua estreia poética em 1919. Todavia, chama mais que tudo a atenção no soneto “A Anto!”, pelo que nele há de cifrado, o último terceto: aquele que versa sobre a construção do devaneio final de Florbela em torno do poeta. Refaçamos a leitura. É bem verdade que o soneto discorre sobre um encontro atemporal entre afinidades, entre semelhantes maneiras de apreensão da realidade. Entretanto, já nesta última estrofe, o forte sentimento que Florbela dedica a Anto parece ultrapassar tal defasagem temporal (entre ambas as biografias) porque, muito embora ela o beije morto, o amor maternal (que lhe dedica no seu soneto) nega o fato de tê-lo apenas alcançado retardatariamente, em atraso. É nessa efabulação derradeira que, a meu ver, se encontra a chave do enigma que liga familiarmente Florbela a Anto. A imagem que constrói para si, nesse momento, é muito bizarra: Florbela não se vê como a irmã ou como a filha de Anto - mas como a mãe dele. Tal incongruência é forjada por meio de poderosos contornos simbólicos. Florbela leu e releu muitas vezes o Só, e sabe, portanto, de sobejo, que a mãe de Anto não poderia tê-lo beijado depois de morto, visto que no transcorrer do livro, o poeta nos dá a conhecer que sua Mãe desapareceu muito cedo da sua vida. Portanto, essa imagem de Mãe de Anto (que Florbela criou para si), vergada sobre o cadáver do poeta, nada tem de verossímil – e ela bem o sabe. Então, por que assim devaneia? Que fantasia a insufla? Quererá ela substituir uma ausência profunda na vida de António Nobre? O fulcro do soneto de Florbela se alimenta sobretudo da leitura de duas peças de Nobre que se localizam logo na abertura do Só: os dois poemas intitulados “Memória”. É neles que Anto faz menção à

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“mágoa”, que será adotada por Florbela. No segundo deles, Nobre pede ao leitor que tenha cautela, não vos faça mal... Que é o livro mais triste que há em Portugal! (p.10), e já sabemos que o “A Anto!” é, dentre outras coisas, uma resposta a tal advertência. Ora, é precisamente nestes dois poemas que António Nobre tematiza o desaparecimento prematuro da Mãe, que surge, no primeiro, por meio da notícia de que ela foi ali à “Cova” e que ainda não voltou, informação que se repete no segundo deles - quase com as mesmas palavras. Se tais dados comparecem enquanto atestado poético de uma biografia, em outra instância, ainda no primeiro dos poemas “Memória”, há uma menção oculta à figura materna que, todavia, não se liga de imediato à formulação anterior. Nobre diz: António é vosso. Tomai lá a vossa obra! ‘Só’ é o poeta-nato, o lua, o santo, a cobra! Trouxe-o dum ventre: não fiz mais do que o escrever... (p. 7) Sem aprofundar o sentido fecundíssimo das diferentes autodesignações de “lua”, “santo”, “cobra”, focalizo o fato de que o Só veio de um ventre, tendo Anto o escrito apenas. Ora, é notável que Florbela, no soneto de abertura do Livro de Mágoas a que já me reportei, refira um mesmo ventre, que é, então, o dela. E que, não por acaso, este soneto (que tem por título “Este livro...”) refaça, por sua vez, a leitura de ambos os poemas de Anto, apodando, já então de “Bíblia de tristes” e de “livro (...) de mágoas” não mais ao livro de Anto (como ocorria no soneto de 1916) - mas sim ao livro que, agora, Florbela identifica como o seu próprio em 1919. Ela assim o assegura no primeiro terceto de “Este livro...”: Livro de Mágoas... Dores... Ansiedades! Livro de Sombras... Névoas... e Saudades! Vai pelo mundo... (Trouxe-o no meu seio...) (p. 131). O “seio”, o ventre de que fala, é então agora o seu, o de mulher, o de Mãe emprenhada pela poesia. Muito provavelmente, o mesmo ventre daquela mãe que, graças a um processo emblemático de 7faces • 118


espelhamento, acreditava (em “A Anto!”) ser a mesma entidade presente no poema de António Nobre – aquela mãe secreta, cujo ventre (segundo o “Memória” de Nobre) gerou o Só de Anto. Apenas esta hipótese pode explicar, a meu ver, o enigma do derradeiro terceto de “A Anto!”. Figurando a dispersão numa unidade, ela se permite interpretar-se como “Mãe”, na medida que, inversamente, pode ser dita a unidade primeira que se espalhou nos versos dele. O “seio” contido em “Este livro...” (aquele que dá à luz ao Livro de Mágoas) é, portanto, o mesmo “ventre” (que deu à luz ao Só em “Memória”), o daquela Mãe que, então no soneto que Florbela lhe escreveu em 1916, beija o filho, já frio, no caixão mortuário. O que leva a crer, em última instância, que a poetisa Espanca parece ter – ao menos em devaneio poético (e simbolicamente!) - a convicção de que, de fato, detém (como mulher) a matriz da dor de António Nobre. Notas 1

Sob o título “Bela e Anto”, publiquei (sobre esse assunto) um texto na revista Voz Lusíada. Revista da Academia Lusíada de Ciências, Letras e Artes n. 17. São Paulo/Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, em 2002, p. 48-66. O que agora apresento aqui é uma refundição mais aprofundada daquele. 2

Consulte-se o delicioso texto “Encontro com Florbela”, incluído em A memória das palavras ou O gosto de falar de mim, de José Gomes Ferreira, publicado em Lisboa, pela Portugália, em 1966, às páginas 233-240. 3

Regina Quintanilha foi a primeira mulher portuguesa a se formar advogada, e isso apenas em 1913, e, ainda assim, porque seu pai, juiz formado pela mesma Universidade de Coimbra, tinha certa ascendência sobre a academia, conhecendo os meandros por onde conduzir a filha. Assim, para que pudesse cursar a Faculdade de Direito desta Universidade, onde foi colega de Salazar e do futuro Cardeal Cerejeira, Regina Quintanilha teve de impetrar um processo junto ao Conselho Universitário. Na época em que Florbela estuda na Faculdade de Direito de Lisboa, em 1919, havia 347 alunos matriculados e, destes, apenas 14 eram mulheres. Em 1910 caíra a lei que impedia a sua entrada no ensino superior, data em que Carolina Michaëllis de Vasconcelos se torna a primeira mulher a exercer, em Portugal (e com que talento!), o cargo de professora universitária. 4

A expressão que utilizo é, como se tornou notória, o título do livro de Harold Bloom, The anxiety of influence (a theory of poetry), New York, Oxford University Presse, 1973, hoje suficientemente traduzido e divulgado no Brasil. Bloom vislumbra aí uma história das relações infrapoéticas, decorrente das possíveis leituras e misreadings que o autor elabora da obra dos seus precursores, e cujo resultado é a sua própria obra. De resto, a noção

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de obra literária como intertexto, como produtividade (como espaço onde intervém uma multiplicidade de enunciados de outras obras, expostos à permutação, absorção ou transformação, enfim, como lugar onde vários enunciados se cruzam e se neutralizam), na trilha aberta por Eliot, Jauss, Kristeva, que chega a Marjorie Perloff (O gênio não original) e a Walter Moser (A cultura da reciclagem) – esvazia o ultrapassado conceito de “plágio” que, ainda na década em pauta, vigorava. 5

Acerca do influxo da obra de Durão sobre a jovem poetisa, leia-se o meu “A interlocução de Florbela com a poética de Américo Durão”, publicado na Colóquio/Letras número 132/133 (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, abril-setembro de 1994, p. 99-110). Indico, ali, como também esta interlocução entre Florbela e Durão é mediada pela obra de António Nobre. 6

São palavras com que Eduardo de Souza (antigo grumete da Armada, na altura governador civil do Porto e saudoso amigo de Anto) se refere à obra de Nobre em 1924, quando republica seus textos de 1892 sobre a estreia do amigo, em O poeta do Só (Porto, Livraria e Imprensa Civilização, 1924), à página 51. 7

A propósito de tais projetos, leia-se a reconstituição crítica que elaborei desse primeiro manuscrito, na minha edição de Florbela Espanca, Trocando Olhares, publicado em Lisboa, pela Imprensa Nacional/Casa da Moeda, em 1994. 8

Uso a sexta edição do Só, de António Nobre (Porto, Cia. Editora do Minho, 22 de outubro de 1939), mas transcrevo os versos atualizando a ortografia. O citado verso de “Memória” se inscreve à página 9, e o último verso transcrito pertence aos “Sonetos”, sendo o de número 10, à página 152. 9

Uso a edição que elaborei de Poemas de Florbela Espanca (São Paulo, Martins Fontes, outubro de 1997, 2a. tiragem da 1a. edição), de maneira que as páginas entre parênteses no corpo do texto indicam a localização dos poemas citados. 10

Na apresentação de Afinado Desconcerto (São Paulo: Iluminuras, 2002), me detenho minuciosamente sobre essa nostalgia transcendental, sobre essa dor cósmica de que falo tão rapidamente aqui. 11

A partir daqui, sempre que incluir entre parênteses a anotação das páginas de António Nobre, estou utilizando a edição já citada do Só. 12

A concepção de mulher, neste poema intitulado “Mais alto” de Charneca em flor, é curiosíssima, e sobre ela já se deteve Jorge de Sena, no seu extraordinário “Florbela Espanca” (Da poesia portuguesa. Lisboa, Ática, s.d., p. 115-143). Porque, acrescento eu, trata-se de uma Virgem que, em lugar de pisar o “mal da vida”, a simbólica da serpente bíblica, associada à figura de Lilith e de Eva, em vez de calcá-la sob os pés – deseja, ao contrário, acolhêla nos seus braços, nos seus já “divinos braços de Mulher”. Assim, o que a Virgem florbeliana agasalha em seu regaço é o paradoxo do bem e do mal concernente à mística da mulher: esse é o seu modo de declarar que a porção

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demoníaca do feminino não pode ser expurgada sequer da imagem mais celestial que erige para si mesma. 13

Fico tentada, sempre que grafo este título de António Nobre, em conservar a duplicidade que ganha na ortografia antiga, quando então não vem com acento circunflexo. Porque parece-me que, daquela forma, ganha seu autêntico sentido de “litania lusitana”. 14

A edição que utilizo de Despedidas é a da editora Vega (Lisboa, s.d.). O poema se encontra à página 29. A primeira edição desta obra é póstuma, datada de 1902. 15

Livro citado, à página 63.

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Leia-se a respeito o meu Florbela Espanca (Rio de Janeiro, Editora Agir, 1995, Coleção “Nossos Clássicos”) e também a introdução ao já citado Poemas de Florbela Espanca.

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O texto dramático Florbela, de Hélia Correia, explora os mais diversos aspectos da(s) imagem(ens) que se construiu de Florbela ao longo do tempo. Apresentando-se como uma metáfora da leitura da vida e da obra da autora de Charneca em flor, a peça enfatiza episódios da biografia da poetisa, colocando sob suspeita traços de sua personalidade; aponta a visão da crítica em relação à produção literária e a detalhes de sua vida pessoal; aborda o “estatuto mítico” adquirido pela figura da escritora. Tudo isso em diálogo com os textos de Florbela. Lançada em 1991, num volume que trazia outra peça: Perdição: Exercício sobre Antígona (montada em 1993), Florbela é encenada no mesmo ano pelo Grupo Teatral Maizum. Aliás, esse grupo já encenara Bela-Calígula, de Augusto Sobral (1987), e solicita a Natália Correia a criação de um texto dramático sobre a poetisa alentejana. A prefaciadora do Diário do último ano, contudo, “ou porque muito a [Florbela] venerava, ou porque temesse o abraço empático dessa musa das trevas” (ROSA, 1997, p. 245), transfere a tarefa a Hélia Correia. Fato curioso, uma vez que a relação desta com Florbela, como salienta Maria Cristina Teixeira da Cruz (2008, p. 82), “situa-se nos antípodas da de Natália Correia”. Na apresentação da peça, Hélia Correia (1991, p. 9) confessa ter arrumado a poetisa “junto às confusas impressões da puberdade, como um momento onde há enjoo e melodia e do qual nos livramos o melhor que podemos.” Aparentemente livre do “irresistível fascínio que irradia da mitologia poético-biográfica da criadora de Charneca em Flor” (CRUZ, 2008, p. 82), Hélia Correia (1991, p. 9) não disfarça um certo desconforto com a poetisa. Nas suas palavras, Florbela irritou-a “um bocado. Tem demasiada biografia para o seu peso de vulgaridade, e sonha com demasiada grandeza para a sua escassez de biografia”. A autora da peça, que sempre assume um necessário envolvimento sentimental com seus projetos literários (“Escrevi estes textos por afecto” (p. 9), declara a escritora na apresentação conjunta dos textos Perdição. Exercício sobre Antígona e Florbela), ainda no tocante a Florbela, confessa: “Quando a gente se irrita, começa fatalmente a fazer julgamentos. Receio, pois, ter sido agressiva com ela. Estas coisas de afecto começam inocentes mas não acabam bem.” (p. 10). O fascínio (embora negado) e a assumida irritação

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determinam a “ambivalência valorativa” (CRUZ, 2008, p. 82) que equilibra a trama construída na peça. Florbela trata-se de um texto dramático composto por três partes: um prólogo, um ato único (dividido em três fases) e um epílogo. No prólogo, deparamo-nos com uma Florbela criança que, precocemente (aos oito anos de idade), faz versos e é atraída pela morte1. Como nota Renata Junqueira (2008, p. 361), a morte “constitui o componente temático fundamental do texto dramático e do próprio espetáculo teatral que o texto faz vislumbrar”. A morte, aliás, é uma constante nos textos relacionados a Florbela, seja em razão de constituir uma das principais temáticas de suas produções literárias, em especial os contos de As máscaras do destino, seja devido a sua presença na biografia da poetisa: a morte de sua mãe, de seu amado irmão Apeles e o suicídio dela própria. Contrastando com a imagem da menina que entra em cena cantarolando e distraída, o cenário da peça é marcado pela presença de um cadafalso onde se encontra o corpo exumado de Florbela (“Bem visíveis, a cabeleira negra e os sapatos.” (CORREIA, H., 1991, p. 61))2. Tal cenário remete a fatos grotescos não exatamente da vida, mas da morte, ou melhor, da pós-morte de Florbela: o corpo da poetisa, enterrado em Matosinhos, foi exumado para que seus restos mortais fossem transladados para Vila Viçosa, sua terra natal, onde repousa desde dezessete de maio de 1964. Em consequência desse episódio funesto, algumas relíquias (Sabe-se Deus por que!) foram distribuídas entre os que lhe rendiam homenagem (Como se fosse uma santa, uma diva, um mito...). Do cadafalso ecoa uma voz “que chama: – Bela! Bela!” (p. 61). A voz da morta (ou da Morte) confunde-se com a da Guia, única personagem que contracena com Florbela, descrita como “uma mulher idosa ou sem idade, claramente inumana, esquálida, sinistra” (p. 61). A Guia, segundo observa Isabel Cristina Rodrigues (2007, p. 62) pode ser vista como “o alter-ego de Hélia Correia mas também a voz da consciência íntima da personagem reflectida (Bela) e, em certos momentos, ainda a previsão oracular do seu futuro crítico”. Guia assume a voz dos detratores, dirigindo à poetisa as mais diversas acusações de que esta fora vítima enquanto mulher e escritora. No ato único, Bela inicialmente se encontra na chaise-longue, diante de um espelho, vestida de negro e fatigada. A poetisa é já 7faces • 125


uma mulher madura que rememora fatos importantes de sua existência, intercalando-os com a leitura de alguns de seus poemas e de trechos de sua correspondência. Trata-se de um recurso interessante esta articulação entre vida e arte, de modo que, “para captar as sinuosidades da psicologia de Florbela e ilustrar alguns fatos importantes da sua biografia, a dramaturga apela sempre para os ‘escritos’ florbelianos” (JUNQUEIRA, 2008, p. 377). Tal procedimento, no entanto, não reflete uma visão limitada ao biografismo tradicional, na verdade constitui uma forma de desestabilizar as certezas que dele resultam no tocante à construção do “mito romântico”3 de Florbela. Hélia Correia dialoga não só com a biografia e com a obra de Florbela, mas também, conscientemente, com a fortuna crítica que se construiu em relação a ambas. Convocando implícita ou explicitamente os textos de José Régio, Jorge de Sena, Natália Correia, Agustina Bessa-Luís, José Augusto Alegria, dentre outros, a dramaturga torna evidente que em raras oportunidades a recepção da produção literária florbeliana esteve isenta da confusa ligação com a existência empírica da poetisa. Desse modo, o texto de Hélia Correia consegue ir além dos estreitos limites impostos pelo biografismo que se ocupa quase exclusivamente do escândalo que representa uma mulher como Florbela e que negligencia sua obra. A personagem Guia cita, dentre diversas manifestações da crítica em relação à poética florbeliana, um dos exemplos mais flagrantes da condenação de Florbela em consequência de uma avaliação ditada por princípios morais aplicados à sua atuação enquanto ser de existência empírica (mais exatamente enquanto mulher), desprezando, portanto, o valor literário de suas composições. Referimo-nos ao texto do padre José Augusto Alegria (1955)4, A poetisa Florbela Espanca: O processo de uma causa. Eis o trecho que comparece na peça: “E a verdade é esta: Pode-se perfeitamente fazer-se história da poesia moderna sem citar sequer o nome de Florbela Espanca. O mesmo se não pode aliás dizer de Sá Carneiro, Fernando Pessoa, Camilo Pessanha, ou José Régio, entre outros” (ALEGRIA, 1955, p. 111 apud CORREIA, H., 1991, p. 72). A sentença imposta pelo crítico revela não só uma visão negativa em relação ao valor poético dos textos de Florbela, relacionado, inclusive, à ideia do anacronismo, do distanciamento da poetisa atinente à produção literária de seu 7faces • 126


tempo. Tal sentença resulta principalmente da indignação moral de José Augusto Alegria (1955, p. 10, grifo nosso) diante do erotismo manifesto nessa obra de autoria feminina: “a maior parte dos sonetos florbelianos são trespassados dum erotismo monocórdico que é contrário às estruturas sadias de qualquer sociedade cristã”. Para o autor, o conteúdo erótico dos poemas de Florbela constitui “a razão profunda de tantas adorações” dirigidas à poetisa, em especial, a instalação do busto em sua homenagem na cidade de Évora. Ele evoca “os princípios do catecismo cristão” (ALEGRIA, 1955, p. 19) para ditar o valor da produção literária de Florbela. São muitas as passagens em que Guia dá voz aos detratores da obra de Florbela. O palco realmente parece funcionar como um tribunal, como sugere a própria personagem que dialoga com a poetisa: “Imaginemos que aqui estás num tribunal” (p. 68). Dá-se, portanto, um julgamento da escritora, em que pesam acusações contra seu trabalho literário, mas, especialmente, contra sua atuação como sujeito real (leia-se ser feminino). Uma vez que o texto de Hélia Correia constitui uma metáfora da leitura da vida e da obra de Florbela, concordamos com Isabel Cristina Rodrigues (2007, p. 61, grifo nosso), quando ela afirma que o palco “assume quase a feição de um tribunal literário”: O palco [...] funciona assim como uma espécie de justiça dramática de pendor avaliativo ou judicativo que, apesar de tardia em relação à vida da personagem retratada, assume quase a feição de um tribunal literário, onde os espectadores finalmente ditarão o julgamento de Bela, tal como os leitores de Florbela Espanca continuam a ditá-lo a cada leitura que empreendem, no mais íntimo palco do texto. Bela tem consciência de que está num palco, espaço apropriadamente escolhido por Hélia Correia para expor o “drama” da poetisa. A imagem de Bela reflete uma mulher que deseja prender a atenção do público, ser admirada. Talvez por isso Guia revele, além das diversas críticas dirigidas à conduta social da poetisa e ao conteúdo de seus textos, a indiferença e o forte menosprezo que marcam a recepção da obra de Florbela.

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Hão de falar de ti de tantos modos. E de modo nenhum, sabias? Para muita gente, fazes parte de um passado em que os versos rimavam quase sempre de forma previsível. Estás posta de lado como um gosto que os nossos avós tinham e cuja imagem nos nauseia um pouco, como o rapé e a cera no bigode. (p. 68). Em outro momento, Bela encontra-se no Alentejo, vestida de amarelo-forte, amarelo-oiro. O sentimento de grandeza impera sobre a personagem. Guia conduz a poetisa para a narração de sua vida pessoal: seu nascimento, a relação com a mãe, com o pai e com Apeles; mas Bela recusa-se a “revolver as feridas” (CORREIA, H., 1991, p. 79), preferindo antes realçar o lado solar de sua existência, o orgulho do nome Espanca. Guia, no entanto, é ardilosa, assumindo a aspereza dos detratores de Florbela, traz à baila alguns dos temas sobre os quais a crítica moralista impiedosamente se ocupou: a origem ilegítima e o incesto. Uma mulher que desafia os padrões morais de uma sociedade conservadora, patriarcal e misógina não escapa impune à censura cristã e à crueldade dos opositores. Bela demonstra ter consciência do julgamento que a sociedade impõe a um ser de exceção como ela. A condenação parte desde a gênese da poetisa, como notamos na fala de Bela: “Antónia da Conceição Lobo, minha mãe. Exposta. Dir-se-á dela: a exposta Antónia Lobo. E não pode deixar-se de pronunciar isto sem um certo exagero no estalar das consoantes, sinal involuntário de desprezo.” (p. 73, grifo nosso). A mãe ausente é relegada a segundo plano: “Contam que minha mãe me deu o nome, mas nada me admirava que nem isso lhe tenham consentido”, reduzida a “uma função”: gerar filhos para João Maria Espanca e não poder vê-los crescer, abdicar de seus direitos de mãe, inclusive do amor: “Eu pus luto por essa mãe mas nunca a tinha amado” (p. 74). Bela esforça-se para mostrar indiferença à figura materna. Consciente da expressividade dessa figura em seus poemas, ela apressa-se em declarar: “Não houve mãe nenhuma em minha vida. Só o modelo ultra-romântico dos versos” (p. 76). Em seguida, declama “Deixai entrar a morte” (ESPANCA, 1999, p. 300), cujos versos invocam a Morte como um refrigério, um conforto, uma libertação de um mundo de dor e insignificância 7faces • 128


extremas que o eu lírico, “fruto amargo das entranhas” herda da mãe igualmente infeliz, “lírio que em má hora foi nascido”. Deixai entrar a morte Deixai entrar a Morte, a Iluminada, A que vem para mim, pra me levar. Abri todas as portas par em par Com asas a bater em revoada. Que sou eu neste mundo? A deserdada, A que prendeu nas mãos todo o luar, A vida inteira, o sonho, a terra, o mar E que, ao abri-las, não encontrou nada! Ó Mãe! Ó minha Mãe, pra que nasceste? Entre agonias e em dores tamanhas Pra que foi, dize lá, que me trouxeste Dentro de ti?... Pra que eu tivesse sido Somente o fruto amargo das entranhas Dum lírio que em má hora foi nascido!... O destino trágico do sujeito é traçado já a partir do nascimento de sua mãe, como se a desgraçada existência fosse uma espécie de herança: “Ó Mãe! Ó minha Mãe, pra que nasceste?”. A leitura que fazemos é de uma figura materna assolada pela dor, trazendo dentro de si, “Entre agonias e em dores tamanhas”, “o fruto amargo das entranhas” que não encontra nenhum prazer na vida, antes anseia pela libertação que lhe chegará através da “Morte”. A personagem invoca o sofrimento da mãe para, logo em seguida, negar qualquer ligação mais profunda com a figura materna, seja Antónia ou Mariana (a esposa de João Espanca): Afligir-me-ia, por exemplo, se pensasse na vida real da minha mãe. Se quisesse saber com que disposição se deitava na cama para que João Espanca fizesse nela um filho. Armada de que forças sofreu as dores do parto. Com que ternura, com que febre, com que interesse ia ela amamentar-me a casa de meu pai 7faces • 129


como uma ama qualquer. Que leite bebi dela? Ai o da mágoa, escrevi num soneto. [...] Ah, tudo isto deu jeito para versos. A verdade é que não me comoveram, essas duas mulheres. (p. 76). No tocante ao tema do incesto, mais uma vez Hélia Correia expõe a visão da crítica com relação a Florbela: a atenção dirigida quase que exclusivamente à vida da poetisa, sendo sua obra tomada apenas como expressão de sua experiência como ser real (Embora seja difícil conceber a ideia de que um ser de existência empírica possa acumular tantos desvios de conduta moral e desequilíbrios psíquicos como os que são atribuídos à poetisa). Bela define a si e a Apeles como “a pura emanação da força criadora de João Maria Espanca”, uma “mesma alma”, “um amor completo” (p. 79). Bela confessa seu narcisismo, pois procura a si própria “na imagem do espelho” (p. 80). Além do mito de Narciso, a linha mitológica tecida por Hélia Correia associa o nascimento de Florbela “ao nascimento da deusa Palas Atena, pois ambas só teriam pai: Atena nasceu da cabeça de Zeus e Florbela, analogicamente, nasceu só de João Espanca” (LEITE, 2014, p. 73), uma vez que nem Antónia nem Mariana puderam de fato desempenhar o papel de mãe, ambas privadas do devotado amor que Florbela dedicou apenas ao pai e ao irmão. Diante da confissão de Bela, a Guia insinua a ideia do incesto: “– Disto que achaste apenas em teu pai e em Apeles. O outro que é o mesmo, o verso e o reverso, o corpo tão igual que tem o mesmo cheiro e o mesmo tom de pele. Sabes, Bela? Eles foram os teus homens. Eles foram os casos de amor da tua vida”. (p. 80). A negativa de Florbela é enfática: “– Que ideia! Não me venha com histórias de incesto! Não houve incesto algum e sabe muito bem. Nunca tal coisa me passou pela cabeça!” (p. 80). Guia afirma não se referir à sexualidade: “Não era uma luxúria entre corpos de irmãos, mas uma qualidade do sangue [...]” (p. 80), o sangue dos Espanca, de que Florbela tanto se orgulha. A reverência ao nome Espanca está relacionado à importância da figura de João Maria Espanca na vida de Florbela: um pai que, na definição da protagonista, “irradiava como um sol. Sim, era um pai solar, alegre, fulgurante, imune às quebras do humor e à piedade”. (p. 77).

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A poetisa está a ser julgada, como já observamos. De modo que tudo o que lhe é mais caro (sua obra, a relação com o irmão e a “devoção” ao pai) é alvo de diversas acusações. Mas é exatamente no orgulho de ostentar o nome paterno, embora esse lhe tenha sido negado no registro, onde veio a constar apenas em treze de junho de 1949 (dezenove anos após sua morte), que Bela expressa seu caráter insurrecto. Diante da afirmação da Guia de que o velho Espanca teria perfilhado Florbela apenas em razão de tentar “acalmar a Igreja” – a quem a morte da poetisa, “a vida escandalosa e o nascimento haviam ofendido e irritado” – a fim de possibilitar “que a transladação e a homenagem acontecessem e as abençoasse essa a quem competia abençoar” (p. 81), Bela ressalta o caráter de exceção que envolve ela e o pai, ambos indiferentes às convenções: “[...] não foi preciso perfilhar-me. Não foi preciso darmos conta a ninguém”. Do pai ela assume o “orgulho do nome”, a “herança de um sangue determinado e ao mesmo tempo intranquilo, um sangue de viajantes, de gente que ama e escuta as suas ambições”. (p. 81). Guia não parece ficar impressionada com a altivez que Bela tenta demonstrar em reação a todas as investidas dessa espécie de “advogado do diabo” (JUNQUEIRA, 2008, p. 368). E fazendo jus a essa alcunha, Guia, dirigindo-se ao público, convida-o a “ver Florbela despir o fato de ouro” (p. 83), ou seja, assumir a mesquinhez de sua vida comum. Com Florbela então de vermelho, tem início o momento da peça em que se representa uma mudança de fase na vida da Florbela adulta: o afastamento em relação à casa dos Espanca e uma “peregrinação” por diversos lares, por diferentes amores igualmente desfeitos, frustrados: “E os factos de Florbela sucedem-se por ordem, são a história da alma expulsa do Paraíso e que busca na Terra as possíveis moradas. Namora cedo, casa cedo, a Bela. Dá-se pressa, dispõe-se a começar quanto antes a peregrinação” (p. 85). As palavras são da personagem Bela, que fala por um tempo na terceira pessoa. Um recurso que, de acordo com Renata Junqueira (2008, p. 374) representa um afastamento de Florbela em relação a sua “subjetividade narcísica”, a sua “postura egocêntrica de quem, segundo a interpretação de Hélia Correia, só conseguia amar àqueles em cujas veias corria sangue igual ao seu, o sangue dos Espanca”.

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Florbela, de HĂŠlia Correia. A atriz Silvina Pereira encarna a poetisa. Arquivo: Teatro Maizum.

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Sucede-se a exposição da vida conjugal de Florbela: “seu primeiro marido é o companheiro de escola com quem dá depois aulas num colégio” (p. 85). Falando ainda em terceira pessoa, a protagonista assim se refere a esse matrimônio: “Bela parece protegida, sim, mas sufoca nas malhas sem cor do casamento.” (p. 85). A impessoalidade, o distanciamento e até certa acidez marcam as declarações de Bela, de modo que ela parece se confundir com Guia. Ao falar do segundo marido, Bela reassume o uso da primeira pessoa, de modo a expressar o turbilhão de emoções que envolveram essa relação, em tudo oposta à que se dera no primeiro casamento: “No Alberto, eu tivera compreensão a mais, sossego, enfim. Fugi-lhe porque me aborrecia. Procurei no António o quê? A aventura? O andar mais pesado das botas. E a farda. O cheiro dos cavalos. Tudo o que sugeria a masculinidade [...]” (p. 88). Novamente o texto de Hélia Correia indica que a busca do amor, no caso de Florbela, espelha sempre sua relação com o pai e o irmão: “Procurei [...] talvez, quem sabe, o modo de rir e contar histórias que eu sempre amara tanto no meu pai.” (p. 88). O casamento revela-se mais uma vez um engano, uma grande frustração: “É tal e qual o erro das miragens: estende-se a mão e só se encontra areia. Este homem era estúpido e agressivo.” (p. 88). A maior violência para com a poetisa parece ser a indiferença a seus versos: “Talvez eu precisasse de alguma violência, dizem que a violência conforta o masoquismo dos neuróticos, mas não vinda de um homem a quem a poesia fazia bocejar.” (p. 88). Logo esse homem a quem Florbela dedica tantos poemas! Fato que Guia aproveita para novamente lançar suas farpas, expondo mais uma vez alguns exemplos da recepção crítica de que foram alvo a vida e a obra da poetisa. “Fraquitos” é como Guia define os poemas dedicados a António Guimarães: “Um pouco de traquejo e qualquer mulherzinha os podia ter feito com um dicionário de rimas para consulta” (p. 88). Ela cita em seguida o estudo de Jorge de Sena (1946, p. 132 apud CORREIA, H., 1991, p. 88) a respeito de Florbela, ressaltando apenas suas considerações sobre a escolha pelo soneto, deixando de lado a franca defesa do crítico ao valor literário da obra florbeliana: “‘A mulher portuguesa, se não faz rendas, faz sonetos’, disse Jorge

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de Sena, [...]. ‘Seria por ser mulher que Florbela escreveu tantos sonetos? Sim e não’, considera. ‘A época era para soneto’”. Mesmo ao reproduzir o elogio de Jorge de Sena (1946, p. 115, apud CORREIA, H., 1991, p. 89): “‘Florbela não era um génio – era e é, um notável poeta’”, é ainda o tom pejorativo que Guia procura tornar evidente. Ao que Bela logo reage: “– Poetisa, não acha mais bonito? Porque não me pôs ele no feminino? Querem fazer de mim um homem, já agora?!”. O trecho parece dialogar com o estudo de Natália Correia (1989, p. 11) publicado como prefácio do Diário do último ano: A teatralidade de Florbela é a interpretação genial deste mistério feminino que se desgarra na gesticulação dramática da poetisa. Sim, chamar-lheei poetisa. A homenagem que distingue o génio poético feminino com o prêmio de lhe masculinizar o estro, ultraja uma poesia que quer feminizar o mundo com a magia da sua claridade lunar. Talvez o questionamento sobre o uso do termo “poetisa” e não “poeta” pudesse conduzir a uma reflexão a respeito do papel de Florbela como bandeira do movimento feminista que se desenhava em Portugal, mas Hélia Correia opta por deixar esse tema à margem da obra, preferindo antes abordar, ainda que de forma breve, a ideia do hermafroditismo de Florbela. Um pretexto, na verdade, para novamente referir a relação narcísica da poetisa com o irmão: “– E há, no entanto, um ser hermafrodita no meio desta história. É o corpo formado por ti e o teu irmão. O corpo uno a que sempre quiseste regressar.” (p. 89). A história dos maridos seria um grande engodo, pois que, seguindo a teia do pensamento delineado pela Guia, Florbela não conseguiria encontrar sua outra metade, exceto em Apeles, seu duplo, sangue de seu sangue. No tocante a essa questão, a ideia do mito de Narciso insinua-se mais uma vez no discurso da Guia, mas somos também conduzidos a uma reflexão sobre o mito do andrógino. Ao ocupar-se com o retrato do terceiro casamento de Florbela, o texto torna-se um pouco tedioso, talvez exatamente por abordar um período da vida amorosa da poetisa sem grandes sobressaltos: “Mudei-me para o Mário como quem se 7faces • 134


mudasse para as termas, ansiando por sossego, por bem-estar.” (p. 92). Obviamente essa mudança não se deu sem escândalo, afinal Florbela ainda não se divorciara de António Guimarães. Pesam sobre ela as acusações de abandono do lar e de adultério. A família Espanca, João Maria Espanca e Apeles para sermos mais precisos, também não aceita a atitude de Florbela, embora o pai tenha tido uma vida amorosa cheia de episódios que suscitariam escândalo. O texto põe em xeque a aparente felicidade que Florbela (1926, apud CORREIA, H., 1991, p. 92-93), em carta dirigida a Apeles, dá a crer ter encontrado ao lado de Mário Lage: “[...] ‹‹podes finalmente estar sossegado [...]. Eu não sabia o que era tratarem-me bem, andava a pensar como seria e agora é que o sei. [...] o teu pesadelo está enfim sem fazer tolices, disposto a envelhecer tranquilo e a morrer em paz.”. “– Uma linda enfiada de mentiras.” (p. 93), declara Guia. Se o “desamparo” empurrou a poetisa “para Mário Lage. O médico. A figura parental.” (p. 92), a vida ao lado deste, como observa Guia, aborrecia mortalmente a poetisa. (p. 93). Florbela não consegue ater-se apenas ao papel de “rapariguinha deslumbrada, neta de sapateiro, filha de mulher exposta, que tinha obrigação de ser feliz, de apreciar essas pequenas coisas” (p. 94) que desfruta no seio da família de Mário Lage. Isso não lhe basta, “debaixo desta, é que estavam as outras, a ferver, a gritar, e com razão, meu Deus”, declara Bela, “porque afinal, eu tinha o meu talento, era Florbela Espanca, devia estar viajando e chegando a hotéis com colunas e chão em mármore cor-de-rosa!...” (p. 94). Desejo de grandeza, insaciabilidade e erotismo, traços constantemente apontados pela crítica atinente à vida e à obra da poetisa, comparecem de modo evidente neste momento do texto. Bela acrescenta ainda: “Devia estar pisando veludo e corações, tocando, com a ponta do meu dedo enveludado, lábios de muitos homens que achariam, só nisso, o fim das suas vidas” (p. 94). Como a dar ênfase à imagem de mulher sensual, Bela declama o poema “Amar!” (ESPANCA, 1999, p. 232): “Eu quero amar, amar perdidamente! / Amar só por amar: aqui... além... / Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente... / Amar! Amar! E não amar ninguém!”. A imagem feminina que emerge desse poema é de um ser que expressa livremente sua insaciabilidade, liberto das convenções, 7faces • 135


das regras impostas pela sociedade e pela religião. Seu único compromisso é com o próprio prazer, o deleite de seduzir e de amar desprendidamente. Encerrando o percurso pelo drama amoroso de Florbela, Guia, como a invocar os versos do poema “Amar!”, insinua a ideia de que Florbela vivera pequenas aventuras. Essa observação, no entanto, serve simplesmente de mote para novamente ressaltar a tendência de Florbela à teatralidade: “– O amor! Bela coisa para versos. Aí tem o sentido do amor.” (p. 94), afirma Bela com sarcasmo. A declaração retoma também a teoria de que nenhum amor no plano físico saciaria Florbela. Nesse sentido, Guia traz à baila o nome do professor italiano Guido Battelli, a quem Florbela confia a edição de Charneca em flor. “Esse estava à altura das tuas exigências” (p. 94), declara Guia. É com Battelli que Florbela afirma conseguir desempenhar, “sem falhas”, o seu papel de “grande poetisa”: “Talvez porque ele fosse um velho professor e precisasse de inventar também uma jovem poetisa etérea e langorosa. Sabe o que foi? O corpo não nos atrapalhou, não se veio meter no meio de nós. Eu estava a separar-me do meu corpo nessa altura.” (p. 95). Dá-se mais uma transformação no figurino e no estado de ânimo de Florbela. Ela despe o fato vermelho e veste novamente o negro. O cadafalso, que estivera sempre presente, ganha visibilidade novamente e a voz da morte volta a chamar. É chegado o momento em que se fecha o ciclo: “Bela nasceu – para morrer no mesmo dia”, oito de dezembro. Mas, segundo Bela, “o tempo da vida já terminara há muito. Terminou naquele dia em que Apeles morreu.” (p. 95). Seguem-se algumas considerações sobre o suicídio de Florbela. Insinua-se sobre a conveniência de aceitar a tese de acidente. Refere-se o fato da certidão de óbito ser passada com base nas informações de um carpinteiro, o que causa estranheza uma vez que o esposo de Florbela é médico. Sugere-se a possibilidade de Mário Lage ser responsável pelo suicídio da poetisa: “Talvez venham depois a censurar o Mário por ter deixado os comprimidos ao meu alcance. É preciso explicar-lhes que foi ele o meu anjo, que ele me guiou a mão para que eu passasse, porque eu queria passar. Apeles estava já do outro lado” (p. 97). Bela recita os versos do poema “À Morte” (p. 301): “Morte, minha Senhora Dona Morte, / Tão bom que deve ser o

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teu abraço!/ Lânguido e doce como um doce laço/ E como uma raiz, sereno e forte”. O poema, em que o sujeito lírico invoca a “Morte” num profundo anseio de regresso ao útero materno, parece conter uma síntese da dramática existência de Florbela delineada ao longo do texto dramático, tendo como suporte as ideias de pesquisadores e críticos como Agustina Bessa-Luís. A biógrafa da poetisa e prefaciadora do livro de contos As máscaras do destino, assim resume a trajetória existencial de Florbela: “Ela envelhece prematuramente, torna-se num feto, imóvel frente ao líquido horizonte. Projecta-se totalmente no desejo inconsciente do regresso à matriz, e o grande acontecimento do eu está implícito nesse regresso.” (BESSA-LUÍS, 1982). No epílogo, Bela (adulta) retorna para a morte e entra em cena novamente a menina de oito anos de idade, ainda risonha e distraída, mas com uma “expressão um pouco carregada” (p. 99). Para Renata Junqueira (2008, p. 369-370), o reaparecimento da menina Bela “sugere a continuidade do ‘ciclo’ da existência mítica, lendária de uma mulher que, tendo-se suicidado no mesmo dia em que nascera (08 de Dezembro), terá conseguido fundir nascimento e morte”. A pesquisadora, ao referir-se à alternância Florbela-criança / Florbela-adulta / Florbela-criança, ressalta a ideia da morte relacionada mais a “renascimento” do que a aniquilamento. Desse modo, ela aponta a possibilidade de associar a figura de Florbela ao “mito do eterno retorno”, ao da Fênix ou ainda ao de Perséfone “(que de tempos em tempos regressa à Terra para diminuir o sofrimento da mãe Deméter)”. (JUNQUEIRA, 2008, p. 270). Hélia Correia coloca-nos, portanto, diante do “estatuto mítico” (JUNQUEIRA, 2008, p. 369) que se apodera tanto da vida quanto da escrita de Florbela. Seja no discurso da protagonista seja por meio da personagem Guia, deparamo-nos, por exemplo, com Palas Atena (filha de Zeus), Diana (“a virgem caçadora”), com o mito do “Duplo” (desdobrando-se nos mitos de Narciso e do Andrógino) e, distanciando-se “do panteão grego dilecto, Hélia Correia evoca, pela voz de Florbela, [...] Lilith, primeira mulher de Adão” (CRUZ, 2008, p. 95). No entanto, assumindo uma postura crítica (e até mesmo irônica), pretensamente distante e objetiva, a autora esforça-se por apresentar uma Florbela “humana, sem o invólucro de deusa”, embora dotada da “singularidade de uma mulher única da literatura e também 7faces • 137


na sociedade portuguesa” (LEITE, 2014, p. 74). Na visão de Maria Cristina Teixeira da Cruz (2008, p. 83, grifo da autora), “embora não negligencie o fardo mítico subjacente à figura da poetisa, que convertem Florbela numa autora de culto, Hélia Correia recusa essa rendição fácil ao imaginário unilinear do mito. Em Hélia Correia, Florbela é, portanto, contramito”. Concluímos, pois, que a dramaturga desestrutura o “estatuto mítico” de Florbela, ao tempo em que, num contínuo jogo de ambiguidade, constrói e desconstrói, uma a uma, as imagens tradicionalmente atribuídas à poetisa. Notas 1

No texto, Florbela ouve a voz da morte a chamá-la. A voz parte do corpo exumado da poetisa que se encontra no cadafalso e que permanece presente ao longo de toda a peça. 2

As citações do texto Florbela são, após a primeira ocorrência, acompanhadas apenas da indicação da página, de modo a dar mais fluidez ao texto. 3

No sentido em que se estabelece uma relação direta entre a personalidade da poetisa e a sua obra. 4

A obra foi inicialmente publicada em 1952. Referências

ALEGRIA, José Augusto. A poetisa Florbela Espanca: O processo de uma causa. Évora: Centro de Estudos D. Mendes da Conceição Santos, 1955. CORREIA, Hélia. Florbela. Lisboa: Dom Quixote, 1991. CORREIA, Natália. “Prefácio”. In: ESPANCA, Florbela. Diário do último ano. 3 ed. Amadora: Bertrand, 1989. p. 7-30. CRUZ, Maria Cristina Teixeira da. Bela no palco: imagens de Florbela Espanca na dramaturgia portuguesa. 2008. 185 f. Dissertação (Mestrado em Estudos portugueses) – Universidade de Aveiro. Departamento de Línguas e Cultura. Aveiro, 2008. Disponível em: ˂http://hdl.handle.net/10773/2859>. Último acesso em: 15 set. 2017. ESPANCA, Florbela. Poemas de Florbela Espanca. São Paulo: Martins Fontes, 1999. JUNQUEIRA, Renata Soares. Morrer e renascer: a aura mítica em Florbela, de Hélia Correia. In: DUARTE, Lélia Parreira (Org.). De Orfeu e de Perséfone: morte e literatura. Cotia: Ateliê Editorial; Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2008. p. 361-380.

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LEITE, Jonas Jefferson de Souza; MACIEL, Diógenes André Vieira. “Vão escrever muito sobre ti, sabias?”: a Florbela de Hélia Correia no horizonte da biografia teatral. Convergência Lusíada, n. 31, junho de 2014. Disponível em: ˂rgplrc.libware.net/ojs/index.php/rcl/article /view/106>. Último acesso em: 15 set. 2017. RODRIGUES, Isabel Cristina. Florbela mínima – exercícios sobre Hélia Correia. Forma breve, n. 5 [Teatro mínimo]. Universidade de Aveiro 2007. p. 55-66. Disponível em: ˂http://revistas.ua.pt/index.php/formabreve/article/view/235>. Último acesso em: 8 mai. 2017. ROSA, Armando Nascimento. As máscaras de Florbela mítica na dramaturgia portuguesa. In: LOPES, In: LOPES, Óscar et al. A planície e o abismo: Actas do Congresso sobre Florbela Espanca realizado na Universidade de Évora, de 7 a 9 de dezembro de 1994. Évora: Vega, 1997. p. 237-248.

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Florbela, a morte e o tempo: “A vida é um cacho de lilás... o resto é perfume” Por Fabio Mario da Silva 7faces • 141


No conjunto de narrativas florbelianas há, certamente, um conto que se destaca, pertencente à coletânea As máscaras do destino, intitulado “O resto é perfume…”. Ali encontramos um narradorpersonagem que começa o conto reproduzindo a fala de uma amiga para só depois proceder à sua, apresentando e contextualizando o leitor/narratário para o que se seguirá (ALONSO, SILVA, 2015, p. 99). A partir de uma interpelação da amiga ao narrador, ficamos a saber onde ela buscaria benéfico e cons olo nesse exato momento doloroso de sua vida, o que a faz afirmar que seria nas “palavras dum doido” (2015, p. 146 ), remetendo logo em seguida à lembrança de uma outra estória: “Eu fiz dele o meu único confidente, a minha grande afeição; ele era ao mesmo tempo o meu cão, o meu livro, a minha amiga íntima, o inseparável companheiro” (2015, p. 148). Ou seja, trata-se então do processo de encaixe, em dois níveis, sendo que a intriga principal constitui o nível diegético e a secundária o nível hipodiegético de uma história principal. Sendo assim, é preciso relembrar um acontecimento do passado (o encontro da mulher com o doido) para se pensar no presente (o estado inerte que a amiga do narrador-personagem vai se encontrar, no terraço da sua linda casa, no final da narrativa). Neste conto, outro aspecto que se destaca é a paisagem, que tem como cenário de fundo a estática imagem de uma vila alentejana, que por si só é reveladora de um estado contemplativo e de solidão, uma serenidade austera que retrataria, em sua essência, a ideia de heroísmo do cenário, no qual “lateja uma força hercúlea” (p. 149). Essa mulher e esse doido vagueiam por entre os campos, numa paisagem descrita como algo sacro, misterioso, procurando realçar (como em quase todos os contos de As máscaras do destino), algum aspecto de brancura que possa se associar a um estado de diafaneidade: «às vezes era tão branco, tão imateral, duma tão pura religiosidade, que a planície alagada fazia lembrar uma grande toalha de altar onde tivessem espalhado hóstias» (2015, p. 150). Esse doido, que era velho, alto, bem vestido, de origem fidalga e calmo, conseguia ver além do senso comum, divagando como se estivesse construindo um tratado de filosofia, para usufruto das «almas simples e sofredoras» (p. 149). Esse amigo-doido levaria esta mulher a refletir sobre sua vida, numa aparente relação entre mestre e discípula: As nossas conversas eram sempre um longo monólogo: ele falava, eu ouvia. Nunca li nos livros frases mais belas, ideias mais tragicamente consoladoras, de uma maior e mais 7faces • 142


elevada espiritualidade. A palavra dele era como a água: gotinha a cair numa raiz abrasada, regato que vai segredando profecias às ervas do chão, torrente impetuosa que tudo arrasta, que tudo leva à sua frente. (2015, p. 148) Acima de tudo, esse conto demonstra uma que há entre essas duas personagens uma relação de aprendizagem e descobertas. Logo em seguida, ficamos a saber, que numa certa tarde de primavera essa mulher que, apesar de estar muito habituada à estranha maneira de seu amigo se expressar, não entendia completamente o sentido das suas palavras – nesse momento reflete-se sobre a vida e a morte, ponto central de discussão filosófica do conto. Fala- se heroísmo, que é claramente também atribuído aos mortos, visto compreenderem melhor a vida: «os mortos é que fazem a vida» (2015, p. 149). Os mortos aqui revelam-se como oráculos, que instruem apenas homens superiores e visionários. Só os que vivem a morte na vida compreendem isso, como explicita Aline Carvalho: Cedendo aos seus heróis e heroínas a supra-humanidade pela marca da morte, Florbela Espanca salva-os do fim, dando-lhes o poder de existir mesmo fora da rigidez do mundo dos vivos. Os mortos são consagrados porque são perpétuos e escapam à finitude que os vivos lhes impuseram […]. Os movimentos dos personagens se dão pela morte como metáfora da passagem para o mundo ideal, assim como apontam para o retorno aos primórdios, onde tem-se a possibilidade de se reinventar o presente; o passado é resgatado para se reconstruir o futuro (2008, p.81). Por seu turno, Maria Lúcia Dal Farra relembra-nos que esta temática aparece neste conto porque seria uma resposta que a própria Florbela teria descoberto para sobreviver à morte de Apeles: De fato, ali se narra a iniciação de uma mulher nos segredos mais íntimos da natureza, a ponto de compreender na vida o papel que nela desempenham os mortos, sabedoria que lhe é ministrada por um louco, e que é compartilhada por santos, filósofos, profetas, artistas e iluminados – gente, como se vê, banida da 7faces • 143


sociedade, situada na sua marginália. (Dal Farra, 2002, p.93) É fato que este conto refere, ao decorrer da narrativa, nomes como os de autores considerados heréticos e revolucionários para o seu tempo: Joana d’Arc (1412-1431), Blaise Pascal (1623-1662), Girolamo Savonarola (1452-1498), João Huss (Jan Hus – 1369-1415) e Leonardo da Vinci (1452-1519), para encerrar-se com dois temas centrais desta narrativa: a morte (tentando explicitar a relação da vida com a morte e após a morte) e o tempo. Sobre a morte, o personagem doido revela: Tu não sabes nada. Os mortos é que sabem. Os vivos chamam-lhes sombras. Os vivos metem as sombras dentro dum caixão, fecham-no à chave, pregam-no bem pregado, soldam-no, afundam-no na terra, muito fundo, e a sombra lá vai... fica o resto. São eles que por aí andam, são eles que tu sentes. Não há árvores, não há pedras, não há nada: há mortos. Os mortos é que fazem a vida; dentro dos túmulos não há nada. (2015, p.153) A narrativa considera que a putrefação do corpo é apenas uma passagem de uma sombra que se vai, mas que “fica o resto” (a presença, a alma, o espírito), a rondar os vivos. Esse “resto” seria a presença desses mortos que sentimos, quase como uma veneração, como acontece no Dia de Finados católico: ao relembrar os mortos, atenta-se não só na sua memória, mas na insistência da sua presença no nosso dia a dia, o que é refutado, por exemplo, por outras igrejas cristãs, como o protestantismo e o evangelismo. Evidentemente, aqui nos deparamos com a ideia da morte no cristianismo, religião que exprime, com mais veemência e simplicidade, nas palavras de Edgar Morin, o “apelo da imortalidade e o ódio da morte” (1970, p. 194). Se o grande mistério da ressurreição de Cristo é a vitória sobre a putrefação do corpo, isto implica dizer que o grande heroísmo do cristianismo seria a superação da morte com a vida: “Cristo irradia em torno da morte, só existe para e pela morte, traz consigo a morte e vive da morte” (1970, p. 194). Essa seria, então, a superação dos males do pecado, da carne, a redenção, eixo central dos evangelhos, através de uma concepção místico-religiosa da vida. O heroísmo de Cristo é ter vencido/vivido na/para a morte e é exatamente isso que Florbela quer realçar no seu conto: apenas poucos têm coragem para enfrentar e entender a morte, defesa 7faces • 144


também encontrada nos outros contos de As máscaras do destino, como, por exemplo, “A paixão segundo Manoel Garcia”. O doido, de certa forma mais filosófica do que religiosa, assinala a presença, não física, dos que se foram, apontando uma certa imortalidade desses mortos que, situados num espaço/tempo diferente, detêm uma compreensão total da vida. Mais: seguidamente, esse doido também revela a essa mulher sua relação com os mortos e como eles o ajudam a ver além do senso comum: Os mortos poisaram as pontas das suas miríades de dedos sobre os meus olhos, enterraram-nos dentro de mim, e mandaram-me ver... e eu vi. Aparecem, de séculos a séculos, vivos que veem. Os homens chamam-lhes santos, profetas, artistas, iniciadores. (2015, p. 153) Essas vozes/presenças, além da vida terrena, inspiram artistas e visionários, porque têm um alcance e percepção sobre as coisas que os vivos não possuem. Por fim, como último ensinamento, esse doido dá como exemplo a seguinte situação inusitada: “Olha – e, arrancando abruptamente um cacho de lilás, deu-mo a cheirar –, é perfume! A vida é este cacho de lilás... Mais nada. O resto é perfume...” (2015, p. 154). Aparenta-nos aqui uma reflexão sobre o tempo (despertado pelo exato instante em que se arranca a flor) como uma solução prática para se entender a vida e a morte. Florbela propositalmente defende a noção de eternidade dos mortos em “O resto é perfume...” – instalando-os numa certa “temporalidade divina” (justamente porque é eterna). Por isso se faz necessária uma pequena reflexão sobre este tema. Lembremo-nos que o conceito de tempo foi alvo das mais diversas abordagens teóricas, as quais passaram tanto pela temporalidade constante de Newton quanto pelo relativismo da percepção temporal de Albert Einsten, passando por Kant, para quem o tempo é imutável e subjetivamente construído pelo ser humano (SANTOS, 2007). De acordo com Marilena Chauí: uma das maiores preocupações dos filósofos gregos era a explicação do movimento. Por movimento, os gregos entendiam: 1) toda mudança qualitativa de um corpo qualquer (…); 2) toda mudança quantitativa de um corpo qualquer (…); 3) toda mudança de lugar ou locomoção de um corpo qualquer (…); 4) toda geração e corrupção dos 7faces • 145


corpos, isto é, o nascimento e perecimento das coisas e dos homens. Movimento, portanto, significa para um grego toda e qualquer alteração de uma realidade, seja ela qual for. (1982, p. 7-8) A ideia de movimento na filosofia grega, no quadro das quatro possibilidades acima referidas, subjaz ao conceito de tempo como passagem constante e consequente, a qual afetará a existência dos objetos sitos no fluxo temporal, alterando-lhes a realidade, motivo pelo qual existência e tempo estão intrinsecamente atrelados. Ainda de acordo com Chauí (1982), o movimento, cujo paradigma epistemológico se aproxima de uma certa noção de tempo, desemboca na própria teoria aristotélica das quatro causas (causa material, causa formal, causa motriz e causa final), a qual é explicada a partir da relação objeto x tempo: qualquer corpo está temporalmente condicionado a algum tipo de movimento por meio da ou para a existência de qualquer uma das quatro causas, e tal fato não seria possível fora dos vetores da temporalidade. A concepção grega do movimento e o raciocínio aristotélico sobre as causalidades deixam ver muito claramente a ideia de tempo como um fluxo existencial constante – porque o seu ritmo não se altera – e material – uma vez que, nessa abordagem clássica, é nos seres e objetos do mundo que o tempo é percebido, manifestando-se mais pelo seu efeito do que pela sua causa efetiva. A causa do tempo, neste caso, seria a sua própria passagem, antes da qual não existiriam precedentes motivadores empíricos a não ser o próprio tempo em sua força essencial, constante e imutável (Cf. CHAUÍ, 1982). Por seu turno, segundo Elias (1988), o recorte do contínuo temporal em minutos, horas, dias, semanas, meses e anos incitou uma outra episteme para o tempo, a qual, desta vez, é mais socio-histórica e cultural do que propriamente física: o acúmulo desses instantes, devidamente organizados de acordo com os precedentes astrofenomenológicos, produz as eras e os séculos, conceitos extremamente produtivos para o entendimento de determinada comunidade humana no tocante à sua cultura, ideologia e dinâmicas culturais. E é exatamente sobre esse recorte temporal de que fala Elias, e de que Chauí, através dos gregos, nos relembra, sobre a relação do movimento com o tempo, fatos que evidenciamos no desfecho de “O resto é perfume...”, quando o doido arranca a flor (movimento brusco), para revelar que a vida é “este cacho de lilás... Mais nada.” (o deíctico “este” remete para a temporalidade presente, alterando a 7faces • 146


realidade através de um movimento inesperado e destruidor desta flor que agora está na mão do doido). Quererá isto dizer que a vida é a ação de agora, é o ato e/ou o movimento de mudança de um objeto/corpo. Se o “resto é perfume”, esse “resto” pode ser a evanescência da vida, e ao mesmo tempo a sua persistência imaterial, que talvez poucos apenas sentem (como sentimos o perfume de uma flor) e por isso mesmo não conseguem compreender o real sentido da morte na vida e vice-versa. Segundo Florbela, cremos, há dois espaçostempos: o de agora, o vivido e experenciado num plano terreno, e um outro, quase incompreensível, que só os idealizadores, os que estão acima do senso comum (como o doido), os que dialogam com os mortos, conseguem compreender. Por fim, ao contar o que se passou ao narrador-personagem, sua amiga entra num estado de autorreflexão, perdendo-se em seus pensamentos: “olhando o mar que as primeiras velas sulcavam. E, mãos no regaço, vi-a pela primeira vez imóvel, esquecida e mim e de tudo” (2015, p.154). Isto lembra-nos as reflexões de Santo Agostinho sobre o tempo, que induz, nas suas Confissões, como bem explicita João Fortaleza de Aquino, a ideia de que narrar é entendido “como a forma pela qual podemos exercitar nossa experiência com a passagem do tempo, dizer dela, testemunhar o que já passou” (2016, p. 86). Atesta-se então que a morte não é apenas contígua à vida, visto que com ela se relaciona intimamente; sem esta relação seria impossível entender a complexidade da passagem do tempo. No caso, este conto reaviva nos leitores a lembrança e a presença dos mortos, que sempre continuarão a existir de outra forma, em nossas vidas, tal como a do seu irmão, Apeles Espanca, continua, pela Literatura, a existir eternamente em sua obra. Referências ALONSO, Cláudia Pazos; SILVA, Fabio Mario da. “Critérios da Edição e da Transcrição dos Textos”. In: ESPANCA, Florbela. As máscaras do destino. Obras Completas de Florbela Espanca. Lisboa: Editorial Estampa, 2015, p. 89-108. AQUINO, João Emiliano Fortaleza de. Memória e consciência histórica. Fortaleza: EdUECE, 2006. CARVALHO, Aline Alves de. A queda dos anjos nos domínios da literatura – uma leitura de As Máscaras do Destino de Florbela Espanca. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008. CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: 1982. DAL FARRA, Maria Lúcia. “Estudos introdutórios”. In: ESPANCA, Florbela. Afinado desconcerto (contos, cartas, diário). São Paulo: Iluminuras, 2002, p. 11-65.

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ESPANCA, Florbela. As máscaras do destino. Obras Completas de Florbela Espanca. Lisboa: Editorial Estampa, 2015. ELIAS, Norbert. Sobre o Tempo. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. MORIN, Edgar. O homem e a morte. Lisboa: Publicações Europa-América, 1970. SANTOS, Mariana Dratovsky Azevedo. O Presente do Indicativo: forma, significado e função. Dissertação (Mestrado em Letras). Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro 2007.

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Rebeca Rose dos Santos Leandro Juiz de Fora – Minas Gerais

Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal Fluminense (UFF); investiga as interseções entre arte e cultura e sua relação de interdependência com as esferas políticas nacionais e internacionais. Possui experiência com trabalho ativista pela Anistia Internacional e experiência profissional com educação, fotografia e projetos curatoriais, tendo participado, como co-curadora e artista respectivamente, das exposições coletivas “Cartas para Encontrar o Amor” (Centro de Artes da UFF), “As Caixas” (Museu da Memória Candanga) e de publicações independentes.

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Inundações polares Aos desavisados e aos que estão em fuga há 2 bilhões de anos quando África e América do Sul eram ainda uma coisa só somente as rochas puderam testemunhar o divórcio somente as rochas sobreviveram ao aparecimento do Atlântico entre uma dor e outra as ortognaisses liquefeitas no sofá da sala

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Tudo é santo Às 17h43 de quinta, uma criança entediada com a liturgia da palavra procura distrações na arquitetura colonial, lambida de óleo de baleia e enfeitiçada de coxas. À essa mesma hora, na saída do mercado, uma mulher dá uns trocados ao pivete, que sai correndo em busca da edição fresca do nike double air. Um ashaninka ouve o mantra das aves, fotografa uma colônia de cupins e comemora dançando os passos do Michael Jackson. O sol já vai morrendo do outro lado e os adolescentes do litoral matam a cretina tabuada do 7 pra dar com as caras nos corais, fazendo graça aos amigos e à si mesmos. Às 18h36, a lua reivindica seu espaço no alto e os pequenos poetas assistem ao sermão silencioso das árvores. Sim, a forma fala mais que o conteúdo, assim como a dança dos palimpsestos e a criança que eu e tu fomos, rabiscando entes nas paredes e confirmando que o rastro de verde não dá pra não ver.

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Número atômico Duas antenas parabólicas em cima de um bloco de concreto parecem ter muito o que conversar enquanto as lâmpadas se revezam entre os apartamentos e os moradores se escondem atrás das cortinas. Ao menos daqui há um enorme pedaço de céu na janela, laranja cinza ou azul pesado, os graus desembaçam. Mas caramba, daqui não se escuta nem se toca nada. Já cá não confiamos nada mais nos salários de um dólar de gente como Mark Zuckerberg nem nas torcidas organizadas em telas, atrás delas. Não vendemos mais cavalos nem auroques mas estamos todos às voltas com ferraduras e antolhos. Os números carregaram sempre muitos significados, não só ao que convém a aritmética, e agora não seria diferente. 13 e 17 dois números primos somando 30, este mesmo, atômico, a furar nosso zinco.

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Nathalia Catharina São Paulo

Nasceu em São Paulo, em 1981. É mestre em Texto e Cena pelo Departamento. de Artes Cênicas da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), com pesquisa no limiar das artes cênicas, literatura e filosofia. É bacharel em dança e performance – Comunicação das Artes do Corpo/PUC-SP. É professora universitária, atuando como dramaturga, bailarina, diretora, educadora, atriz. É tradutora francês-português.

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Jetztzeit ANTÍDOTO DIALÉTICO

Suspensa a ampulheta do tempo Suspenso todo pensamento sem desejo Jetztzeit! Tempo do Agora Suspenso todo corpo sem utopia, toda palavra sem sonho.

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NOSSAS BOCAS OCAS A Avenida Marx esvaziava Sobravam suas construções inabitadas. Em um pôr do sol, ela acinzentava atrás de uma das janelas Invisíveis. Fugiu do limiar da calçada e se abrigou Sob ruínas cheias de espanto sangue Sua revolução fracassava Ela agora revolucionava Em um peito parto vazio ardente. Rezava no meio-fio para o Deus puro Mortal. Ela mesma um pôr do sol distante, sonhado. O concreto envelhecia Sua boca era agora o vazio De uma cidade escurecida nas salivas já secas ruidosas como mortos em agonia. Sorria na dor sangue Campos de flores em sua fantasia. Bocas alimentadas e alegres Em delírio Romântico-fúnebre. Seus olhos cansados, Nossas bocas ocas Algo para comer O que há para ver.

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FOTO FLUE Nova Iorque Jazz Sexo Blues Fonte tátil Tus

Tête estérea Tosse Nus InfantilBlues

Fronte estéril Tus Fly me to the moon Foto flue Till the moon

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Alaor Rocha Goiânia – Goiás

Nasceu em São Paulo e mora em Goiânia desde 2016. Tem contos publicados no livro Equinócios de amor (Editora Alcantis) e nas revistas eletrônicas Pulp Feek e Trasgo; e poemas publicados no livro O segredo da crisálida (Editora Andross). Na Amazon editou por conta própria dois e-books: Mulheres, sereias e aliens (romance) e Vênus acena de volta (contos).

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les mains dans ma bouche um espelho no quarto que não é teu pequenas frestas na chama da vela minhas piadas de gosto acre não têm como voltar pelos trilhos não hoje, e você sabe disso mas finge insistir em um não-eu — meu reflexo ainda brilha — e fecha nossos olhos e lentes em preto e branco caleidoscópico você abre as mãos e cala minha boca deixa escorrer a vela chama e ninguém responde

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riso frouxo o outdoor e a quadra da beija-flor os riscos vermelhos descendo pelas ruas tudo escuro exceto pelo ruído descendo e descendo até o grito acender acordo. derrubo duas moedas na mão enrugada de um garoto de pálpebras pesadas demais engasgo com o primeiro gole do café que ainda se dissolve em mim e encaro a rua o riso frouxo no outdoor fotos três por quatro dez e meia meu pai esperava minha mãe com um jantar pela metade a fumaça subindo pelo meu céu distante ela amava. números irregulares no micro-ondas números irracionais na televisão tecido puído sobre o corpo seus olhos não encontram meu rosto com medo de ler minhas rugas e lágrimas. ouço algo sobre divórcio ela não pinta as unhas há meses minha boca com um riso frouxo coloco duas moedas sobre meus olhos e desço ao último círculo sem saber que horas são.

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Sempiternidade Camus está caçando sereias lá no quintal. Não é um bom dia para fazer isso: há nuvens demais no céu. O seu vinho acabou ficando na geladeira — não tive vontade de beber. Minha sobriedade acabou com o mundo. Mas você é diferente. Pelo menos até amanhã.

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Paulo Emílio Azevedo Rio de Janeiro

Professor, Doutor pela PUC-RJ em Ciências Sociais, escritor, antropólogo e criador. Recebeu o prêmio Rumos Educação, Cultura e Arte (2008/10)/Itaú Cultural e “Nada sobre nós sem nós” (2011-12)/Escola Brasil/MINC para publicação de Notas sobre outros corpos possíveis (2014) – com o mesmo concorreu a final do Prêmio Rio Literário (2015). Idealizador do sarau “Tagarela, o maior slam do mundo”. Em 2017, foi um dos escritores da Printemps Littéraire Brésilien/Paris Sorbonne Université.

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Queria que a vida fosse uma música do Nick Cave Queria que a vida fosse uma música do Nick Cave, que a Dança não fosse tantas vezes de plástico, que no cinema não houvesse pipocas no chão e que a Literatura fosse mais escrita em bordéis do que nas mãos de tanta vaidade babaca. Queria tanta coisa, mandar uma carta de amor para a moça do CCBB, outra com pedido de desculpas para meu vizinho banguela do segundo andar, dar um soco na cara da covardia, beijar a mão da Elza Soares, fazer meu filho ainda mais feliz, ensinar a Física (quero dizer a força da gravidade) do carinho para meu semelhante, abraçar meu pai sem pressa da morte, sentar na porta do céu e tomar um porre com Deus. quem sabe assim, ele me conta onde escondeu meu irmão caçula. Eu nem quero tanta coisa, às vezes fico satisfeito apenas com o Nick Cave.

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Moira Marques Portugal São Paulo

Recentemente formada Bacharel em Letras / Português-Inglês pela Universidade de São Paulo (USP). Ainda não têm livros publicados, mas muitos poemas em elaboração. Fora isso, se dedica à tradução voluntária para o portal Global Voices em Língua Portuguesa.

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Amor daquela que haverias de amar Diadorins, donzelas tão ansiadas Por sertões seguimos ébrias, mareadas Não uma, mas as mil uma que hei de ser: Sheherazade ou a outra, que de não ser já me doí por tantas noites, mil e uma.

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Antes que as luzes se apaguem Carrega nas mãos a própria solidão: – Não me abandone – ela cala. Um espectro que chora, Na pequenez de menina Corpúsculo luminoso na retina De outro alguém

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Meu amor, sensualíssimo é o amargor da sua presença trâmite na tristeza e na demência fonte eterna do esplendor Como as putas, e as princesinhas mortas como as parturientes ricas bem compostas rastejo súplice e docemente pérola rasa dos muitos seios Meu amor, busca-me agora submersa se ascendo na forma estagnada e com pressa é somente a paixão de um paraíso frustrado da bile, do coito, do astrolábio rachado Presa ao limbo do mundo, anseio pelo sono profundo, que me desperte dessa surpresa despudorada da incongruência reticente de um deus Não ser um poema de amor, só um poema de amor que só um poema de amor é tão, mas tão vulgar choro lágrimas de amor e mediocridade minha segurança é meu mal estar Meu amor, provar-se da raiva mútua arraigada Primavera do tempo, destroços, e o nada dor incomensurável de um lar Seja sua a espada a perpassa-me o peito quem sabe então seria sua, e de direito essa eterna busca sempre renovada rechaçada rosa cálida de além-mar

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No meu peito nasceu uma flor cumprimentou as paredes desbotadas do quarto e sorriu, ainda trêmula do impulso inicial Sob a graça de minhas pestanas das florezinhas pintadas na parede, sós e insanas espichou-se regada a lágrimas e sal Cultivei minha florzinha sem saber à que viera temendo o dia em que se visse triste e velha enquanto suas pétalas desfraldavam-se ao sol Sob a benção amarelada da lâmpada recolhi o último instante da absurda florzinha e estaquei no silêncio cristalino do quarto Agora, com a artificial nesga poente balbucia meu regaço a escuta de nova florzinha que chegará num rasgo, certamente, com a luz da manhã

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Tibério Júlio de Albuquerque Bastos Alagoas – Maceió

Nasceu e vive em Maceió.

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a caça de hemingway você olha para o teto, para as cores de um show de televisão, para o vai e vem do trânsito, para cada um dos estranhos que caminham ali em passos de dias sob sol e que você nunca irá conhecer. olha, e de uma forma ou de outra aguarda, pois é um aguardo, é um momento de andar e ir, de esperar e escutar os sons e os sonhos produzidos, uma palha de harmonia na dissonância rítmica, pois todo dia é dia de pesca, de esquife e caça, a labuta crucial do ápice do homem desde o seu começo, e uns conseguem seus graúdos, outros... outros continuam sobre o oceano, batidos e apáticos, aguardando e aguardando. o oceano não pertence a todos.

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qual a noite de amanhã e a de depois de amanhã? há noites em que se vive, e outras em que se morre. há também aquelas noites nubladas, de cigarros apenas e enjoos de tragos. há outras deslumbradas, do futuro e mais futuro, do amanhã, aquelas que renascem. há nas esquinas as noites esquecidas, de passos rastejados, as noites comuns, noites de homem. há noites também sem estrelas, só lua, ou então só lua, nada de estrelas. há tantas. hoje é… é noite de idas e voltas, é noite. é daquelas que ela toca, que ela tenta uma, duas notas, não funciona, mas vai na terceira, e se encosta, corpo de madeira ao de pele, e canta, e eu escuto. é noite escura, porque tem as claras, é noite sem amanhã.

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necessidade de fingimento ĂŠ necessĂĄrio fingir eternidade para que o presente se mantenha.

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© Randy Mora

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Por Andreia de Lima Andrade

Em algumas obras literárias, a linha que perpassa a fronteira entre a figura do autor e a do narrador se tornou bastante fluida. Esses textos, geralmente, possuem um narrador de primeira pessoa, e traz similaridades entre autor “empírico” e “implícito”. Apesar de a narrativa da poetisa portuguesa, Florbela Espanca, parecer se distanciar de um modelo autobiográfico, pois o narrador é de terceira pessoa, caracterizamos seus contos como autoficcionais. 7faces • 185


Florbela Espanca ficcionaliza a vida ao mesmo tempo que vive a arte. Em muitos dos seus contos ela diminui as fronteiras entre realidade e ficção. Neste sentido, enxergamos os aspectos modernos na produção literária Florbeliana, escritora que apesar de ter produzido no início do século XX, mais precisamente a partir de 1919, ano da publicação de seu primeiro livro, não se alinhou aos movimentos artísticos da época, passando à margem do cânone, sendo uma poeta que não se enquadrou em quaisquer movimentos literários. Encontramos traços das mais diversas estéticas literárias, tanto na sua obra poética quanto na sua prosa. Fazemos tal ressalva, para chamar atenção para o lugar de Florbela na história e crítica literária e sua representatividade enquanto uma voz feminina na literatura portuguesa, tão parca dela. Ao narrar os caminhos da relação entre vida e obra em Florbela Espanca, acreditamos ser relevante desenhar uma pequena cartografia biográfica. Filha de pai incógnito, na certidão de nascimento, mesmo sendo criada por ele e por sua esposa, Mariana Inglesa. A mãe biológica de Florbela, Antônia Lobo, faleceu quando a poetisa tinha 14 anos. A evolução intelectual da escritora não foi bem vista por professores e outras pessoas, em sua época. Sofreu dois abortos, tidos por involuntários, que teriam infectado ovários e pulmões. Passou por dois divórcios; casou-se três vezes, mas, vivenciou várias paixões. Apresentou um quadro de neurose. Segundo Dal Farra, teve de deparar-se com dificuldades financeiras; abalou-se muito com a morte do amado irmão Apeles; não foi contratada como atriz para o filme Dança dos paroxismos (DAL FARRA, 2012, p. 47); tentou suicídio duas vezes e teve uma morte precoce, provavelmente na terceira tentativa de suicídio. Ao menos no quesito de sofrer a negação da literatura elaborada por mulheres, não sofreu sozinha, “[...] toda a produção feminina da época, independentemente de seu valor, era por si só desvalorizada” (SILVA, 2002, p. 85). Foram dois os livros de contos de Florbela que chegaram ao público: O dominó preto e As máscaras do destino. Este último, escrito em 1927, após a morte do querido irmão Apeles: o livro é dedicado a ele, e publicado, postumamente, em 1931. Para Junqueira (2003, p. 76), “nessas narrativas lutuosas, dedicadas ao irmão morto, permanece a obsessão como sinal distintivo de todos os seus protagonistas”. A estudiosa nos adverte que essa obsessão é também percebida nos contos de O dominó preto, no entanto, n’ As Máscaras do Destino a morte é “objeto imutável das ideias fixas das personagens – os seus 7faces • 186


mistérios, o fascínio que alguns sentem por ela, as marcas profundas e indeléveis que ela deixa nos que ficam vivos” (JUNQUEIRA, 2003, p. 76). A obsessão presente nas personagens deste livro mostra que estes procuram a dominadora contra face de poderio da morte. Esta se apresenta inevitável e provoca em alguns protagonistas uma profunda angústia, encontramos essa temática nos contos “O Aviador”; “A Morta”; “Os Mortos não voltam”; “O Inventor” e “Sobrenatural”. Apesar de não estarmos abordando o tema morte, não podemos deixar de citá-lo, uma vez que está presente nos três contos aqui analisados. Percebemos que esta não se incide simplesmente a um aspecto finalista ou de um fim trágico, seu alcance é maior. Inclusive corrobora a visão Heideggeriana, já que o filósofo trata a morte como um fenômeno humano, assim o homem é um ser – para – a – morte. Chama-nos atenção a convicção de fatalidade presente no enredo, nas imagens e diálogos desses contos e em quase todo o livro. Cada personagem descobre que tem que encarar a mordaz condição humana. As máscaras do destino se mostram implacáveis aos protagonistas da obra. Florbela escreveu no prefácio do livro As máscaras do destino (2000): Terminei há pouco um livro de contos que tenciono publicar no próximo inverno, livro que me deu muito trabalho e muita canseira, principalmente depois do formidável choque da morte do meu estremecido irmão, do meu morto mais lembrado que nenhum vivo. (ESPANCA, 2000, p. 171) Podemos considerar estas palavras como uma espécie de pacto com o leitor. Um bom escritor pode chamar atenção para a sua biografia através do texto ficcional, no entanto, é o texto literário que se destaca em primeiro plano. A escrita autoficcional permite ao autor criar e recriar sobre um episódio ou uma experiência de sua vida. Não existe a obrigação de linearidade, de início – meio – fim, a narrativa pode partir de um fragmento, fazendo um pequeno recorte no tempo vivido. Esse dado pode ser observado “n’O aviador”, inclusive podemos interligar os três contos aqui analisados, há uma unidade, como se fosse uma narrativa única. Contudo, a autora não o faz de forma linear.

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Apeles Espanca

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“O Aviador” possui uma narrativa em terceira pessoa. No início do conto há uma descrição minuciosa e metafórica. Ao leitor, apresentase uma verdadeira pintura: No veludo glauco do rio lateja fremente a carícia ardente do Sol; as suas mãos doiradas, como afiadas garras de oiro, amarfanham as ondas pequeninas, estorcendo-as voluptuosamente, fazendo-as arfar, suspirar, gemer como um infinito seio nu. Ao alto, os lenços claros, desdobrados, das gaivotas, dizendo adeus aos que andam perdidos sobre as águas do mar... Algumas velas no rio, manchazinhas de frescura no crepitar da fornalha. Mais nada. (ESPANCA, 2000, p.177) Destacamos o trecho acima, pois além de demonstrar o estilo da poetisa, nos denota um sonho através de uma analogia mítica. A princípio não compreendemos a temática da narrativa, mesmo a escritora nos deixando esclarecidas de que tanto o conto quanto o livro é destinado ao seu irmão, “ao meu irmão, ao meu querido morto” e termina a dedicatória dizendo “este livro é dum Morto, este livro é do meu Morto. Que os vivos passem adiante...” (ESPANCA, 2000, p. 176). O início do texto nos toma pela beleza da descrição “As tintas flamejam, ainda húmidas: são borrões vermelhos as colinas em volta [...] A vida estremece apenas, pairando quase imóvel, numa agitação toda interior” (ESPANCA, 2000, p. 177). Se relacionarmos o conto com a concepção doubrovskyana de que a autoficção “não mente, não disfarça, mas enuncia na forma que escolheu para si: ficção de acontecimentos estritamente reais”1 (DOUBROVSKY, 1977, capa do livro Fils), podemos dizer que temos um pacto ficcional. Para Doubrovsky, a autoficção é uma história em que “a matéria é inteiramente autobiográfica, a maneira inteiramente ficcional”2 (DOUBROVSKY, 2011, p. 24). É justamente o que vemos no conto que dá início a obra As máscaras do destino. Vale ressaltar que o estudioso toma a palavra ficção no sentido de modelar, de dar forma. Por isso, faz parte de seu conceito que a autoficção é “ficção de acontecimentos e fatos estritamente reais”. “O aviador” é ficção com base em acontecimentos reais. No entanto, não segue a máxima do conceito do “pai” da autoficção, uma vez que não encontramos no texto identidade onomástica, ou seja, a homonímia entre autor, narrador e personagem principal. Além de o 7faces • 189


narrador não ser de primeira pessoa, como acontece na maioria dos textos que se pretendem inscritos na literatura do “eu”. Entretanto, ainda assim classificamos os contos aqui analisados, a exemplo do supracitado, como autoficcionais, pois entendemos que o biográfico e o ficcional podem conviver num mesmo espaço literário, sendo possível reconhecer na obra os elementos que pertencem aos dois domínios: autoficção. Para Evandro Nascimento (2010, p. 197) “os autoficcionalistas partem do inacabamento e das fragilidades de sua vida!”. Vale ressaltar que, se apropriando da fala de Nascimento, estamos fazendo uma analogia entre a escritura dos autores caracterizados como autoficcionalistas e a produção florbeliana que denominamos como autoficcional. Florbela Espanca utilizando-se do insólito, recria a realidade. Produz um conto que dialoga com o mito de Ícaro ao dar asas a personagem. Na mitologia, Ícaro com asas artificiais, que foram criadas por seu pai – Dédalo, tomado pelo desejo de voar próximo ao sol, caiu no mar Egeu. As asas que eram feitas de cera e penas de gaivota derreteram e livre, indómito, sereno, na sua mísera couraça de pano azul, estendeu em cruz os braços, que transformou em asas! [...] E, lá no alto, o homem está contente. Como quem atira ao vento, num gesto de desdém, um punhado de pétalas, atira cá para baixo uns miseráveis restos de oiro que levou, do seu oiro de lembranças de que se tinha esquecido. O homem está contente. [...] O pintor de génio endoideceu. [...] É irisado agora o veludo glauco do rio; o sol atira-lhe, a rir, como um menino, pródigo e inconsciente, as suas últimas gemas. As colinas, em volta, são mãos abertas de assassino, e o casario, chapeado de luz, é um manto de púrpura rasgado, cujos farrapos vão prender-se ainda nas labaredas do horizonte a arder. O homem está contente. Atira as asas mais ao alto, escalando os cimos infinitos, já fora do mundo, na sensação maravilhosa e embriagadora de um ser que se ultrapassa! Sente-se um deus! ... As mãos desenclavinhamse, desprendem-se lhe da terra onde as tem presas um derradeiro fio de ouro ... e cai na eternidade ... Tanto azul! ... (ESPANCA, 2000, p. 179-180)

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Lemos a descrição metaforizada da queda do avião. Não existe um relato retrospectivo, mas, vemos a presentificação do passado. É a recriação do real por meio da linguagem ou como afirmou Doubrovsky, na capa do livro Fils, “encontro, fios de palavras, aliterações, assonâncias, dissonâncias, escrita de antes ou de depois da Literatura [...] que espera compartilhar seu prazer”. As nereidas que o encontraram não sabiam se o homem contente era filho dos homens ou dos deuses. “Não vês que tem asas? ... Não vês que sorri? ...” (ESPANCA, 2000, p. 181). Uma das princesas dos mares sugere: “vamos deitá-lo lá no fundo, naquele leito de opalas que o mar do Oriente nos mandou ...” (ESPANCA, 2000, p. 182). O trecho, que recortamos acima, descreve também a alegria do protagonista em desbravar os céus, em voar mais alto, parece que só no alto o homem está contente, essa afirmação é enfatizada três vezes, só nesse excerto. O que sugere a ideia de autoafirmação de uma verdade para o sujeito empírico que está por trás da pena. E ratifica a percepção da escrita como catarse, parece que a dor do trauma será amenizada com a convicção de que o aviador não teve um fim nefasto, uma vez que deixou lá em baixo todo fardo pesado que carregara ao nascer (ESPANCA, 2000). E “ficou a dormir no fundo do mar como se fora um filho dos deuses” (ESPANCA, 2000, p. 183). O segundo conto d’As máscaras do destino é “A morta”. A narrativa inicia com a seguinte afirmativa: “Isto aconteceu” (ESPANCA, 2000, p. 184). A morta ouviu dar a última badalada da meia-noite, ergueu os braços e levantou a tampa do caixão. Desceu devagarinho, circunvagou em redor os olhos de pupila sem luz; os outros mortos, bem mortos, dormiam pesadamente. [...] Avançou lentamente pela avenida soturna, voltando para ele os glóbulos vítreos dos seus olhos sem luz. Parou um momento, clarão no meio das sombras, a ver um pequenino, nu e branco como mármore grego, que piedosamente se entretinha a encher de lágrimas uma urna partida, onde as pombas viriam beber de dia. Um suicida, escavando a terra com as unhas, procurava seu sonho, por que se tinha perdido. (ESPANCA, 2000, p. 184) Este é o relato do ocorrido. Através desta pequena descrição, fica nítido que a estória é indiferente a verossimilhança. O fantástico 7faces • 191


permeia todo o conto. E o título mostra que o funéreo continua sendo a temática que rege a narrativa florbeliana. Conforme Elizabeth Batista: A autora evidencia, desde o primeiro conto de As Máscaras do Destino, a preferência pela criação de um repertório, cujo suporte conforma a matização estéticoideológica de caráter simbolista. A autora parece ter lançado o olhar para o clássico que a mitologia pagã permitia, em sintonia com a revolução impressionista, na qual pictoriografa a natureza, não segundo Teócrito e Virgílio, mas traduzindo todas as nuanças do deslumbramento desse olhar, tal como um pintor ou um fotógrafo: mas o que a tessitura textual, tal como a tela ou a fotografia frequentemente revelam, perante o olhar atônito de Florbela, é evanescência da vida e da forma humana (BATISTA, 2012, p.18). Destacamos o caráter simbolista-decadentista dos contos florbelianos, aqui, analisados. Florbela se aproxima dessa estética finissecular desde o tema principal que permeia os contos, a morte, até as imagens evocadas através da forte descrição metafórica. Não podemos deixar de destacar a aproximação com a estética Romântica, uma vez que o mistério, o sombrio e o soturno envolvem toda a narrativa, e na tessitura dos acontecimentos está uma bela história de amor. A linguagem permite transitar do imaginário ao real, o insólito emerge como metáfora: recria a realidade, desnuda a história de amor existente entre a morta e o seu noivo. O texto traz o fantasmagórico. Florbela, na sua narrativa, ressuscita os mortos. Há uma quebra dos paradigmas do real, logo, como podemos atribuir um caráter de autoficcionalidade ao texto? Segundo Vicent Colonna (2004), a autoficção é um procedimento de leitura. O estudioso cria quatro tipologias para autoficção, dentre elas está a autoficção fantástica e a intrusa (autoral). De acordo com Colonna (2014), na autoficção fantástica há uma história irreal, “o autor não se limita a acomodar a existência, mas vai, antes, inventá-la; a distância entre a vida e o escrito é irredutível, a confusão impossível, a ficção de si total” (COLONNA, 2014, p. 39). É como se através do inverossímil, a obra não pudesse ser associada à vida do escritor. No entanto, vale ressaltar que nesta tipologia o autor é o herói, está no centro da obra, é o protagonista. Não é o que 7faces • 192


acontece com o conto de Florbela. A autora cria um narrador de terceira pessoa, fingindo não se envolver com a estória narrada, no entanto, a morta parece projetar Florbela mortificada pela perda do irmão3. Ademais, há uma representação de si situada em um mundo imaginário, conforme sugere a autoficção fantástica. Já na autoficção intrusiva (autoral), o “narrador-autor” está à margem da intriga. Suporta um narrador de terceira pessoa, no entanto este se intromete na obra, dar opinião e interpela o leitor. Geralmente se quer conferir um tom de verdade ao texto. Em “A morta”, vemos características desses dois tipos de autoficção. O narrador parece se distanciar da realidade ao se utilizar do insólito, mas inicia a estória conferindo-lhe um caráter de verdade: “Isto aconteceu”. Lemos os contos como uma sequência, uma unidade. O fio condutor é o tema e a relação das personagens principais. O aviador caiu na imensidão das águas; a morta, ao acordar, lembrou do noivo. A Morta caminhava num passo de morta, um ciciar de brisa na folhagem: os sapatinhos de cetim [...] sabia onde ia. A Morta ia lembrar-se, que os mortos também se lembram [...] Sentira, num êxtase sobre-humano, num assombroso sair de si, numa prodigiosa transfiguração de todas as fibras de seu ser, a pressão duns dedos quentes que lhe desciam as pálpebras pelas pupilas paradas. Uma boca que ela nunca sonhara tão macia e tão fresca, roçara-lhe a macieza e a frescura da sua, em beijos miudinhos, cariciosos, castos como aquelas gotas de chuva que, nas tardes de Verão, infantilmente, recolhia nas suas mãos estendidas. (ESPANCA, 2000, p. 185) Deste momento em diante, o noivo e a morta se encontravam todas as tardes, conversavam, mas nem os vivos nem os outros mortos os entendiam. De repente, ao cair do crepúsculo, a Morta esperara o noivo que não aparecera. Vários dias, de espera, se passaram; até que ela saiu soturna pela avenida a procura do seu vivo. “Atravessou ruas ermas, estradas solitárias [...] foi então que chegou aos ouvidos um ciciar brandinho ... seriam passos? ... Ruflar de asas? ...”, deparou-se com o “Marulho de ondas pequeninas. O rio” (ESPANCA, 2000, p. 190). Ela debruçou-se sobre as ondas: “E a Morta foi mais uma onda, uma onda pequenina, uma onda azul na taça de prata a faiscar ... Isto aconteceu” (p. 190). 7faces • 193


O diálogo com o conto que o antecede está evidente. A Morta encontrou o seu noivo no rio e nele se transformou. Chamamos atenção para a simbologia do rio, uma vez que simboliza o fluir das águas, a fertilidade, a mudança constante, a existência humana, a sucessão dos desejos e a possibilidade de seus desvios. A sua correnteza representa o fluxo da vida e da morte. A narrativa termina com o caixão encontrado vazio, na cidade dos mortos. O “Inventor” é o sexto conto do livro e nos sugere a infância do aviador, “Era pequerrucho, ainda engatinhava, e já queria ser marinheiro” (ESPANCA, 2000, p. 227). O conto permeado de descrições detalhadas nos mostra a obsessão pela marinha, mas, desde pequeno pendia para o trágico. Com os olhitos arregalados debruçava-se no abismo, contemplava extático as misteriosas profundidades, a água a tremer em ziguezagues irisados e o cobre da bacia a faiscar no fundo, amarelo como oiro. De vez em quando fazia naufrágio: pernas ao ar num pânico indescritível, berrava como um possesso, todo inundado, a sua bela valentia por água abaixo, procurando as saias da mãe para se agarrar como um náufrago a valer à mais pequenina tábua de salvação (ESPANCA, 2000, p. 227). Essa narrativa se passa enquanto o pequenino tomava banho, além do desejo pela marinha, já simulava naufrágios que lhe fazia aspirar ainda mais por estar nos mares. Passou toda infância e início da juventude com essa obsessão, “na escola é um tormento para lhe captarem a atenção [...] das folhas arrancadas aos cadernos faz espetaculosos chapéus de almirante, constrói frotas que põe a navegar [...]” (ESPANCA, 2000, p. 231). Ao longo da história, vemos esse desejo latente em tudo que a personagem faz; ler Júlio Verne várias vezes, histórias de pirata, os “naufrágios heroicos entusiasmamno”, até que se tornou marinheiro. No dia em que pela primeira vez envergou a linda farda da Escola, quando o estreito galão de aspirante lhe atravessou a manga do dólman azul-escuro, foi como se S. Pedro abrisse diante dele, de par em par, as bemaventuradas portas do paraíso. Era marinheiro! Sabe lá a outra gente o que é ser marinheiro! Para ele, ser marinheiro era a única maneira de ser homem, era viver a 7faces • 194


vida mais ampla, mais livre, mais sã, mais alta que nenhuma outra neste mundo! O seu forte coração, sedento de liberdade, era, no seu rude arcaboiço de marujo, como um pequeno jaguar saltando do fundo da jaula, estreita e lôbrega, contra as barras de ferro que o retêm afastado da selva rumorosa. (ESPANCA, 2000, p. 232) Ao estar num navio pela primeira vez, lembrou-se do episódio do banho, descrito acima, sorriu com tamanha satisfação que lhe sobreveio uma luminosidade nos olhos e um contentamento triunfal. Mas, esta durou pouco, pois voltou furioso dos primeiros meses no mar, “aquilo, afinal, era uma maçada, uma tremendíssima maçada! O mar, todo igual, monótono embalador de indolências” (ESPANCA, 2000, p. 233). Não havia piratas, fantasmas, naufrágios heroicos, nenhum perigo, “o mar era muito mais lindo nos livros e quadros. Os poetas e os artistas tinham-no feito maior do que ele era” (p. 233). Conforme dito anteriormente, as personagens têm a tendência ao trágico. Logo, para o agora marinheiro, não havia sentido em sê-lo, uma vez que a calmaria o desiludiu, foi então que olhou para imensidão do céu. Aquilo afinal era uma maçada, uma tremendíssima maçada”, e os olhos claros, investigadores, de olhar acerado como o das aves de rapina, procuraram ardentemente outra coisa. Franziu os sobrolhos no ar recolhido e concentrado de quem excogita, de quem procura uma solução difícil... Olhou o céu profundo... e achou! Um avião! Era aquilo mesmo. Ser aviador é melhor que ser marinheiro! É abraçar no mesmo abraço o céu e o mar! Na linguagem dos símbolos, a âncora, definindo a esperança, nunca poderá valer às asas que são a libertação. A âncora agarra-se ao fundo e fica, as asas abrem-se no espaço e penetram o céu como um desejo de homem a carne palpitante de uma virgem que possui. Seria aviador! E foi. (ESPANCA, 2000, p. 233 – 234 Grifo nosso) A partir deste momento é evidente a relação entre “O Aviador” e “O Inventor”. Ademais, dialogamos com a visão Heideggeriana de finitude, uma vez que segundo Heidegger (apud WERLE, 2003) o ser não deve compreender a sua existência como um todo, deixando a consciência da morte como parte distante, contingente, improvável da 7faces • 195


compreensão da existência. O ser, habilitado de capacidade para compreender conscientemente a realidade, considerando a morte, sem que esta seja vista como assistente da história, sem olvidá-la nem tampouco ocultá-la, se mostra capaz de se orientar tomando como base a compreensão de seu fim. Este fim, por sua vez não tem data determinada, submetendo o homem assim a ser contido ao fim das possibilidades do ser, sem que tenha consciência temporal de quando isso vai acontecer. Quando pela primeira vez voou, não se esqueceu de sentar na carlinga, ao seu lado, ao lado do seu coração, aquela que dali em diante seria a companheira de todos os dias, a companheira indefectível de todos os aviadores: a Morte (ESPANCA, 2000, p. 234) Esse trecho do conto parece dialogar com a concepção que trouxemos acima, pois para Heidegger (1999), o homem está especialmente mediado por seu passado: o ser do homem é um "ser que caminha para a morte" e sua relação com o mundo concretiza-se a partir dos conceitos de preocupação, angústia, conhecimento e complexo de culpa. O homem deve tentar "saltar", fugindo de sua condição cotidiana para atingir seu verdadeiro "eu". O inventor vai fazer justamente isso, após a consciência de sua companheira inseparável, a morte, é quando decide inventar um motor que não falhe, a fim de que possa sempre contemplar “o céu coalhado de asas como o mar de velas” (ESPANCA, 2000, p. 234). Havia de inventar um motor perfeito, sem caprichos nem manias; das suas mãos sairia resolvido o árduo problema. Não teria sossego nem descanso enquanto não conseguisse animar com o poder da sua inteligência e da sua vontade a inércia do ferro e do aço, enquanto não desse forma palpável ao seu novo sonho, ao seu poderoso sonho de orgulho, do trágico orgulho humano que desencadeia as avalanchas e arremessa sobre as cabeças erguidas os maus destinos à espreita. (ESPANCA, 2000, p. 234) Trabalhou incessantemente, até que julgou ter achado:

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Oh, aquele dia! A embriaguez do homem que se igualou a Deus! O coração a bater, a bater, a sentir-se grande de mais para um peito tão pequeno, para um tão mesquinho destino! A humidade das lágrimas a embaciar o olhar gigante que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu! O artista, o poeta, o inventor de novos símbolos, de novas formas, o criador de movimento e de vida, todos os que desbravam caminhos, os que talham, abrem, por entre os matagais selvagens e os campos estéreis da ignorância e da banalidade, as belas estradas largas do pensamento e das ideias, esses que me compreendam e que o compreendam! As palavras são o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes ideias claras. (ESPANCA, 2000, p. 235) A partir desse momento sentiu-se feliz, mas também, desgraçado. Apesar de deslumbrado com sua invenção e do inebriamento com que montava as peças desse motor que nunca falharia, após testá-lo, passou por uma louca confusão. A tarde da definitiva experiência, experiência que dera a certeza dos mais belos resultados, passou-a ele numa febre de orgulho, em cálculos de ambição, de glória e de riqueza, como um monarca doutros tempos contando o oiro e as pedrarias que as caravelas lhe traziam das misteriosas índias longínquas. À noite, depois dessa tarde memorável, depois do motor desmontado, dos preciosos papéis fechados num envelope lacrado, depois da carta escrita ao diretor da Aviação, a quem pedia nomeasse uma comissão para avaliar os resultados [...] resolveu sair, dar um passeio sozinho, procurando como um calmante a fresca aragem da noite, que descia sobre a cidade frenética como um monge sereno e plácido, de negro capuz, a murmurar orações confusas. (ESPANCA, 2000, p. 236) Nesse momento, sobreveio-lhe um senso de realização e de inconformismo, uma vez que tinha concretizado todos os seus sonhos e os homens não mais passariam perigo ao voar; “o céu podia coalhar de asas, como o mar de velas” (ESPANCA, 2000, p.237). A ideia de toda gente “andar lá por cima” sem perigo, dos homens comandarem os “elementos como semideuses” (p.237) lhe angustiava. O que a 7faces • 197


princípio lhe fizera sorrir, agora o incomodava e estas frases não lhe saiam da mente “sem riscos?”, “sem perigo?” (p.237). E chegou à conclusão que obra de sua vida, da qual ele tinha empenhado todos os esforços não passava de uma covardia. O seu grande invento, donde tirara toda a sua soberba, onde filiara todos os seus cálculos de ambição e de glória, não passava, afinal, de uma má, de uma feia ação, de uma cobardia! Um aviador, um cavaleiro sans peur et sans reproche, que toma posse do céu, que abre as asas gloriosas sem riscos, sem perigos, como um simples burguês que rola de elétrico cá por baixo?! Um aviador que não brinca, sorrindo, com o seu mau destino; que não vence com um piparote as horas más, as tirânicas forças da Natureza sempre em luta, terrível descobridora de desalentos; um aviador que não é senhor do céu, da terra e do mar, à força; que a não dobra como a cabeça vencida de uma amante rebelde entre os seus braços de aço; um aviador sem mascote, sem audácia, sem panache — é lá um aviador!... Não passa de um soldado que deserta às primeiras balas!... Um aviador sem a sua companheira vestida de negro, toucada de luto ao seu lado, ao lado do seu peito, na carlinga?! A Morte! ... (ESPANCA, 2000, p.237-238) Assim, após toda a inquietante angústia e todos os questionamentos realizados pelo inventor/aviador, ele se reconduziu “ao encontro de sua totalidade” e entendeu que teria que conviver com a morte ao seu lado. O narrador deixa claro para o leitor que o inventor não amava a morte, mas entendia que lhe era indispensável como a saudade, ele necessitava “sentir lhe o hálito gelado, de a sentir debruçada sobre o seu ombro” (ESPANCA, 2000, p.238). Então: Dominado por uma invencível obsessão, de novo febril, ansioso, atravessou à pressa as ruas escuras, as ruas solitárias, caminho de casa. Galgou as escadas a quatro e quatro, empurrou a porta de repelão, entrou no quarto, deu volta ao comutador, e o seu olhar foi cair imediatamente, instintivamente, sobre o grande envelope branco lacrado a vermelho vivo. Abriu a janela de par em par sobre o bulício da rua, e então, serenamente, 7faces • 198


distraidamente, num ar de quem pensa noutra coisa, foise entretendo a lançar ao vento, como quem atira pétalas murchas, os pedaços rasgados dos preciosos papéis que horas antes lá encerrara e que representavam o melhor do seu esforço, o fruto abençoado das suas febres, o triunfo das noites de vigília, as asas do seu sonho feérico, da sua doirada quimera perseguida e vencida! Foi depois às peças do motor, meteu-as dentro de uma mala. Dar-lhes-ia destino ao outro dia; o fundo do mar, talvez... (ESPANCA, 2000, p.239) Interessante que após essa atitude, ficou em paz e voltou a dormir, algo que há muito não fazia. E o conto termina dizendo que quando voou no dia seguinte, o “aviador olhou para o lado, ao lado do seu peito, na carlinga, e sorriu à companheira invisível que não quisera expulsar” (ESPANCA, 2000, p.239). Como todo bom conto, ficamos no suspense, qual foi o destino do protagonista, a morte o sorriu de volta? Nesse momento, o que nos chama atenção é o fato de a personagem sentir-se bem com a ideia da morte como companheira diária, parece que para ele esta era uma condição fundamental para a vida. Ricardo Piglia, refletindo sobre o gênero conto a partir da obra de Jorge Luis Borges, afirma que o elemento significativo no conto pode ser o “final infinito” ou “aberto”. De acordo com o escritor, a chave está em criar um desfecho inusitado para a história, ambíguo, que possibilite ao leitor o desejo de escrever um outro final: “no fundo, a trama de um relato esconde sempre a esperança de uma epifania. Espera-se algo inesperado, e isso vale também para quem escreve a história” (PIGLIA, 2004, p.105). Encontramos estes finais imprevisíveis, assim como inacabados, na prosa florbeliana. A maioria dos seus contos são abertos à continuação ou à elaboração de um desfecho completamente diferente. O que surpreende na contística da autora é que a trama vai sempre além da pequena história que conta. Existe uma poetização do cotidiano, apesar de a narrativa ser aparentemente sem complicações, ela é capaz de envolver o leitor numa teia de mistério. Em alguns contos de Florbela, há o que Maria Lúcia Dal Farra denominou de “um certo timbre de Alan Poe” (DAL FARRA, 2002, p. 109). Na contística florbeliana, vemos a possibilidade da mimetização da vida. As categorias do modo narrativo (espaço, tempo, ação, personagens...) encontram-se mais desenvolvidos do que no modo lírico de sua obra, facilitando as correspondências com a sua biografia. 7faces • 199


Os contos de Florbela estão alinhados em torno da temática da morte. O mito da femme fatale atravessa sua contística, assim como as máscaras do feminino, a dor e o sofrimento na não concretização do amor. Há uma confluência entre duas instâncias, a ficcional (o narrador) e a real (o autor empírico). Efetivada a partir do autor implícito, realiza-se uma prática biografemática aberta à criação, à invenção ou ficcionalização de si como se fosse o outro. Um “eu” que se transforma em “outro”, marcado pela terceira pessoa do discurso, desta forma se inscreve e reinventa a própria vida. Notas 1

No original: Fiction d’événements et de faits strictement réels; si l’on veut, autofiction d’avoir confié le langage d’une aventure à l’aventure du langage, hors sagesse et hors syntaxe du roman traditionnel ou nouveau. Rencontre, fils de mots, allitérations, assonances, dissonances, écriture d’avant ou d’après littérature, concrète, comme on dit en musique. Ou encore, autofriction patiemment onaniste que espère faire maintenant partager son plaisir. (DOUBROVSKY, 1977, capa). Primeira definição para autoficção. 2

No original: “Récit dont la matière es entièrement autobiographique, la manière entièrement fictionelle” (DOUBROVSKY, 2011, p. 24). 3

Esta é uma possibilidade de leitura, todavia, não estamos analisando por este viés. A nossa interpretação parte do que está mais aparente e que se refere aos demais contos, a relação aviador e morta: noivo e noiva. Referências BATISTA, Elizabeth. “Da poesia ao conto: a itinerância criativa de Florbela Espanca”. In: Florbela Espanca. O espólio de um mito (número especial de Callipole. Revista de Cultura) Lisboa: Edições Colibri/ C.M de Vila Viçosa, n. 21, 2012. COLONNA, Vincent. “Tipologia da autoficção”. In: NORONHA. Jovita Maria Gerheim (Org.). Ensaios sobre a autoficção. Tradução e organização de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. ______. Autofiction & autres mythomanies littéraires. Auch: Tristram, 2004. DAL FARRA, Maria Lúcia. Florbela Espanca. Afinado Desconserto. São Paulo: Iluminuras, 2012. ______(Org.). Sempre tua. Correspondência amorosa 1920-1925. São Paulo, Iluminuras, 2012. ______. “Estudo introdutório”. In: ESPANCA, Florbela. Afinado Desconcerto (contos, cartas, diário). São Paulo: Iluminuras, 2002. DOUBROVSKY, Serge. “Autofiction: en mon nom propre”. In: BAUDELLE, Yves; NARDOUT-LAFARGE, Élisabeth (Orgs.). Nom propre et écritures de soi. Québec: PUM, 2011. ESPANCA, Florbela. Contos e Diário. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000.

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HEIDEGGER, Martin. Conferências e Escritos Filosóficos. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999. (Trad. Ernildo Stein/Col. Os Pensadores). JUNQUEIRA, Renata Soares. Florbela Espanca. Uma estética da teatralidade. São Paulo: Editora Unesp, 2003. NASCIMENTO, Evando. ‘Matérias-primas: Da Autobiografia à Autoficção – Ou ViceVersa’. In: NASCIF, Rose M. A. & LAGE, Verônica, L. C. (org.). Literatura, Crítica, Cultura IV: Interdisciplinaridade. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2010. SILVA, Cleonice Nascimento da. Recepção crítica da obra de Florbela Espanca. In: DUARTE, Constância L.; SCARPARELLI, Marli F. Gênero e representação nas literaturas de Portugal e África: ensaios. Belo Horizonte: UFMG, 2002. PIGLIA, Ricardo. Formas breves. Tradução de José marcos Mariani de Macedo. São Paulo, Companhia das Letras, 2004. WERLE, Marco Aurélio. A angústia, o nada e a morte em Heidegger. Trans/Form/Ação [online]. vol.26, n.º1, p.97-113, 2003.

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© Olaf Hajerk

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ACERCA DOS ROMANCES TRADUZIDOS POR FLORBELA ESPANCA por Chris Gerry

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Introdução O objetivo do presente artigo é apresentar os resultados de uma pesquisa mais de curadoria do que propriamente de cariz estritamente literário, recentemente concluído. O projeto visava identificar, localizar e reunir as obras originais cuja tradução para o português foi confiada a Florbela Espanca por duas editoras sediadas na cidade do Porto (Portugal) na segunda metade da década de 1920. Uma dúzia de anos atrás, pouco se sabia sobre este aspecto da vida criativa de Florbela e, assim, não existia qualquer avaliação de como a sua experiência como tradutora poderia ter influenciado os contornos da sua obra em prosa, nem o impacto dos seus valores e das suas vivências pessoais sobre a sua estratégia de tradução de 10 obras, maioritariamente franceses. Agora que exemplares de todas as obras originais – mesmo as mais esquivas – e das respetivas traduções, têm sido identificadas com precisão (nos catálogos de bibliotecas portuguesas e francesas) e adquiridas em formato quer impresso, quer fotocopiado, quer digital (das mesmas, ou de alfarrabistas online), será possível completar um projeto de maior alcance, ainda em curso, a saber a comparação detalhada de cada par de obras no minicorpus reunido1 afim de revelar a estratégia de tradução aplicada por Florbela. Florbela, tradução e ‘interveniência’ Embora Florbela tivesse procurado trabalho como tradutora por motivos mais financeiros que literários, as traduções que realizou constituíram uma influência notável sobre os contornos, conteúdo e estilo de sua prosa (GERRY, 2009, 2010, 2011). As cinco análises comparativas até agora completadas evidenciam ressonâncias não só da sua leitura competente (inclusive das obras sobre as quais debruçava enquanto tradutora), mas também da sua vida algo perturbada e dos seus valores heterodoxos enquanto mulher, filha, irmã e esposa. Os ecos aparecem de vez em vez nas suas traduções, sobretudo quando o teor da obra original arrisca colidir com as suas convicções ou valores fundamentais, suscitando a tentação de modificar, conscientemente ou não, a intenção do autor, prática que Carol Maier (2007) designa ‘interveniência’. Os estímulos que pudessem ter provocado tais ‘interveniências’ da parte de Florbela parecem advir dos seus sentimentos sobre o peso da vida e aos sacrifícios que impõe às mulheres, à expressão honesta da 7faces • 204


sua sexualidade, à luta contra a doença física e mental, e ao que o Além tenha reservado para ela e os seus entes queridos. Assim, nos seus contos, não raramente encontramos tanto interveniências como enredos, tropos e imagens cujas origens, plausivelmente, remontem em parte aos livros por ela lidos ou traduzidos. Florbela já havia começado a traduzir no final de 1924 e teria que ter trabalhado arduamente para que as editoras pudessem, em 1926 e 1927, colocar tantas de suas traduções no mercado. Este esforço representa um nível impressionante de produtividade, tendo em consideração que, já em 1924, tendo quase abandonado a composição de poemas, Florbela trabalhava em dois volumes de contos – O dominó preto, projeto interrompido para escrever outra coletânea intitulada As máscaras do destino dedicado ao seu recém-falecido irmão Apeles – bem como na edição final do que seria a sua última coleção de poesia, Charneca em flor. Na literatura académica, as poucas referências às traduções efetuadas por Florbela repetem o mesmo preconceito – primeiramente conjurado por Agustina Bessa-Luís (1984, p. 172), de que se tratava de “literatura chamada de bons sentimentos, isto é má literatura” ou, dito de outra forma, romances medíocres ‘cor-de-rosa’ escritos por autores igualmente medíocres. O fato de o veredicto inicial ter sido pronunciado em ignorância quase total do conteúdo das referidas obras não impediu que o mito fosse propagado por quase todos os comentadores que se seguiram, um destino semelhante ao que os críticos inicialmente condenaram os contos de Florbela. A tendência a questionar infundadamente a qualidade da literatura que Florbela traduziu levanta uma questão prévia cuja resposta precisará de alguma contextualização acerca do surgimento da verdadeira profissão de tradutor em Portugal: afinal, na viragem do século XIX para o XX, precisamente quem estava a traduzir o que? Tradutores e traduções na viragem do século XIX a XX. Nas primeiras três décadas do século XX, os tradutores mais procurados pelas editoras portuguesas continuaram a ser autores de renome. Lembrando que mesmo os mais célebres autores raramente dependeram exclusivamente da sua própria produção literária, seria mais realista caracterizar a emergente profissão de tradutor como sendo constituída mormente por praticantes que, em paralelo com as suas principais atividades de jornalismo, ensino ou nas profissões liberais, responderam regularmente às solicitações das empresas 7faces • 205


editoriais para traduzir textos canônicos, romances novos em folha, tratados de ciência, política, história, filosofia e religião, manuais de autoaperfeiçoamento e, cada vez mais, ficção popular quer moralizante, quer sentimental, quer sensacionalista, provenientes de outros países. A limitada oferta de autores portugueses fez com que, à medida que a procura para material de leitura aumentava, as editoras recorriam cada vez mais à importação de literatura estrangeira, e à integração de novos tradutores num emergente sistema ‘manufatureiro’ caraterizado pela distribuição de encomendas a dezenas de ‘operários’2 trabalhando em casa própria. O modelo de negócios dependia de tradutores cujo tempo fosse rigidamente controlado e cujos salários (pagos ‘por peça’) permanecessem muito baixos. Assim, chegando ao século XX, cada vez mais mulheres marcaram presença nas fileiras da nova profissão de tradutor3; muitas vezes, tratava-se de autoras, quer pretendentes quer experientes, motivadas por diversos valores e aspirações de cariz individualistas ou altruístas4. Florbela, ainda não, naquela altura, uma autora estabelecida, dependente de recursos alheios para custear as suas atividades criativas e publicações, e apenas novata na atividade tradutória, não teria sentido um aumento muito acentuado na sua autonomia enquanto mulher e escritora após a sua estreia. Quanto à avaliação da qualidade, asseguradamente variável, do trabalho dos ‘autores de Florbela’, seria enganoso distinguir de uma forma demasiado dualista entre autores que produziam trivialidades a granel e aqueles cuja escrita era mais escassa, mas muito mais inspirada5. A realidade é mais complexa. De fato, numa extremidade do espectro encontraríamos Armando Palacio Valdés, rebento de uma família asturiana abastada, que viveu para escrever, gozando de autonomia suficiente para produzir um corpo significativo de romances de alta qualidade durante quase meio século. No meio situam-se autores cujos talentos lhes asseguraram um quinhão de autonomia financeira mas que escreveram essencialmente para viver – uns mais heterodoxos que seguiram os seus próprios instintos criativos mais que as convenções culturais prevalecentes (como a protofeminista de Peyrebrune e o enigmático Pierre Benoit), outros mais ortodoxos, que optaram por aceitar às normas da ordem patriarcal em detrimento da sua própria liberdade criativa (como os romancistas católicos, Rameau, Maryan, Champol). A seguir, temos os escritores cuja promessa inicial não se materializou, seja qual for a razão (como Georges Thierry e Jean Thiéry) e que tiveram de se 7faces • 206


refugiar na escrita formulaica por encomenda, favorecendo a escrita quer moralizante, quer sensacionalista. Finalmente, ocupando o polo mais distante do espectro, localizam-se os literati amadores (como Claude Saint-Jean) que, apesar de terem uma vida confortável e tempo de ócio à sua disposição, faltaram a inspiração e/ou aplicação necessárias para sustentadamente produzir literatura de qualidade. ‘Os autores de Florbela’ e a interface entre a tradutora e a obra traduzida Tendo identificado e classificado em traços largos os tipos de escritores que constituíram os ‘autores de Florbela’, podemos agora investigá-los mais detalhadamente. Começaremos por indicar onde e quando as obras originais foram publicadas; a listagem a seguir apresenta as referências bibliográficas mais completas, atualizadas e exatas disponíveis. A seguir, apresentaremos uma brevíssima sinopse de cada um dos nove autores, das dez obras e, caso já tenha sido feita uma leitura paralela (5 pares de textos) e comparação dos originais com a tradução, teceremos algumas breves especulações bem informadas sobre o que parece ter sido a interação que evoluiu entre a tradutora e o texto original. Caso a análise comparativa ainda fique por efetuar, prescindiremos de comentários. Bibliografia atualizada de traduções (por data de sua publicação em português). 1) GEORGES THIERRY, pseudônimo de Georges Piot (c. 1870 – c. 1950). • L’île bleue, Paris: La Croix, 18 novembro de 1910 – 12 janeiro de 1911; [folhetim]6. • L’île bleue, Paris: Maison de la Bonne Presse, ‘Nouvelle Série Bijou’, 1924, 320 pp; • A ilha azul, Porto: Casa Editora A. Figueirinhas, ‘Biblioteca das Famílias’, 1926, 368 pp. 2) MARYAN, pseudônimo de Marie Rosalie Virginie Deschard (18471927). • Le secret du mari, Paris: ‘Supplément Littéraire’ de La Mode Illustrée, Nos 20 – 36, 1906; [folhetim]. • Le secret du mari, Paris: Firmin-Didot, Bibliothèque des mères de famille, 1907, 429 pp. 7faces • 207


• O segredo do marido, Porto: Casa Editora A. Figueirinhas, ‘Biblioteca das Famílias’, 1926, 296 pp. 3) MARYAN, pseudônimo de Marie Rosalie Virginie Deschard (18471927). • Le secret de Solange, Paris: Gauthier, ‘Collection Blériot – Bibliothèque Grise’, 1887, 348 pp. • O Segredo de Solange, Porto, Casa Editora A. Figueirinhas, ‘Biblioteca das Famílias’, 1927, 328 pp. 4) MARIE THIÉRY / JEAN THIÉRY, pseudônimos de Marie-Louise Bouvet (1869-1954) 7. • Marie Thiéry, L’amour de Jacques, Paris: Le Gaulois, Nº 6225 (27/12/1898) - Nº 6234 (05/01/1899), subsequentemente reintitulado, por motivos de direitos autorais, Le mariage de Jacques, Nº 6235 (06/01/1899) - Nº 6280, (20/02/1899); [folhetim]. • Jean Thiéry, Pauvre Charlie, Paris: Librairie A. Hatier, 1905, 353 pp. • Jean Thiéry, O canto do cuco – romance, Porto: Livraria e Imprensa Civilização, ‘Biblioteca do Lar’, 1927, 279 pp. 5) GEORGES DE PEYREBRUNE, pseudônimo de Mathilde Georgina Élisabeth Judicis de Peyrebrune (1841-1917). • Doña Quichotta, Paris: Hatier, Collection ‘Hermine’, 1906, 320 pp. • Doña Quichotta, Porto: Livraria e Imprensa Civilização, ‘Biblioteca do Lar’, 1927, 307 pp. 6) G. SAINT-SAVIN / CHAMPOL, pseudônimos de Marie-Anne Bertille de Beuverand de la Loyère, Condessa de Lagrèze (1857-1924). • G. Saint-Savin, Victoire d’âme, Paris: Le Correspondant, Vol. 214, 1904, 10 de janeiro (pp. 95-129), 25 de janeiro (pp. 286-313) e 10 de fevereiro (pp. 474-511); [folhetim]. • Champol, Autre temps, Paris: Hatier, Collection ‘Hermine’, 1906. A novela epônima foi publicada em conjunto com a obra mais extensa, Victoire d’âme, acima referida. • Champol, Dois noivados8, Porto: Livraria e Imprensa Civilização, 1927, 304 pp. 7) CLAUDE SAINT-JEAN, pseudônimo de Louise-Virginie-Pauline de Lefebvre Saint-Ogan (nascida c. 1870). • Le bonheur passait, Paris: Bibliothèque de la cuisine des familles, receuil hebdomadair de recettes d’actualité, 19059; [folhetim]. 7faces • 208


• Le bonheur passait, Paris: Hatier, Collection ‘Hermine’ Nº 11, 1905, 346 pp. • O castelo dos noivos – romance, Porto: Livraria Civilização, ‘Biblioteca do Lar’, 1927, 229 pp. 8) JEAN RAMEAU, pseudônimo de Laurent Lebaigt (1858-1942). • Le roman du bonheur, Paris: Albin Michel, 1926, 307 pp. • O romance de felicidade, Porto: Livraria e Imprensa Civilização, ‘Biblioteca do Lar’, 1927, 297 pp. 9) PIERRE BENOIT (1886-1962) • Mademoiselle de la Ferté, Paris: Albin Michel, 1923, 319 pp. • Mademoiselle de la Ferté: um romance da actualidade, Porto: Livraria e Imprensa Civilização, ‘Colecção de Hoje’, 1929, 310 pp. 10) ARMANDO PALACIO VALDÉS (1853-1938) • Maximina: segunda parte de ‘Riverita’, novela de costumbres, Madrid: Tipografia de Manuel Ginés Hernández, 1887. • Maximina: romance da actualidade (sequência de Riverita), Porto: Livraria Civilização, ‘Colecção de Hoje - Biblioteca de Romances de Actualidade’, 1932, 356 pp. Cinco obras ainda a serem sujeitas a uma leitura paralela: autores e sinopses AUTOR(A)

SINOPSE

Georges Piot (c. 1870 – c. 1950) advogado, professor, e autor de romances de aventura, escritos sob o pseudônimo de Georges Thierry, visando fornecer leituras moralmente saudáveis e inspiradores para famílias católicas.

L’île bleue. Uma conspiração planeada por anarquistas russos falha quando o pretenso assassino se apaixona pela filha da vítima. Um sequestro e uma segunda tentativa são frustrados por um trio recentemente regressado a Paris das Índias Orientais – um comerciante holandês, a sua filha adotiva, e o seu servidor nativo.

Marie Rosalie Virginie Deschard (1847-1927) publicou uma centena de

Le secret du mari. Um pai esbanja o dote de sua filha e, mais preocupado com a defesa 7faces • 209


romances sentimentais sob o pseudônimo de Maryan, que granjearam enorme sucesso nacional e internacionalmente.

da sua própria reputação do que a felicidade da sua filha, irrefletidamente planta as sementes da discórdia e da suspeita no casamento. É somente com o seu último suspiro que consegue revelar a verdade, alcançando a sua própria redenção e a reconciliação familiar.

Marie-Anne Bertille de Beuverand de la Loyère, Condessa de Lagrèze (18571924), autora de mais de trinta romances sentimentais maioritariamente escritos sob o pseudônimo de Champol. As narrativas muitas vezes refletiram direta ou obliquamente a desventura da sua própria família, cujos vinhedos foram decimados pela praga filoxera.

Victoire d’âme. Sob intensa pressão dos seus parentes, Suzana resigna-se finalmente a um casamento sem amor que resolverá a crise financeira da família. Autre temps. A herdeira Joana, descobrindo que tem uma doença incurável, propõe no seu leito de morte um casamento de conveniência com o seu primo Carlos ao invés de se casar por amor com um nobre russo, resgatando assim ambas as famílias de calamidades muito distintas.

Louise-Virginie-Pauline de Lefebvre Saint-Ogan (nascida c. 1870), autora de literatura infantil e romances sentimentais sob os pseudônimos de Claude SaintJean ou Saint-Jan. Esposa do editor-chefe de um proeminente jornal de Cairo, e mãe de Alain Saint-Ogan, criador de uns dos mais icônicos personagens da banda desenhada francesa, Zig e Puce.

Le bonheur passait. O romance integralmente epistolar narra os relacionamentos amorosos entrelaçados da nobre Dionísia e da burguesa Helena, contra um pano de fundo igualmente amatório povoado por seus numerosos parentes e amigos, todos resolutamente ensaiando manipular o mercado matrimonial a fim de consolidar ou melhorar o estatuto que lhes foi conferido por nascimento.

Armando Palacio Valdes (1853-1938). Durante a sua vida foi considerado um dos principais romancistas

Maximina. Marcadamente autobiográfico, retrata a tormenta de um jornalista aspirante que se casa com uma 7faces • 210


espanhóis, antes de cair no esquecimento após o seu falecimento. Tal era o seu prestígio que a Academia Espanhola propôs o seu nome para o Prêmio Nobel de Literatura de 1928.

beleza tímida das províncias. Vítima ingênua das manobras de falsos amigos, Miguel se encontra envolvido em travessuras eleitorais, vê a sua irmã traída por um primo inescrupuloso, perde tanto o seu emprego como a sua fortuna, e sua jovem esposa Maximina morre de parto. Somente com a solidariedade dos seus verdadeiros amigos que consegue reconstruir a sua vida, dedicando-a ao seu filho.

Cinco obras já sujeitas a uma leitura paralela: autores, sinopse e discussão I. Romance protopolicial da celebrada Maryan – O segredo de Solange Porventura, como recompensa pela boa tradução de L'île bleue, a editora Figueirinhas resolveu dar à Florbela a oportunidade de traduzir dois romances, Le secret du mari e Le secret de Solange da já referida celebrada autora francesa. Em contraposição à primeira narrativa – um caso exemplar do romance sentimental, com a fórmula clássica de “aposta – obstáculo – rival” (Holmes 2003) – na segunda verificamos traços tanto do romance sentimental como da literatura policial incipiente. A convenção ditava a impossibilidade de um casamento entre o médico Saviniano e a misteriosa Solange, cujo pai havia sido condenado por ter forjado um testamento. Convencido que a acusação fosse infundada, Saviniano aplica os métodos científicos e poderes dedutivos que aprendeu na Faculdade para descobrir a verdade, obrigando o verdadeiro culpado a admitir o seu delito, afastando assim todas as objeções sociais ao matrimónio. A tensão entre filha e pai, a desconfiança entre esposa e marido, e a erosão da aceitação do papel convencional da mulher são tão palpáveis nas páginas d’O Segredo do Marido quanto na própria vida de Florbela. No sofrimento do pai de Solange, recém-libertado da prisão, num estado mental alterado, e dependente dos poucos ganhos da sua filha como escritora de literatura infantil, ouvimos ecoar as vivências de Florbela, enquanto ajudava a cuidar do seu sogro atormentado por demência, ao mesmo tempo que escrevia contos e 7faces • 211


traduzia romances para custear a publicação dos seus últimos poemas. No mesmo livro, a prima de Saviniano, sentindo que o casamento a impediria de expressar a sua autonomia através de uma carreira, rejeita todos os pretendentes. Fá-lo, porém, com mais diplomacia do que certos personagens nos contos de Florbela e a própria Florbela em cartas enviadas a Julia Alves (ESPANCA, 1986, p. 130), quando denunciam a brutalidade, indignidade e sacrifício de autonomia que o casamento acarreta. Quando Florbela estava traduzindo, essas res sonâncias das suas próprias vivências pessoais devem ter sido um tanto enervantes. De fato, a leitura paralela dos textos originais e as suas traduções revela que, consciente ou inconscientemente, alguns desses ecos às vezes influenciavam o modo como traduziu certas frases, fazendo com que endurecesse a linguagem aqui, suavizasse ali, e fizesse cortes, acréscimos ou mesmo interveniências mais profundas, acolá. Ademais, os romances traduzidos – especialmente os de Maryan, Rambeau e Benoit – funcionaram como fontes estimulantes de ideias para os trabalhos em prosa de Florbela. Podemos encontrar, principalmente na sua coleção de contos O Dominó Preto, detalhes de enredos, diversos tropos e várias imagens que ‘apropriou’, quer conscientemente, quer por uma espécie de osmose literária e que, subsequentemente, apareceram, mais ou menos transformados, na sua prosa10. A título de exemplos, entre muitos outros já identificados, a faca usada como marcador de páginas n’O Segredo do Marido e no conto “O resto é perfume”, assim como a evocação de um lampejo momentâneo de lucidez na mente errante de um velho no romance Le Secret de Solange e que Florbela empregue no seu conto “O regresso do filho”. II. Atualização do protofeminismo? Georges de Peyrebrune – Doña Quichotta De Peyrebrune, como Florbela Espanca e Judith Teixeira, era ilegítimo; como Judith, mas ao contrário de Florbela, só começou a escrever quando tinha mais de trinta anos de idade. Publicou dezenas de romances, entre os quais Victoire la Rouge, Une Separation e Giselle. Quando o Prix Fémina foi criado em 1905 na França, foi convidada para integrar o júri, papel que desempenharia por muitos anos. Embora tenha morrido na pobreza e na obscuridade, é considerada hoje, junto com Marcelle Tinayre, Myriam Harry e Lucie

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Delarue-Mardrus, uma das principais escritoras proto-feministas da Belle Époque. No enredo de Doña Quichotta, a mãe de Germana e Pedro foge da crueldade intolerável de seu marido, abandonando seus filhos, retornando após 18 anos de ausência, doente e indigente, apenas para ver pela primeira e última vez os seus filhos crescidos, antes de acabar com a sua própria vida. Embora a consumação do ato seja evitada, ela está morrendo e é somente no seu leito de morte que toda a família se reconcilia como se fosse pelo sacrifício redentor da mãe fugitiva. António, noivo de Germana, explica-a como alcançar uma maior igualdade num casamento moderno, reconciliando, pelo menos parcialmente, as diferenças supostamente naturais entre os géneros. Na versão original escrito por de Peyrebrune, António afirma que, sendo a mulher “menos experiente do que o homem, está menos preparada (…) para lutar sozinha contra as dificuldades da existência. Libertando-se deliberadamente de toda a tutela, de todo o freio, corre grandes riscos”; em última análise, a mulher deveria conceder ao seu companheiro de vida “o direito de controle e de conselho”. Na tradução de Florbela, a última frase sofre uma alteração, pequena embora significativa, transformando-a em “o direito de crítica e de conselho. Esta interveniência altera de forma desproporcional as relações de autoridade entre marido e mulher, estendendo os limites de autonomia feminina para além daqueles que de Peyrebrune achava prudente designar ao seu público francês de 1906, 20 anos antes da sua tradução portuguesa ser lançada. Assim, para o seu público português de 1927, Florbela ‘atualiza’ uma constatação protofeminista presente neste romance, transformando-a numa afirmação que considera mais adequada às crenças e aspirações portuguesas da altura – e, talvez mais pertinente, mais de acordo com os valores da própria Florbela. III. Fonte fecunda de inspiração: Jean Rameau – O romance de felicidade Parece que Le Roman de Bonheur estimulou bastante Florbela, não por ser obra-prima, mas porque ressoava uma série de questões sobre as quais ela já se tinha debruçado. Poeta, autor de mais de 60 romances e contos sem número, a obra de Jean Rameau inspirava-se, principalmente, pela natureza e o povo da sua região natal, Les Landes. Premiado pela Académie Française por um dos seus primeiros 7faces • 213


romances (Moune, 1890), muitas dos seus livros subsequentes foram publicados pela celebrada Librarie Paul Ollendorf que havia promovido com tanto sucesso as obras de Balzac, Poe, Maupassant, Georges Sand, Ohnet et Mirbeau. No livro Le roman du Bonheur, um viúvo rico, num experimento consciente de filantropia prática, adota um menino vagabundo, proporcionando-lhe todas as vantagens que o dinheiro pode comprar com o intuito de testar se os valores morais mais elevados podem ser incutidos nos indivíduos mais pobres. Apesar de suas intenções, consegue transformar a criança num fedelho mimado apto para todo tipo de vigarice e, no processo, perde o respeito da jovem mulher que é objeto do seu amor não declarado, que se mantem comprometido à redenção do jovem. Às vezes, na sua tradução do livro, Florbela endurece frases relacionadas à subordinação das mulheres. Por exemplo, falando das múltiplas inquietudes quando um homem contempla ter uma amante, Rameau usa a frase “dirigée vers le terminal ruisseau” para expressar o seu medo de que a decisão da mulher de aceitar mesmo o concubinato monogâmico seja apenas o primeiro passo no declive escorregadio que inevitavelmente leva ao bordel ou à beira da rua. Na versão traduzida, no entanto, Florbela vai direto ao assunto sem rodeios, optando por substituir tanto o eufemismo de “sarjeta terminal” pela palavra “prostituição”, como “dirigir” por “atirar”, um verbo mais forte e ativo. Como o viúvo do romance, Florbela tivesse frequentemente vacilada entre os seus desejos pessoais e as convenções sociais; no entanto finalmente se inclina, como se pode aduzir a partir da sua escolha específica de palavras, a uma condenação mais dura da concubinagem. Implora às mulheres que expressem livremente a sua autonomia, em vez de aceitarem um casamento banal – mesmo com um homem seguro e confiável – uma quadratura do círculo que a própria Florbela se esforçou efetuar, sem grande êxito, ao longo da sua vida. Noutro momento do romance, Rameau descreve um gesto que facilmente poderia ter sido mal interpretado: no cemitério onde a esposa do viúvo Le Gal está enterrada, a sua jovem protegida Mayette instintivamente solta uma rosa da gola do casaco e a coloca sobre a lápide. Apesar de Le Gal parecer comovido, Mayette teme que o seu ato possa ter sido visto como presunçoso. Há uma cena semelhante (ESPANCA, 2000, pp. 80-81) no conto “Mulher de Perdição” – possivelmente um romance de estreia inacabado que Florbela teria 7faces • 214


escrito em 1925-1927, altura em que a maioria das suas traduções também estavam sendo realizadas. Nesta narrativa, Florbela apropriase do mesmo gesto, com o intuito de evidenciar um lado sentimental da imperturbável femme fatale do enredo, Reine Dupré, e de contrastar o romantismo do seu novo pretendente com o cinismo do seu ex-amante. Num cemitério no Dia dos Mortos, acompanhado por esses dois amigos, o túmulo de uma criança atrai a atenção de como o único túmulo privado de flores. “[D]esprendeu da gola (…) a mancha pálida do cravo enorme e, piedosamente, depô-lo à cabeceira do pequenino abandonado. Antero (…) sorriu com um ar irónico, [enquanto …] João Eduardo sentiu uma comoção inexprimível subirlhe à garganta” (ESPANCA, 2000, pp. 80-81). IV. Navegando as ambiguidades: Pierre Benoit – Mademoiselle de la Ferté Enquanto jornalista de France-Soir e Le Journal, Benoit entrevistou líderes políticos estrangeiros proeminentes, tais como Haile Selasse, Mussolini, Salazar e Goering, e os enredos de muitos dos seus romances desenrolam-se em locais exóticos (por exemplo, uma Atlântida imaginária, a Indochina e as Novas Hébridas), ou perigosos (como a Palestina e Irlanda durante períodos de contenda civil). Atmosférica e por vezes erótica, a narrativa de Mademoiselle de la Ferté está impulsionada pelos atritos e antipatia mútua entre a aristocracia agrícola em declínio (representada pela epônima Anne) e os novos-ricos de comércio e manufatura (representados pela família de Jacques, o noivo que a abandonou). Da perspectiva da crítica literária, o romance de Benoit tem sido alvo de várias interpretações. Salientando a redenção, e repleto de valores católicos, as mais lineares, previsíveis e santimoniais retratariam Anne como a empobrecida heroína cuja submissão, simpatia e magnanimidade são recompensadas com uma herança que reestabelecerá a fortuna da sua família. Apreciações mais sinuosas pintariam Anne como uma femme fatale, uma mulher rejeitada que, pacientemente e impiedosamente, vinga-se ‘friamente’ do seu falecido noivo através da sua viúva, apoderando-se da riqueza a que ela se sente intitulada. Numa leitura mais inesperada, o amor perdido se metamorfoseia em amor transgressivo, quando Anne se apaixona pela mulher por quem o seu noivo a abandonou. Enquanto Benoit deixa a solução do enigma para a imaginação do leitor, a interveniência pontual de Florbela na tradução confere mais 7faces • 215


credibilidade a uma interpretação do que a outras, obrigando que o texto fosse lido de uma maneira que o autor não necessariamente pretendia. Por exemplo, quando Benoit apenas sugere uma atração lésbica entre Galswinthe e Anne, Florbela explicita o que Benoit tinha suscitado, revelando e antecipando – quiçá desnecessariamente – o posterior desenvolvimento do enredo. Ocasionalmente, no entanto, Florbela amortece o efeito da sugestividade lasciva de Benoit, por exemplo, quando ouvimos dois médicos a trocar piadas obscenas e misóginas que hoje seriam condenadas por serem “conversas do vestiário”. V. Obra elusiva, temática desafiadora: Marie / Jean Thiéry – O canto do cuco Ao longo da sua carreira prolífica de autora, Marie-Louise Bouvet usou os pseudônimos ‘Marie Thiéry’ e ‘Jean Thiéry’. Desde a viragem do século até ao início da década de 1930, Mme Bouvet construiu um vasto seguimento como autora, produzindo dezenas de obras, principalmente para jovens mulheres, usando sobretudo os dois pseudônimos de Marie Thiéry e Jean Thiéry. Curiosamente, em Portugal os seus livros saíram sob o nome de Jean Thiéry11. Primeiro, o romance apareceu serializado sob o título de L'Amour de Jacques, subscritas por Marie Thiéry. Após onze episódios, Mme. Bouvet, ao descobrir que um livro com o mesmo nome já existiu, alterou o título para Le Mariage de Jacques12. Aquando do seu lançamento em formato de livro, sofreu uma segunda mudança de título – para Pauvre Charlie, uma referência à vida traumatizada do jovem filho de pais divorciados. Tendo talvez decidido que um discurso tão expressamente anti-divórcio soaria ‘melhor’ vindo dos lábios de um narrador masculino, a editora sujeitou a autoria a uma ‘reatribuição de género’, recorrendo a um pseudônimo masculino que Mme. Bouvet já havia usado. Mais de 20 anos depois, quando, ironicamente, Florbela, duas vezes divorciada, aceitou traduzir um romance anti-divórcio, embora a editora mantivesse a autoria masculina do livro, sujeitou o título a uma terceira alteração, para O canto do cuco. A cantiga com a qual o romance abre e fecha evoca a superstição francesa de que o conteúdo da algibeira de quem quer que ouça o cuco cantar profetizará o seu destino. Ademais, o novo título convida a leitora portuguesa a comparar o comportamento de um segundo marido com o dos cucos, que não só se apropriam do ninho de outros pássaros, como também 7faces • 216


expulsam as crias do seu antecessor. Assim, desde o primeiro até o último canto do cuco, Jacques (Jaime na tradução) luta consigo mesmo e com aqueles que o rodeiam numa tentativa de escolher entre um casamento com o seu primeiro amor, uma mulher agora divorciada disposta a sacrificar quase tudo, exceto o seu filho, para estar novamente com ele, ou sucumbir a seus sentimentos crescentes por sua jovem prima, defensora resoluta da santidade do casamento. A análise comparativa do original e da tradução está atualmente em curso e, por esta razão, é demasiado cedo para tirarmos conclusões sólidas sobre a medida em que tivesse ocorrido aí qualquer interveniência da parte de Florbela, especialmente em relação ao tema do divórcio; no entanto, duas curiosidades já emergiram. Sendo um dos romances traduzidos por Florbela cuja versão original apareceu em formato folhetim, podemos confirmar que, antes de ser lançado como livro, o texto foi substancialmente editado – ora para eliminar texto considerado supérfluo, ora para não ferir sensibilidades católicas – a pesar de Hatier ser considerada uma editora mais erudita que devocional. A segunda curiosidade diz respeito ao uso de monólogos internos e à justaposição dos lados escuro e luminoso da feminilidade: nos seus pensamentos mais íntimos, Jacques tenta esclarecer os seus sentimentos por Diane (o seu primeiro amor, já separada de um marido abusivo, e pintada como a femme fatale do enredo), e por sua prima Manon (retratada como a adolescente inexperiente, mas moralmente decisiva). Ambos estes tropos se espelham no enredo do conto “Mulher de Perdição”, no qual João Eduardo se vê oscilando constantemente entre o fascínio de um caso com Reine Dupré, a sirena irresistível, e a previsibilidade de um casamento seguro com Helena, a epítome angélica da mulher convencional. Observações finais Ao reunir este mini-corpus de trabalhos originais e as suas respetivas traduções, pesquisar as vivências dos autores envolvidos e a literatura que criaram, e indicar alguns dos contextos sociais, culturais e pessoais que condicionaram a forma como a tradutora fez o seu trabalho, tem sido possível fazer uma pequena contribuição para um entendimento mais completo deste aspecto pouco conhecido da vida e arte de Florbela Espanca. Além disso, a partir de uma perspectiva mais geral, estudos deste gênero fornecem micro e macro matérias-primas para preencher 7faces • 217


algumas das lacunas em nosso conhecimento dos estágios iniciais na transição da tradução de uma prática erudita solitária para uma atividade constitutiva crucial da atual indústria editorial globalizada. Notas 1

Sempre que um par de textos foi identificado e adquirido, tornou-se possível uma leitura comparativa detalhada. Metade das leituras em paralelo planejadas já foram completadas: Le secret de Solange (Maryan), O romance de felicidade (Rameau). Doña Quichotta (de Peyrebrune), Mademoiselle de la Ferté (Benoit) e Pauvre Charlie (Thiéry). Algumas das conclusões até agora tiradas já foram publicadas (GERRY, 2009, 2010, 2011, 2012, 2015). No caso das cinco obras remanescentes, atualmente está em curso a análise comparativa do original e da tradução. 2

Constans (2004, 2007) designa as escritoras francesas integradas neste sistema ouvrières des lettres. 3

Embora, nas décadas sob escrutínio, a presença de mulheres fosse ínfima nesta atividade, importa referenciar, para além de Florbela Espanca, a proeminência de tradutoras (muitas delas autoras-tradutoras) tais como Ana de Castro Osório, Maria Amália Vaz de Carvalho, Emília de Araújo Pereira, Maria O’Neill, Selda Potocka, Luisa Ey, Alice Moderno, Mêcia Mousinho de Albuquerque, Aurora Jardim e Emília de Sousa e Costa, entre outras. 4

Ou seja, além do desejo de gozar de maior autonomia pessoal e material, as neófitas da profissão foram motivadas por feminismo e sufragismo na sua expressão quer republicanas quer não, bem como outras tendências menos radicais que enfatizaram à necessidade de todas as mulheres e as suas crianças aproveitarem de uma educação conducente à sua plena participação na sociedade. 5

Alguns dos autores sob escrutínio já haviam visto as suas obras publicadas por destacadas casas editoriais que se interessavam mais na qualidade e novidade da escrita do que na sua mensagem moral intrínseca. A criatividade de certos autores tinha sido reconhecida por via da atribuição de prestigiosos prêmios literários. Ademais, vários romances de Palacio Valdés foram filmados, um com roteiro de Alberto Moravia, e Pabst, Epstein e Tourneur realizaram filmes baseadas em romances de Benoit. 6

Obra serializada, dividida em episódios publicados em edições sucessivas de um jornal ou outro periódico. Pelo menos 5 dos romances sob escrutínio foram publicados primeiro como folhetim: L’île bleue (Thierry), Le secret du mari (Maryan), Pauvre Charlie (Thiéry), Victoire d'âme (G. SaintSavin/Champol), e Le bonheur passait (Saint-Jean). 7

Segundo Constans (2004; 2007).

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As traduções das duas obras foram publicadas em conjunto também na versão portuguesa de 1927, sob o título coletivo de Dois noivados, a novela

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Autre temps (subintitulada Noivado triste) nas páginas 7-107 e o romance completo Victoire d'âme (subintitulado Noivado feliz) nas páginas 111-304. 9

Embora não se saiba qual edição da revista levou a versão serializada do romance, o periódico foi publicado entre 25 de junho de 1905 e 27 de dezembro de 1908. 10

A detecção de ‘empréstimos’ não implica qualquer desconsideração do valor dos contos escritos por Florbela. Como ela disse, com apenas 20 anos de idade, “[Evocar] uma frase, um sentido, a reunião de duas palavras, uma maneira de dizer que eu já tivesse lido ou ouvido, é natural, e disso nem os maiores poetas se livram, quanto mais eu que ao pé deles faço a figura duma formiga olhando um astro”. Carta de Florbela a Madame Carvalho, Diretora de Modas e Bordados, escrita em 23.04.1916 (ESPANCA 1986, p. 115). 11

Por exemplo, além da tradução d’O canto do cuco por Florbela, Aurora Jardim, também autora-tradutora e amiga de Florbela, traduziu Vítimas, e uma terceira tradutora, Amália Gomes Barbosa, verteu para o português outro romance de Thiéry, Corações magoadas. 12

Marie Thiéry (1898-99) Paris: Le Gaulois, n. 6235-6280, 6 de Janeiro de 1899, 20 de Fevereiro 1899. Referências CONSTANS,Ellen. “Ouvrières des lettres: les romancières populaires sous la IIIe République”. In: MIGOZZI, J.; GUERN, P. Le (Orgs.), Production(s) du populaire. Limoge: PULIM, 2004, p. 91-124. CONSTANS, Ellen. Ouvrières des lettres. Limoge: PULIM, 2007. ESPANCA, Florbela. Contos e Diário. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000. ESPANCA, Florbela. Cartas 1906-1922. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1986, v. 5. GERRY, Chris. “Figurative resonances between the translation work and short story writing of Florbela Espanca”. In: Revista de Letras. Vila Real: UTAD, 2009, n. 8, p. 271-293. GERRY, Chris. “Biographical resonances in the translation work of Florbela Espanca”. B., Maher; R. Wilson. (Orgs.) Words, Sounds and Images in Translation. Londres: Continuum, 2010, p. 26-44. GERRY, Chris.; José Eduardo Reis. “A outra Florbela Espanca: reflexões sobre a prosa romanesca e ficcional traduzida”. In: SARMENTO, Clara (Org.). Diálogos interculturais: os novos rumos da viagem. Porto: Vida Económica Editorial, 2011, p. 181-202. GERRY, Chris. “Florbela tradutora”. In: VILELA, Ana Luísa; FRANCO, António Cândido; DAL FARRA, Maria Lúcia; et alli (Orgs.). Florbela Espanca. O espólio de um mito. Vila Viçosa: Colibri/C. M. de Vila Viçosa, 2012, número especial 21 da revista Callipole, p. 163-183. GERRY, Chris. “A tradutora (des)mascarada: acerca da permeabilidade entre os diferentes esforços criativos da autora-tradutora”. In: Obras Completas de Florbela Espanca. Lisboa: Editorial Estampa, 2015, p. 41-64. HOLMES, Diana. “Decadent love: Rachilde and the popular romance”. In: XIX – Journal of the Society of Dix-Neuviémistes, 1 setembro, 2003, p. 16-28.

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Por Iracema Goor Xavier

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Florbela Espanca, poeta portuguesa (1894-1930), escreveu três livros de poemas e dois de contos. Em vida, viu apenas dois de seus livros publicados, a saber: Livro de Mágoas (1919) e Livro de Sóror Saudade (1923). Também escreveu um diário e traduziu do francês diversos romances. Suas obras não tinham prefácio, de forma que a escritora as abria com dedicatórias e epígrafes, sempre entrando em diálogo com poetas e aqueles que lhe eram caros. Além da poesia e da prosa, Florbela mantém uma extensa epistolografia (cento e oitenta e cinco correspondências foram publicadas) entre familiares e amigos intelectuais. No último ano de sua vida, mais precisamente em 1930, as cartas são uma constante entre ela e seu amigo Guido Battelli, professor Italiano que, ao conhecer seus poemas, encanta-se com sua obra e vai conhecê-la pessoalmente. Após esse encontro, Battelli começa a traduzir os poemas de Florbela para o italiano em algumas revistas e se coloca à disposição para publicar o último livro que Florbela estava organizando: Charneca em Flor. Florbela Espanca revela, em sua correspondência, ser uma poeta criteriosa com seus versos. Por meio das cartas, orienta o editor sobre a forma como quer que seu livro seja apresentado ao grande público. Apesar de suas obras não possuírem prefácio, estão presentes as dedicatórias e as epígrafes, que funcionam como elementos paratextuais e revelam muito sobre a proximidade que Florbela tinha com seus familiares e com amigos poetas. Em Livro de Mágoas, Florbela escreve: “A meu Pai. Ao meu melhor amigo”1. Na página seguinte, a dedicatória se dirige a seu irmão Apeles: “À querida Alma irmã da minha. Ao meu Irmão”. Apeles é sem dúvida uma figura forte dentro do universo da poeta, tendo a ele dedicado, inclusive, um livro inteiro de contos intitulado As Máscaras do Destino2. O amor que Florbela nutria pelo irmão era imenso. Sendo um pouco mais velha, tinha para com ele o carinho de uma mãe e a ternura da melhor amiga, ele era seu confidente, seu porto seguro, a terra seca que sustentava seus pés. Também o considerava a única pessoa a conhecê-la profundamente. O laço afetivo com seu irmão era tão forte, que ela sempre dizia que se houvesse alguma alegria ou bondade em sua vida, tais sensações de bem-estar viriam do convívio com seu irmão. O Livro de Mágoas foi publicado com a ajuda financeira de João Maria Espanca, pai de Florbela. Após as dedicatórias já mencionadas, seguem-se duas epígrafes. A primeira epígrafe provém do livro A Sombra do Quadrante (1906), de Eugénio de Castro3:

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Procuraremos somente a Beleza, que a vida É um punhado infantil de areia ressequida, Um som d’água ou de bronze e uma sombra que passa...

O tom do poema prepara o leitor para algo fugidio. A procura da “Beleza” está distante da areia úmida que dá forma às esculturas das crianças. A sombra ganha vida dentro do cenário da poeta que é só feito de mágoas. A segunda epígrafe vem em um trecho do poema XVII de Paul Verlaine4 (N’est-ce pas? en dépit des sots et des méchants) da obra La Bonne Chanson (1870): Isolés dans l’ amour ainsi qu’en un bois noir, Nos deux coeurs, exhalant leur tendresse paisible, Seront deux rossignols qui chantent dans le soir5 As imagens poéticas que vertem nos sonetos da poeta se amalgamam às metáforas de Verlaine, a solidão do amor e o canto triste dos dois rouxinóis trazem a música melancólica que irá percorrer todo o livro. O Livro de Sóror Saudade também se apresenta com duas epígrafes. A primeira se reporta a Américo Durão (1894-1969)6. O trecho faz parte de um soneto escrito, em homenagem à Florbela, intitulado “À Poetisa D. Florbela Espanca”, publicado no jornal O Século (1919) Irmã, Soror Saudade... Ah! Se eu pudesse Tocar de aspiração a nossa vida! Fazer do mundo a Terra Prometida Que ainda em sonho às vezes me aparece! (Américo Durão) A segunda Epígrafe é do poeta, dramaturgo e ensaísta belga Maurice Maeterlinck7 (1862-1949), autor pelo qual Florbela nutria grande admiração. Il n’a pas à se plaindre celui qui attend um sentiment plus ardente et plus généreux. Il n’a pas à se plaindre celui qui attend le désir d’un peu plus de bonheur, d’un peu plus de beauté, d’un peu plus de justice

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A expressividade poética das duas epígrafes torna-se aliada dos poemas de Florbela Espanca, de forma que não operam apenas no “plano das homenagens” a escritores estimados por ela. Na primeira, a poeta veste a capa protetora que lhe foi atribuída e entra no claustro, para de lá sair após esperar pacientemente o momento certo. Já na segunda, é a espera pelo sentimento mais generoso, ardente, belo e justo que a impulsiona a ficar em um estado impotente, que nos é imposto pelo tempo. Esse será o tom de Livro de Sóror Saudade: a resignação de quem espera pela “Terra Prometida”. O artigo “O gênero como proposta de leitura para os prefácios de Tutaméia” de Juliana da Silva Passos (2011) fala sobre todo o arsenal que orbita na confecção de um livro. De acordo com Passos, os paratextos podem trazer diferentes interpretações às obras. Para tanto, a estudiosa lança mão da definição de paratexto de Daisy Turrer, que também reproduzimos: À margem, acompanhando o texto principal, inscrevemse outros textos: títulos, subtítulos, nome do autor, orelha, prefácio, dedicatória, epígrafe, notas, bibliografia, sumário, apêndice, anexos [...] Esse espaço intermediário, denominado paratexto ou perigrafia, tem a função de exibir o texto, apresentá-lo, encená-lo ao leitor. (2002, p.29) Assim, entendemos que todos os elementos escolhidos para fazer parte de um livro para além do “corpo textual”, seja em poesia ou prosa, são importantes e se caracterizam como paratextos. Vimos que as dedicatórias e epígrafes citadas por Florbela Espanca são paratextos, porque indicam pistas ao leitor de como a poeta gostaria de ser “lida e sentida”, uma vez que os excertos epigrafados, conforme vimos, dialogam com a temática a ser desenvolvida em cada um dos livros de Florbela e veiculam, em certa medida, o próprio entendimento da escritora em relação ao seu processo de escrita poética. Apesar de sabermos da importância dos elementos paratextuais, tais como epígrafes e dedicatórias, e de termos esboçado sua coerente relação com os livros de Florbela Espanca, não trataremos desse tema agora. Nosso objetivo é analisar as cartas redigidas pela escritora, entendendo-as como prefácios, ou como um “fio condutor” para a escrita de prefácios. Essa mudança de perspectiva de leitura crítica, além de redimensionar a função das missivas relacionadas, nesse 7faces • 224


artigo, também mobiliza a própria leitura que Florbela realiza de si, já que suas “cartas-prefácio” revelam a imagem de uma mulher forte, que não tolera enganos e erros de quem apenas registra as palavras, no caso o tipógrafo, e das mulheres que se dedicam a atividades que a poeta despreza. Para a publicação de Charneca em Flor, Florbela refere-se, em uma carta a José Emídio (escritor e jornalista que antes de Guido Battelli cuidava da publicação de seus livros), a um possível prefácio que seria escrito por um amigo muito ocupado. No entanto, esse prefácio não sai e quanto ao seu autor pensamos ser ou Raul Proença ou Américo Durão, por serem poetas com quem Florbela mantinha uma extensa correspondência intelectual8. Eis a citação em carta enviada a José Emídio Amaro em 19 de fevereiro de 1928: O meu livro, por um motivo alheio a minha vontade, não poderia sair antes de maio ou junho. Espero um prefácio prometido por um dos mais interessantes e cultos espíritos portugueses e que, ao mesmo tempo, é um dos meus melhores e antigos amigos. Tem, porém, imensos afazeres e uma indolência de verdadeiro artista, de forma que está a dois meses esperando inspiração e eu, com imensa paciência, esperando o dito prefácio... Ora, como Maio ou Junho é tarde para o aparecimento de um livro, aguardarei Outubro ou Novembro; desta maneira posso enviar-lhe (ESPANCA, apud Dal Farra p.241) Nesse trecho, percebe-se o quão importante é para Florbela que seu livro seja publicado por uma pessoa influente e sabedora de sua arte. Segundo Juliana da Silva Passos “Prefácios constituem paratextos, ou seja, textos que, paralelamente à obra principal corroboram diferentes interpretações desta”. Dada a preocupação de Florbela perante o prefácio aguardado, vê-se que existe uma expectativa em relação ao livro e com a sua recepção, uma vez que o prefácio pode seduzir o leitor e dar prestígio para o autor. ‘Como estamos discutindo as cartas de Florbela como prefácio, Cunha (2007, p.73) afirma que “devido ao caráter essencialmente movediço das cartas, são muitos caminhos e leituras que se podem buscar em seu estudo. Podemos tomar fragmentos de carta como ensaio”. Não tendo Florbela nenhum prefácio em seus livros, ela o faz por uma via híbrida, ora dizendo ao editor como quer que sua obra venha a público, ora utilizando a carta de modo a justificar o seu 7faces • 225


trabalho de poeta. Dessa maneira, suas cartas aproximam-se muito do ensaio, como veremos mais à frente. Por enquanto, apreciemos as orientações de Florbela a José Emilio Amaro e Guido Battelli. Florbela demonstra durante toda a sua vida grande preocupação com a própria obra. Ela é muito cuidadosa com seus versos não permitindo que ninguém os toque ou inverta sua posição. Em sua carta ao escritor e jornalista José Emídio Amaro de 26/01/1928, encontramos o seguinte trecho: o meu soneto “Charneca em Flor” foi um bocado maltratado. Peço-lhe para evitar tratamento igual nos que mandar daqui para o futuro: O primeiro verso dizia assim no original: 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Enche o meu peito num encanto mago E não como lá estava, pois ficou sem uma sílaba: 1 2 3 4 5 6 7 8 9 Enche o meu peito num canto mago Mais abaixo escreveram burel com o. Nos meus tempos escrevia-se burel e acho que continua a escrever-se assim... A poesia não comporta gralhas como a prosa, que às vezes até fica melhor... é coisa tão delicada que só vive de ritmo e de harmonia. Quase dispensa as ideias. Quem lhe tocar, assassina-a sem piedade. Perdoe-me se o importuno, mas tenho um bocadinho de razão, não acha? Tenho pelos meus versos uma ternura especial; tenho feito deles alguma coisa mais que uma distracção ou um fútil motivo de vaidades, e dói-me quando os vejo assim um bocadinho magoados... Susceptibilidades de poeta, para as quais peço a sua indulgência [...]9 Podemos notar a grande preocupação que tem Florbela para que a estrutura de seus sonetos seja respeitada. Também faz uma ironia com aqueles que erram mesmo ortograficamente “no meu tempo escreviase burel”. Dessa forma, a poeta demonstra com clareza que, de acordo com seu ponto de vista, o trabalho criador da palavra não pode ser 7faces • 226


alterado por outrem que não seja o próprio escritor em busca do verso perfeito “A poesia não comporta gralhas (...). Quem lhe tocar, assassina-a sem piedade”. Além da preocupação com seus versos, Florbela também tem consciência de que o trabalho todo possa ser perdido ou extraviado, por isso guarda cópias de seus originais, abrangendo inclusive a impressão e revisão de seus textos, conforme podemos observar na carta que escreve a Guido Battelli de 28 de outubro de 1930: apressei-me a tratar de tudo, e já dei os versos a copiar à máquina, para ficar com uma cópia do original que lhe vou enviar, assim que o homenzinho se dignar terminar a tarefa. Tenho receio que se percam no correio, por isso desejo ficar com ela [...] os sonetos são, se não me engano, 52, e a ordem é aquela em que lhos envio. Acho bem o formato do livro. A capa branca toda, muito simples, apenas com o nome do livro e o meu em letras vermelhas ou azuis (...). Agora eu gostava mais de que ficassem as duas quadras de cada soneto dum lado da folha e os dois tercetos do outro lado. Fica o soneto menos duro, lê-se melhor (...) suprimi alguns sonetos que tinham um ou outro verso menos perfeito; só lá pus o que me agrada absolutamente e o livro ainda fica assim bastante grande, fica bem. Não esquecer de pôr, numa das primeiras páginas: Livro de Mágoas, 1920 – esgotado; Livro de Sóror Saudade, 1923. Na página logo anterior ao primeiro soneto, exatamente como vai, esses belos versos de Ruben Darío, em letra de tipo mais miúdo, são claro. E, também como vai, essa folha em branco, a separar todos os sonetos desses últimos 6 que são numerados, apenas com esse verso de Camões. Tal qual como lhe envio, enfim. Acho que fica tudo assim muito bem (ESPANCA apud DAL FARRA, p.292).

Esta carta refere-se ao seu último livro Charneca em Flor, publicado postumamente em 1931. Salta aos olhos a preocupação de Florbela quanto a disposição do soneto: as quadras de um lado, os tercetos de outro, bem ao gosto das vanguardas da época e, ao perfeccionismo em suprimir o que não considerava bom. Para além das recomendações de publicação, novamente a poeta faz questão que 7faces • 227


dois poetas importantes façam parte de seu livro, ou seja, Rubén Darío10 e Camões11. Não por acaso a poeta busca esses dois poetas representantes da tradição e da ruptura. Segundo o estudo de Monteiro em seu artigo Carta-prefácio de Luís da Câmara Cascudo para Severino Bezerra (2013, p.49): A carta por ser um gênero íntimo e particular – carrega como conteúdo informações que deveriam ser compartilhadas apenas pela pessoa que a enviou/recebeu, mas nem sempre é assim; há registros de correspondências que vieram a público e que se tornaram objeto de estudo de pesquisadores, como é o caso do prefácio em forma de carta. De fato, as cartas de Florbela tem sido um rico material para os pesquisadores descobrirem quem eram os autores lidos por ela e como os seus livros poderiam e deveriam ser publicados. Também existem passagens que materializam um caráter ensaístico, com justificativas sutis sobre seu método de trabalho, de maneira que suas cartas invadem outros campos linguísticos, tornando-se um texto híbrido. Florbela não é efetivamente encaixada em qualquer movimento que a molde, e não nos parece muito preocupada com isso. Está mais interessada em vários projetos de escrita. Os afazeres domésticos não a atraem, embora tente. Em seus escritos encontra aconchego, conforme lemos em uma de suas cartas endereçadas à Júlia, em 22 de agosto de 1916: Eu não sou em muitas coisas, nada mulher; pouco de feminino tenho em quase todas as distrações da minha vida. Todas as ninharias pueris em que as mulheres se comprazem, toda a fina gentileza duns trabalhos em seda e oiro, as rendas, os bordados, a pintura, tudo isso que eu admiro e adoro em todas as mãos de mulher, não se dão bem nas minhas, apenas talhadas para folhear livros que são verdadeiramente os meus mais queridos amigos e os meus inseparáveis companheiros (ESPANCA, apud DAL FARRA, 2002, p. 223). A poeta abre caminhos para que criemos dela uma imagem que, logo de início, destoa de um “feminino” convencional. Ela afirma não 7faces • 228


ser a mulher esperada pela sociedade, mas, em seguida, escreve sobre as “ninharias pueris” com que as mulheres se permitem viver e continua: “toda a fina gentileza duns trabalhos em seda e oiro, as rendas, os bordados, a pintura, tudo isso que eu admiro e adoro em todas as mãos de mulher”. Diz não ter aprendido, pois suas mãos são “apenas talhadas para folhear livros” e, nesse ponto, um paradoxo se instala, já que, na verdade, suas mãos são outras: ao contrário da insignificância e da infantilidade das mulheres que conhece, suas mãos são feitas para esculpirem as palavras. Zango comigo própria, tento fazer qualquer coisa, mas a leveza aérea das sedas, a fluidez ideal das rendas, fazem tremer-me as mãos que não tremem nunca ao folhear os livros que mais fatigam toda a gente, irritam-me e maçamme a um ponto que tenho de atirar com aquilo tudo para outro regaço mais de mulher, mais acariciante, mais doce e com todas as carícias e doçuras que o meu não teve, não tem e não terá nunca. Que desconsolo ser assim, minha Júlia! Ter apenas paciência para penetrar os arcanos duma alma que se fecha nas páginas dum livro: ter apenas gosto em chorar com António Nobre, pensar com Vítor Hugo, troçar com Fialho de Almeida e rir suavemente, deliciosamente, com uma pontinha de ironia onde às vezes há lágrimas, com Júlio Dantas! Eu não devia ser assim, não é verdade? Mas sou (ESPANCA, apud DAL FARRA, 2002, p. 223). Mais uma vez Florbela tenta se justificar por ser diferente das outras mulheres ao não ter paciência com as rendas e com as sedas, e, no entanto, ter paciência para os “arcanos”, isto é, tem atração pelo enigmático, pelo misterioso. Ela é uma ótima leitora e se envaidece por conhecer obras consagradas e de estar perto dos grandes autores, como Antônio Nobre, Vitor Hugo, Fialho de Almeida e Júlio Dantas. O tempo todo, em suas cartas para os amigos e familiares, a poeta revela como devem ser lidos os seus livros, carregados de diálogos com outros poetas: Tive os melhores professores de tudo na capital do Alentejo (que se são melhores não são bons), de bordados, de pintura, de música, de canto, e afinal sou uma eterna curiosa de livros e alfarrábios, e mais nada. E pensando 7faces • 229


bem, minha querida, não há tudo isso nos meus livros? Música e canto, bordados e rendas... que delícia e que finura em certos versos... que encanto e que magia em certas frases! (ESPANCA, apud DAL FARRA, 2002, p. 223). Com ironia, Florbela se refere aos professores que teve na capital. O melhor pode não ser bom. Aliás, melhor em quê? E bons no quê? Podemos intuir uma sugestão da poeta (de que eles não são bons na arte da poesia) na medida em que ela está se dirigindo aos bordados, à pintura que, segundo nossa leitura, são seus versos, a matéria-prima de sua obra, a palavra. Quanto ao canto e à música, também mencionados por ela, podese dizer que a poeta trabalha com a voz da cultura trovadoresca, que ainda persiste nas cantigas do Alentejo e que está na oralidade trazida pela tradição). Vê-se claramente que a palavra em seus versos é corpórea, delicada e se materializa com o poema. A poeta também valoriza sua arte. Embora tenha começado sua carta com uma suposta humildade, à medida que vai avançando, também vai nos ensinando a olhar, ver e sentir o poema: palpo esses bordados, essa macieza de cetins, beijo esses pontos delicados, essa espuma de rendas, essas brancuras tênues, esses negros chorosos e trágicos, e acho-os melhores, perdoa-me, minha Júlia, ia naturalmente ser insolente para contigo, que deves de certo ser uma fada dessas que bordam lírios em telas finas, como eu bordo saudades na tela roxa de lágrimas do meu destino! (ESPANCA, apud DAL FARRA, 2002, p. 223). Essa carta é muito significativa para demostrar como é o método de trabalho de Florbela, para quem a palavra é toda corpórea, porque viva, delicada e macia. As sensações que encontramos no poema estão expostas em seu próprio método de escrita. Ela tem consciência de seu trabalho artesanal e, mais uma vez, compara seus versos com o trabalho das mulheres e chegar à conclusão de que o que faz é superior: convenço-me que valem mais que os mais valiosos trabalhos em que mãos de princesas descansassem [...] E muitas vezes surpreendo-me a sorrir com um pouco de ironia e de piedade por todas essas belas coisas, coisas de 7faces • 230


mulheres tão finas e tão leves como a leviandade... oh! (ESPANCA, apud DAL FARRA, 2002, p. 223). Mais uma vez a ironia e o desprezo são traçados metaforicamente, evidenciando a crítica que a poeta faz a todas as mulheres que se dedicam a coisas tão belas na superficialidade, mas que não adentram na seriedade que é trabalhar com o artesanato da palavra. Termina pedindo perdão se por acaso foi insolente e compara a amiga com uma fada que borda lírios, e a si própria, com uma mulher que borda “saudades na tela roxa de lágrimas do meu destino!”. Fica clara a figura de uma mulher forte, que tem absoluto domínio do que quer e daquilo que não valoriza, embora possa ser essencial para as outras mulheres, gostar dos trabalhos manuais e dos afazeres do lar. Esse modelo não se encaixa em Florbela, por ser uma mulher que tem um trabalho intelectual e artístico a desenvolver. Será ela que dará corporalidade à palavra, que falará do amor de uma forma que talvez nenhuma outra mulher tenha tido “coragem” de falar. A poeta demonstra inteligência, altivez e sagacidade em falar com a amiga Júlia, ao mesmo tempo em que zomba dessas rotinas pueris. Podemos fazer um paralelo, dada a devida distância crítica, com Baudelaire, em suas considerações de “O Pintor da vida Moderna” (1988, p. 85): há ainda uma classe de homens, tímidos e obedientes, que concentram todo seu orgulho em obedecer um código de falsa dignidade. Enquanto estes acreditam representar natureza, e aqueles querem pintar a própria alma, os outros conformam-se às regras de pura convenção, completamente arbitrárias, que não saem da alma humana e são simplesmente impostas pela rotina de uma escola famosa. Nessa classe muito numerosa, mas tão pouco interessante, incluem-se os falsos amantes do antigo, os falsos amantes do estilo para reunir todos os homens que, por sua incapacidade, elevaram a banalidade às honrarias do estilo. Tal qual Baudelaire, Florbela não se conforma em ser obediente. Faz questão de ser autêntica e busca trazer em sua obra a escrita de sua própria alma, descartando completamente as convenções de sua época. Prima por um espírito livre e contestador, não deixando de lado o rigor do estilo. Nesse sentido, pelo que conseguimos levantar, até o 7faces • 231


momento, percebemos que Florbela utiliza suas cartas, por vezes, como prefácio, assim como para demonstrar seu método de trabalho em confluência da escrita de si. Dessa maneira, parece-nos válido recuperar o que Foucault (1823, p. 9), afirma sobre o gênero carta e suas implicações interpretativas: a correspondência (...) é alguma coisa mais do que um adestramento de si mesmo pela escrita, através dos conselhos e advertências dados ao outro: constitui também uma certa maneira de se manifestar para si mesmo e para os outros. A carta torna o escritor” presente” para aquele a quem ele a envia. E presente não simplesmente pelas informações que ele lhe dá sobre sua vida, sus atividades, seus sucessos e fracassos, suas venturas e desventuras; presente com uma espécie de presença imediata e quase física Escrever é, portanto, “se mostrar”, se expor, fazer aparecer seu próprio rosto perto do outro. E isso significa que a carta é ao mesmo tempo um olhar que se lança sobre o destinatário (pela missiva que ele recebe, se sente olhado) e uma maneira de se oferecer ao seu olhar através do que lhe é dito sobre si mesmo. Florbela, em suas cartas, opera uma escrita madura que sabe o que diz. Para além de uma tentativa de atenuar os perigos da solidão e do isolamento, a poeta demonstra seu domínio da arte da escrita e sua preocupação com o púbico. Suas cartas, conduzidas pelo tom ensaístico e que poderiam funcionar como prefácios a seus livros publicados em vida (que, conforme já observamos, não apresentaram esse elemento paratextual), partilham o caráter de Florbela, seus mais profundos desejos, sem perder o olhar para um tratamento profissional de sua obra. Ao se despir da tradição, a poeta revela o quanto tem de moderno e com quais autores conversa para lançar a ruptura em seu caminho.

Notas 1

João Maria Espanca, pai de Florbela deu o apoio financeiro, para que Florbela publicasse seu primeiro livro, além disso, Florbela nutria pelo pai um grande carinho e por isso a primeira dedicatória ser dirigida a ele. 2

Esse livro de contos é todo elaborado em 1927 quando tragicamente Apeles sofre um acidente de avião e perde a vida. Seus restos mortais jamais foram

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encontrados e para sempre ficaram nas águas do Rio Tejo, fato que causou muito sofrimento à Florbela, uma vez que via nele a alegria e o vigor que dizia não possuir. 3

Eugénio de Castro foi um importante poeta português considerado, assim como Camilo Pessanha, um dos principais representantes do simbolismo português. Florbela o conheceu quando estava cursando direito na Universidade de Lisboa e manteve estreitas relações de amizade, bem como experiências poéticas interessantes com ele. 4

Paul Verlaine foi aclamado em 1984 como o príncipe dos poetas na França, coincidentemente é o ano de nascimento de Florbela, e por quem a poeta tinha grande admiração e respeito. Em sua poesia de musicalidade lírica e singular, Verlaine expressava os arrebatamentos da alma, transpondo seus sentimentos em impressões, através de paisagens nostálgicas e refinadas, características essas muito próximas de Florbela. 5

“Isolado no amor, assim como na madeira negra, / Nossos dois corações exalando sua ternura pacífica / Serão dois rouxinóis que cantam à noite”. 6

Américo Durão era poeta, dramaturgo e colega de turma de Florbela na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 7

Maurice Maeterlinck, ficou associado ao movimento simbolista. Foi prêmio Nobel em Literatura em 1911. Esse trecho faz parte do ensaio “La sagesse et la destinée” 1898. Tradução: “Não tem razão de queixa aquele que espera um sentimento mais ardente e mais generoso. Não tem razão de queixa aquele que espera o desejo de um pouco mais de felicidade, um pouco mais de beleza, um pouco mais de justiça”. (ESPANCA, 2012, p. 140). 8

Raul Proença e Américo Durão eram poetas e amigos de Florbela, por essa razão lançamos essa hipótese, ainda que não possamos certificá-la, pois muitas dessas correspondências ficaram com familiares ou se perderam. 9

Obras Completas de Florbela Espanca. Lisboa: Dom Quixote, 1985.

10

Rubén Darío, poeta nicaraguense, iniciador e máximo representante do modernismo em língua espanhola, objeto de pesquisa de Renata Oliveira Bomfim que tece considerações sobre o amor nas poéticas de Florbela Espanca (1894-1930) e Rubén Dario (1867- 1930), a partir dos poemas “Amo, amas”, de Canto de vida y de esperanza e “Amar”, de Charneca em flor. O artigo tem como base os resultados encontrados na pesquisa de doutorado intitulada “A Flor e o Cisne: diálogos poéticos entre Florbela Espanca e Rubén Darío” de 2012 que investigou comparativamente os poetas em questão. 11 A admiração de Florbela por Camões era tanta que no livro Charneca em Flor dedica 10 sonetos ao poeta, abrindo os sonetos com o título “He hum não querer mais que bem querer” onde irá tratar dos paradoxos do amor. Referências ALONSO, Claudia Pazos; SILVA, Fábio Mario da (Orgs.). Obras completas de Florbela Espanca. Lisboa: Editorial Estampa, 2012a, v.1.

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______. Obras completas de Florbela Espanca. Lisboa: Editorial Estampa, 2012b, v.2. ______. Obras completas de Florbela Espanca. Lisboa: Editorial Estampa, 2013, v.3. ______. Obras completas de Florbela Espanca. Lisboa: Estampa, 2015, v.4. BAUDELAIRE, Charles. A modernidade de Baudelaire. O pintor da vida moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1988. BOMFIM, Renata. “O amor nas poéticas de Florbela Espanca e Rubén Darío”. In: Interdisciplinar. Alagoas: Universidade Federal de Sergipe, ano 10, v.23, jul.-dez. 2015. Disponível em: <https://seer.ufs.br/index.php/interdisiplinar/article/viewFile/4089/3382> Último acesso em 10 de setembro de 2018. CUNHA, Jakeline Fernandes. “Mário de Andrade e Adorno: cartas, prefácios e ‘O ensaio como forma’”. In: Magma. São Paulo: Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo, n. 10, jul.dez.2012. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/magma/article/view/48470> Último acesso em 10 de setembro de 2018. DAL FARRA, Maria Lúcia. Afinado desconcerto – contos, cartas, diário. São Paulo: Iluminuras. 2002. FILIPPO, Bruno Policani. “Os gêneros literários e a indústria cultural do século XX”. In: Revista DAPesquisa. Florianópolis: Universidade do Estado de Santa Catarina, v. 10, n.14, novembro 2015. Disponível em: <http://www.revistas.udesc.br/index.php/dapesquisa/article/view/6063 > Último acesso em 10 de setembro de 2018. FOUCAULT, Michel. “A escrita de si”. In: Corps écrit, n. 5: L”autoportrait, fevereiro de 1983, p. 3-23. FREITAS, Gustavo Araújo de. “Epistolografia no tratado ‘Sobre o Estilo’ de Demétrio e as primeiras reflexões sobre o Gênero na antiguidade GrecoRomana”. In: Revista Estudos Linguísticos e Literários. Salvador: Instituto de Letras, n. 55, 2016. Disponível em <https://portalseer.ufba.br/index.php/estudos/article/view/16858> Último acesso em 10 de setembro de 2018. MONTEIRO, Maria da Conceição Dantas. “Carta-Prefácio de Luís da Câmara Cascudo para Severino Bezerra”. In: Imburana. Natal: Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Norte-Rio-Grandenses, v.4, n.7, 2013. Disponível em <https://periodicos.ufrn.br/imburana/article/view/6067> Último acesso em 10 de setembro de 2018. PAIXÃO, F. “Poema em prosa: problemática (in)definição”. In: Revista Brasileira, fase VIII, abr.-jun., 2013, ano 2 n. 75. PASSOS, Juliana da Silva. “O gênero como proposta de leitura para os prefácios de Tutaméia”. In: Contexto. Vitória: Programa de Pós-Graduação em Letras, n.20, 2011-2012. Disponível em <http://periodicos.ufes.br/contexto/article/view/6539/4783> Último acesso em 10 de setembro de 2018. SOARES, A. Gêneros literários. 7 ed. São Paulo: Ática, 2007. TIN, Emerson. “Cartas e Literatura: reflexões sobre pesquisa do gênero epistolar”. Campinas: Editora da Unicamp, 2009. Disponível em: <www.unicamp.br/iel/monteirolobato/outros/Emerson02.pdf> Último acesso em 10 de setembro de 2018. TURRER, Daisy. O livro e a ausência de livro em Tutaméia, de Guimarães Rosa. Autêntica: Belo Horizonte, 2002.

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Os convidados

ELIANA LUIZA DOS SANTOS BARROS Psicóloga Clínica, Mestre em Literatura Portuguesa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Psicanalista membro do Corpo Freudiano – Escola de Psicanálise Seção Rio de Janeiro. Integra o grupo de pesquisa do CNPq intitulado Figurações do Feminino: Florbela Espanca et alii, sediado na Universidade Federal de Sergipe. ISA MARGARIDA VITÓRIA SEVERINO Professora Adjunta do Instituto Politécnico da Guarda. Doutora em Literatura (2015), Mestre em Estudos Portugueses (2005) pela Universidade de Aveiro, Mestre em Estudos Portugueses e Espanhóis pela Universidade da Beira Interior (2017) e Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos Portugueses pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. É membro do grupo CNPq intitulado Figurações do feminino: Florbela Espanca et alii, sediado na Universidade Federal de Sergipe, sob a orientação da Professora Doutora Maria Lúcia Dal Farra. É também membro da Unidade de Investigação para o desenvolvimento do Interior (UDI). MICHELLE VASCONCELOS OLIVEIRA DO NASCIMENTO Doutora (2011) e Mestre (2005) em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Licenciada em Letras Português (UFRN), Licenciada em Letras Espanhol (FURG) e Bacharel em História (FURG); Doutoranda em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e bolsista de investigação na Fundação Calouste Gulbenkian; desenvolve pesquisas na área de Literatura de autoria feminina; Estudos de Gênero e História Política; coordena a edição das obras completas de Florbela Espanca no Brasil pela editora LiberArs. MARIA LÚCIA DAL FARRA É professora titular concursada de Literatura Portuguesa da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Defendeu Mestrado e Doutorado na Universidade de São Paulo e obteve grau de MS-4 RDIDP (Livre-Docência) em Literatura Comparada na Universidade de Campinas. Fez parte da equipe pioneira de Antonio Candido para a fundação do Departamento de Teoria Literária e do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP e foi professora em Berkeley (Universidade da Califórnia). Tem Pós-Doutorado pela École Pratique des Hautes Études de Paris e pela Universidade de Lisboa.

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CLÊUMA DE CARVALHO MAGALHÃES Formada em Licenciatura Plena em Letras / Português, com Especialização em Literatura Brasileira, Mestrado em Literatura e Doutorado em História da Literatura. Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí. Membro do grupo de pesquisa Figurações do feminino: Florbela Espanca et alii no CNPq, sob a orientação da professora doutora Maria Lúcia Dal Farra. Desenvolve a pesquisa Diálogos com a obra de Florbela Espanca: a recepção produtiva, na qual dá continuidade aos estudos publicados em 2009, no livro A obra de Florbela Espanca na perspectiva da estética da recepção. FABIO MARIO DA SILVA É Professor de Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, integra o Programa de Pós-Graduação em Letras (POSLET) do Instituto de Linguística, Letras e Artes (ILLA). É pós-doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo, com bolsa da FAPESP. É doutor em Literatura e mestre em Estudos Lusófonos pela Universidade de Évora. É pesquisador do CNPq, nos seguintes projetos: "Figurações do feminino: Florbela Espanca et alii", "Estudos da poética e da retórica aristotélicas e apropriações lusobrasileiros dos séculos XVI e XVII” e “Estudos Portugueses e Africanos”. ANDREIA DE LIMA ANDRADE É Mestre em Literatura e Ensino pela Universidade Federal de Campina Grande. Doutoranda em Literatura e Interculturalidade, no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade, da Universidade Estadual da Paraíba. É professora assistente da Universidade Federal Rural de Pernambuco, na Unidade Acadêmica de Serra Talhada. Atua principalmente na área de Literatura Portuguesa, Literatura Infanto-Juvenil e Literatura e Ensino. Estuda a contística de Florbela Espanca, na perspectiva da autoficção. CHRIS GERRY É Doutor em Economia pela Universidade de Leeds (Inglaterra), antigamente (1976-1997) docente e investigador da Universidade de Swansea (País de Gales) e, mais recentemente (2002-16), Professor Catedrático da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real, Portugal. Até a sua aposentadoria, pesquisava sobre o setor informal da economia urbana africana e latino-mericana, o desenvolvimento rural e local, e as políticas de combate à pobreza. Agora a sua pesquisa incide exclusivamente sobre a tradução literária, tendo já publicado vários artigos e capítulos de livros sobre os contos de Florbela Espanca e os romances que ela verteu para o português. Atualmente, está traduzindo algumas obras de ‘prosa transgressiva’ portuguesa do início do século XX (Judith Teixeira, António Botto, Raul Leal, entre outros) e pesquisando o trabalho de autoras-tradutoras portugueses da mesma época. IRACEMA GOOR XAVIER Possui graduação em Pedagogia pelo Centro Universitário Fundação Santo André (1993), graduação em Letras / Inglês pelo Centro Universitário Fundação Santo André (2002), pósgraduação em Crítica Literária pela PUC-SP (2006), pós-graduação em psicopedagogia pela UNIMES (2014) e Mestrado em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP (2016). Atualmente é diretora aposentada pela Prefeitura de São Paulo e doutoranda do programa de Literatura e Crítica Literária na PUC-SP.

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7faces www.revistasetefaces.com A Revista 7faces é uma produção semestral independente com interesse na publicação de poesia. Editores Pedro Fernandes e Cesar Kiraly Organização desta edição Jonas Leite, Pedro Fernandes e Cesar Kiraly Conselho editorial Eduardo Viveiros de Castro Ésio Macedo Ribeiro Maria Filomena Molder Nuno Júdice

Poetas colaboradores (por ordem de apresentação) Franco Bordino Lucas Grosso Augusto de Sousa Juan Manuel Palomino Domínguez Carolina Pazos Daniel Jonas Moira Marques Portugal Rebeca Rose dos Santos Leandro Nathalia Catharina Alaor Rocha Paulo Emílio Azevedo Tibério Júlio de Albuquerque Bastos

Agradecimentos Especial, ao Jonas Leite pela organização deste número, aos convidados pela atenção e pelo envio dos textos. E a todos que enviaram material para a ideia.

Contato Pelo correio eletrônico dos editores, pedro.letras@yahoo.com.br, ckiraly@id.uff.br ou através do correio eletrônico da redação revistasetefaces@ymail.com Revista 7faces. Natal – RN. Ano 9. Edição n. 17. jan.-jul. 2018. ISSN 2177-0794

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Para participar da ideia, deve o poeta consultar o espaço www.revistasetefaces.com, para ler as regulagens e enviar o material; ou solicitar aos editores através dos contatos pedro.letras@yahoo.com.br e ckiraly@id.uff.br o envio das regulagens.

Os editores deste caderno-revista isentos de toda e qualquer informação que tenha sido prestada de maneira equivocada por parte dos autores aqui publicados, conforme declaração enviada por cada um dos autores e no sistema 7faces.

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7faces • 246 Capa © Damien Hirst


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