Revista 7faces 16

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Obra do homenageado O amor em visita (1958) Poemacto (1961) Lugar (1962) Os passos em volta (1963) Electronicolírica (1964) Húmus – Poema-montagem (1967) Retrato em movimento (1967) Apresentação do rosto (1968) Num tempo sentado (1969) Vocação animal (1971) Cobra (1977) O corpo, o luxo, a obra (1978) Photomaton & Vox (1979) Flash (1980) A plenos pulmões (1981) A cabeça entre as mãos (1982) Kodak (1984) Última ciência (1988) Do mundo (1994) Fonte (1998) Ou o poema contínuo (2004) A faca não corta o fogo (2008) Servidões (2013) A morte sem mestre (2014) Poemas canhotos (2015) Letra aberta (2016) Em minúsculas (2018)

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Natal – RN 7faces • 5


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nada pode ser mais complexo que um poema, organismo superlativo absoluto vivo, apenas com palavras, apenas com palavras despropositadas, movimentos milagrosos de míseras vogais e consoantes, nada mais que isso, música, e silêncio por ela fora Herberto Helder

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sumário Apresentação Nota quase inútil 11 Por Leonardo Chioda Herberto Helder: começar a morrer 20 Por Eduardo Quina O continente Helder 27 Por António Fournier ESTES POEMAS QUE CHEGAM (Caderno 1) Laura Elizia Haubert 39 Gabriel Faraco 45 Hugo Lima 53 Carlos Arthur Rezende Pereira 63 Cristiane Bouger 69 José Huguenin 77 Lucas Perito 81 Fabrício Gean Guedes 89 Guilherme Lessa Bica 97 Antônio LaCarne 103

7faces • 9 © Mariana Viana (todas as ilustrações desta edição não identificadas são da artista)


ENTREMEIO H. H Desejo maquínico 110 Por Rafael Lovisi Prado Da bike ao helicóptero: Vergílio Ferreira e Herberto Helder 120 Por Maria Lúcia Dal Farra ESTES POEMAS QUE CHEGAM (Caderno 2) Valter Hugo Mãe 137 Mariana Basílio 145 Eduardo Quina 157 Gregório Camilo 163 Diego Ortega dos Santos 169 Gabriel Stroka Ceballos 179 José Pascoal 183 Diogo Bogéa 189 Jorge de Freitas 193 Camila Assad Quintanilha 199 Lugar último de Herberto Helder 204 Por Claudio Willer Da morada áspera de Herberto Helder: residir e resistir contra Auschwitz 211 Por Tatiana Picosque

Fichamento Herberto Helder 235 (Notas para a carnavalização da recusa) Por Ana Cristina Joaquim

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© Armando Alves

apresentação

NOTA QUASE INÚTIL Escrever sobre Herberto Helder é um crime. Ler também, não nos enganemos. Qualquer desaviso em relação ao poeta é um convite ao conhecimento de si e do mundo pelas vias obscuras, pela mão errada de um criminoso com sua única graça, o crime, empunhando a Bic preta — a mais inocente das armas. Imperdoáveis, o amor e a palavra são as condições para abrir o caso. Em julho de 2018 poderia ser comemorado o lançamento de Apresentação do Rosto (Ulisseia, 1968), um dos livros mais polêmicos de Herberto Helder e que já quase não existe à mão. O condicional é aplicado não fosse o livro um advento tumultuoso na trajetória literária de um dos maiores escritores portugueses do nosso tempo: o romance autobiográfico ou a autobiografia romanceada foi alvo de censura pela Polícia Política dias após a impressão de seus 1.500 exemplares. Quase todo o material foi incinerado assim que apreendido pelo P.I.D.E. A pequena parcela que escapou à destruição se encontra em alguns pontos específicos do mundo, seja em bibliotecas de universidades, entre as raridades de alfarrabistas exigentes ou então nos cofres de seletos estudiosos de Herberto Helder. Cinquenta anos de um livro renegado pelo próprio Autor — aqui em maiúscula — é lembrado por ser o reduto primeiro de diversos textos remanejados ou reescritos para outros títulos como Photomaton & Vox, Vocação Animal e Os Passos em Volta. O que foi o foram os relances potencialmente ligados ao seu passado propriamente civil, como se fosse a página o confessionário, a casa da infância que deveria ficar em total escuridão.

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Abrir esta 7faces lembrando de uma das mais indefiníveis publicações da literatura portuguesa, assinadas por um poeta como Herberto Helder, é tão arriscado quanto cometer a montagem de uma edição especial sobre Herberto Helder. Deve-se responder pela tentativa de reunir alguns dos principais nomes que falam sobre esse nome, como se um crime estivesse sendo premeditado. Assim como a poesia é esse ato ilícito para atingir o coração da existência, uma revista é a prova de que não se ocultam esforços para convidar à roda os passos de novos e mais leitores. É uma tentativa. Os poetas e seus respectivos crimes, cuidadosamente escolhidos, também se voltam ao Autor — sempre em maiúscula — e, de uma forma ou de outra, também homenageiam o rosto e testemunham o seu processo de ocultação na própria obra. É no poema que o poeta respira. É na poesia que o poeta morre, e é assim que se vive para sempre. Escrever sobre Herberto Helder é um crime e toda a sua dificuldade. Inafiançável, como a sua escrita. E essa a condição de sua grandeza. Porque o êxito da poesia está, como o próprio Helder afirma diante dos poemas de António José Forte, “em torná-la activa e frutuosamente manifesta”. Lida e relida, com cuidado ou à exaustão, é a prova de que a vida de um poeta compensa. E também a morte, sem mestre. Agradeço, e não pouco, pela confiança do editor Pedro Fernandes e pela pronta resposta dos convidados para participar de um documento voltado às mais variadas faces da obra de Herberto Helder, seja no ensaio, nos versos ou mesmo nas artes visuais. Para construir mais um ponto de leitura do silêncio — mais um lugar de paixão. Enquanto isso, Herberto Helder segue sendo o crime que não prescreve.

Leonardo Chioda Coorganizador Veneza, maio de 2018

* NOTA INÚTIL, prefácio de Herberto Helder ao livro A Faca nos Dentes, de António José Forte (Edição &etc, 1983).

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Herberto Helder (1930 – 2015)

©Eduardo Gageiro

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© Armando Alves

o homenageado

NOTA BIOGRÁFICA (E DEPOIS) Herberto Helder Luís Bernardes de Oliveira nasceu no Funchal, ilha da Madeira, no dia 23 de novembro de 1930. Aos oitos de idade morre a sua mãe, um dos incidentes que marcará, nos anos posteriores, a sua produção literária. Parte para Lisboa em 1946, então com 16 anos, e muda-se para Coimbra em 1948. Matriculase na Faculdade de Direito e cursa apenas o primeiro ano, logo transferindo-se para o curso de Filologia Românica na Faculdade de Letras, que por sua vez abandona em 1952. Este é o ano em que tem suas primeiras publicações na antologia Arquipélago e que volta à Lisboa, trabalhando na Caixa Geral de Depósitos e depois como angariador de propaganda do Anuário Comercial Português. Depois de um retorno ao Funchal, que dura alguns meses, parte outra vez para Lisboa e começa, em 1955, a frequentar o Café Gelo. Lá conhece Mario Cesariny, Luiz Pacheco, Helder Macedo, Ernesto Sampaio, Manuel de Castro e outros escritores renomados do então atual cenário poético português. Foi redator publicitário neste mesmo ano e delegado de propaganda médica no Instituto Pasteur. Enquanto se dedica a vários trabalhos distintos e destoantes, continua participando de revistas, antologias e semanários.

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O convívio com personalidades literárias foi crucial ao seu envolvimento com o movimento surrealista português, chegando a subscrever, ao lado de João Rodrigues e José Sebag, “O Cadáver Esquisito e os estudantes”, texto que será incluído mais tarde na Antologia do Cadáver Esquisito (Guimarães Editores, 1961). Em 1958 Herberto Helder publica, pela editora Contraponto, de Luiz Pacheco, O Amor em Visita, enquanto vive na França, na Bélgica, na Holanda e na Dinamarca exercendo outras funções variadas. Retorna a Lisboa em 1960, quando se encarrega das bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, percorrendo as zonas do Baixo Alentejo, Beira Alta e Ribatejo. Nos dois anos seguintes publica alguns de seus clássicos: A Colher na Boca, pela Edições Ática, Poemacto, pela Contraponto e Lugar, pela Guimarães Editores. Em 1963 lança Os Passos em Volta (Portugália Editora), coletânea de contos sobre suas andanças pelos diversos países da Europa. Passa a escrever outro título, A Máquina de Emaranhar Paisagens, mantendo-se em Lisboa como redator do noticiário internacional da Emissora Nacional. No próximo ano passa a ser co-editor, com António Aragão, da revista Poesia Experimental e publica Electronicolírica pela Guimarães Editores — título renomeado anos mais tarde como A Máquina Lírica. A relação com a Poesia Experimental, que dura até 1966, terá relevância em sua produção literária. Em 1967 é a vez de Húmus, também pela Guimarães Editores, baseado em suas leituras da obra homônima do escritor português Raul Brandão, lançada originalmente em 1917. Publica ainda e Ofício Cantante – 1953-1963, a primeira reunião de seus livros pela Portugália Editora e Retrato em Movimento (Editora Ulisseia), livro que desaparecerá da sua bibliografia nos anos seguintes, desmembrado e aproveitado em títulos posteriores. Em 1968 publica suas traduções sob o título de O Bebedor Noturno – versões de Herberto Helder. Escreve Kodak e Cinco Canções Lacunares e passa a trabalhar como co-gerente e diretor literário da Editorial Estampa. Publica, ainda pela Ulisseia, Apresentação do Rosto, livro considerado uma espécie de autobiografia do poeta que será recolhido pela Censura e posteriormente suprimido da sua bibliografia disponível. Depois de novas viagens pela Europa em 1970, trabalha como jornalista em Angola para a revista Notícia e publica, em Lisboa, Vocação Animal (Publicações Dom Quixote). Surgem os dois volumes de Poesia Toda pela Editora Plátano, em 1973, e participa como editor e organizador da revista Nova entre 1975 e 1976. Em 1977, outro título posteriormente retirado da sua recolha poética é lançado pela & etc: Cobra. 7faces • 16


De 1978 a 1982 publica, respectivamente, O Corpo o Luxo a Obra (& etc), Photomaton & Vox (Assírio e Alvim), Flash (edição do autor), Poesia Toda – 1953-1980 (Assírio e Alvim) e A Cabeça entre as Mãos (Assírio e Alvim). Em 1985 lança Edoi Lelia Doura – Antologia das Vozes Comunicantes da Poesia Moderna Portuguesa, também pela Assírio e Alvim. Reúne, sob este título, nomes de peso da literatura de Portugal passando entre tantos, de Gomes Leal, Camilo Pessanha e Fernando Pessoa a Natália Correia e Luiza Neto Jorge. Nos dois anos posteriores lança As Magias – versões de Herberto Helder, outro livro de traduções e Última Ciência, ambos pela Assírio e Alvim. Em 1994 publica Do Mundo, pela Assírio e Alvim, e recusa tanto o Prêmio Europália quanto o Prêmio Pessoa, fato que gera ainda mais comentários sobre suas obras e sobre sua reclusão crescente. Deixa de publicar novos livros até 1997, quando publica Ouolof, Poemas Ameríndios e Doze Nós numa Corda, três volumes com o mesmo subtítulo — Poemas Mudados para o Português por Herberto Helder —, sob a chancela da Assírio e Alvim, que será sua casa editorial até 2014. Estes livros encerram suas coletâneas de tradução, com poemas de Henri Michaux, Stéphane Mallarmé, Jean Cocteau e Antonin Artaud. Em 2004 é lançado Ou o Poema Contínuo, reunindo mais uma vez seus livros de poemas. Em 2008 é a vez de A Faca não Corta o Fogo – Súmula & Inédita. Em 2009, Ofício Cantante outra reunião de sua obra poética. Um silêncio de quatro anos é quebrado com Servidões em 2013 e, no ano seguinte, passando à Porto Editora, publica A Morte sem Mestre, último livro de poemas em vida pelo autor. Herberto Helder morre em 23 de março de 2015. O primeiro livro póstumo, lançado no mesmo ano, é chamado de Poemas Canhotos. Em 2016, Letra Aberta é lançado – outro volume de poemas inéditos escolhidos por Olga Lima, viúva do poeta, publicado em 23 de março, exatamente após um ano de sua morte. No mesmo ano acontece, nos dias 21, 22 e 23 de novembro, no Colégio dos Jesuítas do Funchal, o “Congresso Internacional Herberto Helder – A vida inteira para fundar um poema”, com a participação dos principais críticos literários e estudiosos da obra herbertiana de diversas partes do globo como França, Itália e Brasil. Em 2018, no dia 4 de maio, é lançado em Portugal, pela Porto Editora, o volume Em minúsculas, que reúne grande parte das contribuições de cunho jornalístico de Helder para periódicos de Portugal e da África. * Nota biográfica adaptada por Leonardo Chioda.

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HERBERTO HELDER: COMEÇAR A MORRER por Eduardo Quina

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Escreva-se como se quiser, pois estará sempre errado.

1 Como começar ou o discurso da desordem: a construção da língua Construir o mundo, a obra, a morte, desde o primeiro poema. A língua plena executa o gesto numa exigência demoníaca daquele que “vai morrer imensamente (ass)assinado” (HELDER, 2014, p. 182) deste silêncio absoluto que se repercute na vida e na obra. Coloco-me de frente, de lado, de costas, na tentativa inábil de compreender estes axiomas solidamente compostos, pedra a pedra, num trabalho extremo do corpo e da loucura. Poiesis absoluta contra o mundo, o mediatismo, contra si mesmo, amando e odiando simultaneamente para que tudo se torne silêncio e espaço de escuta. Esta pedra pedríssima do mundo: o mundo é a linguagem como invenção. Pois toda a criação inventa “uma língua na linguagem, uma língua contra a linguagem, contra os limites e as impossibilidades da linguagem”. (DIAS, 2014, p. 13) Hibernar, construindo a morte de/vagar através da existência única: a poesia. Desaparecido o rosto, a imagem iconográfica: “este homem não fala porque se fez pedra extrema / fechada.” (HELDER, 2014, p. 181). Restam as palavras através de um movimento único, total e totalizante do poema do mundo. Esse estádio da infância, do mundo, onde tudo se joga e tudo se constrói. Ser Deus e criar todas as coisas através de um processo demiúrgico que é simultaneamente antropofágico. É essa topografia autoral, ordenando a natureza, construindo, estabelecendo as directrizes deste movimento contra o mundo, contra si mesmo. Criando um eu alternativo, divergente consigo mesmo, num acto absoluto, tutelar. Um poema único, de pedra, altíssimo, contínuo, em alternativa ao si mesmo. Um organon construído desde o princípio da noite. É o autor que se faz e refaz a si mesmo através da construção deste processo orgânico, contínuo: o poeta é o poema ou o poema é o poeta. 7faces • 22


Tudo isto é o “lugar da linguagem” (DAL FARRA, 2014, p.14), da construção do mundo, do eu, numa transfiguração permanente ou um jogo de interrogações para que nasça o poema ou a eternidade do mundo. Conclua-se, então, através da desordem: (O poema é a criação do eu, do real. Ou a confirmação? Ou a transgressão? Ou a refutação?) (HELDER, 1995, p. 143)

2 Como continuar ou o discurso da desordem: Servidões ou o capítulo último antes da morte Como regressar à ilha? Estava ali de novo “na ilha onde nascera” (HELDER, 2013, p. 16). Circunscreve o retrato terrível da impossibilidade do regresso. Afinal tudo ali era morte. O confronto com o vazio da não-pertença. Um imenso terror de que não se pode fugir, de que não quer fugir. Morrerei do meu muito terror e da nenhuma salvação da minha vida (HELDER, 2013, p. 81) Agora é uma outra coisa: é o retrato de um cão ininteligível. Acompanha-nos desde a primeira linha a mítica ideia de regresso a casa. Ou, se quisermos, a esse espaço longínquo e terrível da linguagem que é a morada do ser. Regressar é reconstruir a infância na terra-mãe/ilha-mãe onde “ascendia o silêncio” ou “música que se compunha” (HELDER, 2013, p. 9). Tudo se condensa na ideia de equívoco: os odores, o sangue, as orgânicas imagens. A ilha é, pois, o reduto último das imagens primordiais. Regressar a casa para se saber não dali: “esta terra que afinal eu não reconhecia como esperava.” (HELDER, 2013, p. 16) Regressar ao ponto de partida e escrever só quase 30 anos depois: origem e finamento. Outro tempo, outra ilha, outra infância, outra morte. O estranhamento de si mesmo: “nada me reatava, um ímpeto,

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uma religação (…) eu não reconhecia o mundo, aquele” (HELDER, 2013, p. 16). Qual era então o mundo conhecido? São os espelhos que são outros? Ou é a minha condição que estabelece a diferenciação dos mundos? Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade. (HELDER, 2014, p. 110) Espelhos por toda a casa, (…) a nossa própria imagem assustava-nos vinda bruscamente não sabíamos de onde, de que fundo, de que mundo. (HELDER, 2013, p. 11) É, pois, notória a imagem recorrente do espelho que tudo reflecte, onde o medo se assume através da origem ou identidade. Porque agora o seu retrato é “um rosto desdobrado, ardido, remoto: quem era?” (HELDER, 2013, p. 11). Quem se constrói aqui? Que imagem última é esta? Destrói-se o rosto, o retrato? Extinguem-se as imagens? Finaliza-se e morre-se através do poema? Como encontrar respostas onde só há perguntas? O nome assume-se como inscrição poética. A obra e o nome assumemse uma e a mesma coisa: ou. Estar ali para morrer e não se reconhecer a si mesmo nesse espaço inóspito, abandonado e fragmentado. Afinal o que é a memória? Apresentam-se na abertura do primeiro poema de Servidões nascimento e morte lado a lado aos 80 anos (23. XI. 2010). O que se espera depois daqui? “hoje e sempre” assim “interrompida a canção ininterrupta” (HELDER, 2013, p. 93). Nascimento e finitude caminhando na mesma urgência, dizendo a própria morte, ou seja, morrer através da escrita, ressuscitando a cada palavra neste pathos linguístico onde se torna ilegível este idioma demoníaco. Saio para o mundo, Cordão de sangue à volta do pescoço, E tão sôfrego e delicado e furioso De um lado ou de outro para sempre num sufôco, 7faces • 24


Iminentemente para sempre. (HELDER, 2013, p. 20) O corpo entregue à finitude. São estes os trabalhos e os dias, é esta a servidão do mundo. O próprio acto de escrita encerra, em nosso entender, em si mesmo a morte: “com o sangue na esferográfica” (HELDER, 2013, p. 38). Assistimos ao diálogo com o poema contínuo. Onde antes a retrete fora sinónimo de acto criativo é agora epitáfio último: As águas últimas se misturavam com as águas primeiras (HELDER, 2013, p. 105) É o fim do poema contínuo? Rebaixar a realidade à merda da “carne insondável” (HELDER, 2013, p. 91). Reconhecendo o fim da poesia e simultaneamente do corpo. Morrendo e purificando através do fogo ou “morrer com um cão deitado à fossa” (HELDER, 2014, p. 737). O fogo e a escrita assumem esta catarse, que poderíamos dizer, autoinfligida. 3 Como continuar ou o discurso da desordem: ofício de morrer dentro da língua Criar através do fogo que ao mesmo tempo cria e purifica, um deviroutro. Construir o poema através da luz metamorfosente dos enigmas passados e presentes. Uma língua-mãe, ou seja, uma língua dentro da própria língua. Uma língua que se cria a si mesma, intraduzível, absoluta. A morte como exercício supremo de criação. O poema como construção solitária do anúncio. A escrita como morte ou a morte como escrita. A beleza, o sentido, o vazio, o silêncio como ruptura entre a palavra e o mundo. A escrita como forma de ressuscitar: morte e criação num só acto. Quero criar uma língua tão restrita que só eu saiba, e falar nela de tudo o que não faz sentido nem se pode traduzir no pânico de outras línguas. (HELDER, 2013, p. 57)

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O poema, a palavra, sufocam o leitor, o poeta: “cordão de sangue à volta do pescoço”. (HELDER, 2013, p. 20) Através de um poder místico das imagens, sem deus, estremecendo, sufocando serenamente num magma de palavras que tudo devoram e pelas quais tudo é devorado. Tudo é perda e plenitude nesta música da língua plena. Aqui escreve-se homem e morte, ou seja, a natural condição do humano, ou seja, “o terror da beleza delicadíssima”. (HELDER, 2013, p. 45) de um eu que morre “inteiro por dentro”. (HELDER, 2013 p. 53) Ecce homo: eis o homem, eis o rosto, eis a morte.

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© José Carlos Lucas - Herberto Helder remando nas águas do Tejo

O CONTINENTE

HELDER por António Fournier

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Estávamos em 1989, tinha eu vinte e dois anos e achava-me são de mente, ainda imune às abelhas venenosas da sua poesia. Foi durante uma aula de Teoria da Literatura que ouvi pela primeira vez o seu nome. Pensei que se tratasse de um pseudónimo, a afortunada sequência vocálica não parecia ter nada de casual. Manuel Frias Martins falou-nos de um livro com um título insólito – Photomaton & Vox – escrito por um poeta que, para minha surpresa, tinha nascido como eu no Funchal, na ilha da Madeira. Foi assim que descobri Herberto Helder, aquele que me tirou a vontade de fazer versos. Lê-lo foi como se um comboio lançado a toda a velocidade tivesse passado por mim e me desse conta de ainda estar vivo. Helder era já então um dos últimos mitos vivos da poesia portuguesa. De todos, o mais invisível. Vivia apartado, não dava entrevistas nem se deixava fotografar. Vim a saber que frequentava um pequeno café no Bairro Alto, em Lisboa, onde se reunia com um grupo restrito de amigos. Com um pouco de sorte, era ali que alguém que não pertencesse ao seu círculo poderia encontrá-lo. Suponho que muitos dos jovens amantes de poesia de então (entre finais dos anos oitenta e os primeiros anos deste século) se reconhecerão neste gesto: entrava-se com o embaraço de ter de fazer de conta que se estava ali por acaso. Pedia-se um café e tinha-se receio de olhar por cima do ombro. Sentado a dois passos, estava Herberto Helder em pessoa, para muitos o mais importante poeta português da segunda metade do século XX. Photomaton & Vox foi para mim um livro estimulante mas difícil, com passagens quase indecifráveis. Rosto e escrita sobrepõem-se numa espécie de autobiografia fragmentária que é, ao mesmo tempo, uma personalíssima arte poética. Dir-se-ia que representa, para citar Gastão Cruz, um desses pontos de obscura intersecção entre a vida do poeta e a vida da poesia. Eis Photomaton, a minha porta de entrada no continente Helder: sentei-me numa cabina onde se tiravam fotos instantâneas. Puxei a cortina, olhei fixamente o visor, premi o botão: fui fulminado. Caí a cada tentativa de atingir o cume de um sentido cujo fim não se vislumbrava, protegido como parecia estar pelos tentáculos de uma medusa letal. Mas tive também a sensação de me reconhecer nalgumas das paisagens mais sonâmbulas como aquela que mostrava “uma ilha em forma de cão sentado, com a cabeça inclinada para perscrutar o enigma da água”. 7faces • 28


Anos mais tarde, também eu fui à procura de Helder naquele modesto café lisboeta. Convidou-me a sentar à sua mesa e falou-me, no seu inconfundível sotaque madeirense, das suas lembranças da infância. Muito haveria para dizer sobre a “ilha dos mitos originais”. Sobretudo para quem, como ele e eu, vivendo depois longe dela, ficará para sempre prisioneiro da passagem, como disse uma vez José Barrias. Por isso todos nós, habitantes desses “fundos arquipélagos”, nos reconhecemos nas passagens em que Helder se refere à sua infância e adolescência passadas na ilha, um dos seus temas mais obsessivos, como um assassino que regressa mentalmente ao local do seu pior crime. Sem qualquer nostalgia ou sentimentalismo, mas como um tempo mítico em que a inocência se mede com eventos fundamentais que deixarão para sempre tatuados a fogo na pele os símbolos mais indeléveis. Não terá sido certamente por acaso que o poeta tenha escolhido para texto de abertura de Servidões (2013), um dos seus últimos livros, a evocação do seu último regresso à ilha (acontecido quase trinta anos antes, em 1984), para encerrar poeticamente o seu ciclo vital, fazendo corresponder o alfa com o ómega, como profetizara aquele quiromante num texto de cariz autobiográfico em que Helder, desde sempre sugestionado pelo princípio do eterno retorno subjacente às estruturas míticas primitivas, compara o tempo a uma clepsidra: “O senhor há-de morrer no lugar onde nasceu; a sua vida é um círculo”. Voltei recentemente a ler Um silêncio de bronze de Frias Martins (1983), o primeiro ensaio crítico que li sobre Herberto Helder, e só agora reparei que no frontispício desse livro havia um espécie de oráculo que já então indicava o caminho a qualquer seu leitor: “As palavras não fazem o homem compreender/, é preciso fazer-se homem para entender as palavras”. Photomaton & Vox fornece-nos alguns excelentes indícios para compreender o pensamento poético deste extraordinário xamã da poesia, ao fixar o retrato de um homem que aos quarenta anos, atirara uma moeda ao ar para escolher entre seguir para o Brasil ou ir viver para África e, aceitando “o pacto irrevogável com o destino próprio”, para lá seguira como Rimbaud (o poeta não o esclavagista, precisaria Helder), em busca da sua mitografia pessoal. Longe da Europa, num lugar onde, como disse uma vez o pintor Cruzeiro Seixas, seu amigo, a paisagem nos olha de frente, e que provavelmente lhe terá ensinado a “ver o poema como uma paisagem 7faces • 29


dinâmica” (um texto como a paisagem é um ponto de vista talvez nunca tivesse existido sem a experiência africana de viajar de helicóptero sobre territórios imensos), Helder considerava ter alcançado a lucidez ao conseguir finalmente apreender «a caligrafia extrema do mundo” num “texto apocalipticamente corporal». Soubera extrair o seu prestígio da sua própria solidão, conseguira criar a sua tradição individual, tornara-se “devorador da própria biografia, canibal do coração pessoal”. A partir de então, nos livros publicados logo a seguir ao regresso a Portugal em 1972 (Cobra, 1977, O Corpo, o Luxo, a Obra, 1978, Photomaton & Vox, 1979), na sequência de um gravíssimo acidente de automóvel em Angola, cujos estilhaços também se encrostaram aqui e ali nos seus textos, fazem o seu ingresso na sua obra os grandes felinos africanos e as sumptuosas metáforas antropofágicas: “tocar o luxo mandibular de um leopardo louco”, beijar um leão na boca com “juba e cabelo traçados numa chama única”. E, para sempre enfeitiçado pelo inevitável mal de África, que se impregna bem fundo na sensibilidade e no intelecto, nunca mais terá deixado de perseguir tenazmente a suprema ambição de “ser o mais obscuro dos enigmas vivos, e aplicar as mãos à matéria-prima da terra”. Nunca a confiança do poeta nas suas faculdades criadoras pareceu tão assertiva como em Photomaton & Vox: o autor, vitruviana estrela de cinco pontas, ávida em absorver e transformar toda a energia da terra, “é o criador de um símbolo heróico: a própria vida”; “o estilo é a criação da dignidade”. O livro narra esse percurso errático, feito de “imagens precárias”, dispostas numa determinada sequência por uma pujante “gramática sonhadora” que reorganiza e dá sentido à dispersão de uma vida: “Quanto mais subtil, furtiva, secreta, desapercebida, complexa e ambígua for a montagem, mais penetrante e irrefutável será a sua força hipnótica”. Para Helder, a cultura ocidental, que ele tão bem conhecia como leitor omnívoro que era, transformara-se numa espécie de “moral da imaginação”, que empobrecia qualquer revelação e “restringia prudentemente a excessiva abertura da linguagem”. Talvez por isso se tenha interessado ainda mais pelas culturas primitivas e tenha continuado a traduzir poesia ameríndia a exemplo das antologias de Jerome Rothenberg cuja ethnopoetics conhecia e apreciava.

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Não é preciso muito para perceber que esta transbordante liberdade criadora que brota a cada instante da escrita herbertiana, é irredutivelmente hostil àquele tique intelectual, que tão bem conhecemos, de arrogar-se o direito de saber decifrar o texto literário. Depois de ler a sua poesia, a modéstia será talvez a atitude mais autêntica, o silêncio a opção mais sensata. Por isso, relembrando as marabuntas da interpretação esfaimada ou as hordas de gafanhotos incinerados pelo sol, com que Helder escalpelizou aqueles que rondavam a poesia de Edmundo de Bettencourt e de Mário Cesariny, a última coisa que se espera que aconteça, agora que o autor já não está entre nós para zelar como fazia pela sua obra, é o que aconteceu com Pessoa: que a mesma seja dada em pasto a uma legião de especialistas. Como é óbvio, não custa admitir que ela nos interpela como poucas e que a inteligência crítica é inevitavelmente uma das formas de responder ao desafio da sua incontornável existência. Mas, pelo menos no meu caso, a relação com a poesia de Helder obedeceu, antes de mais, ao impulso de compreender o meu lugar no mundo a partir de uma matriz insular comum. Ou seja, foi muito mais fisiológica do que propriamente académica. Por isso, também eu não fiquei imune ao mito Helder, porque o mito vive da distância e se não explica a poesia, aproxima muitos leitores dela. Que o diga Tabucchi que soube consolidar o mito de Pessoa em Itália para melhor divulgar a sua obra, não deixando de ser um dos seus maiores intérpretes. Por isso, a meu ver, em vez da presunção de considerar a poesia herbertiana feudo exclusivo da cultura analítica (basta ler um texto como notícia breve e regresso para ver o que pensava Helder da crítica institucionalizada), será talvez preferível a postura mais modesta mas nem por isso menos digna do tradutor que vai trilhando por sua conta e risco o próprio percurso interpretativo, como um sherpa que põe os seus préstimos ao serviço de terceiros para os ajudar na difícil escalada ao Everest que um autor como Herberto Helder sempre foi e sempre será. Sabendo de antemão que há muitos outros percursos, todos eles legítimos porque todos eles falíveis. Como tradutor juntamente com Gaia Bertoneri de Photomaton & Vox, aquele que o autor considerava o seu livro menos compreendido, espero dar o meu contributo para atenuar as recentes dúvidas sobre “a futuridade incerta da obra herbertiana”, provocatoriamente formuladas justamente por quem primeiro me transmitiu o 7faces • 32


entusiasmo por ela1. Sobreviverá a obra de Herberto Helder ao seu tempo histórico? A prova dos nove talvez esteja no novo horizonte de expectativa que conseguirá criar noutra comunidade de leitores. Infelizmente, na desequilibrada balança do import-export cultural entre os dois países, em que se jogam o prestígio e a ignorância recíprocos, que são, como se sabe, duas faces da mesma moeda, Helder resulta ser muito conhecido (e pouco lido) em Portugal e muito pouco (ou nada lido) em Itália. Talvez seja preciso esperar uma geração ou mais para que este estado de coisas se altere. Mas é preciso começar por algum lado. Agora que também eu me coloco no lugar que foi o do meu professor, noto que os meus alunos italianos, que têm hoje a idade que eu tinha então, parecem aderir a um poeta com um universo de referências muito diferente do deles. Talvez porque reconheçam nele um fundo genuíno de autenticidade em relação ao destino que traçou para si, a que eles, num momento importante de escolhas e opções que determinarão o seu futuro, não conseguem ficar indiferentes. É um bom sinal. Sobretudo porque se é verdade, como nos adverte Helder, que “não há nada a ensinar embora haja tudo a aprender”, com qualquer aluno aprende-se muito rapidamente que é sempre preferível partir da paixão que do cepticismo. Photomaton & Vox é um livro fundamental para compreender não só a paixão de Helder pela escrita como modo de pensar-se e de pensar o mundo, mas também o duelo mantido através dela com os mitos do seu tempo. Uma paixão, diga-se, movida por uma intrínseca vontade de comunicar, muito superior ao que alguma mitografia recente criada à sua volta deixa supor. E se não fosse uma ofensa ao próprio autor, consideraria, muito redutoramente, este livro um manual de escrita criadora (não criativa), não tanto porque não saiba que Helder odiava toda e qualquer didactismo pois, como ele próprio afirmou, «só se morre do seu próprio veneno», mas por aquilo que através da sua leitura um jovem escritor pode aprender sobre um percurso de honestidade e coerência para com uma verdade própria. Por exemplo isto: “Evita as tentações da teoria: o poema é uma coisa veemente e frágil”. Publicado em 1979, Photomaton & Vox é um texto compósito (autor fragmento é como lhe Fiama Hasse Pais Brandão) resultante quer da refundição, esvaziamento e deslocação de partes de outros livros 7faces • 33


como Cobra (1977) e Apresentação do rosto (1968), livro indispensável para decifrar a galeria dos mitos primordiais de Helder que o autor fez desaparecer da bibliografia, quer da progressiva anexação de outros textos heterogéneos, éditos e inéditos, em prosa e em verso, distantes entre si no tempo, inseridos organicamente no corpo da obra como ramos podados de uma luminosa árvore da vida: um auto-retrato (photomaton) escrito a pedido do seu tradutor e destinado originariamente à primeira antologia italiana da sua obra poética (Vocazione animale, 1982); um conto visionário ambientado na ilha do Porto Santo, no qual com uma só palavra – “estiagens” – reinventa a enciclopédia poética da paisagem em português (uma ilha em sketches); algumas cartas – uma dirigida no início dos anos sessenta à Fundação Gulbenkian que lhe recusara uma bolsa, outra já nos anos noventa, em que responde, rebarbativamente mas sem qualquer arrogância, a um inquérito que lhe fora solicitado, numa altura em que o mito criado à sua volta o tornara objecto de todo o tipo de pedidos e bajulações; uma nota pessoal redigida como balanço existencial, em que conta a crise de escrita por que passara alguns anos antes, em 1968; uma recensão a uma exposição de escultura que é pretexto para uma genial reflexão sobre arte em geral; o prefácio a uma famosa antologia poética por ele organizada em 1968 onde expõe a sua original concepção de tradução (o bebedor nocturno); ou ainda o comentário a uma curta metragem a que casualmente assistiu em 1972 no festival de cinema amador e Lobito, em Angola (magia), inspirada no poema “Esta terra não existe” o qual, por considerar inferior àquela, acabou por rasurar da sua obra. Para não falar das homenagens a alguns dos seus compagnons de route – ao grupo dos surrealistas do Café Gelo em Lisboa (cumplicidades menores), a Edmundo de Bettencourt (lembrança) e a Almada Negreiros (desalmadamente) – coerentemente anexadas a um livro sempre in fieri. E sobretudo a escolha radical de preferir invariavelmente o veneno à cura, elegendo como poetas de estimação, os loucos, os esquizofrénicos, os noctâmbulos, os marginalizados – Jarry mais do que Breton, Cendrars mais do que Rimbaud, Campana (os diálogos), Hölderlin (notícia breve e regresso), Artaud (os quartos incendiados) – como exorcização dos seus próprios medos – a loucura, o suicídio, a morte prematura – mas também como assumida postura iconoclasta em relação às suas embirrações predilectas – o surrealismo, a psicanálise, a ideologia – com os quais, avesso como era a tudo o que fosse doutrinário, manteve sempre uma 7faces • 34


relação ambivalente. Tudo isto conflui para fazer de Photomaton & Vox o eloquente auto-retrato vocal de alguém que reivindica para si o direito irrevogável de escrever a sua própria biografia como biografia da sua própria escrita, e que, através de tantos textos esporadicamente nascidos como resposta ou desafio ao episódico e ao aleatório da vida, soube encontrar a sua própria lenda. Apesar disso e embora esteja bem ciente de que Helder é muito mais do que isso, a perspectiva de onde parto para dar a conhecer a sua obra aos meus alunos corresponde invariavelmente à de um leitor que se reconhece no ulissismo de quem uma vez afirmou que “todo o texto conduz ao exemplo do mundo, narra a parábola do regresso e apresenta a cerimónia da paisagem”. Parece-me pois que «perscrutar o enigma das águas», descer até “à raiz mais fria de uma ilha» ou «mergulhar em escafandros no interior de muitas águas, para trazer as mães embrulhadas como polvos nas mãos” é uma interpretação particularmente original do mito de Orfeu: um Orfeu que busca sistematicamente a resposta no fundo das águas, na origem primeira de tudo. Este é um dos caminhos possíveis de conhecimento que a sua poesia nos oferece como percurso de vida: procurar o “fabulosamente vazio enigma do mundo” de que a primeira leitura de Photomaton & Vox me deixou vislumbrar uma frincha. Somos muitos a procurar Eurídice nessa Atlântida submersa que é o continente Helder, embora se saiba de antemão que essa busca está condenada ao fracasso. Mas tenho a certeza que, apesar de tudo, valerá sempre a pena. Notas 1

MARTINS, Manuel. “Um outro olhar sobre a condição herbertiana de ‘levar a linguagem à carnificina’” In: DUMAS, Catherine; RODRIGUES, Daniel e SANTOS, Ilda Mendes dos (Orgs.). Se eu quisesse enlouquecia. Herberto Helder. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2015, p. 231-250.

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ESTES POEMAS QUE CHEGAM

Caderno 1

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Laura Elizia Haubert São Paulo

É autora de Sempre o mesmo céu, sempre o mesmo azul (Patuá, 2017) e Ode as nossas vidas infames (Multifoco, 2015). Publicou ainda onze contos nas antologias da editora Andross, e um na Revista Ponto do SESI-SP. Atualmente cursa Mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica (PUCSP), onde também realizou a graduação. O conjunto de poemas apresentado nesta edição é intitulado “Poemas experimentais”.

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Poesia-fisiolĂłgica arranco-as dos dedos, em seguida fico encarando as palavras atĂŠ os olhos arderem e eu vomitar.

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Aviso: minha poesia é apenas uma nebulosa de reflexão azul

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Roubo II Quando digo sim ao prazer, também digo sim a dor, digo sim a toda a vida em suas cores caleidoscópicas e suas texturas agridoce. as coisas se enamoram!

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Gabriel Faraco Florianópolis – Santa Catarina

Gabriel Faraco é autor dos fanzines Cachorro, O grande livro da poesia medíocre, Desgraçado desespero e umdoistrês.

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Apocalipse de São João A festa começa quando tua boca vibrante pimenta cospe chamas por teus rubros lábios. Um batom vermelho que palpita, espasma dormente. Esparrama lenha na fogueira que estala estrala tac tac e faz subir o ponto, a temperatura, a labareda laranja tal como a estrela estrangeira. Fervura, teu sexo vibra tal e qual o tambor que bate forte, soca forte, forte e mais forte, pura questão de sorte, pimenta biquinho os biquinhos docinhos de teus seios. Ah! Eu tô maluco! Meu coração, uma bomba, um bumbo; aperto teu botão que liga e irriga a rosa vermelha inchada, duplicada de proporção, redobrada que sugo, molho sugo, me sujo, é tic tac tac tac, vai ter um piripaque de tanto tesão, impulsa, pula e pulsa pulsa pulsa o cabeçote pinote de cavalo Uh! Tererê! É São João e São José, Santo Antônio de Lisboa, Santo Amaro da Imperatriz, Angelina Santa Paulina, Santo Anjo do Senhor, Meu Zeloso Guardador e São Paulo, SP. Que Deus te salve e o Diabo me carregue pro norte, sul, sudeste, centro oeste, nordeste e agreste, árido, crato, arre oxe Hare Khrisna Khrisna arre oxe Hare égua! São eles todos e mais um pouco, loucos que acreditam na palavra reza do profeta; veja suas mãos e seus pés, sagrado peito em chamas, que chamas quando o circo pega fogo, socorro socorro! Fogo, ah fogo, me consuma. Olha a cobra, é mentira! Olha a chuva! Vira a boca pra lá, mundiça! Damas e cavalheiros, estão com o olho vermelho de fumaça e arruaça? Pula fogueira, iá, iá, pula fogueira, io, io! Sou tua puta e quero que me sirvas à mesa, tostada e cozida, gostosa, saborosa, tempero, segredo de família primo com a tia, como sempre fui e assim que gosto. Bota a mão aqui, bota, ali, bota, bota, e sente e sente, bota fogo na fogueira pra clarear! Passa do ponto e tosta, doura nesse forno crematório. Tua língua cobra coral na minha boca cascavel do mal. Sacode sacode, cresce, cresce, enverga, te morde, te engole e leva pro raio que te parta. 9 meses, dois partos. Meu e teu. Fecha a roda, ciranda cirandinha, quadrilha que instiga a intriga, maconha, fecha a roda, roda, gira, pomba gira Maria Padilha sapatilha levanta poeira que brilha, que brilho, lindo infinito, olha aquilo! Pomba gira gira e roda, roda, roda a roda, apagou, acende, oxe Hare égua! Não baba, desgraça! Bate pé, bate sola, bate mão, bate palma! É roxo, ultravioleta, piruetas, pimenta malagueta na ponta da lingua careta que explode em fogos de artificios e foguetes, rojões, chicotes de fogo e carvões, lenhas, brasas no ceu, mirabolantes mandalas inflamadas incessantes incandencentes interessantes dançantes como vagalumes pirilampos, arcanjos fogarentos, que sacodem asas e o ajojo todo, que cantam junto com violas e violões as modinhas da hora caipirinha de vinho pira pora minha piroca (eia!), que só tem como testemunha o teu olho azul universo profundo e teu cu; uma cratera no chão na lua, um buraco na rua de terra daqui, longe pra caralho pra chegar, não tinha lugar mais perto pra quem já tá pra lá de Bagdá? Mísseis e torpedos me atingem, vindos de um submarino alemão Steinhäger. Na madruga, me escuta: é quente o pinhão, o cachorro tá quentinho, dormindo na casinha, e o quentão já frio ainda bate; canela, gengibre, noz moscada, cachaça cachaça vinho e mais cachaça, ai assim, vem cá e se encaixa em mim, ai moço! ai moça! Cuidado, assim assim, com os bichinhos do jardim e, ui ui!, Com o que lembrará para ser contado pra mim, na manhã seguinte, entre o sol e ressacas, bandeirinhas e chapéus de palha, vômitos e declarações de amor.

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A baleia cachalote, que vivia numa caixa, caixa chata, chata a lot. Só ela e ela, pra lá e pra cá, num oceano, raso, chato, de águas brancas. Tudo chato, chato a lot. Uma cachalote, caixa caixa, cachalote, que vivia, ela e ela, só, pra cá e pra lá, sozinha, na sua caixa, chata caixa, chata a lot. Cachalote, encalhada, ninguém queria ser sua amiga. Vilã de Moby Dick, só queria chocolate. Cachalote, que também é conhecida como sperm whale, balena dello sperma, la ballena de esperma, devido ao seu espermacete, capacete de esperma. 7faces • 48


Cachalote, na chata profundidade, de sua caixa. Cachalote, a maior dos cetáceos, nem baleia é. Cachalote, mergulhada no fundo, de um mar de porra.

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Oud Cada tom que em ti reverbera solto Se propaga nas asas do falcão Sob o árabe céu de fogo. És o moço, sedento ao deserto seco, fumando, soprando longe a dor, o tempo; Como a ruína das pedras, os pés descalços, a palma das mãos, o jejum sagrado. Choras nossos lamentos. Como a oração da manhã, o verbo do Profeta, o império do Islã, a tristeza do poeta. Choras nossos lamentos. Como a grandeza da Caaba, a pele perfumada, a esmeralda, a masbaha. Choras nossos lamentos. Ah… És tão bonito, tão bonito… Ah… És tão bonito… Tão por si, tão por si, Tão por si… Ah… És tão por si… Tão bonito… 7faces • 51


Ah… És tão por si, Tão por si… És tão só Tão só. Ah… És tão só, És tão só, Tão só… Ah… Como as gotas da chuva, os passos no silêncio, a lágrima da viúva, tua melodia ao vento.

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Hugo Lima Belo Horizonte – Minas Gerais

Poeta, performer e educador. Tem trabalhos publicados em diversos projetos culturais. Já se apresentou em eventos como Inverno Cultural de São João Del-Rey (SJDR, 2012), Terças Poéticas do Palácio das Artes (BH, 2012 e 2015), VII Mostra de Artes Visuais da Escola de Design (BH, 2013), Circuito Literário da Praça da Liberdade (BH, 2014), Colóquio Poétiques et Politiques du Corps Dans la Contemporanéité (Paris, 2015), Digas! Poesia Falada (BH, 2016), Virada Cultural (BH, 2016), dentre outros. É autor dos livros Nus, Florais & Ping-Pong (2014) e Corpo dos Afetos: para Herberto Helder (2015), ambos pela Crivo Editorial.

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olho para o poema como quem olha as próprias mãos

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o poema inteiro descoberto se desfaz dissolve-se num mar de estrelas enquanto sereias e cavalos-marinhos mergulham ao redor da cama aves e mulheres cruzam o travesseiro atravessam minhas cifras e constelações incinerando os cadernos ecoados de silêncio o poema se estilhaça entre a leitura e as ranhuras da palavra se rasga e se esgarça como um tecido errático nas mãos o universo inteiro brilha no clarão desta noite tudo sublima à minha volta tento tocar o poema mas o poema não me toca

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a dor de estar em cada coisa como um corpo impregnado de memórias memórias que cintilam a vida impressas como palavras sobre a pele frames da infância saudades antigas o amor pelas coisas miúdas pelas formas delicadas do que inventamos os apegos gerais tudo à nossa volta morre o tempo todo por isso é preciso manter a ternura do sonho acesa em cada gesto para que nunca nos esqueçamos que isso é tudo o que nos resta

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a natureza do poema é um segredo inconfessável

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caminho pelo centro estou às voltas pelos bares ouço atentamente a voz dos meus amigos sei que sentem sede e que bebem comigo sei que a cada noite se entregam ao desejo de serem melhores do que são bebo cerveja com meus amigos sinto o gosto do trigo perfumando a boca como quem sente que está seguro e amado como quem sabe que dentro do corpo se acende uma luz e que essa luz conecta todos os amigos ao redor de um único sonho sei que não estou só e que a madrugada sibila em meu verso juntos ouvimos a melodia dos nossos corpos a cabeça e os pulmões e os dedos interligados como nossos nomes acesos no poema nos tocamos entre luzes negras e neons enquanto nossos corpos em festa dançam noite adentro

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o poema fere como se ao invĂŠs de um fio passasse a gilete entre os dentes e cortando lentamente a superfĂ­cie da gengiva o poema sangrasse pela boca afora

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o poema vai se alastrando pela casa se sedimentando no fundo dos copos pelos sulcos dos discos pelos detalhes carcomidos da madeira das molduras pelo peso das pilhas de livros que vão se formando ao redor da cama pelo magnetismo dos imãs na geladeira pelas bocas do fogão pela claridade que atravessa a sala fotografando a pia a fruteira e sua natureza morta o ralo os fios de cabelo o bolor nas paredes do banheiro dentro das paredes circulam as águas frescas e úmidas como as noites descobertas deito sobre elas todo o silêncio que há mundo porque o meu silêncio é um silêncio universal

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já não há perguntas nem respostas apenas silêncio e o silêncio é tudo e é nada ao mesmo tempo

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Carlos Arthur Rezende Pereira Pará de Minas – Minas Gerais

Arthur Resende nasceu em Pará de Minas/MG aos 20 de fevereiro de 1990. É licenciado em Filosofia pela Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ) e mestre, também em Filosofia, pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente cursa o doutorado em Filosofia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde estuda a relação entre Filosofia e Poesia. Dedica-se intermitentemente à literatura. De poesia, já publicou o volume limiares, pelo selo independente Trigam.

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consolo do mar desci de Minas − rio de sangue e sofrimento mal contido em minhas margens todo passagem e inconformidade: visito, com meus braços, muitas casas onde dou alegria e distraio (mas não moro em nenhuma); carrego dos outros tudo que não querem; dou curso que baste aos meus irmãos menores e me amplio com isso − conquanto me torne mais furioso e sozinho. chego no mangue com a noite. e na baía de Guanabara morrem minhas dores de cabeça minhas imaginações partidas minha respiração em pânico morre meu ruído de besta. o mar dissolve no infinito a vida que não basta.

Niterói, 09 de out. de 2016. Noite.

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martírio de Orfeu diante do dragão eterno píton leviatã água salobra da linguagem aciono a velha maquinaria da graça de meu pai artífice Febo (ou Javé, ou Oxalá) herói das formas fixas: separar um chão das águas e dar assento de palavra às emoções dos outros depois descer aos meus infernos perturbar o descanso de meus mortos trazer do poço imenso do esquecimento um fantasma de mulher sem mácula ― e perdê-lo ao primeiro olhar de desejo transfigurar a carne o sangue e o sêmen em museu dos coitos não realizados para morrer inglório e desfigurado nos amores sem halo que recuso (e meu coração ainda dará de comer aos inocentes desta terra)

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a mão canhestra de Deus “A mim também criou o amor eterno” Escrito nos portais do Inferno.

criei os largos espaços da distância que se abrem no desejo e tomei o sangue e a vida do coração que ainda ama. fui eu quem pôs sal à água do mar e ofereci ao sedento e desenhei os traços da fome na cara e no choro da criança. e pus o dinheiro ao alcance de poucos e pus o poder nas mãos de muito poucos e pus a vontade na alma de todos e pus alegria somente entre os doidos. fui eu quem criei todos os espelhos no qual te miras, e essa revolta e asco que tens contra teu rosto. e o secreto sonho de ser outro. contei pela primeira vez os mitos que te enganam tracei os planos da felicidade que não tens aticei os cães da angústia e do desprezo que tanto temes e te levei à igreja − para que te arrependas de ser quem é. eu desenhei tuas noites de insônia medi as lonjuras de tua solidão. concebi a pretensão de ser amado e outras formas de Inferno. tranquei o infinito possível de tuas mãos na obrigação de um bom emprego e adiei toda felicidade que encerras para a próxima geração (que imaginas).

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eu fiz os anúncios, os telejornais e a verdade anestésica do noticiário. levei milênios até o aplicativo em que te esqueces de estar vivo. às vezes, dou as caras pelo mundo: honram-me com o nome de ‘poesia’. eu sou a verdade mais terrível − mas somente comigo o mundo ganha algo da eterna beleza. criei todo o torto e todo o avesso em que vives e pelo qual morres. não reclames que nada é perfeito: porque te amei, eu te dei a chave − abre a porta da vida e caminha noite adentro! São J. del Rei, 28/out./2016. Madrugada.

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Cristiane Bouger Nova Yorque – Estados Unidos

Cristiane Bouger trabalha nos campos da performance, vídeo, teatro, poesia e escrita crítica. Seu trabalho já foi publicado no Jornal Rascunho (2017), na revista Bólide (Medusa, 2014) e na antologia Fantasma Civil (XX Bienal Internacional de Curitiba, 2013). Seus artigos e entrevistas nas áreas da dança contemporânea e performance têm sido publicados no Brasil, Estados Unidos, Inglaterra e Portugal. Vive e trabalha no Brooklyn, em Nova Iorque, onde é cofundadora do Umwelt Studio.

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Atrito O falso gemido se dissolve. Sem pressa, desvelo a carne íntima. Lambuzado e crespo, o pelo entre os dedos. Percorro as dobras úmidas no silencioso afago. A boca, ofegante, clama por Deus, imprópria. As horas passam, encharcam-se. E em círculos e espasmos, ela se oferece para que nada cesse na pulsão-convulsão do deleite-atrito.

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Saliva e Sal De saliva e sal arquitetei o teu verso E o poema, manifesto entre as tuas coxas, fez-se sonoro e soberano maior do que a dor e o pranto previsíveis na itinerância minha. Acasalados na saliva o gosto e o perfume te devolvo, fazendo-os meus de novo para amar-te sem o medo que, cativo, insiste em mim.

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Instante Vencidos pelo sono do crepúsculo entre sonhos quase lúcidos guardam meus olhos lampejos de curvas – fagulhas do visível. Dela, o instante.

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Bacante Artérias são ramagens na rama espessa– percurso e égide da tua seiva, leitosa seiva– No músculo acolhido Dionísio, ébrio, dança no sulco tinto.

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Inútil Lampejo tímido-eficaz cintila em sua vontade reticente. Sem resistência, seus olhos observo. [o sabor inevitável residirá na memória da saliva] O toque percorre o contorno da face; seu braço nu, observo. Instaurado na pele o pacto. [a umidade lânguida dos olhos encontra o seu duplo irreversível] O desejo circula poros e pelos. Inevitável, o amor será inútil. Ter-lhe será breve e tenso.

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José Huguenin Volta Redonda – Rio de Janeiro

Natural de Santa Rita da Floresta, Cantagalo, Rio de Janeiro. Doutor em Física, professor da Universidade Federal Fluminense em Volta Redonda-RJ, onde mora. Leitor ardoroso, foi premiado em vários concursos de poesia e contos. Tem cinco livros publicados. É membro da Academia Volta-redondense de Letras.

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Parlenda de criança grande O espelho mostra olheiras. As olheiras revelam o cansaço, O cansaço traz o desânimo, O desânimo acompanha a decadência dos planos, Os planos dão com os burros n´água, A água afoga as mágoas, As mágoas dizem muito sobre um sentimento passado, O passado chega num piscar de olhos, Os olhos choram pelo leite derramado, O leite ferve e muda nossa temperatura, A temperatura eleva o som das batidas do coração, O coração faz o sangue pulsar nas veias, As veias não suportam a pressão da luta interna, A luta cansa. Por isso as olheiras, quando olhamos no espelho.

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Lucas Perito São Paulo

É graduado em Comunicação em Multimeios (PUC-SP). Escreveu livros ligados a história e fotografia, fazendo os textos de acompanhamento para o livro fotográfico Caminhos da Mantiqueira (2011) de Galileu Garcia Junior. Autor do livro de poemas 38 Movimentos (Lumme Editor, 2018). Tem poemas publicados em diversas revistas brasileiras, além de algumas revistas de Portugal e Espanha. Tem traduzido poetas como Laâbi, Cros, Diop, Prevel, Cornejo entre outros.

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Encontros: metamorfoses Há um grande animal repartido Entre dois países, algumas cidades e duas ruas Ocupa todo o espaço de um apartamento Navega em uma cartografia nova, de locais falsos Habitando o câncer como substituto do desejo – Uma girafa com rosto de pintor Seus braços crescem, tocam a ponta dos pés, Invadem os vídeos, jornais, revistas, O teto não dá mais conta da cabeça. Outros moradores nem percebem essa invasão, O papel sente a ferida – Continua crescendo, se expandindo, Invade a língua, o lápis, o olhar – a respiração Se torna pesada, amassa, oprime, destroça e sobra Num espaço fronteiriço, apenas, um homem, Novo, olhando aquela Aurora e morrendo uma morte repetida.

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Ciclo de caça Sempre foram as distâncias, o nascimento dos peixes e o relógio que me obseda. Há muito tempo escolhi meu sexo e deixei aves sobrevoarem. Vivi no meio de ubérrimo lago assediando o fim da noite. Modifiquei minha posição tropecei numa cabeça consumei o rabo de um animal Vi o pássaro dormido em meu pai Lembrei a mão que não toquei.

Remir – primitivamente assumir os passos em falso e tomar a dor como deleite.

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Humanidade el dolor crece en el mundo a cada rato César Vallejo

Carregamos o fardo de toda uma espécie em extinção. Onde não há mais espaço para os tygres Respiram, inelutavelmente, sob o peso das águias, Panteras degradadas entre grades tramadas Sobre o vermegro falar das horas. Elege-se um útero final Abatidos retiram a pele da pele [e da pele Algures traçarão rotas diversas Comendo dores de um som medianamente igual.

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Primeira pedra Crava na origem da língua Um traço histórico da derrota E o silêncio de Adão. O tempo retrocede entre salas vazias e o rosto dos séculos. Se abismarão no tempo Sem nunca ouvir seu nome Uma marca coberta de pó Num longo mergulho final.

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Ofício para um Ouvido Que margens do medo (dobras do espelho) bordam a máscara do papel entre um lado e o final da palavra [silêncio?

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Fabrício Gean Guedes Rio de Janeiro

Nasceu em 1983 no Pará. Formado em Letras (2005) e Arquitetura e Urbanismo (2011), vive atualmente na cidade do Rio de Janeiro, onde trabalha como arquiteto do Instituto Federal do Rio de Janeiro e cursa Doutorado em Planejamento Urbano e Regional, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. O conjunto de poemas apresentado para esta edição intitula-se “Poemas antigos sobre hoje”.

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Pescaria Sentado na canoa, descanso os pés imersos na água barrenta do rio. Belém, cidade filha da puta, tão cinicamente tem roubado nossos sonhos. Fico a contemplar o meu filho que brinca com a vara de pescar. Reluta se salva ou não alguns poucos peixes ainda vivos. “Podíamos fazer isso mais vezes”, digo. E ele apenas acena positivamente com a cabeça. Eu o amo tanto que poderia ficar a manhã inteira a contemplá-lo, assim, tão bonito sob o sol. Neste breve momento em que estamos juntos, como no filme de Bergman, penso comigo mesmo: haja o que houver, isto é felicidade, agora, por alguns instantes, posso ser sublime.

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Anti-inspiração Tento botar no papel um poema. Aceno inútil para namorada que perdi quando tinha quinze anos.

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O cavalo O cheiro natural do corpo dela explode no quarto, e um pecado sensível e doce fere a pele nua. Ele, 50 anos, Ela, 19. A timidez é um paradoxo. O “não” é uma forma de opressão! Abre as tuas pernas, pequena, não vai doer nada.

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Schopenhauer Eu quis me matar sim, não minto. Eu juro que quis me matar! Mas aí eu conheci a Amanda, que era bem mais triste do que eu.

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Ofício Na hora do cansaço, escrevo. Não tenho mãos fortes para a próxima loucura, e nem cabeça para tanta informação. Na hora do descaso, escrevo. Bípede evoluído de conhecimento inútil, empobrecido de tato, programado para o consumo. Na hora do sufoco, me lembro, de um número, um código, uma tecnologia para a fuga. Quanta saudade finjo ter ao telefone! Na hora do desprezo, me calo. O afeto pode ser comprado pela Internet: um prazer, um desejo, a pobreza da catarse. Outra tempestade prolongada vai entulhar a rua. Não sei o que fazer com tanto lixo amontoado na alma.

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© Armando Alves

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Guilherme Lessa Bica Guaíba – Rio Grande do Sul

É jornalista e mestre em Escrita Criativa pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RS). Publicou a coletânea de crônicas Guaíba Labirinto (Edições Outro Céu). Escreve sobre literatura no semanário O Guaíba e sobre futebol no site Grenalzito FC.

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Poemas de afeto I. No dia que o olho virar enchente faz do teu rosto um leito e não um dique O aprendizado do pranto é muito simples: Não há pele que trave o choro nem tristeza que se eternize

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II. Quando a saudade aperta feito sapato menos que o pé Pega a tesoura e corta a ponta A vida é do tamanho que a gente quer

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III. Os amigos que o tempo nos traz os amigos que a vida nos nasce são maiores que a vida e o tempo Deitam generosos a descansar nossa ampulheta Nos salvam do mundo no afeto: sorriso de uma graça inteira

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Antônio LaCarne Fortaleza – Ceará

É cearense; nasceu em 1983. É autor de Salão Chinês (Patuá, 2014), Todos os poemas são loucos (Gueto Editorial, 2017). Participou das coletâneas A Polêmica Vida do Amor (Oito e Meio, 2011) e A Nossos Pés (7Letras, 2017). Seus textos estão presentes em revistas e suplementos literários.

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As axilas dos homens Observo por muito tempo as axilas dos homens e se o planeta é uma reviravolta de feridas. Eu quero respeitar os meus tumores, as folhas que eu li pela metade durante crises de impaciência, meu corpo em duas dobras quando eu deveria ser todo, osso, pulso, mandíbula, queixo caído, mão sobre ombro, língua, axila dos homens. Quando eu deveria ser tudo. Preciso de dois beijos rápidos e encantados para que eu me torne princesa e não morra no final da história. Os teus beijos me largam e me punem e não sou o que os homens pensam e dizem e mentem – sob o hemisfério azul do mesmo mar que afundamos e bebemos. Você mentiu enquanto dançávamos, eu menti enquanto comíamos. Não era de refrigerante a nossa sede, apenas água farta e abundante. Cachoeira, solidão, coração hostil. Observo por muito tempo as axilas dos homens.

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Meu nome é Jéssica Eu não vou lutar contra a anorexia da opinião alheia. Eu não irei ceder. O mundo tomará sua parte no pedaço da maçã que mordemos, matamos a fome em vão. Os anjos despiram nossa paciência. Os anjos zombaram de nossas histórias secretas. O segredo do que mergulhamos e afogamos com prazer. Lavo as mãos diante do espelho enquanto observo meu rosto lambuzado de creme anti-idade Renew. Lavo as mãos para as referências onomásticas dos idiotas que têm uma opinião formada sobre tudo. Ratazanas do conhecimento. Colônia refrescante Pretty Blues da Avon durante o banho. Sentimento às escuras. Presunção no corpo a corpo. Ando descalço pela casa com os meus pés sujos, leio o romance de Agatha Christie misturado com A Mulher de 30 Anos que eu também posso ser se eu quiser ser, uma mulher, ter 30 anos, cair na calçada, apalpar os meus seios, ou a partir de agora em que meu nome é Jéssica e eu sonhe acordada. Os homens sempre estarão perdidos e eu sempre estarei perdida, pois a ilusão é alucinante. Ando em círculos com a vontade de fumar, mas eu sinto muito medo e me deslumbro diante de piscinas imaginárias em que o meu maiô seria o maiô mais bonito do mundo. O sentimento mais bonito do mundo. Sobre o meu rosto eu não sei o que é oleosidade, eu não sei o que é creme, eu não conheço você.

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Cenoura & bronze Eu dirijo por aí e não acordo porque os meus olhos exercem sobre o sol do concreto da cidade aquele pouso forçado dos pássaros em fios elétricos onde todos se partem e não querem mentir, ao contrário de si mesmas, por isso se desmontam como bonecas ensanguentadas rumo à praia do cenoura & bronze, pois você não me olha aflito ou estende a mão e enrijece o membro. Eu estava prestes a desmascarar a mulher e sua pele gasta de cordeiro e com olhos de loba – e simplesmente jamais eu esqueceria aquele homem sem rosto na areia, nas nuvens, em qualquer cama. Os meus poemas não condizem com o que você acredita.

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Na cama Durante muito tempo eu deveria ter me dedicado à construção de minha própria casa. Tal casa se refletiria no modo como eu converso com as pessoas, me comporto numa entrevista de trabalho, me estapeio diante do espelho, e talvez sinta maior confiança diante de um encontro. Durante muito tempo eu quis ser eu mesmo, quis ter o direito de ser eu mesmo, agachado, nunca andando em linha reta, quem sabe me perdendo entre um buraco e outro, junto ao perfil dos dramas. Li e reli os textos que escrevi para alguém que hoje se contenta com um mero beijo, ou que jamais pensa em mim quando a solidão conspira ao seu desencontro. Eu também quis mais, eu me perdi, saí por aí, não observei os prédios. Meramente igual ao mundo me tranquei no apartamento, desviei pessoas, desmarquei encontros. Eu queria outra coisa sem nome, um abraço forte e apertado no escuro. Imaginar você perto de mim completamente sem roupa. Esta confiança é a luz do meu buraco negro. Você possui a tocha, me lambuza no imaginário, rasga as minhas roupas com cuidado, deixa que eu mastigue cada segundo no momento em que os teus músculos pedem a minha língua perdida, língua antes tão calma, pois minha voz também grita no breu, na neblina, sobre nossas camas. Minha cama principalmente.

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por Rafael Lovisi Prado

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“Isso funciona em toda parte: às vezes sem parar, outras vezes descontinuamente. Isso respira, isso aquece, isso come. Isso caga, isso fode” – diz a célebre abertura de O anti-Édipo (Deleuze e Guattari), anunciando a ubiquidade de uma maquinaria que produz e incita a produção por todos os cantos da terra. E o que “isso” quer dizer? Ou melhor, e bem mais apropriado, como “isso” funciona? Enunciar a presença deste isso não implica retomar a instância intrapsíquica freudiana, terreno das pulsões sempre em via de dilatar os cerceamentos que lhe são apresentados (o eu, o supereu, o socius), mas antes declarar que só existem máquinas, propriamente ditas, sem figuração ou abstração, por toda parte. Máquinas que realizam conexões incessantes, que se acoplam umas às outras, que emitem ou cortam fluxos através de suas relações num determinado contexto. No vetor que perpassa a obra da dupla francesa e certos versos de Herberto Helder, apreende-se que o desejo é a própria condição de existência das máquinas, aquele que não para de efetuar atravessamentos, fazendo com que tudo escorra e seja cortado: corrente menstrual que carrega os ovos não fecundados, corrente sanguínea que arrasta uma miríade substâncias pelo corpo, fluxo de esperma que conduz elementos proliferantes, fluxo de excrementos, fluxo aquífero... Ou ainda, fluxo de escrita ministrado pelas mãos, extremidades do complexo corporal que são: “água quebrando os dedos até às pontas quando se escreve / de uma ponta à outra sobre as riscas do papel cantante, / mais coisa menos coisa, pequena coisa, ou: riacho frio, sorve-o a areia”, como está inscrito em Servidões, ou ainda, “Caneta do poema dissolvida no sentido / primacial do poema. / Ou o poema subindo pela caneta, / atravessando seu próprio impulso, / poema regressando”, em Poemacto, ambos de H. H. Desta forma, todos os seres e coisas se mostram como bricoleurs, na medida em que montam e desmontam suas máquinas num infindo agenciamento terrestre. A proficiência de se inserir fragmentos em fragmentações sempre novas, promovendo certa indiferenciação entre o produto e o produzir, entre o instrumental disponível e o que está para ser produzido. Estas “máquinas desejantes” têm como preceito engendrar o produzir, introduzir a produção no produto, ou seja, desencadear sempre uma produção de produção ad infinitum atuando num sistema de engajamentos e cortes. É por esta mirada que deixamos de confrontar e cindir os homens e as máquinas, os objetos e as máquinas com o objetivo de analisar correspondências, 7faces • 112


particularidades e compensações possíveis ou não entre os termos para, antes, enlaçá-los numa interação que revela como os viventes, orgânicos e inorgânicos, compõem peças com uma máquina ou se ligam com uma coisa qualquer (ferramentas, animais, homens) e passam a constituir uma. Se não é por metáfora que se fala quando se aborda o universo das máquinas é porque, entre as diversas possibilidades de se engendrar uma, num dado plano, o caráter maquínico se desenha por meio dos enlaces factuais de um conjunto, isto é, a maneira pela qual elementos quaisquer são impelidos, recorrentemente, a realizarem junções. O conjunto água-dedos-papel cantante forma uma máquina de escrita numa dada conjuntura; ou ainda, o conjunto caneta-poema engendra uma máquina poemática em condições de dissolução, impulso e regresso. Ademais, ao empregar-se o termo “máquina”, e seus derivados, “maquinismo”, “maquínico”, não se quer fazer alusão a algo da ordem do mecânico, ou mesmo do orgânico: se a mecânica ou o organismo são um aparato de ligações encadeadas entre elementos dependentes, a máquina, ao inverso, é uma reunião de elementos díspares e independentes em vizinhança, sendo essa topologia liberta das demarcações de distância e proximidade entre aqueles (o desejo, como mobilizador das máquinas, insurge justamente para que elas não se convertam em um mecanismo ou organismo). No que tange ao desejo, este não é forjado/alavancado unicamente pela subjetividade humana (como se concebe amiúde), mas algo que emerge da conectividade de fluxos humanos e não humanos, de uma miríade de máquinas que compõem a arquitetônica da vida. Ele é artificial, agenciado, e não fruto de um motivo espontâneo ou natural, aflorando somente quando, ao romperem-se os equilíbrios estabelecidos, surgem novas relações, novos possíveis. Desejar não é uma questão de indivíduos, bem como não é o corolário da interação das pulsões destes, e nem mesmo algo que tende para um objeto: como ação dentro e em função de uma multiplicidade, o desejo não é oriundo da interioridade de um sujeito, mas provêm de um encontro, de um fora. Em flagrante desacordo com a fixação das posições de sujeito-objeto, tal mirada diz de um acoplamento entre uma pessoa ou uma coisa no interior de um vasto agrupamento constituído de relações, máquinas e signos (na verdade, o desejo só poderia ascender no momento em que alguém é despojado da capacidade de dizer “eu”, da mesma forma que só poderia ser alcançado no instante em que 7faces • 113


alguém já não busca ou não almeja um objeto, e tampouco se apreende como sujeito). Com isso, é o agenciamento, e não o ser individuado que torna alguém ou algo desejável, segundo os mundos vislumbráveis que estes trazem consigo. Captando a beleza dessa abertura em A colher na Boca, Helder dá o título de “Elegia múltipla” a um de seus poemas mais emblemáticos neste sentido, não ao acaso sinalizando para uma máquina desejante em sua poética que transborda em “primavera” por todos os lados: [...] Não sei o que é a morte. Enchia com meu desejo o vestíbulo da primavera, eu próprio me tornava uma árvore abismada e cantante. E a beleza é uma chama solitária, um dardo que atravessa o sono doloroso. [...] – De mim, vivo e ofegante, sei uma flor de coral: delicada, vermelha. (HELDER, 2014, p.60) O desejo é imanente a esse plano que não é prévio, que necessita ser engendrado, no qual partículas se propagam e conjugam elementos: “o vestíbulo”, “uma árvore”, “uma flor de coral”. Só há produção desejante quando há desenvolvimento de um campo a ser percorrido, meios inteiros que ela perfaz, vibrações e correntes de qualquer natureza que esposa, cravando incisões, realizando capturas, amiúde afirmando-se nômade e migrante. Contesta-se, por vezes, que tal concepção é ancorada na mais pura indeterminação, impregnada ainda mais pela falta originária que busca combater nas elaborações psicanalíticas. Mas seria mesmo preciso acreditar que ao perdermos as diretrizes de objeto e sujeito nos faltará algo? (falsa indeterminação que assombra as marcas sintáticas aglutinadoras de desejo: os pronomes indefinidos, as terceiras pessoas e os verbos no infinitivo). O plano de consistência ou de imanência do desejo comporta clarões, áreas desérticas, porém, estas pertencem plenamente às suas composições e não imputam a ele carência alguma. No sentido de se traçar uma geografia (antes de uma história) do desejo, interessa saber que linhas atuantes se encontram bloqueadas, fenecendo num impasse qualquer ou nos arrastando para um buraco, e que outras estão pulsantes, a cantar, pelas quais se pode escapar e criar – gesto do qual H.H não se furta: Cantar onde a mão nos tocou, o ombro se ascendeu, onde se abriu o desejo. 7faces • 114


Cantar na mesa, na árvore sorvida pelo êxtase. Cantar sobre o corpo da morte, pedra a pedra, chama a chama – erguido, amado, apreendido. (HELDER, 2014, p.30) É segundo um esquema platônico de divisão, reativado pelos primórdios do pensamento psicanalítico e sedimentado ao longo de seu decorrer, que a produção e a aquisição nos são apresentadas como escolha excludente. Ao dispormos o desejo no lugar da aquisição, imputamos a ele um caráter idealista, dialético, que o certifica, antes de tudo, como faltoso: falta-lhe um objeto “real” (seu viés produtor não é desprezado, já que ele produz um objeto, entretanto, de realidade psíquica). Dito de outra maneira, ao se colocar o desejo como vacância de um objeto real, sua essência (ou atmosfera própria) está na falta que o faz produzir um objeto fantasmático, ou seja, sua produtividade não é negada, mas endereçada à produção de fantasmas, a certo imaginário que vem duplicar a realidade, como se houvesse uma coisa imaginada por detrás de cada coisa real, uma projeção mental escamoteada por cada evento real. O mundo assiste assim a sua duplicação, isto é, se o objeto se ausenta ao desejo é porque o mundo não possui todos os objetos, escapa-lhe ao menos um, aquele do desejo, que se encontra alhures como segredo. No compasso desta concepção, há sempre uma irremediável insuficiência assolando os seres, uma “falta-de-ser” (na expressão lacaniana). A tríade de aspectos que incidem nefastamente nesta esfera é justamente composta pela falta, pela lei e pelo significante, dando forma a um só idealismo com ares de piedade. E mesmo que estas noções sejam interpretadas segundo uma análise cambiante que dispõe a falta como um locus vazio em trâmite, ao invés de uma privação, que elabora a lei como uma variável de um jogo, ao contrário de uma ordem fixa, e que, por último, define o significante como um manancial, em contraposição a um termo unificado de sentido, as marcas teológicas da insuficiência do ser, da culpabilidade e da significância não são com isso apagadas. Se somos edipianizados, castrados, essas intervenções não foram criações psicanalíticas, apesar de serem, de certa forma, priorizadas e fomentadas por estas. Édipo existe, desde os primórdios, contudo, 7faces • 115


esparramado por todos os lados do campo social investido pela libido; e se é um fato que as figuras parentais insurgem neste solo de registro, resta-nos questionar: em que condições a triangulação direciona o desejo para um território que não era o seu, enquadrando maquinações que pululam por toda parte? (Cf. DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.68) O que se coloca em jogo é que as operações edípicas não são suficientes para dar conta, ou mesmo amordaçar as produções desejantes, os fluxos desterritorializados que nos atravessam e nos arrastam para lugares esquizos, videntes, não permitindo enrijecimentos puramente neuróticos: A tua loucura bate de áspero entusiasmo. Tens uma perigosa ciência – sabes? É que vês, revês, prevês, tresvês. Andas para a frente e para trás, páras e corres, e ficas tenso ouvindo e vendo, com a loucura toda a trabalhar. És sensível – demoníaco. (HELDER, 1968, p. 165) No que nos dá a ler H.H aqui, a contrapelo da radicação do desejo no lugar da hiância, interessa realocá-lo como o produtor por excelência, o produtor do real (não o intangível, o impossível, mas o que nos cerca, a presença sensível, a “perigosa ciência” na qual tudo devém possível), e que só pode sê-lo na materialidade, mostrando-se como um conjunto de sínteses e maquinações corpóreas. É em decorrência desses processos que o real surge como resultado das sucessivas construções materiais do desejo. A este não falta nada, ou melhor, “é o sujeito, sobretudo, que falta ao desejo, ou é ao desejo que falta sujeito fixo” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 43), sendo o desejo a província das condições objetivas de existência, unido a estas. Se não é o desejo que alija o sujeito, cravando neste uma falta primacial, é antes a organização molar (das formas, do instituído) que despoja o desejo de sua positividade. Neste sentido, a poética helderiana, em suas audições/vidências capta o desejo enquanto manancial criador que abraça a vida, que expande a si mesmo e a esta quanto menos privado se faz. Ao se promover a junção desejo-objeto constitui-se uma só e mesma coisa, a saber, a máquina, sempre como máquina de outra máquina, uma conectada à outra: Não tenho nenhuma lei nem regra para desordenar um poema escrito não tenho mais que o desejo de tocar-te 7faces • 116


ó coisa inúmera que entretanto além de tocar conto e reconto continuadamente fome de dizer como nunca foi acontecido fora do seu desejo mesmo tu ó tão funda tão fundada substância do mundo: pleno cheio. (HELDER, 2016, p. 7) Neste poema que inaugura Letra Aberta, livro lançado postumamente como marco de um ano da morte do poeta (2016), Herberto Helder pode explanar tal junção constituinte na máquina-poema, “substância do mundo: pleno cheio”, a qual não falta nada, na qual “nenhuma lei nem regra” incidem de maneira determinante ou fundadora. Não há, com efeito, uma produção mundana de realidade de um lado e, de outro, uma produção de fantasmas por parte do desejo, bem como não há uma ambiência específica/desagregada que se poderia nomear realidade psíquica. Isto implica dizer que, na verdade, toda a produção social é, em suma, a própria produção do desejo tracejada, ou ainda, que a “substância do mundo” é diretamente transpassada pelo desejo que a fabrica num dado escopo histórico, de forma que a libido não demanda nenhuma sublimação ou mediação, transformação alguma para investir nas engrenagens de produção: não haveria nada além do desejo e do social. Assim sendo, aquilo a que se costuma dar o nome de “escolha de objeto” nos envia, em si mesma, a uma miscelânea de existências que tal corpo/pessoa reúne e lança num dado recorte biológico, social, histórico, no qual estamos mergulhados e com o qual interagimos: “E em cada minuto a criatura / feliz do amor, a nua criatura / da minha história de desejo, / inteiramente se abre em mim como um tempo, / uma pedra simples, / ou um nascer de bichos num lugar de maio”, segundo o aprendizado helderiano expresso em “Tríptico”, de A colher na boca. Os seres em geral a que destinamos nossos amores são somente pontos de convergência ou divergência dos fluxos libidinais, ou ainda, tradutores destes investimentos inconscientes que realizamos. Por mais solidificada que seja a trincheira amorosa, há sempre a alternativa: ou o desejo é retido nos embaraços conjugais/familiares, nas armaduras da clausura ou, ao contrário, 7faces • 117


escorre sua energia para fomentar uma máquina convulsiva. Dito de outra maneira, há a possibilidade de substituir a demanda excessiva por ser amado (os “dramas”) “por uma potência de amar” (DELEUZE; PARNET, 2004, p. 85) não um desejo por qualquer um ou qualquer coisa, mas um acontecimento que conjuga afectos não personalistas, não objetificados, “que soam a estrangeiro”, no versejar de Helder em Letra Aberta: vou ali e já não venho, aproveito a distracção de todos a minha e a dos outros, e vou-me embora sob inúmeras atmosferas, dizendo um a um os nomes que soam a estrangeiro, e nativo só quando o amor os enflora mas nunca o amor tem a pronúncia que se espera. (HELDER, 2016, p. 34) Emaranhados aos corpos que amamos, projetados para além deles, há frequentemente paisagens vislumbradas, e é por isso que “é sempre com mundos que fazemos amor. E o nosso amor dirige-se a esta propriedade libidinal que o ser amado tem de se fechar ou abrir a mundos mais vastos, massas e grandes conjuntos”. (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 387) É dado aí o espalhar-se “sob inúmeras atmosferas”, por vetores inconscientes e, assim, alucinar/impregnar toda a história, perpassar as civilizações, os continentes e as etnias, e fazer sentir agudamente um devir mundial. Referências DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Trad. de Luiz Orlandi. São Paulo: Ed.34, 2010. DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Trad. de José Gabriel Cunha. Lisboa, Ed. Relógio D' Água, 2004. HELDER, Herberto.Letra Aberta, Porto Editora, 2016. HELDER, Herberto. Poemas Completos. Porto Editora, 2014. HELDER, Herberto. Apresentação do Rosto. Lisboa: Ulisseia, 1968.

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© Joel Robinson

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DA BIKE AO HELICÓPETRO: VERGÍLIO FERREIRA E HERBERTO HELDER por Maria Lúcia Dal Farra

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Se não me engano, a única vez que toquei no nome de Herberto com Vergílio foi numa carta em início de 1974, quando lhe revelei que me dedicaria à obra do poeta da Madeira no meu futuro doutorado (na Universidade de São Paulo)1. E, de fato, em 1979, esse empenho resultaria num livro (publicado apenas em 1986 pela Imprensa Nacional/Casa da Moeda) – o Alquimia da Linguagem (Leitura da Cosmogonia Poética de Herberto Helder). Porém, naquela altura, eu havia acabado de defender (na mesma USP) o meu mestrado, cujo título era O Narrador Ensimesmado (O Foco Narrativo em Vergílio Ferreira) – e Óscar Lopes havia demonstrado interesse em publicá-lo pela Inova. Discutíamos justo tal possibilidade na nossa correspondência: se o original deveria seguir para o Porto ou para São Paulo (no caso, para a Ática, onde foi deveras editado em 1978), quando lhe dei a notícia sobre o Herberto. Vergílio recebeu bem a minha escolha mas, como me confessou, teria preferido que, em lugar de Herberto, eu me dedicasse à poesia de António Ramos Rosa, seu muito próximo amigo. E ele me afiançava em carta de 13 de Março desse ano que, “se Herberto Helder é um grande autor, o Ramos Rosa não o é menos – e para mim é mesmo maior (o que sem dúvida tem apenas que ver com uma questão de gosto pessoal).” Aliás, mais tarde, no Conta Corrente, ele sublinharia essa mesma preferência. Estudiosos já sondaram a presença de Ramos Rosa em Vergílio e viceversa, e vislumbraram uma íntima cumplicidade entre romancista e poeta, numa verdadeira conversa entre obras. Luís Mourão, por exemplo, lê o romance de Vergílio, Em Nome Da Terra, através de O Não E O Sim, do poeta seu amigo, ambos publicados em 19902. Tanto um quanto outro autor (segundo o ensaísta) teriam dado os seus próprios “passos místicos” que, por pura convicção, se desviavam igual e coincidentemente de quaisquer laivos divinos. Ana Paula Coutinho Mendes também lidou com essa proximidade e pontua que cada um deles representava, para o outro, um “horizonte ou estímulo de escrita”, ancorado numa “atração mútua pelo discurso da Filosofia”. Em textos de Vergílio sobre Rosa ou de Rosa sobre Vergílio fica evidente que cada qual reflete, na verdade, a si próprio e escreve sobre si mesmo na medida em que reconhece a obra e os ditames estético-filosóficos do respectivo amigo3.

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Sobre Vergílio e Herberto, no entanto, o que me consta é que este assinou e dedicou pessoalmente ao romancista cerca de treze dos volumes da sua obra, como se pode constatar pelo Espólio depositado na Biblioteca Nacional de Lisboa. Os mais antigos registros datam de 1961, os de Poemacto e de A Colher na Boca, muito embora O Amor em Visita, obra inaugural de Herberto lançada em 1958, também esteja presente no acervo de Vergílio, mas com anotação de 1974 e, como as outras, ostentando uma dedicatória do autor. O que indicia, da parte de Herberto, um contínuo apreço ao romancista que, por sua vez, teria tomado contato com a poesia dele pelo menos desde que o amigo Ramos Rosa lhe consagrara um estudo em julho de 1961. Tratase do texto “Poeta Órfico”, publicado no Diário de Lisboa e, no ano seguinte, no livro Poesia, Liberdade Livre, de Ramos Rosa. No entanto, em Conta Corrente, Vergílio se declara desencantado com Herberto logo após o 25 de Abril, a quem, como assegura ali, considerava de fato o maior poeta do seu tempo, “logo a seguir ao Ramos Rosa”. Ele supõe então, com certa ingenuidade ou malícia, que Herberto tenha deixado crescer a barba para encampar o tipo oficial dos camaradas do Partido Comunista Português que, aliás, na altura, contrariamente ao que especula Vergílio, Herberto desbancava em carta.4 Vergílio era atacado deveras por tais fantasias quando se tratava da esquerda, que lhe havia desferido profundos e injustos golpes, e acabava se maltratando e se ressentindo com suposições políticas equivocadas que dum momento para outro se transformavam em paixão exacerbada e cega ou então em muxoxos ranzinzas, dos quais não escapavam nem mesmo os amigos mais próximos – Eduardo Lourenço incluído. Aliás, Vergílio se mostra sempre susceptível. Na sua correspondência com Jorge de Sena, não se intimida (em Agosto de 1964) de revelar-se muito desgostoso e melindrado com o poeta exilado no Brasil, simplesmente porque levara a sério (e de modo exaltado) um burburinho maledicente em que constava ter Sena afiançado ser Vergílio um escritor “medíocre” – fato que ele situa nas tramas de “uma conjura” que se montou contra ele, “através da querela do defunto ‘neo-realismo’”5. Sena, em contrapartida, lhe redargue interrogando (atônito) se também ele “vai deixar que o lixo o submerja” (p.90). Tal argumento foi, ao que tudo indica, suficiente para fazer Vergílio voltar finalmente a si.

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Não é o caso, agora, de defender de tais acusações injustificadas o Herberto (também ele desiludido com o PCP, conforme me relata na sua correspondência de então, apodando-o de “estalinista”), mas tão somente de apontar alguns encontros – talvez fortuitos e em registros muito diversos - entre uma e outra obra. Penso numa peça de Os Passos Em Volta (1963), em que o narrador nos ensina, em primeira pessoa, como adquiriu o seu “Estilo” – esse o título do conto que, aliás, abre o volume. A questão urgente da existência, a “desordem estuporada da vida” nos obriga, diante de experiências torturantes e contínuas, transbordadas sobretudo em noites vazias e sem remissão, a buscar um jeito de suportar o peso dessa evidência. Infelizmente, nenhum recurso é oferecido pelo médico, que só pode nos receitar “barbitúricos”, e nem mesmo pela lição alheia – há gente, por exemplo, que cultiva orquídeas e que se salva por essa via. O fato é que urge encontrar um “estilo” para não darmos “em pantanas”. Pois bem, nessa cruzada, o narrador ouve Bach, pratica matemática, descobre a parecência entre a música e as equações a incógnitas que ele se põe a resolver nas insônias, o que lhe nutre certo fôlego para enfrentar o terror noturno quando “as grandes sombras incompreensíveis” erguem-se no meio do quarto, quando “a imensa melancolia do mundo parece subir do sangue com a sua voz obscura.”6 Todavia, o que verdadeiramente o acode e o socorre é o “processo de esvaziar as palavras”. Ou seja: ele escolhe uma palavra “fundamental” – não por acaso “Amor, Doença, Medo, Morte, Metamorfose”. Depois, passa a articulá-la em voz baixa, uma, duas, três - vinte vezes. Ao fim desse exercício, a palavra resulta como que desencarnada do seu significado, tornada alheia, sem sentido, de maneira que ele pode se apropriar dela à vontade. Essa é, segundo o narrador, uma das maneiras de obtenção do estilo, meio de se safar da loucura: de conquistar “aquela maneira subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação”. Ora, a escrita da poesia também compreende uma aquisição semelhante, do mesmo naipe. E isso porque, na poesia (na Arte), o poeta se livra das contingências, delegando-as às criaturas que a habitam. Assim, se no poema “Elegia Múltipla VI” de A Colher Na Boca (que Herberto cita nesse conto), as crianças enlouquecem – são elas

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que perdem a consciência e não o poeta! Elas é que não conseguiram, afinal, descobrir o seu próprio... estilo. Acontece que, malgrado a posse desse “estilo” (que, em contrapartida, pode nos encher de “parcimónia”), nunca se deve abdicar da insanidade, da “tenebrosa e maravilhosa loucura” - essa sim mais condizente com a nobreza e com “o segredo da nossa humanidade”! De modo que, muito embora o poeta se esforce por discernir para si um esquema, um teorema de apaziguamento que lhe conceda enfrentar os avessos e desencontros da vida, evitando naufragar na desmesura e no desvario – ele, sem tal poderoso combustível, jamais produzirá, afinal, coisa alguma digna da sua condição de homem. O conto, como se constata, se prima pelo paradoxal. Por um lado, dá a receita para se buscar, se encontrar e, por fim, simplesmente desprezar o notável achado que pode redimir o homem da dor, do tormento e da alucinação, uma vez que sem estes tudo se desvaloriza e se torna desprezível. Vê-se, pois, como tal posição, expressa nessa peça de Os Passos Em Volta, esclarece o caminho trilhado pela própria poesia de Herberto, a sua maneira rigorosa de dizer o arbitrário, suas obliqüidades e descontínuos, seu modus rimbaldiano de fazer a “alma monstruosa” - a sua prática poética de “assassino assimétrico”. Não esquecer, por exemplo, que, em O Bebedor Nocturno (1968), também tal “estilo” de esvaziamento das palavras é cultivado como maneira de “tradução” poética. Herberto refere aí essa habilidade de pegar da palavra e vertê-la para quinze línguas diferentes. Tal ocupação acaba dotando o significado de uma velocidade impossível, transformando a “coisa”, que a palavra era, em uma “colorida e abstracta proliferação sonora”, que, assim transubstanciada, vai viver em permanente “estado de Babel”. Na mesma linhagem do poeta de “Estilo”, o poliglota de Herberto é agora concebido: “o seu pensamento, partindo do hebraico, dá um salto quase místico no latim e cai de cabeça para baixo no grego antigo. (...) Faz disparates destes: verte de nauatle para esquimó, emocionando-se em banto e pensando em chinês, um texto que o interessou por qualquer ressonância árabe.”7 Esse processo aparentemente ingênuo de “estilo” pode, pois, explicar não só a linhagem das suas “versões” como também da sua poética. 7faces • 125


Em Aparição (1959), há como que uma exposição dramática e à flor da pele dessa mesma contradição encontrada em Herberto que, aliás, também alimenta o filme Teorema, de Pier Paolo Pasolini (1968). Chama a atenção que o título da obra do extraordinário diretor italiano, sendo posterior à de Herberto, possua uma acepção tão semelhante à que este faz transitar no seu conto, e sabe-se lá (já agora então!) a quê incógnita! Em lugar do comedimento e da circunspecção doados pela prática de um “estilo”, o que se vê em Vergílio e Pasolini é o desregramento e o desvario ditados pela descoberta da ausência de razoamento da vida – seja numa dimensão filosófica que, no entanto, traz sequelas graves e palpáveis, como ocorre em Aparição, seja em termos sociais, quebrando tabus, como acontece em Teorema. A presença de um estranho que penetra num ambiente familiar burguês descerrando valores que submergiam escorados na sombra e na mudez, passa a decretar, da parte das pessoas concernidas, comportamentos díspares, desencontrados e inesperados, que afetam sobremaneira as suas relações pessoais e sociais, alçando-as a um absurdo paroxismo. Em Aparição, é o ingresso de Alberto Soares como professor na sociedade tradicionalista de Évora que, com suas inquietações metafísicas, desencadeia uma reviravolta de valores e um atordoamento de direções, incluindo patéticas fatalidades. Diante da descoberta da evidência da morte, Alberto sente a necessidade de incorporá-la à plenitude da vida, e essa mensagem, tão óbvia e ao mesmo tempo tão inocente e meritória, há de desarvorar as pessoas a sua volta. Porque, ele constata (no diapasão vergiliano que, para o caso, é muito semelhante ao do narrador de “Estilo”) que o flagrante da vida que em nós se asila nos assusta, como se fosse uma espécie de “vulcão brutal que sai de nós, o jacto do deus que nos habita”, uma espécie de “monstruosidade que nos adormecia dentro” (p.72). Ora, para sanar tal atrocidade, faz-se necessário, na nomenclatura de Herberto, enfrentar essa “desordem estuporada”, ou, no registro de Vergílio, “justificar a vida em face da inverosimilhança da morte” (p.49) – o que obriga tais personagens a inaugurarem um “estilo”... E, interessa-me aqui, particularmente, a maneira como Carolino, vulgo Bexiguinha, monta a sua equação, o seu teorema diante dessa “aparição”.

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Botando-se no centro de si mesmo, crê Carolino que pode ver-se e sentir-se “de dentro para fora”, pode descobrir “a pessoa” que está nele, que é ele. Carolino relata ao professor Alberto, então, a sua “experiência” destinada à obtenção de tal fim. É a de “mastigar as palavras” – e constate-se como ela é muito semelhante à do poeta de “Estilo”! Explica então o jovem aluno ao professor: – Bem... É assim: a gente diz, por exemplo, pedra, madeira, estrelas ou qualquer coisa assim. E repete: pedra, pedra, pedra. Muitas vezes. E depois, pedra já não quer dizer nada. (p.78) Carolino, no entanto, acabará por enveredar na sedução da “loucura” que, ao contrário do que se passa com o narrador de Herberto, não o fará desembocar produtivamente na poesia ou na criação artística. No rumo dessa atração, Carolino há de chegar a concluir que, se já não há mais deuses para criarem, o homem é quem deve ocupar esse posto vacante. Como o homem não pode criar, pode, no entanto, matar, o que seria um gesto tão poderoso quanto o do Todo Poderoso. De modo que Carolino se transforma em “deus” através do patético assassinato de Sofia. Matando-a, ele supõe recuperar para si (canibalisticamente) o poder que ela detinha, a grandiosidade do que ela era, a sua magnitude. Assassinando-a, ele se alça a uma altura que a ultrapassa! E é assim que tal método acaba por destruí-lo, em lugar de o redimir. Mas o curioso nessa aproximação entre ambos os autores é que o processo descrito nas duas obras, buscando para o absurdo da vida e da morte uma solução – é exatamente o mesmo: o de esvaziar as palavras, o de mastigar as palavras, o de perscrutar aquilo que as palavras ignoram a respeito do que há dentro de nós! Um outro componente que surpreendo tanto em Vergílio quanto em Herberto diz respeito ao uso desportista da “bicicleta”... Em Herberto, esse meio de locomoção busca dar familiaridade a uma perscrutação espacial e semântica completamente desprovida de perspectivas e de módulos referenciais – a esmo, desorientada e vagante. Ou seja: a bicicleta em Herberto é a maneira de o poeta demonstrar que não pilota uma bike, que é ela quem o dirige e maneja o poema para avançar pela lua, pelos satélites, pela memória, pela neve – pelo nome:

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A bicicleta pela lua dentro – mãe, mãe – ouvi dizer toda a neve. As árvores crescem nos satélites. Que hei-de fazer senão sonhar ao contrário quando novembro empunha – mãe, mãe – as telhas dos seus frutos? Novembro – mãe – com as suas praças descascadas.8 Num processo combinatório ao gosto de A Máquina De Emaranhar Paisagens (1964), de Comunicação Académica (1965), este poema de Electronicolírica (1964), nascido sob a égide de sua versão anterior em A Máquina Lírica (1963) – utiliza, como esclarece o próprio Herberto, “um limitado número de expressões e palavras mestras”, a fim de promover “a sua transferência ao longo de cada poema”. Reparo que os textos desse livro são produzidos por meio de signos submetidos a uma dissolução semântica que ocorre graças ao jogo de permutações entre tais elementos constitutivos. Ora, voltando aos termos do narrador de “Estilo” ou aos de Carolino de Aparição, tratase, de novo, do processo de esvaziamento de palavras, do processo de mastigação delas. O fito do poeta de Electronicolírica é, de novo, fazer as palavras perderem o seu significado, deixar vagar nelas o significante em busca de um novo sentido. E é assim que, depois de a “bicicleta” de Herberto percorrer ao léu grandes espaços de significantes alheios, inusitados e dissonantes, ela acabe se vergando ao peso – desculturalizado! – de um “grande atum negro”. De maneira que um outro e inaugural significado nasce cavalgando o significante “bicicleta”, depois de esta errar pelas distâncias entre palavras, versos, estrofes, exibindo saltos de obstáculos pelos planetas e pela memória (no transcorrer das veredas selvagens do poema). E esse novo significado, atingido pelo esvaziamento do significante é, de fato, absolutamente insólito e imperscrutável, porque, então, a “bicicleta” se transforma nesse grande e negro “peixe”. Curioso como “um grande atum negro” pilotando uma “bicicleta” nos remete de imediato a um Hieronymus Bosch da palavra – e tão contemporâneo! Dessa forma, tal como o constata já um outro poema intitulado decidicamente “Bicicleta” (e que está em Quatro Canções Lacunares que, em 1965, eram Cinco) – lá “vai [deveras] a bicicleta do poeta em direcção/ao símbolo”, em direção “aos seus sinais”:

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De pulmões às costas e bico no ar, o poeta pernalta dá à pata nos pedais. Uma grande memória, os sinais dos dias sobrenaturais e a história secreta da bicicleta. O símbolo é simples. Os êmbolos do coração ao ritmo dos pedais – lá vai o poeta em direcção aos seus sinais.9 Já em Vergílio, a “bicicleta” não é índice dessa velocidade que adquire em Herberto, vertigem que vai triturando e modificando o significado. Ao contrário, é movimento sim, mas muito mais um bulício interno, de rememoração e de reinvenção, muito mais vagar, mergulho lento na paisagem e na memória - morosidade que vai colocar, em Para Sempre (1962), Alexandra contra Paulo. A jornalista Xana, enquanto representante da contemporaneidade, há de envergar a bicicleta, então, como o símbolo que a distancia do seu pai (Paulo), arqueado, segundo ela, sob o peso do passado. Este é bibliotecário e, ao mesmo tempo, narrador do romance em pauta e também alvo da virulência jocosa e das chacotas da filha modernosa, que se dizia pertencer a outro universo cultural, mental e temporal que não o dele. No dela, há pressa, há urgência. No de Paulo (via Xana), há apenas excessivo vagar. Só que a preponderância desse exercício moroso em Vergílio Ferreira dá-se como mola para as verrumações estéticas e humanistas que caracterizam o teor pessoal e único do seu romance líricoproblemático. Como diz Luís Mourão, se de fato há alguma “velocidade” em toda a obra do Vergílio, esta se deve antes a uma “metafísica dos meios de transporte”. Em Para Sempre, a “bicicleta” é a “emblemática do andamento silencioso e despojado”, que funciona como o seu modo específico de conhecimento das coisas e do mundo.10 Para Xana, no entanto, a bike do pai não passa de uma versão do... carro-de-bois! Ela se crê, diferentemente dele, representante de um mundo “revolucionário”, do presente e do agora, que empunha como garantia de realidade o “gravador” e aquilo que este relata e comprova. Essa técnica se encontra no lugar do testemunho dado pela memória meritória que o perpetua, e da qual se vale o narrador de Para Sempre, assim como o emissor das Cartas a Sandra (1996) – o mesmo Paulo bibliotecário, o pai de Alexandra. 7faces • 129


Enquanto Paulo deplora intimamente em Xana um ar “fadista” de desleixo e displicência, assumido por ela no agito de trabalhar, como jornalista, em algum inquérito ou reportagem, ela o acusa caricata e risivelmente de “múmia”, de recender “a mofo”, de ter a alma em “infólio”, de expor uma “vida trabalhada a traça e a bafio”. E isso porque a filha acredita que a escrita do pai nasça do hermetismo dum gabinete tumular, rodeado de quadros e de livros, de estantes que não passam de cadáveres “em jazigo”, onde ele, sequer, pode se dar conta do que ocorre para além daquelas paredes. O tempo do livro, ao qual o pai se dedica, escrevendo ou trabalhando, é, para ela, “o tempo da morte”, do “candeeiro de petróleo”, “do óleo de fígado de bacalhau”, “dos botins, das cuias, dos palitos”, das “perucas, das lamparinas e dos penicos”. Todavia, os “modernos”, segundo Xana, os seus pares, estão “vivos e cheios de coisas a fazer. O tempo do livro é o da imaginação trabalhosa e nós estamos cheios de realidade. (...) O tempo do livro é o do carro de bois”.11 Como se constata, do ponto de vista de Alexandra, o que Paulo produz não vai além de uma atividade ultrapassada, emanada do domínio do arcaico, do que saiu fora de circulação e que não mais interessa, pois que caducou – inútil demodé. O pai representa o que a sociedade refugou, o que se situa no estágio antigo do artesanato relegado às traças, ao tempo dos vagares, e está em definitivo sepultado no magnífico monumento-mausoléu que o representa: a Biblioteca. Em compensação, para Xana (e ela se ufana disso), escrever É diferente. Escreve-se um artigo como se toma um café. As pessoas lêem e deitam fora. Se alguém o apanha, é para uma necessidade de momento. Para embrulhar castanhas. Para utilizar na retrete, quando não há papel.” (p.106) Ela se dedica a uma necessidade instantânea, fortuita, logo substituída por outra, índice do sinal fluido da modernidade. E não é nem um pouco pejorativo, para ela, que o uso do jornal, mesmo quando reduzido apenas a papel, faça parte da latrina ou do lixo. Tudo nela diz respeito ao “momento”, ao que se usa e se joga fora – ao consumo. A sua geração é a “contemporânea”, visto que se move pela agilidade do pensamento, em ritmo de pressa para acompanhar o compasso dos tempos que seguem, em que a palavra nada guarda do sagrado que 7faces • 130


um dia a prodigalizou. Ocorre que Xana não se dá conta de que, praticando esse ritmo de “bicicleta”, seu pai escreve da maneira a mais “contemporânea” possível! Em Vergílio, a situação do narrador é quase imóvel, porque ele sempre se encontra, no presente, em estado de rememoração e de escrita. Lembro que este se acha, por exemplo, “num quarto nu” (em Manhã Submersa), numa “sala vazia” (em Aparição), numa “cela de prisão” (em Estrela Polar e em Nítido Nulo), na aldeia vazia (em Alegria Breve), na casa vazia da infância (em Para Sempre e em Cartas A Sandra), num “Lar” (em Em Nome Da Terra) e assim por diante. É a posição solitária de ensimesmamento, de aparente paralisia física, temporal e espacial que lhe propicia a mistura (quase imperceptível e, em seguida, progressivamente indiscernível) do presente e do passado rememorado (e mesmo de um futuro a projetar-se), graças à comoção que a revivescência provoca sobre a escrita, mercê das consequentes distorções que a narrativa acaba exercendo sobre o discurso. Esse encontro de escritas produz aquilo a que chamei (em 1973) de “intersecção entre discurso e narrativa” – de “escritura”. E creio que vem daí – para definitivamente polemizar com Xana! – o caráter invulgar e vanguardista da sua escrita! Vergílio Ferreira é o responsável, no moderno romance português, pela adoção inovadora e atualizadora (em prosa) daquilo que Fernando Pessoa supôs e executou em verso – da sua lição de “estilo”, da sua “chuva oblíqua”. E, nesse sentido, a escrita de Vergílio ganha uma dimensão supersônica – quebra a barreira do sentido. A bem da verdade, nem sei dizer que tipo de jato Vergílio pilota já então. Um “mirage”? Uma miragem, um milagre! E uma solidão angustiante – como pude admitir que me esperassem? – sufoca-me quando chego à cidade. Subitamente, na noite imensa. Tráfego cego, submerso, como periscópios as luzes, traçam à superfície as linhas, o emaranhado da sua procura. Os reclamos luminosos no ar crepitam, fazem sinais à noite, fazem sinais ao silêncio, cintilam no mar, miríades de partículas de sol. Ouço a música ainda – ouço-a ainda? para lá das arribas marcando o ritmo da ondas, balanceando na noite e a minha solidão. Como a obsessiva memória do que nos feriu, cresce, independente, vem à superfície, mergulhamo-la à força, vem à superfície como um pedaço de cortiça.

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Por fim resigno-me vou com ela pelas ruas atrás de mim como um cão – o cão desapareceu no extremo da praia.12 O fato é que a capturação do real continua sendo um grande mistério! Em Photomaton & Vox (1979), Herberto nos explica que essa ideia da “bicicleta” já estava, há séculos, em Fra Angelico. Na Anunciação, o Arcanjo São Gabriel está pilotando uma bike: como não se vê, o fato de pedir desculpas com muitas cores (em azul, ouro e prata), mostra que o pintor está manipulando a metáfora das asas nas costas do anjo para o anúncio da gravidez de Maria, ou seja, para a “subversão da natureza”. Segundo Herberto, foi preciso decifrar completamente esta metáfora para inventar a bicicleta. Não esquecer que, muito tempo depois (em Hollywood), Marilyn Monroe haveria de assegurar que é de cima de uma bicicleta que se pode ver melhor a natureza... Tal como o poeta de Herberto que, por sua vez, da bike passará para o skate, e deste, atravessando já convicções motociclistas e automobilísticas, irá desembocar no tráfego aéreo verticalizado: tudo num enorme esforço de “contemplar” a natureza, de capturá-la. Ah, o “estilo”!13 O fato é que Herberto acaba saltando da “bicicleta” para o “helicoptère ivre”, adotando-o para si: afinal, convenhamos, o real torna-se a cada dia mais arisco! De maneira que, no afã de atualizar Rimbaud (esse grande inventor da visão abissal), tornou-se urgente, para Herberto, substituir o tal “bâteau” por essa máquina tão poderosa quanto mais bêbada estiver! Notas 1

As trinta e quatro cartas de Vergílio a mim endereçadas foram depositadas nos reservados da Universidade de Évora. 2

MOURÃO, Luís. “Em Nome da Terra Ou O Não E O Sim”. Vergílio Ferreira: Excesso, Escassez, Resto. Braga: Angelus Novus Ltda, 2001, p. 15-22. 3 MENDES, Ana Paulo Coutinho. “Vergílio Ferreira e António Ramos Rosa: o encontro entre o romancista e o poeta”. Revista da Faculdade de Letras — Línguas e Literaturas, II Série, vol. XXII, Porto, 2005, p. 271-290. 4

Carta datada de 27/07/1975. O espólio das cinquenta e duas peças de Herberto Helder a mim endereçadas foi depositado nos reservados da Universidade da Madeira.

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Correspondência Jorge de Sena-Vergílio Ferreira. Org. e not. de Mécia de Sena, intr. Vergílio Ferreira. Lisboa: IN/CM, 1987, p. 86. 6

HELDER, Herberto. “Estilo”. Os Passos Em Volta. Lisboa: Assírio & Alvim, 1985, p. 7-12. 7

HELDER, Herberto. O Bebedor Nocturno. Lisboa: Portugália, março de 1968.

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HELDER, Herberto. “A bicicleta pela lua dentro – mãe, mãe”. A Máquina Lírica. Poesia Toda. Lisboa: assírio & alvim, 1990, p. 251–254. 9

HELDER, Herberto. “Bicicleta”. Quatro Canções Lacunares. Poesia Toda. Opus Cit, p. 143 –144. 10

MOURÃO, Luís. Vergílio Ferreira: excesso, escassez, resto. Opus Cit., p. 43.

11

FERREIRA, Vergílio. Para Sempre. Lisboa: DIFEL, 1983, p. 107-108.

12

FERREIRA, Vergílio. Nítido Nulo. Lisboa: Portugália, 1971, p. 71-72.

13

HELDER, Herberto. “(motocicletas da anunciação)” e “(a paisagem é um ponto de vista)”. Photomaton & Vox. Lisboa: Assírio & Alvim, 1979, respectivamente p.110-112 e 63-71. O segundo texto foi publicado antes com o título “Declaram que...” no Nova 1 (Magazine de Poesia e Desenho). Lisboa: Jornal do Fundão, inverno 1975-1976.

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ESTES POEMAS QUE CHEGAM

Caderno 2

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Valter Hugo Mãe Vila do Conde – Portugal Nasceu em Saurimo, Angola, no ano de 1971. Licenciou-se em Direito e é pós-graduado em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea. Publicou os romances o nosso reino, o remorso de Baltazar serapião (Prêmio José Saramago em 2007), o apocalipse dos trabalhadores, a máquina de fazer espanhóis (Prêmio Portugal Telecom 2012), O filho de mil homens e A desumanização. Os primeiros livros de poesia encontram-se reunidos no volume contabilidade; em 2018, novos poemas foram acrescentados na antologia publicação da mortalidade. É desse conjunto de inéditos, os poemas apresentados nesta edição.

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vou sempre trocart-te por uns versos poemas feios os meus poemas feios declarar a prece rezar pelos dedos é desconfiar de deus a humanidade acontece às crianças e aos velhos resto disso há um bicho com ocasional adorno sentimental

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deus é um sintoma matemática de infinitos vai aparecer nos bocadinhos de cada coisa nem que para morrer se houver morto ao seu cadáver infinito ao seu cadáver infinito versos prévios à virtude dos santos

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a enxada é minha asa de ferro o voo é sulco ferida de lavra gesto para o futuro à mesa a palavra é meu cordeiro cicatriz laboral

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poemas são transumâncias de deuses pastam nos versos a infinita criação

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segunda cidadania quando emigrarmos para o brasil coincidiremos como electrodomĂŠsticos que enfim reparam na vida a felicidade vai atingir-nos com violĂŞncia encantados a torrar amendoim quase exageradamente esqueceremos que nos disseram que os amores demasiados podem ser entraves embora usemos demasiada nostalgia no brasil nasce o animal da alma

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Mariana Basílio Bauru – São Paulo

Mariana Basílio é pedagoga, mestre em Educação e poeta. Atualmente cursa pós-graduação em Língua Portuguesa e Literatura. Autora de Nepente (Giostri Editora, 2015) e Sombras & Luzes (Editora Penalux, 2016), versa no presente Tríptico Vital (3º lugar ProAC 2016) e Megalômana. Tem poemas em revistas do Brasil e de Portugal, como Raimundo, Garupa, mallarmargens, O Garibaldi, Germina, InComunidade, Oceânica, Vida Secreta, alagunas, Plural, entre outras.

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Azukaru Ou da carta silenciada É que eu andava distraída entre fotos e cenas, aos milhares de ares e não te via. É que eu andava sem passos. Mas certa noite, húmus e laranjas eu vi, em verticais que podaram minha casa. Tu chegavas, Herberto. Tu chegavas e destruías alvoradas, construías solares por meus ombros cansados. E eles pesavam o peso do mundo. Eles pesavam a dor de eucaliptos partidos, mas, ao teu lado - como pluma é luz, como face em fogo é ramagem - eu rodava, rodava em liberdade. E cantava em úmido pensar em tuas águas-colibris. É que eu percorria os estopins da liturgia e pulava sacadas de amoras. Em vias canhotas, coroando as lápides e cobrindo-me de flores: por tuas palavras. E o infinito partiu de um bem-te-vi. Tu chegavas. (São Carlos, março de 2015)

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Sombras & Luzes IV Não vás para longe. Não chores por dentro. Trata do silêncio como se fosse fácil. Trata do vazio como se fosse óbvio. Trata do coração e não te vás. Que os ventos não viveram a ti. Os lugares não beberam teu sangue. A bala percorrendo os campos e as costas. A bala atravessando as vísceras e os risos. Eram como urubus em pele de gazelas. O invisível dos olhos esbugalhados. Ponderação. Diziam eles. Ponderação. Chorei por fora. Nua de alma, nua de lápide. Em aquarelas percorri os seios, deslizando sonhos. E os tintos tons de carvalho engoliram minha alma. Mesmo dando-me por inteiro. Mesmo tendo sido a crueza da verdade, eu, como filha da noite, negação dos frutos pisados, fui caduca poeta, fui ledo engano. Mas dizia meu peito: não é tarde. Lembra-te, não. Mesmo que digam que o nunca é tua vida, o brilho escuro da noite é a única sutileza acertada.

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VII O céu é um mar inesgotável que flutua no silêncio. Palavras-passageiras, húmus dos nossos feitos. VIVOS. Somos os vivos na atmosfera de reticências, que só a água liberta nos buracos do silêncio, porque só a ela é ofertada a propriedade que incendeia. A tudo e a todos, reticências! As perguntas-palavras, os astros rareiam. Árvores, como extraordinários seres a existir dentro de minhas veias. A tudo e a todos, reticências! Na vida seguimos. Nuvem, aquário, candeia. Estimável é não enxergarmos paredes. Porque tudo é puro e tudo é pasto, que se pisa e que se apossa em úmido rebento. E nos clareia.

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XVI Um retrato oblíquo. Anacrônico. Feito sonho & usura da realidade. SILÊNCIO (Ouve o silêncio.) “O ser se abisma em núcleo central.” Avoando pela descoberta. Como um arco de fiéis sentimentos, e labaredas encantadas a lançar ensejos. Na partida lua que divide-nos em brancos cortejos. O SER se abisma. Nos fios da memória. Quando se alimenta de cada alma, em híbridas esferas. Quando cita o dia como noite, e se levanta como vertigem. Nos cinco sentidos que enfrentam o tudo. LÍRICO. Morte em partida. O ser: abismo.

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XX Toda força do sentimento e da imaginação. Mortos, jornais, países, relógios e luas. Folhas de um instante. Forças a calçar sapatos. Povoando o movimento-imagem. Era uma vez, nós e todo o sentimento do mundo. Humanos em pensamentos & asas de pêssego. E Deus, que tudo assegurava, soprava atlas, binóculos e bússolas. Pensamentos surgiam do futuro. Ao pedalar, fundo e forte, cortando o vento colorido – ao ponto de se voar por todo céu. Na força de sentir o que salta da imaginação. Vivos para sermos lembrados in memoriam. A fazer-nos luz-total: para não escaparmos aos sagrados momentos, e não furtarmos os olhos fechados de um frágil bem-te-vi. Tão efêmera será a vida de duras penas? De tão lúcida no sonho, cantará o fundo da lua. De tão perene na alma, soprará o mistério. SOLENE.

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XXVII “A minha força é a desordem.” Herberto Helder Desordem. É a chama que te alarga os olhos, quando brilhas na escuridão e nos braços de um pensamento. Quando lês o impensado, a flamejar faíscas. Célebre, como a veia que se engrossa na garganta e nos fala: “Eu tenho direito ao grito!” É a chama que sustenta tuas raízes, na bruma do passado que renasce ao recordarmos as montanhas do mar. Se tu a compreendes. Se abençoas a vida em toda a sua crescente. E das águas, embriagadas, INCENDEIAS.

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XXIX Eu sei que toco o firmamento eu sei que toco os dedos da noite eu sei que toco o que te prende a um cometa desvairado quando toco o último fado a ser feito – como um animal que morre a cada novo grito do alvorecer. Renasço neste instante. Eu sei que é tarde quando se é cedo, beijando-te a carne mole, a carne que fede do ânus aos olhos de um avestruz por tua sombra, que se recobre do pó estelar de espadaúdos aguilhões. Abraço-te as ferrugens, grudo in natura e tua pele enrugada se estica durante a tarde, se estica e me come a consumir os miolos do pensamento que me enlaça – como uvas-passas estilhaçadas nas fronteiras da qualidade imoral (moralíssima) de fatos, dos frutos de bocas pardais. E eu sei que é cedo quando se é tarde, porque toco-te as beiradas da voz, e há um cuspe que te salta os olhos – medonhos de medo – e que me traduz <cética> quando sou a bendita santa que te alarga as frontes de pícaras que te permite um repouso rasteiro, 7faces • 153


que te ilumina com os olhos de raposa. Porque sei.

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XLVII Todo escritor é um país estrangeiro. Quando ultrapassa os limites do seu coração ao cutucar o fundo de um silêncio, que escapa aos próprios sentimentos. Um estrangeiro de flores rasgadas no fundo do peito. Nos pomares desérticos de antigos pensamentos. Mesmo sendo poeira. Mesmo tendo um ar pueril que dissecaria um oceano. Caminhando no céu que engole, na vida que esgana as contas de sangue, as gotas do tempo – que não perdoam o côncavo dos dedos. Estrangeiro. Ao sonhar alto demais num topo de voz que não se ouve e que NUNCA se imaginaria tão luzente. Em arqueiros de nuvens a dançar 7faces • 155


ruas e carmins em futuros passos. Aos berros dos pedregulhos, nos acalantos de casas que apertam nossas palavras contra o peito. A escalar o silêncio das águas. A ser navegante, a ser CORRENTEZA.

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Eduardo Quina Ilha da Madeira – Portugal

É poeta e professor de filosofia; dos livros publicados, destacam-se ausência (Eufeme, 2017), Corpo: labirintos (Licorne, 2016) e Sombra mortas entre os dedos (Apuro Edições, 2015). O conjunto de poemas apresentado nesta edição é o do inédito Metafísica quotidiana.

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1. a evidência queima-te a ponta dos dedos. enumeração dos factos gramaticais ou projecto definitivo para a construção da morte. a intransigência do tempo e todos os vestígios da vida são condições do medo ou esboço de uma biografia desnecessária.

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2. repetes o gesto e a boca suja dos pombos é limpa. levantas a saia e o resto do corpo num prazer doentio. sabes pouco do inábil ofício da poesia. fazes contas de gente pobre. estás só. tremendamente só. endoideces nos habituais gritos. submerges o rosto no lavatório mordes as mãos amarelecidas pelo tabaco e da angústia repisada dos filtros da memória. vives e espalhas loucura dentro do teu próprio manicómio.

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3. chegarás a casa, um dia, e não encontrarás a chave ou a porta ou a memória que sustentava a memória, a porta, a chave. sentar-te-ás e ficarás à espera preso do lado de fora do abandono.

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4. sob a chuva e a infância aprendes as primeiras coisas e a certeza da impossibilidade da metafísica.

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Gregório Camilo Curitiba – Paraná Poeta, músico e cineasta. Tem poemas publicados em antologias nacionais e internacionais. É autor de Criança é pai do homem (inédito).

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Homem planta O homem foi plantado lá Abandonado lá obrigado lá viver Um homem foi plantado lá O homem foi plantado lá Abandonado lá por nada lá morrer Dois homem foi plantado lá Três homem foi plantado lá Quatro homem cinco homem seis Sete homem foi plantado lá Oito nove dez onze homem lá Homem se planta lá e homem planta Nada de homem lá colher

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Praça Sinto há muito que não sinto Tanto faz tempo tanto Tempo tanto sente Sinto nada muito cada tanto Sinto muito sentir nada Lento tudo nada tanto Tudo Sentir Falta

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Portas de aço Socorro portas de aço Abram seus braços frios Quero sair Quero espaços Quero sair Abram seus braços portas de aço Socorro

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Lรก menor Aparece no socorro um grito aflito Aflito grito paralisado no embosco. Multimutilado Sorri um soco multiplicado Flutua gritante. O soco corre que sรณ ri. Aflito grito parece notas quando se expande Aflito grito sol mi Reflito mito reflexo fala Dรณ si

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Diego Ortega dos Santos Fortaleza – Ceará

Diego é cearense e formado em medicina. Costuma escrever prosa, tendo recebido o prêmio Moreira Campos por melhor conto em 2015. Coordena com Lucas Facó o blog Bicho das Horas.

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domingo É domingo as nuvens baixas dos fumantes fazem carneiros, letras, uma criança grita que quer fumar que quer fumar; é muito tarde para um passeio, resta vagar, os bueiros córregos tão prosaicos de barquinhos e bitucas, sossegados desaguam numa bonita praça de vidro é gente humilde, simples, anômala; repousam… o cascavel das folhas se dispersa pelo asfalto o arrepio de menos um dia mais um dia, tudo passa… a praça estica-se no fim da tarde, muda, quando: obnubilem os anos de mal-trato, de falta de caso! aí vem vindo uma caravana emplumada, rábica! chacoalham canos e címbalos, juntos cantoam: os vergalhões dobram por ti, somente por ti! por ti eles dobram, somente por ti! cantam tomados de pretérito mais-que-perfeito. mas, e menos um dia, mais um dia, onde passar a noite? latente, dói o tempo tripartido, o pedaço que foi escrito a promessa obliterada num salto ocultíssimo que ninguém viu. o latente, doído peito de vergalhões, nele repousa meu livro esquisito a mão craquelada desmanchou-se dele e sangrou nos córregos, sangrou azul e repleto de coágulos entre os barquinhos. Pois tome um cigarro, tome.

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cerca distância nossa cerca distância faz exaurir (não longe, espalmado-se) aqueles mirantes do meio-dia, outrora pontos de encontro agora campos daninhos labirintos sem Borges – e penso, aqui fincado: as certezas de infância, rememoro-as no anseio por soluções de cabeça, que ombros não vemos, não mais – (cerca-nos alta). pintada de só branco, ou só preto, toda meneios, cercamente não se importa – deixa pintarem, treparem, delimitar lavoura qualquer, tornar-se degrau, palanque, satisfazer desejos voyeur… importantemente, cerca – fosse oca de indiferença, não: cerceia nossas peles torna-se densa de suor. é certo que não trabalha: deixa trabalharem-na: o seu projeto todo acéfalo (todo ombros largos), cumpre-o cercando-nos, nós, parvos, nós, claustros, parecemos-lhe débeis indistinguindo o fora do dentro, tramando cercos de fazer o bem, vizinhos e hermeneutas. aproxima-se a lonjura em passos curtos vem dissimular proximidade, e a juventude fará o salto – 7faces • 172


e como é bela, e porém – em pleno ar será abatida de humores intratáveis… não irá longe… ao sopé desse que é o maior cerco, a vítima, encrustada de farpas, será lembrada em razão do quão fundo enterrada; eis o projeto: que corra suas ranhuras até o mar, de cima a baixo, isolada, essa tal cerca infâmia alastrando-se como fogo e no fim teremos nada. ou ignora tudo, e repara: (no fim não teremos nada) certas infâmias erguem-se, ainda semblantes da vida, ou coisas maiores ainda, que fazem - cerca de poucas ou pouquíssimas vezes – as vezes de minas, de brocas, de martelos, serrilhas, tratores, mecanismos aptos e bons em derrubar, derrubar, bem derrubar o pau-madeira nobre que muito alto cresce rente à exaustão das vidas possíveis. toda queda é merecida e pouca se a vertigem vem de baixo e a investida de cima. vê: há cercas sombras castadas sem limites, sim, mesmo em pleno meio-dia – mas uma só queda já basta e daí abaixo tudo entre nós

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camisa de dormir corpúsculo de pano com suas estampas florais e os antiquados botões de osso eu não passo de uma camisa de dormir enquanto teus rincões resvalo e roço em meio a carnes e remendos e a cobertas sem dentes avisto-me todo peça, eu em ti vestido sem mesura em corpo de mulher avessa, o qual me toma amassa rebola a vida: que forma tenho?, além de pijama aperta-me e me diz, diz quem eu sou, quem tu és?, sou o 100% algodão que esquenta por teu calor e respira por tuas costelas roupa sua, desnuda e oculta que dentro há uma mulher dormente e eu não passo de uma camisa de dormir sozinho e já folgado, talvez eu, o investido de ti

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passarinho certa feita na varanda de casa pousou um homem de fraque e cabeça de pássaro o que por si só já é um espanto, claro, mas ainda maior o espanto quando ele nada diz com seu bico de passarinho ele bem podia tirar-me a alegria da boa aparência, das orelhas, até mesmo das ventas. felizmente interessou mais a água com açúcar que era de hábito dos pardais não quis mais largar de mim por que, poesia, estreou por essas bandas assim? não queres carne (um alívio) nem te satisfaz a ração chamei meu tio, que é apenas enólogo, mas quem sabe; sendo que ele nada sabia, e sugeriu levá-lo ao parque onde não pude deixar de notar: que elegância, que firmeza. lustrados, os sapatos, e adequadamente verde a gravata. as vezes voava não raro chilreava sons assim, canalhas, meigos como sumo de frutas rosáceas, menos próximos do diálogo que duma frouxa musicalidade não tem garras, não tem asas; não passas de um periquito perfeitamente manicurado e versado em gostos finos – salvo o truco, que joga com meus pais, aos domingos – achava que passarinho vivia à distância, no alto resfolegava as penas e os ossos por piedade de todos nós, humanidade, permitindo-nos ver a mesma fragilidade de que somos feitos livre e alta, toda potência, voando e sendo assim, de mansinho. eu que fui seco de infância só então aprendi (naquele dia, naquela varanda, lendo Vinícius de Moraes) que se tocamos num passarinho vivo é porque ele está ferido, mortalmente.

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pessoa um homem deveio devagarinho plantou-se ao cascalho, possivelmente vestido, e deixou espraiar sem prumo coisa de anos a fio batia água na sua bunda – o que por si só não significa nada – mas faz pensar. bem sabido que um rio, vários até, não passam de água correndo ou de um enorme dia em nossas vidas ou de duas bandas de uma semente mas por hábito as pessoas insistem que dele se faz um colírio fortíssimo, ora embargando os sentidos ora embarcando as gentes. elas têm para si memórias claras memórias claras que escoam da foz para a nascente e o homem, sendo mortal, foi-se ficando mais e mais na bunda batendo água, assim, pertinente a ponto de não dizer nada de dizer apenas: rio!, e abrir-se numa enorme gargalhada. até que morreu em meio ao cascalho ficou-se sabido que o rio ficava apenas perto da aldeia que não constava em mapa algum, que não era violeta; nele passava água, por certo tinha volume e dimensão, que jamais ferveu, jamais santo foi visitá-lo, nem almirante ou nau de loucos ou poeta; se peixes tinha eram todos muito discretos se margens havia eram das mais idênticas em verdade percebeu-se um rio (anômico) 7faces • 176


sabendo-se dele: ficava perto da aldeia e junto dum homem muito lúcido à sua maneira límpido

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Gabriel Stroka Ceballos São Paulo

Nascido em 1989, o escritor tem participações em eventuais concursos, revistas literárias e antologias. Contribuiu também com contos, crônicas e microcontos para a página Uma Casca de Noz, do grupo Carta Capital. Atualmente trabalha em seu primeiro romance.

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Pássaro marrom Um pássaro marrom ensanguentado pedindo a lua em troca de perdão. Eu dou a mão, mas ele foge. E fugindo sangra mais até tornar-se uma ave rubi e então ter o que quis: peso nenhum.

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Genealogia Seus parentes de mãos dadas até o ano zero.

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José Pascoal Torres Vedras – Portugal É natural de Torres Vedras, Portugal. Escreve poesia desde 1972 e publicou Sob Este Título (Editorial Minerva, 2017) e Antídotos (Editorial Minerva, 2018).

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Léxico Em francês, mar é feminino. Em italiano, flor é masculino. Os ingleses serão naturalmente neutros. Só a saudade é portuguesa. As palavras de todas as línguas São animais domésticos: Cães e gatos que vivem por nós As nossas vidas, Enquanto saímos Pra trabalhar No mundo de aventuras Dos outros.

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Esperança de vida Tudo se mostra Muito contrário, Crepusculário, Alfandegário. Tudo se passa Rapidamente, Improcedente, Sobrevivente. Mas sei de fontes Frescas e puras, Livros à espera De uma leitora Bela como a aurora.

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Via crucis Este caminho não tem pedras Que entrem no sapato do caminhante. Este caminho não tem árvores Que lhe façam a vénia da sombra. O solo dos meus passos É sol ardente. Este caminho: coração parado No corpo seco do passado.

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Sonetilho das coisas sem sentido Digo coisas sem sentido Que só o cego desejo Percebe. E no rosto vejo Como me sinto perdido. Na mesa, um livro já lido Espera por novo ensejo. De olhos fechados, beijo Sombras dum lábio ferido. A dor é-me familiar Como um parente afastado. Tenho medo de lembrar O que não é recordado, Com vontade de apagar O presente transitado.

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Diogo Bogéa Niterói – Rio de Janeiro

É Professor de Filosofia na Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio).

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Eu me escondo da morte Eu me escondo da morte Nas esquinas do tédio Entre as páginas dos livros Numa xícara de café Eu me escondo da morte Nos frascos de remédio Nas disputas dos partidos Nos mistérios de uma fé Eu me escondo da morte Na fumaça do cigarro Na lágrima e no escarro No afago de um cafuné Eu me escondo da morte Nas velas da minha idade Nas teias da veleidade No eterno parangolé Eu me escondo da morte Como a criança que brinca De fazer sumir o mundo Tapando os olhos com as mãos.

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Procuro minha alma em cada escrito Procuro minha alma em cada escrito Mudo de estilo, forma, conteúdo Mudo de tom, vou do sussurro ao grito Mas lá por dentro continuo mudo Já não consigo pensar o que penso Já não consigo dizer o que quero Cada sentença é sempre um contrassenso Faltam-me as cores de um sentir sincero Sou tão vazio quanto um nada eterno Tão artificial quanto um boneco Tão morto quanto os campos são no inverno Tento falar, mas só retumba um eco Mas eu procuro minha alma em cada escrito Mudo de estilo, forma, conteúdo Mudo de tom, vou do sussurro ao grito Mas lá por dentro continuo mudo

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Jorge de Freitas Poços de Caldas – Minas Gerais

Nasceu em Poços de Caldas, Minas Gerais, em 1986. Publicou alguns poemas e artigos em periódicos. É mestre em Filosofia e atualmente doutorando em Estudos Literários. Publicou o livro de poemas Na rua com os elefantes (Multifoco).

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A carapaça lustrosa, talhada em forma de gente, sugere a aparência; refúgio Do verme que em cobertor de chumbo – se encolhe perante a figura pesada refletida no espelho Do banheiro, local ritualístico do tempo medido nas entrelinhas da má poesia. Diáspora e Dispersão. Andemos para longe daqui – propomos e façamos uma vez, uma só vez Ao lado da menina de dez em dez; Die Mutter Spricht incompreensivos desejos fios-de-navalha a rasgar a face neutra, minha Cara de bosta! Eis nosso calvário: do vivo à putrefata atração pelo cadáver em caveira e dali em diante, o pó que anima nossa alma e os cantos da gengiva ferida. A boca, o hálito amargo; nabos para cavalos, cevada para homens imprestáveis que uivam à luz da lua – um prato de cobre, uma libra de minha própria carne, um terço de meus pelos púbicos

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Oferendas em direção à tumba, sarcófago; pés descalços, senhoras e senhores, na descida da montanha, são Tantas e tantas, imensuráveis recordações! The Black Dog, ali, à frente, por trás da esquina a farejar, a balbuciar, a limpar o barro das presas turvas. Meio osso pela minha felicidade, meio dente de ouro, meio anel de noivado, meia peça de sabão?

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Vida e sonho De cócoras na varanda de meus trópicos, não tenho a polidez de um lorde inglês nem tomo chá com T.S. Eliot, sou antes, verso versado na terra preta e barro e pó e cruz fincada à força; tenho na memória frágeis modelos e transitórios manequins cor de Ipê solitário e me falta – entre uma cachaça e outra – a sobriedade pra dizer o que é vida e o que é sonho.

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Nudez Em madrugada de lençóis revirados onde – passo-a-passo – a capivara vem comer as violetas florescidas na areia, o sono me surge como o grande espectro de enigmas passageiros; – são estâncias de parada nas quais, sem língua nem toque, meus testículos empanados são servidos em bandejas de árabes iguarias à doce melodia da flauta e do violino.

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Camila Assad Quintanilha Presidente Prudente – São Paulo

Nasceu em 1988 em Presidente Prudente, São Paulo. Publicou o livro Cumulonimbus, uma compilação de 70 poemas escritos ao longo da última década, pela Quintal Edições, em 2017. Contribui com textos literários para um jornal local denominado Piopardo. O conjunto de poemas apresentados nesta edição intitula-se “Três poemas para um ano insólito”.

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I todo janeiro a chuva paulistana encharca os meus sapatos vermelhos. tô poluída de esperança, de afetos, de encantos e de descasos. você, cidade, é tão feia e por isso nós a louvamos. e você, cidade, é tão bela que nos enche de orgulho [mas só no vigésimo quinto dia do ano] a cidade fala o que a boca silencia nas suas paredes caetânicas: fora dilma fica dilma fora temer fora tudo o que me faz jus à coerência. cidade é a folha sulfite dos que não tem voz. grafite é luxo; eu pixo meu sofrimento no caos das almas imortais nas marginais nas feiras de orgânicos. nos vagões da Luz. eu apago o cigarro como você apaga os dias. nós estamos sozinhos na maior cidade do país mas sabemos que solidão não é incômodo, é abraço e por isso, cidade, eu a cinjo, com suas ruas tortas e prédios altos e filas pro cinema pro pão e pra labuta e com carinho e com hipocrisia e com a chuva, sempre a chuva a encharcar meus sapatos vermelhos todo mês de janeiro.

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II há o que fica em terra firme e nunca se move, não mexe e aceita sua condição estática e faminta, rogando misericórdia, como o solo nem sempre sagrado mas sempre estático e há as árvores que renunciam ao seu destino de serem sempre firmes e então crescem fazendo bagunça frutos e flores e se espreitam verde por todos os lados ainda mais na primavera quando são ainda mais árvores e ainda mais vida e há quem se sujeita a ser movimento e fluidez sempre como as nuvens no céu que passam cortadas pelas árvores longas da terceira estação. é tudo só uma questão de dinâmica ou de estática, bem mais simples que nas provas de física do colégio secundário: permanecer ou fluir é estado de espírito.

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III quando eu me sentar na velha cadeira na varanda no ano de 2053 eu me lembrarei saudosa de noites como hoje quando o menino é ainda só um menino a rodopiar pela sala sem perder o fôlego e sem saber que vai morrer e meu homem me fita com a boca ainda firme e os olhos ainda com brilho de quem sabe assim como eu que a estrada é louca é louca mas é linda e que os prados estão mais verdes do que nunca mesmo nesse inverno curitibano e que a música nunca mais nos fará pular com energia quase quântica tamanho seu mistério sonoro e então em 2053 teremos tanto tempo que sentiremos medo da liberdade [que é agora nossa maior pesquisa] e a fragilidade dos ossos e da vida vai me fazer escorrer duas lágrimas pelos olhos; uma pela catarata e outra por pura nostalgia deste dia de hoje, gelado como julho deve ser, com a conta bancária tão minguada, correria e confusão de quem ainda tem fé e colágeno e estaremos unidos em pensamentos e fotografias pixeladas: essa noite fria e o dia de tédio na varanda que virá e então direi: chore, chore mesmo porque tudo é/foi muito bom.

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Lugar Último de Herberto Helder por Claudio Willer

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O que vem a seguir é um trecho que faz parte de um ensaio mais extenso, quase um livro, sobre misticismo e poesia, dando destaque aos oximoros e antinomias como expressões de um “entendimento não-discursivo” (a expressão é de Bentley Layton) em textos sagrados antigos e na obra de poetas modernos. • Se examinada sob o prisma formal, a obra do contemporâneo português Herberto Helder talvez seja, toda ela, o mais denso, complexo e intrincado conjunto de antinomias e figuras relacionadas: quiasmas, paradoxos, imagens logicamente impossíveis. Interessa examinar algo de sua poesia, não só por sua riqueza e demais qualidades, mas pelo que traz ao tema em exame, qual seja, a relação entre misticismo e poesia; pelo modo como tópicas ou temas do misticismo são expressos. Basta tomar um de seus poemas, “Lugar último”, final de uma série intitulada “Lugar”, aberto deste modo: Escrevo sobre um tema alucinante e antigo. Esquecimento que me lembrasse agora para sempre como uma roseira. [...] Um paradoxo, oximoro ou antinomia; “Esquecimento / que me lembrasse”. E um sintagma alógico, “agora para sempre”: uma redundância proposital, pois se é “para sempre”, também é “agora”. Mas o que é um “esquecimento” que lembra? Evidentemente, a evocação de uma memória mais profunda, e intemporal; a lembrança de uma origem, ou daquilo que transcorreu, foi ou existiu fora do tempo. Certamente, anamnese, no sentido dado ao termo por Platão e na filosófica platônica. Há logo a seguir, nesse poema, uma locução vazia: “Uma mulher passou quando eu dormia ou acordava”. É uma agressão àquelas regras do bem escrever que exigem precisão no texto. Afinal, se uma mulher passou, isso só poderia ocorrer em duas circunstâncias: 7faces • 206


quando o personagem que se expressa estivesse adormecido ou desperto. Não há terceira opção. Certamente, o principal especialista nesse tipo de procedimento, a criação de enunciados vazios, aparentemente com sentido ou significativas, mas que não “dizem” nada, é Lautréamont. Também pertence à mesma família, das coisas que supostamente não deveriam ser feitas quando se escreve, a redundância extrema que consiste na repetição pura e simples de palavra: e agora o meu amor é puro puro louco louco. E o que dorme dorme do que é forte. Evidentemente, é a transposição de um recurso puramente oral, ou possível na língua falada, no modo coloquial, para a escrita. Adiante, um caso ainda mais extremo de tautologia: [...] e Deus fale de em mim no puro alto da carne. E uma onda e outra onda e outra e outra e outra onda e onda batem em sua belíssima deserta altíssima voz. Um exemplo de que a redundância pode ter valor literário; de que é possível o poema localizado em uma fronteira entre o tatibitate, pura repetição do mesmo, e a frase articulada. Repetir “a onda / a onda / a onda” é imitação, fazer que o enunciado tenha propriedades da coisa enunciada; no caso, do suceder-se regular, repetitivo, de ondas. Em “e Deus / fale de em mim”, há uma idéia de síntese: Deus expressase através do poema, ou do poeta, ao mesmo tempo em que o poeta é objeto da fala de Deus. Fusão, portanto, do sujeito e do objeto. Metáfora dessa fusão, o andrógino: “Um dia / transformei-me na mulher que amava.” Dentre as tautologias e redundâncias, mais esta: “E penso: houve uma quinta, quarta, uma / terça, uma segunda-feira, uma sexta-/-feira.” – 7faces • 207


ou seja, “houve” todos os dias “úteis” da semana. Dias comuns, talvez em contraste com aqueles especiais, individualizados: Sábado era um dia de ardente vileza. Um domingo de amor ou de exemplo. Novamente, um enunciado vazio, alógico, posto que “amor” e “exemplo” não são alternativas, termos excludentes. Sucedem-se no poema as antinomias e oximoros, os pares ou seqüência de termos opostos ou antagônicos: “A noite é não ter amor senão / em luzes.” E “Uma mulher retumbante com todo o silêncio. / Dormia contra mim.” E, no final do poema: E não sabemos escutar o barulho, nem vemos os roseirais dominados pelo silêncio, oh nem deliramos nos enormes inóspitos campos de Deus. Repare-se na seqüência de “barulho” e “silêncio” (dos roseirais), e da alógica sugestão de ver silêncio (dos roseirais). Há, antes, outro quiasma exemplar: [...] Eu ladrava de cima. Eu era a baixa lua lua onde os pântanos caíam em êxtase. [...] São várias modalidades de inversão, troca da parte e do todo, ou da coisa e do atributo: “Passou uma delicadeza, uma mulher / que ficou.” (e não uma mulher, cuja delicadeza ficou) E uma espécie de inversão direta, frontal: “A pedra sente a boca, a solidão sente / o homem.” Mas a troca completa de lugar de sujeito e objeto – portanto, da esfera subjetiva e objetiva – está neste verso: Eu era uma mesa com tantos anos sentados para comer-me em estado de pêra inclinada.

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Quem devia, pela lógica e pela gramática, estar sentado à mesa e comer, inclinado, uma pêra, é aquele que se manifesta através do poema. O “Lugar último” do título é, portanto, um território onde a posição ou “lugar” de tudo foi trocado, em um cuidadoso ataque à mimese e aos indicadores da verossimilhança. Lugar último ou primeiro? Lugar originário e absoluto, que está além do princípio da identidade e não contradição. Notas 1

Todas as citações em HELDER, Herberto. Poesia toda. Lisboa: Assírio & Alvim, 1990, p. 140. e segs.

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DA MORADA ÁSPERA DE HERBERTO HELDER: RESIDIR E RESISTIR CONTRA AUSCHWITZ por Tatiana Picosque

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1 Nascido em 1930, na ilha da Madeira, Herberto Helder afirmou-se como um dos poetas mais notáveis da poesia portuguesa da segunda metade do século XX. Desde a sua estreia como escritor no final da década de 50, a sua obra não cessou de avolumar-se, transmutandose sempre e cuidando, portanto, de revelar aos leitores novas alquimias da linguagem. É sabido que Herberto Helder manteve-se retirado da cena pública e que evitava entrevistas, aparições ou premiações decorrentes da divulgação de sua obra. Para nossa surpresa, algumas fotos do poeta já octogenário vieram a público um pouco antes de sua morte em março de 2015 (ver página 237). O poeta sempre teve o gesto de reconfigurar a sua obra, apresentando de tempos em tempos ao leitor uma antologia poética de sua carreira que, por sua vez, traz modificações, supressões e acréscimos a cada nova edição. Sendo assim, tivemos uma primeira antologia dividida em dois volumes chamados Poesia toda (1973), os quais foram agrupados em um só volume no ano de 1981. Em 2004, veio a lume outra reunião intitulada Ou o poema contínuo (2004). Já em 2009, publica Ofício cantante – poesia completa. Por fim, em 2014, tem-se a derradeira reunião em Poemas completos, na qual foram incluídos dois de seus últimos livros, a saber, Servidões e A morte sem mestre. Cada nova reunião de poemas deliberadamente desestabiliza a sua própria obra, transmuta-a, põe-na em xeque, e isso condiz com um princípio que lhe é muito caro e mencionado em Photomaton & Vox: “A transmutação é o fundamento geral e universal do mundo. Alcança as coisas, os animais e o homem com o seu corpo e a sua linguagem. Trabalhar na transmutação, na transformação, na metamorfose, é obra própria nossa” (HELDER, 1995, p. 152). A obra herbertiana impõe-nos questionamentos, não lhe interessando a transmissão de “conhecimento” – pensado aqui de modo estanque e definitivo – ou do que seja a “realidade”. Ademais, outro excerto do autor repudia qualquer pretensão de descrição da realidade: “Não me venham com essa indecência da habitação, a velha história 7faces • 212


pornográfica dos planos de realidade (...). Olha, olha: eles sabem que é a realidade! Pergunto onde aprenderam, que eles são dos que aprendem” (HELDER, 1995, p. 121). Em suma, apresenta-nos a sua crítica contundente aos que pensam apreender o real. Pelo contrário, a preocupação primordial de sua obra certamente é a de propiciar a transmutação incessante do próprio autor, do leitor, da obra e por que não a do mundo em geral. É a proposta de uma concepção errante de conhecimento. E para aqueles que eventualmente não se contentem com tal tarefa, o poeta alerta: “É alguma coisa, caramba!” (HELDER, 1995, p. 125). Por que a transmutação se apresenta como fundamento da obra de Herberto Helder? Em razão de o mundo também obedecer a este mesmo fundamento, quer dizer, o de não estar sujeito a uma descrição, o de ser fugidio e de se configurar como uma espécie de enigma: “O mundo repõe-se na qualidade de enigma jamais decifrado (...). A escrita é a aventura de conduzir a realidade até ao enigma, e propor-lhe decifrações problemáticas (enigmáticas)” (HELDER, 1995, p. 145). Assim, o poeta deve conduzir a realidade até ao enigma; desta forma, problematizando-a, questionando-a. E os poemas são isso: máquinas de interrogar. Por este motivo, os poemas herbertianos são obscuros, justamente pelo fato de proporem “decifrações enigmáticas” acerca do que chamamos “realidade”. Como o poema poderia transmutar o autor ou o leitor se a sua estratégia fosse a de simplesmente corroborar o conhecimento já assentado? Por isso, os poemas do nosso autor não facilitam ao leitor, dado que a experiência com o desconhecido é o que pode realmente nos iniciar no enigma. Trilhemos agora noutra direção: a metapoesia impõe-se insistentemente na obra de Herberto Helder, tanto que encontramos num dado excerto: “A respeito da poesia pode ainda dizer-se: - A lâmpada faz com que se veja a própria lâmpada. E também à volta” (HELDER, 1995, p. 143). Ou seja, o leitor tem de ter em mente que a constante temática da obra herbertiana é a reflexão sobre a poesia. Sendo assim, sugerimos a leitura metapoética dos poemas de Herberto junto a qualquer outra forma de abordagem, estratégia que, por sinal, ilumina um pouco a já conhecida e necessária obscuridade que atravessa seus poemas. 7faces • 213


Num primeiro momento, os excessos de obscuridade ou de preocupação com a metapoesia podem sugerir uma obra demasiadamente descomprometida com os problemas que circundam o denominado “real imediato”, uma vez que as questões ditas urgentes pouco são explicitadas no interior da obra do autor. No entanto, do excerto há pouco transcrito, verifica-se que a “lâmpada” (ou a poesia) também serve para ver “à volta”, isto é, outras temáticas para além da própria arte poética. Por isso, nada mais enganoso do que concluir que a poesia de Herberto Helder não se encontra nada comprometida com as problemáticas que irrompem do “real imediato”. Sua estratégia de abordagem na verdade é outra: questioná-lo obliquamente, de soslaio. Os seus poemas comumente não lançam referências explícitas às questões histórico-políticas. Em contrapartida, verificamos que os textos que compõem o livro A faca não corta o fogo (2009) são mais atravessados pela história dos homens e, principalmente, pelo cotidiano. É o caso de limoeiros, riachos, faúlhas, montes levantados ao de cima da cabeça, poema relevante que estabelece um diálogo profícuo entre poesia, história e política, sem evidentemente abandonar as estratégias da metapoesia e do enigma. Este poema propõe refletir sobre as consequências advindas de um fato histórico-político traumático do século XX: a experiência de Auschwitz. Analisaremo-no e comentaremos como a poesia herbertiana se posiciona diante do célebre enunciado adorniano: “escrever um poema depois de Auschwitz é um ato bárbaro” (ADORNO, 2002, p. 61). 2 Transcrevamos então o longo e substancioso poema de Herberto Helder e analisemos as suas considerações sobre o impacto de Auschwitz para a escrita da poesia em geral: limoeiros, riachos, faúlhas, montes levantados ao de cima da cabeça, alguém amado com uma estrela esmagada contra o rosto como para indiciá-lo, frio aroma respirado muito, inesperados membros que a luz trabalha, ou é a luz que é inesperada com os membros dentro dela: dança, 7faces • 214


o medo, quer dizer: o paraíso, o inferno, no uso expansivo das palavras, por exemplo: poemas ¿como foi possível escrevê-los antes ou depois de Auschwitz? no corpo até se fazer osso, até que fosse apenas uma ferida, Auschwitz é sempre contra os mesmos, e sempre se escreveu na língua do inimigo, e escreve-se nessa língua porque é preciso que o inimigo não compreenda nunca, ou é preciso resgatar a língua do seu crime imprevisível ¿mas quem ronda lá fora as minhas ásperas moradas, e rosna resvés ao rosto, quem, e em que língua se estrangula, que fomes o devoram, que nomes loucos o destroem? e é nesse instante mesmo que o poema retoma a sua fala bárbara, e aí, nas líricas ignições, encontra o assassino, Auschwitz é o dia imparcial, às vezes leve com água raspando ao lado ou os lábios sobre as pálpebras, ou quando vem nos jornais: política, arte & letras, coacções, corrupções, e a violência do dinheiro estúpido ¿como é que um dia, nos montes, os dedos numa estrela fundida na cara, à sombra das frutas, se puderam escrever, ou não puderam, fanopeia, melopeia, logopeia, as coisas cruas? Auschwitz é sempre, immer, escreve-se ou por fora ou por dentro, ou por baixo ou por cima, ou cara a cara, que é o melhor de tudo ¿e é cada vez mais perigoso, ou é o mesmo, ou é menos perigoso? dados os termos dos tempos: à quoi bon aujourd’hui la poésie? ou então: la poésie comme l’amour ¿antes ou depois: de quem, de quê, de como ou quando? immer, always, Auschwitz, sempre, toujours, em todas as línguas ricas (HELDER, 2009, p. 589-590) Como propusemos anteriormente, o poema herbertiano será analisado segundo a perspectiva de uma leitura metapoética, para que então possamos ver “à volta” com a “lâmpada”. Deste modo, 7faces • 215


pensamos chegar ao nosso objetivo: traçar o diálogo entre poesia, história e política. O poema inicia-se com uma enumeração: “limoeiros”, “riachos”, “faúlhas” e “montes”. Tal procedimento faz-nos recordar o recurso da enumeração caótica, propagado por Leo Spitzer, pois não vislumbramos de imediato o nexo semântico existente entre estes termos e a sua relação com o trecho que se segue “levantados ao de cima da cabeça”. Seguindo a perspectiva metapoética, conseguimos encontrar uma sugestão de leitura quanto a esses termos. Os “limoeiros” são metáforas para a(s) arte(s) poética(s), cujos frutos, os limões, podem ser equiparados aos poemas. Aliás, o fruto como analogia para o poema é recorrente na obra herbertiana. Seguidamente, deparamonos com os “riachos” que, enquanto pequenos rios, sugerem-nos os próprios versos do poema. Já as “faúlhas”, remetem-se ao elemento ígneo, dado que são centelhas ou fagulhas de algo em brasa, aludindo, portanto, ao elemento fogo. Nesse sentido, as faúlhas indicam o fogo que transmuta, o processo criativo do poema que converte a linguagem bruta do cotidiano em linguagem poética. As faúlhas são as faíscas que anunciam esse processo de combustão da linguagem, a “queima” da linguagem em direção ao poético. Continuando a análise do verso, encontramos o termo “montes” que também pode se remeter ao processo criativo. Podemos supor que a paisagem montanhosa já esteja se despontando, que o(s) poema(s) já se anuncia(m). Como “montes levantados”, eles já configuram a sua imponente fisionomia. Surgem “ao de cima da cabeça” daquele que o(s) compõe, o poeta. No verso “alguém amado com uma estrela esmagada contra o rosto como para indiciá-lo”, o estranhamento decorre sobretudo do surgimento da imagem da “estrela esmagada”. Do que ela se trata? A imagem da “estrela” também é corriqueira na obra herbertiana, já que concentra em si muito da “energia” do cosmos. Mencionemos um excerto de Photomaton & Vox que comenta sobre a questão da energia: O carácter de continuidade energética, vital.

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Não há espaço interno e externo, mas a forma total criada por uma energia rítmica sem quebra. (...) Verifica-se a negação destes dois tipos de realidade pela adopção do princípio de continuidade energética, que permite uma continuidade de vida.). (A coerência dos meus poemas é a coerência da energia.) (HELDER, 1995, p. 142-143) O liame entre poesia e energia é frequente nos poemas do autor e a imagem da “estrela” reforça este “caráter de continuidade energética” entre as coisas. A “estrela” é, por excelência, uma fonte de energia gigantesca que se propaga por meio da irradiação de calor e luz. Não entraremos nos pormenores sobre o excerto, dado que o que nos interessa no momento é alertar para a existência deste liame entre poesia e energia na poesia de Herberto Helder. Portanto, a “estrela esmagada contra o rosto” pode bem indicar a “energia rítmica sem quebra” que se comunica ao corpo do poeta, incitando-o a compor o poema, seguindo para tanto a “coerência da energia”. Os termos “alguém amado” e “rosto” sugerem o poeta. Este provavelmente se encontra in medias res no que diz respeito ao processo criativo já anunciado no primeiro verso, porque os “montes” já estão “levantados”. A “estrela” aparece “esmagada contra o rosto”, mas por que “esmagada”? Tal imagem impregnada de violência aponta para o encontro impactante entre o corpo do poeta e a “massa sensível” caótica que lhe impõe a criação poética. Novamente recorrendo a Photomaton & Vox, selecionamos um enunciado a respeito deste encontro do qual resultam os poemas: A poesia procura sempre exercer-se sobre essa massa central e sensível. Mas a experiência é somente um ponto de partida, núcleo sólido e contínuo onde assenta a experiência posterior da criação. A criação é assim o encaminhamento, até consequências simbólicas extremas, de uma experiência em si própria não organizada (...). É preciso constituir um corpo orgânico em que experiência, disciplinada, se baste, e nela se harmonizem o sujeito e a sua experiência: um cosmos explícito, “objectual” (HELDER, 1995, p. 144-145).

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No encalço do poema, surge o sintagma “como para indiciá-lo”. O termo “indiciá-lo” é de suma importância, pois estabelece outro aspecto caro à poética herbertiana: o liame entre poesia e crime. O poeta traz no seu rosto a estrela que o indicia, que o torna suspeito de um crime. Deste modo, a “estrela esmagada contra o rosto” revela a prática de um crime pelo poeta. O poeta seria um criminoso, um assassino, na medida em que ele converte a linguagem do nosso cotidiano em linguagem poética, ou seja, ele a destrói para que irrompa o poético. Sendo assim, o poeta “mata” a linguagem bruta do cotidiano para que ela se transforme em poemas. O poeta violenta, aniquila o uso demasiadamente automatizado da língua para que as palavras cedam lugar a novas e enigmáticas experiências com a linguagem. Deixemos claro que a poética de Herberto Helder não segue a lógica do senso comum; sendo assim, o poeta pode ser reputado simultaneamente criminoso e “amado”, ou melhor, o algoz e o amante da linguagem poética, porque no terreno da poesia os contrários convivem lado a lado. No verso sinestésico “frio aroma respirado muito”, o termo “frio” sugere a severidade, o rigor do trabalho com a poesia. Por seu turno, o “aroma” concerne a um cheiro agradável, ao odor que emana de substâncias vegetais ou animais. O “frio aroma” é “respirado muito” pelo poeta, sinalizando que o poema é trabalhado, intensamente lapidado; ademais, o processo fisiológico da respiração associa a experiência poética a uma experiência vital – enfim, o poema se equipara a um ato vital do corpo e para o corpo. Quanto aos versos “inesperados membros que a luz trabalha,/ ou é a luz que é inesperada com os membros dentro dela: dança”, encontramos o entrecruzamento entre sujeito e objeto, o que põe em xeque essa dicotomia. O autor (ou sujeito) teria controle absoluto sobre a criação poética? E a obra consistiria em mero objeto? No que tange ao processo criativo, a dicotomia sujeito/objeto torna-se tênue, fluida. Nele, autor e obra possuem papéis ativo e passivo, alternam-se nas categorias de sujeito e objeto. Por isso, o poeta lança ao leitor a dúvida: “inesperados membros que a luz trabalha” ou “a luz é que é inesperada”? A “luz”, ressaltemos, é recorrente no léxico herbertiano 7faces • 218


e aparece relacionada ao surgimento do poema. Tal luz “trabalha” e, por vezes, surge “inesperada”, isto é, o poema surge tanto graças ao espontâneo (ou intuitivo) que recai sobre o processo poético quanto ao trabalho efetuado durante ele. Metonimicamente, os “membros” remetem novamente ao aspecto laboral do poema, tendo em vista que nos recordam do trabalho manual que habitualmente envolve a escrita do poema. Depois de “ou a é a luz que é inesperada com os membros dentro”, deparamo-nos com a palavra “dança” que nos guia ao êxtase do corpo decorrente do processo criativo. Isso, por sinal, constitui um lugarcomum na obra de Herberto Helder: o corpo do poeta extático em razão da criação poética. Palavras como “alegria”, “júbilo”, “arrebatamento”, “dança” e “maravilha” abundam no léxico herbertiano, elevando o canto poético, sacralizando-o. Entretanto, esse louvor ao canto poético não deixa de ser acompanhado da união dos contrários, da consciência do poeta sobre o reverso. Sendo assim, se o processo criativo possui a festividade sugerida pela “dança”, deparamo-nos, no verso seguinte, com a sua face sombria: “o medo” – note-se que o verso isola a palavra “medo”, destacando-o. Não há apenas a “dança”, dela se segue o medo, um afeto que surge por conta de um suposto mal iminente. Surge-se o medo, por exemplo, do trabalho inesgotável com a poesia, o que pode desembocar na mais completa agonia do poeta: “Para quem se não satisfaça no ludismo nem esgote o empenho do verbo nas gramáticas, e nenhuma alta poesia nelas se esgota, o lugar de passagem e o lugar hipotético de chegada serão sempre dramáticos. Toda poesia é insolúvel.” (HELDER, 2003, p. 13) Criar poemas é lidar com a precariedade, com a instabilidade das coisas. É perigoso este trabalho de Sísifo. A alegria da dança orgástica tem o seu pico, mas não dura no tempo. Depois do êxtase, a questão é: o que ocupa o seu lugar? O vazio? O sentimento de inutilidade advindo de uma tarefa sem fim? O infernal recomeço? Os versos seguintes talvez ajudem a corroborar a nossa hipótese: “quer dizer, o paraíso, o inferno, / no uso expansivo das palavras, por exemplo: poemas”. Constatamos que o trabalho com a poesia converte a “dança” no “medo”, o “paraíso” no “inferno”, porque o processo criativo revela tanto a potência quanto a impotência do 7faces • 219


poeta, extasiando-o e frustrando-o sucessivamente. Torna-se evidente a questão da metapoesia quando encontramos o verso “no uso expansivo das palavras, por exemplo: poemas”. Usar a palavra expansivamente – transformando-a em sua dimensão poética – torna o trabalho do escritor um genuíno paraíso-inferno. O verso subsequente inicia o nosso anunciado cotejo entre poesia, história e política: “¿como foi possível escrevê-los antes ou depois de Auschwitz?” O poeta se indaga: como os poemas puderam ser escritos antes ou depois da experiência de Auschwitz? Nome que nos conduz ao grupo mais abominável de campos de concentração que pôde existir durante a Segunda Guerra Mundial, Auschwitz foi posto em funcionamento a partir de 1940, situando-se no sul da Polônia. Como já é de conhecimento, o nazismo utilizou pessoas como cobaias para experimentos científicos bem como câmaras de gás e injeções letais para descartá-las em massa. Disparou fuzis contra bebês de colo, matava covardemente os que ficavam doentes em virtude das péssimas condições de higiene, de trabalhos forçados e de alimentação. Corpos reduzidos a só pele e osso – eis talvez a imagem mais emblemática do Holocausto –, enfim, a palavra “Auschwitz” torna-se sinônima da barbárie do século XX. O verso a respeito de Auschwitz transcrito do poema se dirige ao filósofo Theodor Adorno (1903-1969), o qual aborda sobre a questão da escrita do poema após o Holocausto: A crítica cultural encontra-se diante do último estágio da dialética entre a cultura e a barbárie: escrever um poema depois de Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas. Enquanto o espírito crítico permanecer em si mesmo, em contemplação auto-suficiente [autossuficiente], ele não será capaz de enfrentar a reificação absoluta que pressupõe o progresso do espírito como um de seus elementos, e que hoje se prepara para absorvê-lo inteiramente (ADORNO, 2002, p. 61). A experiência do trauma coletivo ocasionada em razão de Auschwitz faz com que as preocupações de Adorno girem em torno da barbárie. E a polêmica asserção que se destaca do excerto acima é justamente aquela em que o filósofo afirma: “escrever um poema depois de 7faces • 220


Auschwitz é um ato bárbaro”. Trata-se do problema de como elaborar teoria e escrever poesia lírica no século das catástrofes. Numa leitura primeira mais ingênua, poderíamos chegar a concluir que o enunciado adorniano interdita, proíbe a poesia e a arte em geral, pois estas se constituiriam em verdadeiras ofensas diante das atrocidades cometidas nos campos de concentração. Por exemplo, como o poeta poderia escrever sobre “o amor” após o horror vivenciado em Auschwitz? Não se trataria de insensibilidade, de cinismo diante da barbárie? Em Adorno, no entanto, história, política e poesia andam juntas. Segundo o filósofo, a arte tem o papel de resistir contra a barbárie e a desumanização gerada pela fria racionalidade oriunda do sistema capitalista, contribuindo para que o terror sem limites não volte a se repetir. Porém, o risco de a obra desembocar na banalização da barbárie também é alto, já que o que se chama de arte pode acabar estilizando o horror, abrandando o seu impacto, suscitando o conformismo e não a crítica. Com isso, a grande questão é: como fazer jus em arte ao terror incalculável que assolou a história dos homens? Adorno deseja que a poesia alimente o espírito crítico e que não se torne mais um fator de alienação dos indivíduos. Que ela seja efetivamente uma obra antibarbárie, que Auschwitz não seja uma experiência indiferente. Em Lírica e sociedade, o filósofo alemão se coloca contra o processo de reificação que resultou nos campos de concentração: A idiossincrasia do espírito lírico contra a prepotência das coisas é uma forma de reação à coisificação do mundo, à dominação de mercadorias sobre homens que se difundiu desde o começo da idade moderna e que desde a revolução industrial se desdobrou em poder dominante da vida. (ADORNO, 1983, p. 194) No verso do poema, é patente que algo diverge do juízo adorniano. Se o filósofo mencionou sobre os poemas supostamente escritos depois de Auschwitz, temos que o texto de Herberto Helder estende temporalmente esta questão sobre a escrita dos poemas para o antes e o depois de Auschwitz. Conforme o poema em análise, a poesia sempre precisou resistir contra os horrores instaurados pela história da humanidade, quer dizer, a história é sempre conflituosa e trágica e a arte poética sempre deveu de alguma maneira acompanhá-la. Deste 7faces • 221


modo, poesia e história possuem uma relação desde sempre conflituosa. Um comentário crucial de Octavio Paz a respeito deste diálogo antagônico entre poesia e história serve para vislumbrarmos o posicionamento de nosso poeta: O poema é uma máquina que produz anti-história, ainda que o poeta não tenha esta intenção. A operação poética consiste em uma inversão ou conversão do fluir temporal; o poema não detém o tempo: o contradiz e o transfigura (...). A contradição entre história e poesia pertence a todas as sociedades, porém somente na idade moderna manifesta-se de modo explícito. O sentimento e a consciência da discórdia entre sociedade e poesia converteram-se, a partir do romantismo, no tema central, muitas vezes secreto, de nossa poesia (PAZ, 1984, p. 11). O poema de Herberto Helder deixa registrada a contradição entre poesia e história. O seu texto não pretende desdenhar o impacto do evento de Auschwitz, mas ressaltar que as diversas formas de opressão advindas das circunstâncias históricas sempre constituíram um motor a contrapelo para a arte. Os versos seguintes jogam simultaneamente com poético e o histórico: “no corpo até se fazer osso, / até que fosse apenas uma ferida”. Como foi possível escrever poemas antes ou depois de Auschwitz no corpo até se fazer osso? Isso se remete ao árduo trabalho que envolve o processo criativo, sendo este um ato corporal. O poema se constrói no corpo do escritor até que ele se torne “osso”. O termo “osso” sugere-nos o esqueleto, ou melhor, os ossos que naturalmente conferem a sustentação a um corpo. Nesse sentido, o poema surge quando adquire o seu esqueleto, o seu “osso”, a sua sustentação. Mas existe também um sentido histórico para o termo “osso”, lembremonos dos campos de concentração que, por sua vez, reduziram milhares de seres humanos a pele e osso, tamanha a desumanização de que foram vítimas: o corpo que perde a carne (massa corporal), destacando-lhe os ossos. Ademais, a concepção de poema como uma “ferida” também é comum na poética herbertiana. É preciso “ferir” a linguagem do cotidiano para que ela se converta na poética. Já sob a perspectiva da História, sabemos que os responsáveis pelos campos de concentração não hesitavam em torturar os seus prisioneiros, transformando seus 7faces • 222


corpos em “coisas descartáveis” e, portanto, feridos em sua dignidade humana, em nome do simples prazer de impingir o mal aos outros. Na sequência, tem-se o verso “Auschwitz é sempre contra os mesmos”. O posicionamento do sujeito poético é o de que as circunstâncias históricas catastróficas (“Auschwitz”) sempre estiveram contra os que se dedicaram ao trabalho artístico (“contra os mesmos”). Reforça-se aqui novamente o antagonismo entre poesia e história. Com isso, os versos subsequentes tornam-se mais esclarecedores: “e sempre se escreveu na língua do inimigo, / e escreve-se nessa língua porque é preciso que o inimigo não compreenda nunca, / ou é preciso resgatar a língua do seu crime imprevisível”. O poeta escreve “na língua do inimigo”, porque a linguagem comunicativa do cotidiano fornece o material a ser transfigurado pela linguagem poética. E quem é o “inimigo”? A barbárie em geral resultante do sistema capitalista em que estamos inseridos. Mais adiante, o poema enuncia que “escreve-se nesta língua”, isto é, “na língua do inimigo”, mas “é preciso que o inimigo não compreenda nunca”. Surge uma estranheza: a língua é a do inimigo, escreve-se em sua língua, porém a finalidade é a de que ele não a compreenda. Como pode isso, o fato de o inimigo não compreender a sua própria língua? Seguindo o ritmo próprio à obra herbertiana, depreende-se que o poeta deve tornar a linguagem uma experiência obscura ao inimigo, a saber, a poética. É preciso resistir contra a barbárie disseminada no dia a dia e para isso o poeta deve transfigurar a linguagem de modo que ela não se torne a mera reprodução do senso comum e das ideologias da sociedade de consumo. Procedendo assim, o escritor chegará ao poema “antibárbaro”, aquele que se contrapõe às mazelas do real. É preciso que a linguagem seja poética, é preciso “resgatar a língua do seu crime imprevisível”. Já comentamos a relação entre poesia e crime, sendo assim, o verso em questão indica a necessidade de a língua recuperar sua capacidade subversiva, seu potencial “criminoso”: o de transmutar as coisas. Continuando a leitura do poema, deparamo-nos com o seguinte bloco de versos delimitado pela pontuação característica no espanhol: “¿mas quem ronda lá fora as minhas ásperas moradas, / e rosna resvés ao rosto, quem, e em / que língua se estrangula, / que fomes o 7faces • 223


devoram, / que nomes loucos o destroem?” O poema traz para a cena a voz da própria poesia, conferindo-lhe uma personificação. Eis a metapoesia convertida numa fala teatral desempenhada pela poesia. Se o processo criativo implica crime ou violência, a poesia em sua fala nos alerta sobre a chegada do poeta: “mas quem ronda lá fora as minhas ásperas moradas”? – pergunta a poesia. E continua: quem “rosna resvés ao rosto”? “em que língua se estrangula, que fomes o devoram, que nomes loucos o destroem”? Nossa hipótese é a de que o “quem” seja o poeta, equiparado a um cão, uma vez que “rosna” rente ao rosto (do poema). Aquilo que possui “rosto” apresenta uma fisionomia e, consequentemente, uma singularidade. Daí que o “rosto” possa ser interpretado aqui como metáfora para o poema em via de seu acontecimento. É com violência tipicamente canina que o poeta se aproxima da linguagem (comunicativa, padronizada), pois sem ela, a captação do poético torna-se inviável. Mas o “poeta-cão” também recebe contra si mesmo sua respectiva dose de violência: a experiência poética é violenta, também o transmuta, colocando em xeque a sua subjetividade, desestabilizando-a. Por isso, os versos “em / que língua se estrangula, / que fomes o devoram, / que nomes loucos o destroem” bem podem se referir à morte simbólica do sujeito conferida pela experiência radical com a palavra poética. O poeta que rosnava é então estrangulado, devorado e destruído, é metamorfoseado pelo exercício de sua arte poética. Metapoesia em cena, percebamos que a “língua” estrangula o poeta, que os “nomes loucos o destroem”. Lido numa chave histórica, aquele que “rosna resvés ao rosto” pode também representar o nazista que “rosna” como um cão ameaçador, pronto para atacar as “moradas”, os recintos dos judeus. Há um episódio histórico crucial – e que consiste no marco inicial da perseguição nazista – conhecido como Kristallnacht, em que os alemães perseguiram judeus austríacos e alemães em novembro de 1938, invadindo e pilhando as suas sinagogas, lojas e casas, reduzindo tudo a estilhaços de vidro, o que justifica então o nome Kristallnacht (“Noite dos Cristais”). Neste pogrom (ataque em massa contra pessoas e às suas coisas), houve mortes e milhares de judeus foram feridos e levados para os campos de concentração.

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Kristallnacht – Janelas estilhaçadas por nazistas em 1938

Vista de uma loja judaica destruída em Berlim, em 11 de novembro de 1938, após a violência antissemita da Kristallnacht. O pogrom desencadeou ataques coordenados pelos nazistas contra milhares de sinagogas e empresas judaicas. Foto: Keystone França / Getty Images

Mais adiante, quantos judeus não foram “devorados” pela fome em campos de concentração, quantos não foram os “estrangulados” (suicídios por conta da perseguição dos alemães nazistas) e quantos “os nomes loucos” (os nazistas alemães) não os destruíram? Em suma, o poema herbertiano seleciona de maneira precisa o léxico, entrelaçando poesia, história e política. Analisemos os versos seguintes do poema: “e é nesse instante mesmo que o poema retoma a sua fala bárbara, / e aí, nas líricas ignições, encontra o assassino”. Continuando na trilha da abordagem metapoética, conclui-se que no momento em que se resulta o poema obscuro ou incompreensível ao “inimigo”, “o poema retoma a sua fala bárbara”. O poema torna-se “bárbaro” contra o inimigo, oferece-se numa língua estrangeira. Se o poema se transformou num “ato bárbaro”, isto se dá em razão do encontro da língua com o seu 7faces • 225


respectivo “assassino”: o poeta. As “líricas ignições” servem de metáfora ao processo criativo do poema, sendo que tal processo se equipara ao da combustão: a língua foi inflamada a partir das centelhas elétricas (as “ignições”), ou melhor, o poeta encontrou com o seu texto o ponto de partida rumo ao poético. Nos versos seguintes, encontramos “Auschwitz é o dia imparcial, às vezes / leve com água raspando ao lado ou os lábios sobre as pálpebras, / ou quando vem nos jornais: / política, artes & letras, coacções, corrupções, e a violência do dinheiro estúpido”. Por que “Auschwitz é o dia imparcial”? No excerto de Adorno, vimos que a experiência de Auschwitz se impõe como acontecimento histórico crucial, como uma espécie de divisor de águas, colocando a poesia agora num impasse. Então em que sentido o poema herbertiano temno como “o dia imparcial”? Notemos que Auschwitz não se apresenta absolutamente como “o dia imparcial” no poema, pois a locução adverbial de tempo “às vezes” impede-nos de tomar Auschwitz como “o dia sempre imparcial”. Ou seja, Auschwitz é, sob esse ângulo, comumente o dia “parcial”, aquele que pesa, importa ou influencia. Dado assim o panorama, o que torna Auschwitz o dia imparcial ou parcial? Para tentarmos responder a tais perguntas, devemos nos concentrar no procedimento do enjambement, ressaltando que os versos que compõem especificamente esse trecho do poema são extremamente plurissignificativos. Num primeiro momento, nossa leitura pode ser a seguinte: “Auschwitz é o dia imparcial, às vezes / leve com água raspando ao lado ou os lábios sobre as pálpebras”. Segundo essa disposição, o termo “às vezes” passa a ter o seu sentido comunicado ao próximo verso, por sinal, bastante inusitado. Neste caso, tem-se Auschwitz como “o dia imparcial”, visto que a barbárie proveniente do “real imediato” não chegaria a impossibilitar a criação do poema. O termo “às vezes” propõe que apesar de “Auschwitz”, o poeta conseguiria criar os seus poemas e, nesse sentido, seria “o dia imparcial”. A “água”, como é sabido, é o elemento associado ao sonho, ao qual se pode dar uma infinidade de formas, e se ela está “raspando ao lado” é sinal do encontro possível entre o poeta e a experiência poética; depois, deparamo-nos com a imagem dos “lábios sobre as pálpebras”, 7faces • 226


isto é, coisas do real que parecem distantes começam a se coincidir em matéria de poesia, tornando possível que os “lábios” estejam sobre as “pálpebras”. O poema herbertiano alude à dita linguagem analógica, a possibilitada pelo trabalho poético e que consegue costurar associações inesperadas, imprevisíveis entre as coisas, resultando no poema obscuro, visto que “os lábios sobre as pálpebras” tapam os olhos do poeta. Se os olhos estão vedados por conta dos “lábios sobre as pálpebras”, isso significa que a experiência poética é das mais intensas, desorientadoras. Mas há o reverso, e Auschwitz pode configurar-se como “o dia parcial”. O impacto de uma realidade tão pobre ou bárbara dificultaria a transfiguração da linguagem pelo poema, dificultaria “às vezes” a própria experiência poética, dado que a barbárie instituída do dia a dia pode mesmo cortar o circuito dessa experiência poética. Em razão disso, os versos seguintes nos dão mostras deste mundo doente, deste “real imediato” decadente: “política, artes & letras, coacções, corrupções, e a violência do dinheiro estúpido”. Por todos os lados, a opressão, a violência e a mercantilização das relações “humanas” massacram o ânimo de qualquer espírito crítico. Neste aspecto, “Auschwitz” – ou a barbárie em geral que se entrevê no cotidiano – torna-se insuportável ao poeta. Passemos aos próximos versos: “¿como é que um dia, nos montes, os dedos numa / estrela fundida na cara, à sombra das frutas, se puderam escrever, ou não puderam, / fanopeia, melopeia, logopeia / as coisas cruas?” Agora o sujeito poético se surpreende com o sucesso e com o fracasso da escrita do poema. Os “montes” – já presentes no primeiro verso do poema – remetemse novamente ao processo poético, o que é corroborado pela expressão “os dedos” (do escritor). O trecho “a estrela fundida na cara, à sombra das frutas, se puderam escrever” também nos conduz ao processo criativo do poema, tendo em vista que indica o encontro de uma experiência sensível passível de ser transfigurada em linguagem poética. Observemos que no primeiro verso do poema, a “estrela” aparecia “esmagada” contra o rosto do poeta e ainda podíamos diferenciar a estrela do rosto; neste que analisamos, a “estrela” aparece “fundida” em sua “cara”, ou melhor, imiscui-se, integra o corpo que passa pela 7faces • 227


experiência poética – agora se tornaram “um”. Já no trecho “à sombra das frutas”, aponta-se para a obscuridade que ronda o trabalho poético, sendo “as frutas” os poemas, e a “sombra” a experiência enigmática sempre travada com a poesia. Em que sentido “as coisas cruas” “se puderam escrever, ou não puderam”? Relevante o emprego do termo “cruas”, pois se o poema herbertiano trata de Auschwitz, nada mais coerente do que utilizar “cruas” para se referir ao bárbaro, ao desumano, ao cruel, não por acaso os adjetivos que denotam a experiência dos campos de concentração. Mas “as coisas cruas” que se puderam escrever também podem ser lidas numa dimensão metapoética: trata-se da linguagem “crua” (ainda não preparada), padronizada do cotidiano, a que existe antes de sua conversão ao poético. Se, ao contrário, considerarmos que “as coisas cruas” não puderam se escrever, o sentido torna-se obviamente o oposto. Nesse aspecto, podemos remeter a esta mesma linguagem bruta que infelizmente não conseguiu ser convertida no poético, trata-se de uma experiência com a poesia que resultou em fracasso. Isso surpreende o poeta: por que alguns poemas não nascem, por que alguns poemas não vêm à existência apesar de todo o empenho do escritor? Lembrando-nos da proposta adorniana sobre a necessidade de se encontrar um caminho mais autêntico – entenda-se não hegeliano – para a lírica pós-Auschwitz, tem-se que a obra herbertiana é plenamente consciente deste impasse, aliás, estendendo-o neste poema a um período anterior a Auschwitz, compreendendo que a relação entre cultura e barbárie é matéria antiga. Quando o verso apresenta “as coisas cruas” que “se puderam escrever, ou não puderam”, devemos pensar em mais dois aspectos possíveis quanto a esses enunciados: apesar da barbárie, os poemas persistem, “as coisas cruas se puderam escrever” e isto se apresenta como algo miraculoso; apesar da barbárie, os poetas têm o compromisso de resistir e de driblar este impasse, nunca compactuando com a marcantilização imposta pela “violência do dinheiro estúpido”. Sendo assim, o sujeito poético se pergunta também: “como as coisas cruas não puderam se escrever?”, reforçando o posicionamento de que é preciso escrever, de que é preciso resistir apesar da barbárie, apesar de Auschwitz. Numa possível interpretação, o poeta se surpreende 7faces • 228


com o fato de que escritores construam linguagens completamente inofensivas ao estado de coisas, isto é, de que não escrevam poemas subversivos o suficiente sobre as “coisas cruas” (barbárie), retirando da poesia seu potencial crítico. O viés metapoético se torna agora imperativo, porque “as coisas cruas” aparecem precedidas do verso “fanopeia, melopeia, logopeia”. É um evidente diálogo da obra herbertiana com as reflexões poéticas de Ezra Pound (1885-1972). Transcrevamos um comentário sucinto de Augusto de Campos sobre estes três conceitos: Há três modalidades de poesia: 1 – Melopeia. Aquela em que as palavras são impregnadas de uma propriedade musical (som, ritmo) que orienta o seu significado (Homero, Arnaut Daniel e os provençais). 2 Fanopeia. Um lance de imagens sobre a imaginação visual (Rihaku, i.é, Li T’ai-Po e os chineses atingiram o máximo de fanopeia, devido talvez à natureza do ideograma). 3. Logopeia. “A dança do intelecto ente as palavras”, que trabalha no domínio específico das manifestações verbais e não se pode conter em música ou em plástica (Propércio, Laforgue) (CAMPOS, 2006, p.11). O poema herbertiano rememora que estas três dimensões da poesia devem coexistir no texto poético. Quando encontramos no poema versos como “no corpo até se fazer osso” [repetição deliberada do fonema “o”] ou “rosna resvés ao rosto, quem, e em” [repetição do “r” para sugerir o “rosnar” do cão], temos exemplos do esmero com as propriedades musicais da poesia. No primeiro verso, os “limoeiros”, “riachos”, “faúlhas” e “montes” bem como a “estrela esmagada contra o rosto” sugerem a fanopeia, o trabalho com as imagens, o trabalho com o aspecto plástico do poema. Enfim, uma afirmação como “Auschwitz é o dia imparcial” acaba por indicar a logopeia, pois embora Auschwitz não deixe de ser uma imagem-síntese da barbárie (dimensão da fanopeia), temos que a “dança do intelecto entre as palavras” prepondera neste caso. O que nos vem à mente na leitura do verso é a seguinte inquietação: o que significa afirmar que “Auschwitz é o dia imparcial”? Trata-se do espaço aberto para a reflexão, é a dimensão intelectual da poesia posta em cena. Portanto, conclui-se que “fanopeia, melopeia, logopeia” são conceitos poundianos igualmente caros à poética de Herberto Helder. 7faces • 229


Encaminhando para os versos finais do poema, encontramos o que se segue: “Auschwitz é sempre, immer, e escreve-se ou por fora ou por dentro, / ou por baixo ou por cima, ou cara a cara, que é o melhor de tudo”. Pelo que depreendemos destes versos, nunca nos livraremos dos horrores impostos pela história. E no cerne da lírica sempre estará incrustado este impasse, pois “Auschwitz é sempre, immer”. O termo alemão “immer” traduz-se por “sempre”, relembrando ao leitor o ferimento perpétuo originado pelos horrores do nazismo, mas também a barbárie que inevitavelmente impulsiona a História. Mesmo com a presença desta barbárie, cumpre destacar que sempre “se escreve” e de todas as maneiras: “por fora ou por dentro, ou por baixo ou por cima, ou cara a cara, que é o melhor de tudo”. No momento em que o poema afirma que o melhor de tudo é quando se escreve “cara a cara”, faz-se referência ao regozijo do poeta quando a resistência que sempre permeia o ofício poético se configura como extremamente subversiva. 3 Façamos questão de frisar que os poemas herbertianos são verdadeiras máquinas de interrogar. Um poema que toque em questões cruciais como a do Holocausto (Shoah) não poderia deixar de disseminar uma série de perguntas ao seu leitor: “¿e é cada vez mais perigoso, ou é o mesmo, ou é menos perigoso? / dados os termos dos tempos: à quoi bon aujourd’hui la poésie? / ou então: la poésie comme l’amour/ ¿antes ou depois: de quem, de quê, de como ou quando?” São indagações muito pertinentes cujas tentativas de respostas dependem do ângulo pelo qual enxerguemos o diálogo antagônico entre poesia e história. Caso lancemos o nosso olhar em direção ao dia a dia impregnado da ideologia do “dinheiro estúpido” ou nos limitemos à máxima de que “Auschwitz [leia-se barbárie] é sempre, immer”, perguntas como estas certamente vêm à tona no que diz respeito ao trabalho poético: “à quoi bon aujourd’hui la poésie?” [Por que poesia hoje? Qual a utilidade da poesia hoje?] ou “à quoi bon encore des poètes?” [Por que ainda poetas?]. Nos dias de hoje, títulos semelhantes a esses são encontrados em livrarias. Constatamos que a poesia é reputada “inútil” – ou, ao menos, é sempre questionada quanto à sua “utilidade” – no mundo dos homens cuja finalidade da vida é mesmo 7faces • 230


“o dinheiro estúpido”. Dada a surdez do homem médio para com a poesia, o ofício poético hoje não seria “menos perigoso”, levando-se em conta os poucos leitores que se interessam por poemas? É possível também a postura absolutamente indiferente, daí o trecho “ou é o mesmo”. Quem trilhe por essa perspectiva – da inutilidade ou da indiferença quanto ao poético no mundo de hoje –, concluirá pelo destino sombrio da poesia em tempos atuais. Por outro lado, caso enfatizemos a linguagem analógica do poema, a sua capacidade inerente de transmutar e de ampliar o nosso campo perceptivo, consideraremos “la poésie comme l’amour”. Conforme essa perspectiva, a poesia estabelece laços “amorosos” entre as coisas anteriormente desunidas ou consideradas díspares entre si, transmutando incessantemente nosso olhar tão empobrecido pelos simulacros oriundos em grande parte da ideologia mercadológica. Aqui reside então a possibilidade de resistência contra o cenário da barbárie. Sob este ângulo, podemos dizer que o ofício poético “é cada vez mais perigoso”, já que ele pode servir de contraponto ao desgaste do real. A poesia equipara-se ao amor, uma vez que ela reúne o que se encontra fragmentado, fraturado em nosso mundo. Ela potencializa o real, vivifica-o como o amor. Não podemos também deixar de mencionar que o verso herbertiano “la poésie comme l’amour” pratica a intertextualidade com os escritos do poeta surrealista André Breton: “La poésie se fait dans un lit comme l'amour” (“A poesia se faz numa cama como o amor”), verso bretoniano muito similar ao do poema que analisamos e encontrado no poema Sur la route de San Romano. Reparemos que as próprias indagações do poeta são desdobradas em novas indagações: “¿antes ou depois: de quem, de quê, de como ou quando?” Isso confirma o caráter sempre questionador da poesia herbertiana, aproximando-a da atitude, por excelência, da filosofia. Octavio Paz afirmou sobre a relação entre lírica e sociedade que “a poesia moderna oficia no subsolo da sociedade e o pão que divide entre seus fiéis é uma hóstia envenenada: a negação e a crítica. Mas esta cerimônia entre trevas é também uma procura do manancial perdido, da água de origem.” (PAZ, 1984, p. 84). Do último verso do poema, deduz-se que a obra de Herberto Helder procura por este “manancial perdido”, por esta “água de origem”, não se tratando de 7faces • 231


mera “arte pela arte”, mas de resistência oblíqua contra a barbárie, até porque “a poesia é feita contra todos” (HELDER, 1995, p. 162). Jacques Rancière, a respeito do viés político da obra de arte supostamente isolada em si mesma, retoma as ponderações de Adorno: El potencial político de la obra está ligado a su diferencia radical de las formas de la mercancía estetizada y del mundo administrado. Pero este potencial no reside en el simple aislamiento de la obra. La pureza que este aislamiento autoriza es la pureza de la contradicción interna, de la disonancia por medio de la cual la obra da testimonio del mundo no reconciliado [...] En esta lógica, la promesa de emancipación no puede mantenerse más que al precio de rechazar cualquier forma de reconciliación, de mantener la distancia entre la forma disensual de la obra y las formas de la experiência ordinária. (RANCIÈRE, 2005, p. 34) Consciente da perene barbárie que assola a história humana, a obra de Herberto Helder indubitavelmente resiste contra este estado de coisas, mantendo seu trabalho “no subsolo da sociedade”. E assim, encontramos no derradeiro verso a afirmação da grandeza da poesia que, por seu turno, procura incansavelmente o “manancial perdido” em todos os idiomas: “immer, always, Auschwitz, sempre, toujours, em todas as línguas ricas”, mesmo que Auschwitz esteja literalmente no meio do caminho, sempre incrustado no “real imediato”. Em contrapartida, a poesia herbertiana nunca se reconcilia [nem deve] com a experiência ordinária, oferecendo-nos sua “hóstia envenenada”: poemas anti-história, poemas insuflados do poder de negatividade.

Referências ADORNO, Theodor. “Crítica cultural e sociedade”. In: Indústria cultural e sociedade. Seleção de textos por Jorge M. B. de Almeida e trad. deste texto por Augustin Wernet e Jorge M. B. de Almeida. 5ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. ____. "Lírica e sociedade". In: BENJAMIN, Walter et alii. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1983. CAMPOS, Augusto de. “As antenas de Ezra Pound”. In: POUND, Ezra. ABC da literatura. Organização e apresentação da edição brasileira por Augusto de Campos; trad. de Augusto de Campos e José Paulo Paes. 11ª ed. São Paulo: Cultrix, 2006. HELDER, Herberto. “A faca não corta o fogo”. In: Ofício Cantante – poesia completa. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009.

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_____. Photomaton & Vox. Lisboa: Assírio & Alvim, 1995. _____. “Nota inútil”. In: FORTE, António José. Uma faca nos dentes. Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 2003. PAZ, Octavio. Os Filhos do barro – do romantismo à vanguarda. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. RANCIÈRE, Jacques. “Políticas estéticas”. In: Sobre políticas estéticas. Trad. Manuel Arranz. Barcelona: Museu d’Art Contemporani de Barcelona; Servei de Publicacions de la Universitat Autònoma de Barcelona, 2005. p.13-36.

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FICHAMENTO HERBERTO HELDER (NOTAS PARA A CARNAVALIZAÇÃO DA RECUSA)

por Ana Cristina Joaquim

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alicerces para nossas construções históricas: crime referências orientadoras de nossa práxis: truculência o diagnóstico dessa situação: a inocência do grande crime só o extemporâneo está à altura do presente (De que atenção se precisa para morrer?) justificar a reconstituição de um confronto: alou alou qual o www onde se mói a carnagem de que se reveste o palpite anódino? (perfura-se o centro, inicia-se então o primeiro movimento, meu recorte dispensa conjunção, atirou no que viu, atirou no que não viu). a ironia é a coragem do desesperado, torna-se móbil e, como é veloz, não possui o sentido da descontinuidade dos espaços. ** trata-se de tirar do templo o que nunca foi nosso, um estilo alarmante, o seu ritual. o ilegível é o traço que torna possível a leitura (O crime é assim: usa o contrário do nome) → consiste em colocar o símbolo contra o símbolo: as gorduras de que se reveste a carne, buracos ocos, um chumaço de pelo invade a escuta e então pega-se lá quatro ou cinco pulmões transpassados pela ideia de sacrifício e os dois aspectos convergem: distintas tecnologias modelares, o centro dos cálculos, uma matemática sangrenta, uma equação, a resenha de efeito moral: Uma bomba dionisíaca rebentou da cabeça de Apolo, os neutrinos em descarga dinâmica, purpurinas carnavalescas e o meu bumbum nunca mais pararia de sambar, aqui, neste momento ignorante onde se faz uma claridade inexplicável. * o autor elabora estrategicamente dois tópicos transitórios: 1) certa festividade destrutiva 2) o gosto de coçar o ressentimento do fatalismo proveitoso torna as peças da mecânica autossuficientes. doutrinas constitutivas de uma dogmática: Uma intenção bravia de negar.

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© Alfredo Cunha

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se eu tivesse dois ou três dentes de ouro mordia-te o corpo todo se eu tivesse mel e fósforo para tocá-lo tocava-te no sexo se eu cantasse num murmúrio quente cheio de êrros chamava-te junto ao ouvido se tivesse o teu nome escrito pelas unhas fora pedia que me deixasses entrar mudo e selado na alma e na memória se me dissesses: beija-me onde queiras onde quereria eu beijar-te senão nas pálpebras e nos dedos e nos cabelos se perguntasses: e onde vamos viver? eu respondia: onde não sei o quê cheio de ar revôlto mas se por exemplo eu tivesse um diamante e o diamante desabrochasse e esse diamante eu mesmo o pusesse no meio do mundo e o deixasse crescer até ser uma árvore

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e se dormias debaixo dela eu despia-te peça a peça a roupa quieta até as minhas mãos serem tão íntimas que dormias e acordavas nas minhas mãos e eu tocava-te então na boca do corpo por onde estremecias toda e eu tocava a tua fundura que não acabava nunca extremo a extremo a tua delicadeza extrema e punha nela o selo e punho o sêlo da minha boca e tu acordavas toda e ficavas tocada toda todo o tempo lá no cabo do mundo onde morávamos durante um momento

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que nunca por nunca estas linhas tivessem um ar acabado, quisera apenas que uma urgência das coisas as reclamasse, uma veemência, uma potência das coisas, e aí acabasse a sua breve música mas já que a mim me devastava que a ti te devastasse leitor sempre inimigo como o fogo cria assim a sua própria sombra

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Dois inéditos de Herberto Helder Em março de 2016, um ano depois da morte de Herberto Helder, sua companheira, Olga Lima, selecionou entre os manuscritos do poeta um conjunto de inéditos que chamou de Letra aberta (Porto Editora). Os dois manuscritos dos dois poemas aqui reproduzidos constam nesta edição.

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Os convidados EDUARDO QUINA Vive na Ilha da Madeira, Portugal. É poeta e professor de Filosofia; dos livros publicados, destacam-se ausência (Eufeme, 2017), Corpo: labirintos (Licorne, 2016) e Sombra mortas entre os dedos (Apuro Edições, 2015). ANTÓNIO FOURNIER Pesquisador de línguas e tradução portuguesa e brasileira da Universidade de Turim, na Itália. É codiretor da revista SUBMARINO de estudos comparados. Traduziu para o italiano o livro Photomaton & Vox, de Herberto Helder. RAFAEL LOVISI PRADO Graduado em Letras, Mestre em Teoria da Literatura e Doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada, todos os títulos pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Atuou como professor visitante no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais (IFMG) na área de literatura e outras artes. Realiza pesquisas e publicações com enfoque, sobretudo, nas poéticas em língua portuguesa e filosofia / teoria francesa contemporâneas. CLÁUDIO WILLER É poeta, crítico e tradutor. Graduado em Psicologia pela Universidade de São Paulo e em Ciências Sociais e Políticas pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo; é Doutor em Letras, pela FFLCH-USP, na área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, com a tese Um obscuro encanto. Gnose, gnosticismo e a poesia moderna; completou pós-doutorado em 2011, também em Letras na USP, com ensaios sobre o tema "Religiões estranhas, misticismo e poesia". Como poeta, Willer distingue-se pela ligação com o surrealismo e a Geração Beat.

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MARIA LÚCIA DAL FARRA É professora titular concursada de Literatura Portuguesa da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Defendeu Mestrado e Doutorado na Universidade de São Paulo e obteve grau de MS-4 RDIDP (Livre-Docência) em Literatura Comparada na Universidade de Campinas. Fez parte da equipe pioneira de Antonio Candido para a fundação do Departamento de Teoria Literária e do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP e foi professora em Berkeley (Universidade da Califórnia). Tem Pós-Doutorado pela École Pratique des Hautes Études de Paris e pela Universidade de Lisboa. ANA CRISTINA JOAQUIM Concluiu doutorado no programa de Literatura Portuguesa da Universidade de São Paulo (USP) com tese sobre a poesia de Herberto Helder, Mário Cesariny e Cruzeiro Seixas. Cumpriu estágio doutoral na Universidade Nova de Lisboa. É mestre em filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde desenvolveu uma pesquisa relativa à questão da recepção da obra do Marquês de Sade de acordo com a polêmica noção de estabelecimento dos gêneros filosófico e literário/ficcional. Possui graduação em Letras/Português pela USP, licenciatura pela mesma instituição e graduação em Filosofia pela Universidade São Judas Tadeu. TATIANA PICOSQUE Nasceu em São Paulo, graduou-se em Filosofia (2002) e Letras (2006) na Universidade de São Paulo e em Direito (2002) na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Em 2012, defendeu o seu Doutorado em Letras na Universidade de São Paulo sobre o livro A faca não corta o fogo, de Herberto Helder. Atualmente exerce o cargo público de professora de Filosofia no Instituto Federal de São Paulo (IFSP). MARIANA VIANA É professora e artista plástica com PhD em Artes Visuais pela Universidade de Évora e Mestrado em Illustration as Visual Essay pela School of Visual Arts, de Nova York. Leciona na Escola Superior de Educação de Lisboa. Suas ilustrações para Os passos em volta, de Herberto Helder, compõem com exclusividade esta edição.

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7faces www.revistasetefaces.com A Revista 7faces é uma produção semestral independente com interesse na publicação de poesia. Editores Pedro Fernandes e Cesar Kiraly Organização desta edição Leonardo Chioda, Pedro Fernandes e Cesar Kiraly Conselho editorial Eduardo Viveiros de Castro Ésio Macedo Ribeiro Maria Filomena Molder Nuno Júdice

Colaboradores (por ordem de apresentação) Laura Elizia Haubert Valter Hugo Mãe Gabriel Faraco Mariana Basílio Hugo Lima Eduardo Quina Carlos Arthur Rezende Pereira Gregório Camilo Cristiane Bouger Diego Ortega dos Santos José Huguenin Gabriel Stroka Ceballos Lucas Perito José Pascoal Fabrício Gean Guedes Diogo Bogéa Guilherme Bica Jorge de Freitas Antônio LaCarne Camila Assad Quintanilha

Agradecimentos Especial, ao Leonardo Chioda pela organização deste número, aos convidados pela atenção. E a todos que enviaram material para a ideia.

Contato Pelo correio eletrônico dos editores, pedro.letras@yahoo.com.br, ckiraly@id.uff.br ou através do correio eletrônico da redação revistasetefaces@ymail.com Revista 7faces. Natal – RN. Ano 8. Edição n. 16. Jul.-dez. 2017. ISSN 2177-0794

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