Revista 7faces 14

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Capa © Victoria Topping

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Obra do homenageado Mundéu (1931; reeditado em 1996) O inútil de cada um (1934; reeditado em 1996) Limite. “Scenario” original (1996) A alma, segundo Salustre (1983) O inútil de cada um. Itamar. Vol. 1. (1984) Outono: o jardim petrificado (2002, com Saulo Pereira de Mello) Poemas de permeio com o mar (2002) Escritos sobre cinema (2000) Seis Contos e duas peças curtas (2004)

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Natal – RN 7faces • 7


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Há os que preferem não ver. A vista das coisas é profunda demais para tão pequeno contato; e eu quisera possuir o dom de abranger a vida com um olhar repentino, que a fizesse estremecer toda como num inesperado beijo, e entreabrir os olhos, cinza, me reconhecendo... Mário Peixoto, Poemas de permeio com o mar

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sumário Apresentação A poesia que reside nas coisas 13 Por Geraldo Blay Roizman A poética peixotiana 30 Por Ciro Inácio Marcondes POEMAS DE PERMEIO José Luís Peixoto 49 Chary Gumeta 57 Rodrigo Novaes de Almeida 65 Lucas Rolim 71 Gabriel Abilio de Lima 77 Carlos Augusto Pereira 85 Geovane Otavio Ursulino 93 ENTREMEIO 100 Man’s Fate Por Saulo Pereira de Mello POEMAS DE PERMEIO Rosana Piccolo 153 Izabela Sanchez 161 Diego Ortega dos Santos 169 Orlando Jorge Figueiredo 177

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Felipe Simas 183 Jonas Leite 191 Lucas Facó 197 Mário Peixoto: o esteta da observação 202 Por Roberta Gnattali Enigmário 266 Por Joel Pizzini

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© Victoria Topping

apresentação

“A POESIA QUE RESIDE NAS COISAS”

Há muito, os objetos criaram Um som macio de existência, E a vida mudou-se sujocada Para a face inerte, das coisas. O mundo vestiu a capa grosseira dos jatos cotidianos e chamou para a sombra, tudo o que pudesse perturbar na luz, a vista enfraquecida nas longas meditações. Por isso, ninguém viu nada.... Mário Peixoto, trecho de “A poesia reside nas coisas”. Poemas de permeio com o mar

Podemos pensar que este trecho de poesia resumiria todo sentido do imenso reservatório poético e imagético de Mario Peixoto. O centro de tudo isso se encontraria na autoconsciência, desde a juventude, de um mundo originário ligado a um corpo-vibrátil sem órgãos e desterritorializado da infância. Este que incluiria um pensamento reflexo capaz de captar e expressar no intervalo de um instante sublime, uma infinita riqueza de energia na singularidade de texturas e cores das coisas ao redor em oposição àquele perceptivo funcional e inerte do cotidiano e das identidades subjacentes. Essa consciência de um corpo vibrátil se espalharia então por todos os meios expressivos que Mário utilizou, do cinema à literatura.

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Se há uma poesia da existência, do familiar ou do inefável do limite humano, ela se encontraria precisamente na dimensão tanto do absoluto da natureza em relação ao homem como na dimensão do corpo e das coisas imediatamente postas ao redor e que são necessariamente percebidas pelo olhar. Olhos e imaginação trabalhando sempre juntos segundo o próprio Mário, influenciado por um cinema mudo contaminado pelas vanguardas e pelo engajamento vinculado a um amplo contexto ideológico estetizante da arte moderna, que substituiu a tradição clássica e as convenções por uma nova ordem do mundo vinculada ao visível, na autonomia das descobertas da experimentação do olhar sobre as texturas na luz, como disse Louis Delluc, A poesia é portanto verdadeira e existe tão realmente quanto o olho. Mas Mário radicaliza essa experimentação estética em Limite no andamento fluido de sua “atenção” sobre as mãos iniciais, na textura do rosto da mulher do prólogo, do barco e do remo pictóricos na imagem, dos cabelos da mulher ou dos homens no cemitério, na textura sombreada do barco, nas guelras se entreabrindo do peixe na praia e nos movimentos livres da câmera no telhado, na estrada ou no bebedouro, nos movimentos da máquina de costura e no trem, desobstruindo-os do apenas simbólico ou de sua funcionalidade no encadeamento da narrativa fílmica para simplesmente acontecer poeticamente na imagem e no som entrelaçados, valendo-se principalmente de sua opacidade de coisa. Portanto será das coisas que nascerá uma poética do sublime, portanto moderna. E é dessa poética das coisas na imagem que nascerá uma narrativa sonora de imagens fluida e indeterminada. Essa poética se tornará um espelho fenomenológico dessa poesia que reside nas coisas na medida em que o próprio desencadear da narrativa geraria no fim de Limite uma poética do entrelaçamento na cena das mãos do homem morto formando, segundo o próprio Mário, uma contextura com o chão. O corpo como coisa entre as coisas. O entrelaçamento. A carne. O quiasma. Anos depois, já no início da grande literatura de O inútil de cada um, apareceria um pensamento amadurecido explicitando a poética de uma busca pelo sublime no ato reflexo do pensamento sobre si perceptivo e da suspensão do agora eternizado pela consciência do instante que recai sobre a percepção do tempo e das coisas ao redor espalhadas no chão e descritas no passeio na praia, extensão poética das pegadas do casal em Limite. O corpo será, então, o grande operador dessa poética. Poética de um pensamento espelhado que recai sobre si mesmo, sobre esse mesmo estar no mundo corpóreo e sua relação silenciosa com as coisas que 7faces • 14


tecem um universo de existência algo lisérgico nas texturas moventes ao som das trilhas de Debussy, Satie e Ravel e que de alguma forma prenunciariam algo como uma ponte longínqua do que viria a ser conhecida muito tempo depois como a nova dicção da valorização do corpo na contracultura, no comportamento hippie, expressa na literatura pop tropicalista em José Agrippino de Paula, nas artes plásticas, operada pelo ideologema fenomenológico do neoconcretismo, na performance e no cinema experimental dos anos 1970, principalmente no superoitismo de Céu sobre água, do mesmo Agrippino. Poderíamos então, quem sabe, pensar na constituição de um determinado veio estético brasileiro imbuído de um sensível corpóreo e que a partir desses regimes poéticos e de imagens diferenciados pudessem ser pensados a partir de um hipotético entrecruzamento no espaço e no tempo.

Geraldo Blay Roizman

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Manuscrito de “A poesia reside nas coisas”. Arquivo Mário Peixoto.

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Mรกrio Peixoto (1908-1992)

Arquivo Mรกrio Peixoto

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o homenageado

Mário Peixoto nasceu provavelmente na Bélgica onde seu pai, João Cornélio, frequentava um curso de Química. Estudou na Inglaterra e lá voltou depois, movido pela paixão de uma vida: o cinema. Fez parte com amigos de um círculo sobre a sétima arte num tempo bastante remoto dessa cultura no Brasil – o Chaplin Club. O grupo que estabeleceu amplo debate sobre a linguagem cinematográfica no Rio de Janeiro, publicou o jornal O Fan e registrou as discussões de seus membros no momento em que o cinema “silencioso” dava lugar ao cinema “sonoro”. Das estadas na Europa, concebeu Limite, único filme seu cuja estreia se deu em maio de 1931; no mesmo período, inicia a filmagem de Onde a terra acaba, uma produção ambiciosa, financiada por Carmen Santos, também atriz principal do filme; mas devido ao rompimento entre os dois, a realização foi interrompida. A partir daí são vários os projetos inacabados: Constância (1936) ou Maré baixa, também chamado Mormaço, da mesma época; o roteiro de Tiradentes es crito para Carmen Santos, depois de recobrada a amizade, cujo texto desapareceu; Três contra o mundo (1938); adaptou O ABC de Castro Alves (1946), texto de Jorge Amado, também para Carmen Santos, cujo roteiro novamente foi perdido. Ainda terão ficado nos planos Sargaço (1948), reescrito como A alma segundo Salustre (1952) e Outono / O jardim petrificado (1964), vagamente baseado no conto “Missa do Galo”, de Machado de Assis.

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Em 1935 publicou o romance O inútil de cada um, com prefácio do amigo desde os tempos de O Fan, Octávio de Farias que mais tarde foi reescrito e passou de um texto breve para seis volumes e aproximadamente 2000 páginas. Trabalhou nesta obra obcecadamente quase até o final de sua vida, mas só o primeiro volume foi publicado, em 1984. Anos antes, em 1931, apresenta uma coletânea de poemas que foi intitulada Mundéu (reeditada em 1997) com forte sotaque modernista. Num texto que foi tomado como prefácio para este livro, Mário de Andrade caracteriza a obra da seguinte maneira: “Os poemas, digamos legítimos, de Mário Peixoto se caracterizam especialmente pela rapidez. Tem-se a impressão de um jato violento, golfadas irreprimíveis. São poemas que nascem feitos, explosões duma unidade às vezes excelente, em que o movimento plástico das noções e das imagens é incomparável dentro da nossa poesia contemporânea”. Mas ele logo se distancia desta poesia por achá-la demasiadamente construída e forçada. Então, é quando dará mais atenção à prosa que começa a ser produzida no mesmo ano de 1931, quando publica, na revista Bazar, três contos e uma peça de teatro, que fazem parte de uma coletânea editada postumamente por Saulo Pereira de Mello em 2004: Seis contos e duas peças curtas. Ainda saiu outro título de poesia: Poemas de permeio com o mar, também póstumo. São produções das décadas de 1930 a 1960. Sua ligação com a literatura parece se ater a compreensão lançada no texto sobre sua obra romanesca publicado no portal dedicado à memória do escritor: “Escrever contra o tempo, contra o relógio que diz ‘menos um, menos um’, contrabalançando o espaço temporal perdido com o tecido textual crescente, evocando a memória, sem violentá-la, em direção a uma compreensão contingente da mesma”.

* As informações deste texto foram pesquisadas a partir do site dedicado ao escritor, organizado pelo professor Michael Korfmann (UFRGS): mariopeixoto.com

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Baque até então deslizou pelas horas da existencia assim sem um arranhão perfeito nasceu num dia santo viveu num feriado longo longo tão longo que veio a monotonia creio que tomou para variar uma amante que era triste soturna fumava sem cessar lia sem parar não fallava ás vezes cravava nelle um olhar fundo até o amargo e continuava a ler enjoou foi a tempo morreu fraca do peito nunca se lembrava della apenas quando ouvia alguem tossir assobiava e continuou a deslizar assim sem um arranhão tomou drogas cocaina cheirou ether aos litros e a vida accelerou ainda mais amaciou tornou-se um gozo numa descida a pino no dia 7faces • 25


em que partiu a agulha no braço tremeu-lhe o musculo dormente esgazearam-se-lhe os olhos mas dôr nenhuma desde então por vicio começou a quebrar todos os dias mania teve mais muitas mais horriveis por exemplo contemplar horas a fio um punhal hindú que tinha na secretária esse homem que nunca poude ser o que queria foi no emtanto fallado invejado até resolveu o caso num domingo o punhal cravado até o cabo bem no peito e o olhar sem lume tambem cravado na boneca de panno do sofá uma boneca com cara de vicio pintada muito pintada mesmo tivesse ella vida certamente teria deslizado como elle deslizou assim sem um arranhão até o baque repentino tão rapido que não deu tempo de sentir * PEIXOTO, Mario. Mundéu. Rio de Janeiro: Typ. São Benedito, 1931.

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Espaço Pega do que é teu e constrói para a luz, com o que percebes. Não vês que há milênios os sargaços se retorcem na meia tona escumosa do oceano? Por que estagnar-se? Assimilas a trajetória de um segundo, e senhor já subtraias a pulsação que constata; não precisas recear milênios! Vê; a frio, numa centelha projetada do teu alcance eles são tão perto como teus mais íntimos e aconchegados pensamentos!

* PEIXOTO, Mário. Poemas de permeio com o mar. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.

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Dentro do Amor há um Amor Planura uniforme, de terra, onde o corpo se estende sem vida, porque não há mais pressa...! Vontade criança, de com braços estendidos pegar as nuvens em fuga, no céu; umas nas outras... uma nas outras... e tocar depois no calção branco, de banho, úmido ainda do mergulho gelado. E a sensação macia do peito aquecido, onde espalmar a mão de areia, fechando os olhos já velhos de tanta idéia igual, sem beira de abismo para criar. Vida...! Vida que sorve as tintas do mundo, louca de bebida - louca para beber... Na peneiração salitrada do mar, voa uma gaivota... Voa mais alto o urubu junto às asas dormentes do avião... Sou diferente porque desço. Diferente, porque não bebo porque deixo a sensação variar alturas, sem abrir vistas para os braços que se inquietam. Poderia levantar-me, na corrida comum de tantos infernos... ?! No entanto, se abro vistas cegas, porque vão encontrá-lo, se desdobro lábios secos, porque vão sorvê-lo, é para sentir a agonia dos que entre a convulsão da véspera e o desfecho de hoje, determinaram bruscamente... Eu amo a boca e o corpo, enxutos, curvos para mim, porque dentro deles, na perturbação, estão intactos o pingo e o oceano... Deito-me na areia morna, na extinção lenta dos mormaços, e espreguiçando-me aceito a morte; a sensação do sol, no domínio das tuas pálpebras fechadas, e o amor insano, na tua boca trancada de emoção.

* PEIXOTO, Mário. Poemas de permeio com o mar. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.

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1: O que é Limite; o que são os Poemas de Permeio com o Mar Mário Peixoto sempre foi um homem inadequado. Inadequado em seu nascimento: incerto. Não se sabe se foi a Tijuca, não se sabe se foi em Bruxelas. Mário nunca revelou com certeza. Como se não quisesse ter certeza de coisa alguma em sua vida. Não precisava de um nascedouro, assim como não precisaria de um morredouro. Não se sabe, exatamente, quando Mário Peixoto morreu. Aliás, sabe-se: 1992. Não se sabe é o momento em que Mário perdeu-se, como sempre gostou: de se perder, de partir, de voltar e encontrar os objetos estáticos, carcomidos pelo tempo, logrando suas existências inefáveis. A figura de Mário, até um certo momento notória, após a redescoberta de Limite, foi aos poucos esmorecendo. Mário recolheu-se, em sua ilha cheia de obras de arte (o “Morcego”), e fundiu-se (ação tão própria de Mário, a fusão, como se fosse o próprio que a tivesse inventado) à insignificância das coisas tolas, inúteis, à “vida perdida” entoada em seus poemas. Os roteiros que Mário escreveu, à exceção de Limite, nunca foram filmados por ele. Sua vida pessoal é nebulosa e solitária. Seu apagamento, sua imersão em um transe permanente diante da vida, sua comunhão amarga, seu esvaziamento decalcado diante da existência tornaram-no uma espécie de ser cósmico, sagrado, mas não religioso. Mário era defensor de um cosmos opaco; vívido, selvagem, mas cinzento, embrutecido. Limite, o filme que o consagrou – e que foi também uma maldição, um poderoso carma deste homem cósmico – apresenta sua visão de mundo. Apresenta um homem. Apresenta um mundo. Apresenta a visão. É como se, também, apresentasse a imagem. Ver Limite é como reaprender o cinema. É descobrir o conceito, em um filme absolutamente nãoconceituável, de imagem. Mário não dispôs de um recurso fácil – um enredo – para fazer desabrochar sua visão de mundo: a imagem já possui propriedades expressivas. É como se o mundo, por natureza, já se ajoelhasse e se curvasse diante da imagem. Ela já possui a expressão do mundo, e se metamorfoseia em metáforas de mundo, metonímias de mundo, símbolos diversos de mundo. Ela sintetiza-se em mundo, e bloqueia-o por ser um hiato inicial entre sujeito e objeto: figura e fundo (BOSI, 2000, p. 23). Mário, com 21 anos, intuitivamente, conhecia esse quase indecifrável segredo da imagem. Escreveu sobre isso mais tarde: “Tudo é 7faces • 31


“limite” em suas filiadas, em suas consangüíneas imagens, até aos tons poéticos” (PEIXOTO, 2000, p. 90, grifo nosso). A singular vida de Mário Peixoto parece bem se casar com sua estética, ou sua poética. Seu enorme romance O Inútil de Cada Um nunca foi devidamente criticado, lido e apresentado à comunidade literária brasileira. Seus poemas, reunidos basicamente em dois livros, Mundéu e Poemas de Permeio com o Mar, também são lembrados apenas como decalques de Limite. Mesmo Limite parece ter um status diferente de toda a cinematografia brasileira. Mário não possuía perfil nem de cineasta (apesar de sê-lo – e dos maiores) nem de intelectual. É como se Limite não fosse um filme, mas algo à parte; um evento. Esta um tanto exagerada, um tanto romântica visão da biografia de Mário aproxima-se muito das temáticas circulares, reincidentes, catastróficas, melancólicas e poderosas que emanam de Limite e de seus poemas. Uma análise estruturalmente comparativa jamais funcionaria com uma estética de transfusão e transmigração. Mário era um poeta da fluidez, da (des)harmonia entre elementos estéticos e elementos filosóficos. Aliás, mais cósmicos, pessoanos, simbolistas, essenciais, do que filosóficos. Há uma oposição clara em sua obra: a unidade cósmica contra a busca pela unidade. Acreditamos que esta leitura evidencia a ocorrência de uma imagem essencial, que não se contenta com aparência e superfícies, assume diferentes formas e retorna com insistência, pois parece que esta imagem está sempre ao redor dos mesmos núcleos temáticos. (HERTZ, 2001) A limitação, a angústia, a fuga e a morte são colocadas por Saulo Pereira de Mello (MELLO, 1996) como os temas capitais de Limite. Os três primeiros fariam um balé semântico, deslizando pelo simbolismo do filme, empurrados pela lassidão, pela resistência e finalmente pela desistência até que a morte (na figura cheia de augúrios da tempestade) finalmente consuma os esforços vãos do homem contra as forças exteriores a ele. Estes elementos também estão na poética de Mário, em Poemas de permeio com o mar. Giratórios, alucinatórios, fluidos, ponderados (mas também livres), nostálgicos, derramados, os poemas de Mário pulsam com a força de cavernas sombrias, mundos subterrâneos, naturezas hostis, daninhas. Uma avassaladora força desistente carrega todo 7faces • 32


pensamento (ou não-pensamento: “será o fim ideal, não pensar mais”, em “Mar”) ao pavor, à hesitação, ao temor, à tristeza, à catatonia existencial. A relação com o mundo, as coisas, a praia, a areia, as pedras, as plantas, o vento, o oceano, o sol; produz uma fricção da separação: porque está apartado, Mário isola-se na metáfora da ilha, ou do barco – à deriva, por não saber de que matéria é constituído o oceano, apesar de sua relação afável com ele. O segredo das coisas não é como o segredo da imagem, que parece presentificar a realidade última por alguns ilusórios (e separadores) momentos. Lançam-se outras dicotomias básicas: interior x exterior; real x imaginário; figura x fundo. O paradoxo é figura capital na poética peixotiana, e quem é que pode suportar o conhecimento do paradoxo? Eu me banhei algum dia, em vários mares, foi pela sensação risonha, de que o homem nem sempre é criatura, que renasce, depois da provação... Há os que preferem não ver. (“O poema do mar cinzento”) Sendo sua relação com a imagem das mais poderosas, Mário não deixa de revelar em seus poemas o embrião também do cinema. Versos posicionados com imagens inteiriças de coisas, estruturas, relances da objetificação do mundo. Elas saem, em sequência, frenéticas, prontas para serem filmadas por uma câmera delirante, de inspiração legeriana, como são algumas sequências de Limite. Suas estrofes também funcionam como o poema visual que é Limite: independentes, fechadas, enclausuradas em um significado oculto, às vezes hermético, muitas vezes belo por causa disso. São poemas muito longos: às vezes atingem sete ou oito páginas, sem continuidade, sem causalidade (como Limite), metamorfoseandose constantemente, se desdobrando até o poema se esgotar, na direção em que precisar ir. Já Limite, similar, ostenta sua maciça estrutura de sistema solar (“É um longa-metragem minuciosamente construído com tomadas maiores rodeadas de outras menores como sistemas planetários intermediários segundo tempo e intrínseca importância regente” (PEIXOTO, 2000, p.88), em que planos periféricos orbitam tomadas mais importantes, construindo uma relação sintática que pode ser 7faces • 33


observada em todos os estratos do filme, em uma lógica funcional que pertence exclusivamente ao poema. Se, no filme, cada fotograma ratifica a relação de paradoxo entre o homem e a inacessibilidade do mundo, em Poemas de permeio com o mar, ao longo dos anos, Mário foi tecendo uma longa e perene jornada abissal que envolve, adentra e retorna aos mesmos temas, como em um trabalho arcaico de reprodução daquilo que se esgota e renasce constantemente. A comparação com a recorrente imagem do mar batendo na praia é inevitável. Todo Mário Peixoto converge para ela. São poemas que não necessitam de uma unidade formal – a metamorfose é sua forma. O desejo da força poética é o que os move sempre de encontro a eles mesmos, indissociáveis, indiferenciáveis. De fato, é difícil memorizá-los: por sua extensão; por sua falta de compromisso com os temas (metamórficos), pela enorme similitude entre eles mesmos, rodopiando uma intensa força de representação íntima, altamente abstratizada e carregada de símbolos poderosos e ocultos, alojados nos abismos da limitação humana. A associação com o simbolismo, mesmo que Mário utilize uma retórica muito particular e embrutecida por sua natureza arredia, é inevitável: Mas (o símbolo) entendido como tentativa de representar por intermédio de metáforas polivalentes todo o vago e multitudinário “eu poético”: esforço de apreensão e comunicação do indizível, múltiplo e instantâneo sinal duma heteróclita paisagem interior; enfim, uma síntese. (MOISÉS, 1974, p. 476). Limite e os poemas também se coadunam na instantaneidade de suas representações imagéticas. A presentificação da imagem, quase como o blow up do filme fotográfico, parece ser o tom da configuração retórica da poética de Mário. Se os movimentos são circulares, perscrutadores, é porque a imagem é estática, mítica, exprimível apenas em sua imobilidade. Não à toa, Limite tem planos longos, demorados, amarrados à música hipnótica, que parecem incluir o tempo necessário para a reflexão dentro do plano. O filme inclui o espectador, como se tudo, feitura, fruição e crítica, coubesse dentro da dimensão total das imagens. As cenas do barco, das fugas, das caminhadas, dos atos inúteis, prestam todas a uma imobilidade existencial, como se os objetos do mundo fossem vítimas indefesas e acuadas de um olhar sinistro e tirânico da realidade. Pictórico, mas não cognitivo, esse olhar sinistro 7faces • 34


molda, com movimentos de câmera sinuosos, a natureza do cenário; impregna a selvageria e a bruteza de uma força cósmica cega, a visão de um deus louco. Não é raro Mário manifestar sua visão sombria através de uma câmera semi-subjetiva, que parece um olhar mitológico, inquieto, furioso, que fareja as personagens e as coisas, estranhando-as, revelando a disparidade entre a realidade e aquilo que é real. A separação, o apartamento, a duplicidade análoga à realidade, confunde mundo interno e mundo externo. Não se sabe se Limite se refere ao homem ou às coisas com as quais se relaciona o homem. O protagonista do filme, com sua expressividade tirânica – como não se lembrar do coqueiro que se impõe, em contra-plongé, como se fosse um ídolo totêmico, e depois reaparece, rimado, em negativo, escuro, como se fizesse uma imposição espectral, e realojasse o homem em seu confinado estado de origem? – pode ser a vasta cadeia de matas, de cercas, de fiações e fontes que se repetem, exaurem suas dimensões anímicas e se tornam mais personagens do que aquelas alegorias de humores humanos que estão sentadas no barco à deriva. “Na verdade, o filme apresenta apenas estados de espírito. Digamos mesmo: temas. Como o da melancolia da vida, o das ‘árvores desesperadas’, o da água em revolta, etc.” (FARIA, 1978, p. 15). A poesia de Mário, igualmente, repete essa expressividade, e há sempre mais alma nas coisas, em uma metempsicose melancólica, do que nas pessoas, não anímicas, mas anêmicas: Mas as grandes distâncias, os grandes mares,

e os grandes desejos... poderão imobilizar teus olhos que ainda vêem (embora tardio – inapelável) um rebate de luz filtrada, que o acompanha, cruelmente translúcida, prolongando as superfícies – que desce com “esse” ele um instante, e depois parada se distancia, deixando-o - ficada mais à tona, de repente, vendo-o impassível no debate do afogamento a submergi-lo, no líquido silêncio das águas triturando – onde imóvel já deslizas, então de vez, a frio comprido largado, consentido nessa descida, 7faces • 35


de frias – de “ternas” águas sufocantes e que o devoram.

Mário Peixoto revisitando Limite. Arquivo Mário Peixoto

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(em “A voz da grande calmaria”) Em uma tênue (mas não carente de devassidão) narrativa em direção aos seus abismos, Mário circunda seus objetos com a crueldade de imagens sólidas, ou com uma falsa sedução que provoca um estranho erotismo sádico entre as coisas e suas representações anímicas. Limite é o ápice desta relação de mão dupla, deste uno que são dois. Sua iconografia cinematográfica obedece ao seu princípio estético e metafísico: tudo em Limite converge para a relação de apartamento cósmico, o paradoxo fundamental da existência. Desde a relação entre a Gymnopédie de Satie (jogo de enfrentamentos entre som e imagem) e a concretização do mundo imagético do filme, até as relações geométricas, contadas, entre planos que se repetem, ângulos que reaparecem e se intercalam, focos de luz que se complementam, fazendo do filme um poliedro que conjuga sintaxe fílmica à sua semântica oculta e sinistra. Eisenstein concebeu a ideia de “cinema total”, em que cada elemento do filme (montagem, iluminação, atuação, cenário, figurino, locação, fotografia, música, entre outros) está atrelado a um “tema”, que seria uma espécie de “espírito” hegeliano do filme, uma manifestação de sentido plural que seria não apenas importante, mas necessária para o funcionamento harmônico (o termo de Eisenstein é “polifônico”) da obra de arte. Sem esta sintonia comum, que ligaria os elementos do filme por vias inconscientes, o filme não atingiria sua plenitude estética e formal. Seria preciso, então, “verticalizar” a montagem – esquecer sua função antes progressiva a associar mais elementos ao seu funcionamento. O filme que manifesta seu “tema” em todas as suas instâncias seria “total”, ou seja, uma obra de arte inteiriça, fechada, sem brechas, como um poliedro: A montagem tem um significado realista quando os fragmentos isolados produzem, em justaposição, o quadro geral, a síntese do tema. Isto é, a imagem que incorpora o tema. (...) Diante da visão interna, diante da percepção do autor, paira uma determinada imagem, que personifica emocionalmente o tema do autor. A tarefa com a qual ele se defronta é transformar essa imagem em algumas representações parciais básicas que, em sua combinação e justaposição, evocarão na consciência e nos sentimentos do espectador, leitor ou ouvinte, a mesma imagem geral inicial que

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originalmente pairou diante do artista criador. (EISENSTEIN, 2002, p. 28) Não à toa, Mário Peixoto escreveu um artigo, em 1964 (MELLO, 2000), intitulado Um filme da América do Sul, que publicou atribuindo a autoria a Sergei Eisenstein. O artigo era uma farsa, mas, mesmo assim, o simples pensamento de que Eisenstein compreenderia Limite a partir de suas teorias não parece nem um pouco absurdo. Sem ser eisensteiniano, Limite parece mais “total” do que qualquer filme de Eisenstein. Procura “arrancar de cada cena o seu rendimento máximo” (FARIA, 1978, p. 16). A poesia de Mário, não diferentemente, forma um todo aglutinativo, e estabelece uma relação de proximidade tão intensa com Limite que podemos pensar em um “paratexto total” – como se tudo o que viesse da mente de Mário Peixoto pertencesse a essa grande estrutura existencial que suas criações ratificam tanto. 2: Inter-relações e dualismos Não há dúvidas de que Mário Peixoto é um artista do devir. Em Limite, logo após o trecho perdido, há uma tomada panorâmica que contém o filme todo, simbolizada de maneira sutil, tensa, coesa; uma alegoria madura que empilha os signos principais do filme, seus principais eixos de significação. A câmera começa focalizando Raul Schnoor e Taciana Reis em plano médio, sentados na proa do barco, comendo biscoitos. Em um movimento lento, ela se aproxima, acompanhando a lassidão dos movimentos dos atores, o mar em contraponto. Raul sai de campos (move-se para a proa) e, segundo momento da tomada, Taciana fica sozinha, como se seu companheiro tivesse se derretido na existência, sido apagado, eliminado. A câmera para com Taciana olhando o mar, como que estabelecendo o diálogo (ou duelo, ou paradoxo) primordial de Limite: tudo se esgota e escorre para a dimensão do infinito. O olhar de Taciana acompanha o seu esgotamento existencial e escorre para o mar, metáfora das metáforas da realidade, mundo, exterior, natureza, desconhecido, cosmos. Logo depois, a câmera faz mais uma curva sutil e aí é a própria Taciana que escorre: some do quadro. Sobra apenas o barco e o mar, um outro dualismo, uma outra antítese. Não é preciso lembrar que, ao final do filme, o barco é consumido pelo mar. Isso acontece aqui 7faces • 39


também: a câmera move-se mais ainda e até o barco desaparece, esgota-se, dilui-se, e sobra apenas o mar. Se o filme tem como protagonista a dimensão humana ou o infinito, se duelam ou se se complementam, não se sabe bem. O tema do filme pode bem ser a relação dual, binária, em seus moldes icônicos. Após se fixar no mar, a câmera volta ao barco e reinicia a pequena “narrativa”, retomando a diegese normal do filme. Este estado de devir, em que mundo se reinicia sempre sob as leis do paradoxo, é também constante em Poemas de permeio com o mar. Lá, um mundo cinzento que se renova e se repete também prossegue seu caminho rumo ao esgotamento: Alguém vai partir sozinho Sem testemunhas. Mas eu, permanecerei partindo. Porque no primeiro arranco de hélice tudo está prestes e no fim; e com as luzes afastando-se do cais, para quem fica, para quem estira mais dois instantes descorados, pode ser – pode ser, meu Deus! - que algo aconteça. (em “O recanto tortuoso”) E enfim, a epiderme do homem, despirá a própria vida, cedendo aos poucos a caverna secreta dos seus ossos. ...E quando estes oscilarem, no primeiro esbarro quente, do redemoinho dos quadrantes, já os olhos terão resvalado das órbitas, vedando na queda simples o apelo cinza do teu mar. (em “O poema do mar cinzanto”) É notável a semelhança entre imaginário destes dois trechos e de Limite. Basta lembrar as metamorfoses do mundo que gira, em Limite (a roda do trem e a da máquina de costura, fundindo-se, assim como os “redemoinhos” da tempestade) embrenham-se e 7faces • 40


misturam-se com as imagens também metamórficas destes poemas: o giro é o “primeiro arranco da hélice”, onde, esboroandose junto à ideia do esgotamento, “tudo está prestes e no fim”; prestes a se esvair, minguar até que o processo cósmico se reitere, se restabeleça. Há muitas imagens assim em Limite: o peixe moribundo, fenecendo na areia, vítima de uma maquinaria divina, heraclitiana, que não explica os motivos de sua luta incessante; as pegadas que desaparecem na praia, lembrando que o homem não passa de rastros no tempo; a flor dente-de-leão que perde sua pequena copa diante do vento (metáfora do mensageiro dos maus presságios – ou do componente cósmico, ideal, que está presente em toda parte), esvai-se, enfim. No “Poema do Mar Cinzento” e epiderme despe a vida, os ossos oscilam, os olhos resvalam das órbitas, tudo em um movimento em direção a uma finitude, um decaimento vazado na duração e no sentido da vida, em sua lógica e em sua ação. Por mais que se encontre uma retórica muito própria dentro da poética de Mário Peixoto, é possível também encontrar pequenas variações de temas e formas, ou micropadrões que se repetem em alguns poemas, e não em outros. É comum Mário fazer o uso de recursos como dois pontos, aspas, travessões e estrofes irregulares, “prendendo” conceitos, ideias e palavras ao seu bel prazer, às vezes enigmaticamente, esmiuçando de maneira giratória detalhes de elementos psicológicos e da natureza: são ilhas e cavernas que veem seus interiores existenciais remexidos e alegorizados pelo versejar rebuscado de Mário, que busca minúcias que podem, sempre de maneira vã, revelar pistas para sua busca. Esta microssensibilidade se revela na medida em que Mário vê sentido na otimização do todo a partir do comportamento da partícula, como podemos ver em mais dois trechos: Cada som é um atrito indelével acarinhado na nervura do meu espaço: ...vozes, risos que atravessam descampados, desgarrados de casebres pressentidos; batidos de asas, interrompidos no caminho... e de tempo em tempo, lá de baixo, a noção, sem vontade, de teu corpo, acordando num espraiado da maré... 7faces • 41


(em “A voz da grande calmaria”) Já agora o sol saíra em profusão e frente aos caixilhos, no interior, revoluteia a flutuação microscópica de todo um mundo invisível antes da luz. (em “Limo nas calhas úmidas”) Esta profusão sinestésica, de sentidos e movimentos que se misturam em uma malha de propagação da realidade, está também em Limite, precisamente nas cenas aparentemente mais supostamente “descartáveis”, aquelas que se interpõem entre as cenas do barco, estáticas e tácitas, e as das fugas das personagens, cinéticas e dramáticas. Inesquecível é o momento em que a câmera avança (selvagem), nove vezes contra uma rústica fonte d’água saindo de um cano, como se um “mundo invisível” estivesse a digladiar-se com seus próprios elementos. A força implícita dos objetos, representados nesta sequência e em sua exposição explícita na sequência de costura de Olga Breno, é também a força daquilo que perece, mas não quer perecer, outro dualismo muito presente na poesia de Mário. Os objetos ganham uma dimensão porque envelhecem e se esgotam mais tarde do que as pessoas, mas ganham outra dimensão pelo simples fato de também se esgotarem. Suas existências quase míticas, misteriosas, de olhares estáticos, às vezes sem reação, são também tema de fascínio para Mário, que parece gostar (mas se machucar muito com isso) da abordagem sobre seus oponentes metafísicos – aqueles que guardam em si o segredo da existência irrefletida. Há dois poemaschave em que Mário faz sua investida espiritual sobre os objetos: um deles é “São Martinho”, um poema de incrível semelhança com Limite. Trata-se de uma micronarrativa sobre uma estátua talhada em uma pedra de difícil acesso por desconhecidos, que envelhece vendo pessoas tentando, de maneira vã e às vezes trágica, alcançála. Dentro de uma curtíssima e apenas simbolizada narrativa (Mário não está interessado em “contar” nada), emerge um universo de isolamento, perenidade, envelhecimento e insuficiência, além da melancolia. Mário parece querer exaurir tudo o que pode simbolizar um objeto, da mesma maneira que faz com a metáfora do barco em Limite. Esta, aliás, repetida em “A ilha”, um belo construto poético que põe a ilha como um universo inteiro plantado em sua imobilidade, seu limite natural que o impede de 7faces • 42


sair e abordar o oceano. Há ainda “Casa vazia”, que funde a memória humana com a memória da casa, em uma recordação turva, mesclada, una: ...Deixando-te afastar como em abandono de madornas; ou entristecendo-te de sombrios retrocessos, como se escancarados, raízes odorantes, no vazio do fundo, ainda rolassem de teus velhos gavetões desguarnecidos. (“Casa vazia (Perdido no fundo dos teus olhos)”) Outros temas, periféricos, permeiam Poemas que permeiam o mar. Um certo psicologismo, tentativa de Mário em se aprofundar em nuances mais pessoais de seus interlocutores, nos leva a pensar mais no espaço pessoal do poeta, seus sentimentos mais do que sua cosmologia e cosmogonia. Infelizmente, a necessidade de citar apenas trechos de seus poemas é obrigatória, o que nos impede de entrelaçar, exemplificando, a maneira como todos estes temas e estruturas formam um todo coeso, em que certos tipos de questões angustiantes dialogam com outras dentro do mesmo espaço, metamorfoseando-se e diluindo-se umas nas outras, revelando que, na poética peixotiana, estruturas e temas periféricos circundam outros maiores e mais adimensionais, arraigados, insolúveis. Portanto, uma explicação nunca é unilateral no simbolismo particular de Mário Peixoto. “A frase – ou o verso – (ou, ainda, o shot) tipicamente peixotiana é indireta, oblíqua, raramente afirmativa e frequentemente ambígua. O signo é sempre polissêmico e nunca unívoco – principalmente em Limite” (MELLO, 2000, p. 12). E não só em Limite. “A Voz da Grande Calmaria” faz uma espécie de travelling (para não esquecermos sua parceria implícita com o cinema) memorativo através de paisagens internas e externas, autorizando uma voz declamatória que parece fazer um conselho para algo que pode significar inúmeras coisas, especialmente sabendo-se que Mário conhecia bem a plurivocalidade do mundo: Preferível seria, muitas vezes escolher... Descansaste o teu rosto sobre o meu e sabes quem sou – porque não tinhas mais nada 7faces • 43


da tua adolescência e és porão secreto, de tuas próprias descobertas sem passagem (em “A voz da grande calmaria”) Em Um filme da América do Sul, fazendo-se de Eisenstein, Mário postula, muito claramente, as três temáticas, digamos, “oficiais” de Limite: 1) A solidão do homem e seu clamor; 2) seu constante desejo de evasão, ou comunhão; 3) o mimetismo no mundo dos homens com seus espinhos e árvores retorcidas; os seus ventos, suas praias de esperança, seus vôos de pensamento adulto tornados imagens precisas numa espécie de aurora e desalinho. (PEIXOTO, 2000, p. 85-86). Se os três temas também estão presentes maciçamente nos poemas de Mário, é fato que a solidão do homem, corretamente enumerado como o mais significativo, é também o mais presente. O tom confessional mistura-se a uma voz sobre-humana. Indiferenciam-se, em determinados momentos, a voz do homem e a voz de sua angústia. A solidão aparece justamente porque está acompanhada de um parceiro cego: o pessoal não consegue relacionar-se com o universal. Estão de mãos dadas, mas apartados, como acontece em Limite, quando Olga Breno, costurando, olha para cima e depara-se não imediatamente com o céu imponente, mas com uma claraboia, película transparente de realidade que separa o indivíduo de todo o resto das coisas. A imagem do vidro como prisão invisível é repetida em “Mar”: “Encosto-me à vidraça, sem poder ver, / abraçado comigo. / De repente, tudo está próximo e ali”. A própria disposição das pessoas/símbolos sentadas no barco em Limite denota este movimento em direção ao esgotamento: na proa, Olga Breno, altiva: coragem, força, esperança; no meio do barco, Raul Schnoor, imagem do desalento, um desistente, prestes a sucumbir; na popa, Taciana Rei, caída, derrotada, silenciada. Como se fossem estágios de ânimo, entre as pessoas, e de transformação natural, entre as coisas, o barco em Limite pode ser melhor lido como contendo ideias plurais como tripulantes do que personagens. Da mesma forma, três estágios reaparecem (o número três é importante em Limite. Não são três as Parcas que fiam o destino?) na sequência 7faces • 44


em que Olga tenta o trabalho: a costura (da qual ela logo desiste, depois do fracasso), o ferimento (princípio de desestabilização da ordem das coisas – como se fosse o vento, metáfora de maus augúrios), e a fuga (último estágio até a desintegração). O filme como um todo repete esta estrutura, como espelhos dentro de espelhos, culminando na grande tempestade, que traz a finitude e um recomeço, quando as primeiras imagens do filme retornam para finalizá-lo. Trata-se de um roteiro autofágico, que parte da singular e crua solidão humana, que Mário deixa para tratar com menos distanciamento em seus poemas. Muitas vezes os poemas de Mário são mais narrativos (mas não muito) do que Limite. Deixando-se tornar mais tangível, em alguns momentos ele se torna também mais pessoal, mais íntimo em oposição ao olhar selvagem, inquieto e inumano que se apodera de seu filme. A partir daí, afloram imagens de inconformismo, não-enquadramento, lassidão, desistência e às vezes até de predestinação à morte (“Deito-me na areia morna, / na extinção lenta dos mormaços / e espreguiçando-me aceito a morte;”, em “Dentro do Amor há um Amor”). Imagens de desalento no mormaço praiano. O exílio absoluto. Dentro de sua inquietude, Mário ainda busca um traço de pacificidade, comunhão, mesmo que haja a certeza de que a tentativa é vã. Mas o paradoxo é a principal figura da poética de Mário, e ele jamais desistiu dela: A calmaria distende a ressonância de tudo que não vias – o próprio solo que esbarronda nos teus pés tem a alma dos movimentos com a vida... (em “A voz da grande calmaria”) Mário Peixoto não se enquadra. O ponto antes do complemento se justifica porque talvez ele preferisse assim. Mas talvez seja preciso esclarecê-lo: não se enquadra como cineasta, pois realizou apenas um filme, atípico, fenomênico (mas também fenomenal), brotado em uma noite em seu inconsciente, que se move rápido: nascido da visão de uma única imagem. Pode parecer romântico mas, talvez, se tivesse realizado outros filmes, Mário não seria Mário, uma categoria à parte: seria um cineasta. Não se enquadra também como poeta, já que nunca possuiu a pretensão de ser um poeta, ou de possuir um projeto poético. Seus poemas, entretanto, escritos esparsamente ao longo de décadas, parecem exprimir 7faces • 45


mais do que a poesia dos “projetos poéticos”. Talvez Mário não fosse nem um artista (e foi), mas apenas um ser humano muito particular, fundido no caos contraditório do mundo, soldado na batalha heraclitiana entre Eros e Tanatos de dentro da mente e de fora dela. O calor da batalha o fazia recuar, se recolher, se esconder para os poucos portos seguros da realidade: talvez a solidão seja um deles. A imaginação, outro. Escreveu, em seu romance: “A realidade para mim não tem consistência” (MELLO, 2002, p. 30). Não tinha consistência porque, em sua poética, e, possivelmente, em sua visão de mundo, imaginação e realidade são uma coisa só. Uma coisa que é duas. E a dor advém do paradoxo. Às vezes baudelairiano, escreveu sobre carcaças, circundou a morte, sempre à procura de algo que desvendasse a ligadura estranha que reúne as coisas do mundo, para, no fim, sempre se voltar à dissolução, à imagem do seu querido e profundo oceano, moedor e reconstrutor da realidade, seu ponto de partida e de chegada: Porque a noite veio cansada, do mar, E o horizonte turvo fendeu-se na queda sem fim. (em “Mar”)

Referências BOSI, Alfredo. O ser e o tempo na poesia. 6 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. HERTZ, Constança. “Mapas inexistentes, caminhos incertos: a obra poética de Mário Peixoto”. In: Agulha. Fortaleza, São Paulo, n. 17, 2001. MELLO, Saulo Pereira de. Limite. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. ______ Limite: filme de Mário Peixoto. Rio de Janeiro: Funarte, 1978. Baseado em fotogramas do filme Limite, de Mário Peixoto. ______ (Org.). Mário Peixoto: escritos sobre cinema. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. Textos de Mário Peixoto. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 14 ed. São Paulo: Cultrix, 1999. PEIXOTO, Mário. Poemas de permeio com o mar. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.

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POEMAS DE PERMEIO

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José Luís Peixoto Galveias – Portugal

Nasceu em Galveias em 1974. A sua obra em prosa e poesia figura em edições e antologias diversas ao redor do mundo. É autor de Nenhum olhar, Cemitério de pianos, Livro e Galveias (entre os romances); em poesia publicou Gaveta de papéis e A criança em ruínas. Dentre as premiações, recebeu o Prêmio Literário José Saramago em 2001 e o Prêmio da Sociedade Portuguesa de Autores.

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De passagem Ao passar pela cidade de Nampo, a ir ou a voltar da famosa Barragem do Mar do Oeste, a janela do autocarro é uma tela gigante, composta com detalhe e mão firme por n soldados-pintores: as crianças e as árvores, as bicicletas de homens muito direitos, as raparigas de braço dado, companheiras de horas sem peso, tréguas na tarde cinzenta, os velhos de cócoras a debaterem a calma do feriado e, de repente, uma mulher parada a olhar para mim. Não há distância. Ao longo de um instante, a mulher fala para dentro de mim. Essas palavras não são palavras, são segredos incandescentes à procura de uma língua. É já quando o autocarro se afasta e a mulher desaparece que a procuro na memória. Então, peço-lhe desculpa e explico-lhe que só sou capaz de escrever poemas sobre a minha mãe.

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Entre os piqueniques da colina Moranbong É esta mão a estender-me um copo de soju. É esta mão feita de madeira antiga, áspera e suave, cor escura e veias salientes. Sentado no chão, o homem não tem olhos, afundou-se na loucura com que ri e, no entanto, olha só para mim. É um grupo de homens sentados no chão, a olharem-me e a rirem da mesma maneira. Ao seu lado, caixas de plástico com restos de uma abundância que, devagar, ao longo de toda a tarde, foi assada em tiras muito finas sobre brasas agora apagadas. Estamos juntos na voz de uma mulher que, ao longe, canta uma canção aguda ao microfone: cobre os campos, os pavilhões e os lagos. O centro desse círculo está no meio dos vultos que, ali, depois daquele verde, dançam à sua volta, desordenados e em vertigem, atravessados por uma velha que toca tambor. Lá de cima, desde o grande céu, somos cores pontilhadas na natureza. As crianças correm nos caminhos, são como sopros, atravessam a música e os pensamentos, levam as suas melhores roupas e toda a infância. As crianças ligam pontos invisíveis e, assim, reconstroem a colina, formam terreno imaterial. Entre estes homens que me olham, que esperam um gesto, há maços de cigarro abertos. De camisas desabotoadas, podem fumar se quiserem, podem fazer muitas coisas se quiserem. Enquanto me olham, não imaginam o que não podem fazer. O homem faz-me sinais com a cabeça: aceita, aceita, aceita. O homem espera desde o início da vida. 7faces • 52


A mão estende-me um copo de soju, dedos de trabalho, uma pedra na colina, unhas cortadas com a lâmina de um canivete. É soju turvo, grosso como azeite novo, amargo e enjoativo, murro na boca do estômago. Não desiludi os homens, riem mais agora. Não desiludi o homem, é o mais esperto. Estende-me uma goma chinesa, cor-de-rosa, coberta por cristais de açúcar. É esta mão a estender-me uma goma, um doce estrangeiro para tirar o sabor do soju. A mão dele, a minha mão.

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Poema com o mesmo título do livro Porquê um livro de poemas sobre a Coreia do Norte? Cabeça, por favor, para de fazer-me essa pergunta. Talvez um poema sobre o monte Kumgang possa ser um poema sobre o que não tem tamanho e nos engole, como a noite ou a morte, como a ideia de futuro para o qual não estamos preparados. Além disso, se começar aqui uma longa tradição de livros de poemas sobre a Coreia do Norte, estas páginas serão recordadas para sempre. Afinal, é a memória dos outros que importa, ou não? Segundo cenário: se neste país de tantos poetas nenhum se interessar por aquele país de tanta gente, então este será um livro único entre todos, prego cravado no tempo, poste, farol no deserto, e também essa abnegação tem valor heroico. Se venceram as metáforas, este livro poderá ser lembrado ou esquecido. Se as metáforas passarem de moda, se forem comparadas a penteados dos anos oitenta ou a telefones dos anos noventa, este livro poderá ser lembrado ou esquecido. Em qualquer caso, existirá e tu estarás a lê-lo agora e eu estarei a escrevê-lo também agora. Porquê um livro de poemas sobre a Coreia do Norte? Cabeça, já te pedi, para de fazer-me essa pergunta. Talvez um livro de poemas não seja mais do que um só poema e, da mesma maneira, talvez um poema não seja mais do que uma única palavra. E sabes, cabeça, uma palavra é como um copo de água, não se recusa a ninguém.

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No 25º andar do Hotel Yanggakdo Eis o meu corpo aqui, quase sem motivo, e eu talvez dissolvido no cheiro dos lençóis, detergente ácido e pobre, ou talvez espalhado sobre estas alcatifas onde repousam anos polvilhados, décadas inteiras que morreram aqui, exatamente neste quarto. O meu corpo deitado sobre esta colcha áspera, e eu recordando aquele cão que o meu pai perdeu no mato enquanto fingia caçar pombos. Foi há tanto tempo. O meu corpo e eu não tínhamos mais de doze anos. Recordo o olhar desse cão, a amizade com que me recebia quando chegava da escola. Recordo-me o seu nome, não o menciono porque ficara mal no poema. É a luz desta hora que me ilumina os pensamentos, desce do céu e escolhe um lugar difícil entre as sombras. São estas cortinas conformadas com o fim do dia que me iluminam os pensamentos. Era um domingo como hoje. O meu pai chegou de mãos vazias, nenhuma caça à cintura, e contou-nos que tinha perdido o cão. Procurou, chamou, assobiou e só recebeu resposta do silêncio. O silêncio. Na cozinha da nossa casa, a minha mãe e eu partilhámos um luto sem palavras. Depois, talvez tenha subido ao meu quarto e talvez me tenha deitado sobre a cama, sobre a colcha. Agora, esse seria um paralelismo de extrema conveniência, mas não consigo ter a certeza. Agora, mais concreta é a pena que senti desse cão perdido, indefeso perante a noite que pousava sobre o seu desespero ou sobre a sua ilusão. Eis este tecto suspenso, corpo, e a presença desta cidade, eu, paisagem que poderia contemplar se me aproximasse da janela. Este tecto e esta cidade são uma boa metáfora do tempo ou da morte, do tempo e da morte. Passados três dias, sujo, magro, gasto, o cão regressou. Como se nunca tivesse duvidado do seu instinto, 7faces • 55


entrou pela porta do quintal, habituado às folhas caídas. A partir daí, fomos capazes de amá-lo muito mais. Essa é a grande diferença. Se me deixarem aqui, perdido do meu corpo, nunca serei capaz de encontrar o caminho para casa.

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Chary Gumeta Chiapas – México Nasceu em 1962. E publicou vários livros de poesia e pesquisa sobre a história e cultura regional de Chiapas. Entre os mais recentes estão Joaquin Miguel Gutierrez Canales: sintesis biografica (ITAC-CONACULTA, 2015), Poemas muy violetas (Editorial Metáfora 2015), Veneno para la ausencia (em segunda edição pela Argot editorial, 2016), Como plumas de pajaros (Coneculta-Chiapas, 2016). Tem poesia publicada em Guatemala, Honduras, Costa Rica, Bolívia, Perú, Estados Unidos e Espanha. Os poemas aqui publicados são do inédito Despatriados traduzidos para esta edição por Pedro Fernandes de Oliveira Neto.

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Reconheço que não nasci Para ser uma sedentária Não sei fincar raízes Porque tenho o suor do mundo Na pele e nos pés. Tenho medo de me tornar um fantasma E deambular pelos rios de meu povoado. Ser parte de uma lista com nome de desaparecida. Não quero ser uma mulher sangrada Pela mão da miséria E da maldade de meu país. Devo queimar a roupa velha E seguir este caminho Onde matar o tempo te converte em assassino E o contrário em sobrevivente. Andar descalça é andar nua E eu quero caminhar calçada.

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Não documentado Para morrer em algum esquecimento Emigro de teu olhar Até o país das “oportunidades”. Em meu coração aninham-se rostos Que escapam de morrer no abandono Destroçados pelo vento Disfarçado de esperança. Vou-me embora Fugindo de mim e da tristeza Fugindo do que foi e já não sou. Tenho uma cabeça que já não é minha Sou uma palavra que inventei E já não posso pronunciá-la; Tenho os sonhos vivos em minha bolsa, Perseguem-me as recriminações Como patrulha de fronteira Pelo rio da desesperança. Meu amor tem pequenas chamas Seladas em cada dia de tortura; Suspendo a noite, O frio abrasador E a humilhação sob a chuva; Meus cansados olhos Veem a solidão que olha a si mesma. Durmo, Com a imagem de ver-te dançando ao meu lado Com a música do tempo; O sonho se torna pesadelo Quando te vejo nesse lugar Onde os latidos dos cães Se uniram às sombras E se perderam nos planos Que me fez fugir pelo pântano.

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Mas meu amor, mas minha angústia, Mas eu homem do povo Voltarei a tomar tua mão Esquecendo as dores E o sangue de tuas feridas. Meu amor não era um luxo Nem um edifício cercado por jardins E conforto, Era um amor profundo que caminhava a teu ritmo Com gotas constantes de tempestade Por vez ácida às vezes doce; Conduz-me com atitude, Com seriedade, Chorando com quem se deve Sendo feliz com quem se quer. Não me arrependo Desta decisão equivocada Em que alguém se desterra, Os galhos de meu amor Foram cortados de minha árvore; Agora, Minha alma convalesce Da tristeza provocada Pela explosão de sal em minhas pupilas. Sou uma fogueira Neste trajeto inseguro Onde viver ou morrer não tem outra causa Que salvar a si mesmo.

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Parto com as palavras Que não se dizem por não ferir Silenciadas pelo pensamento. As memórias como mar que golpeia a praia Se debatem entre ondas E eu, neste lugar, diante mim mesmo Reflito tuas queixas, tua pobreza, tua doença. Sei que existe um mundo Turbulento e selvagem Onde sobreviver talvez seja uma mentira Ou uma ave que voa em volta de uma flor.

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É outono, De meu corpo caem folhas E de meus olhos chuva. Amo em meus olhos Essa imagem tua que se perfila no horizonte Vejo-te com fome Mendigando Com a esperança Que só temos os pobres por conservar algo nosso. Enquanto me distancio Vou mas sem ninguém Junto de minha solidão Tiritando de frio a alma Recolhendo o silêncio. Vou ao norte com o vento nas mãos Acalantando-o como uma criança em seu berço Que não quer dormir pela ausência da mãe Esta noite o acomodo Junto ao cansaço das horas E dormimos juntos Cobertos pelas sombras.

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Há distâncias Onde o mar ressoa como um instrumento Como um eco obscuro e seco Que se repete uma eternidade; Há rios lentos e tranquilos Onde a correnteza acaricia os peixes E leva sua necessidade; Há lugares onde os sonhos Vão numa viagem longa e triste Sem bagagem Tentando tomar a mão do mundo E não morrer entre os lábios Dessa serpente viciada na morte. Quem coloca à sua frente um futuro incerto? Alguém respira cal sobre meu ombro E não me dei conta Até que o vejo cair numa vala comum. Às vezes guardo o medo Sob um soluço silencioso Onde o quebrar das ondas da memória Produz tombos e me tira para nadar. Então me pergunto Se é necessário expulsar-se do sangue Da carne De casa Da vida Para andar atento Nessa profundidade onde não te encontras. Chamo-te Com a esperança de que apareça teu rosto E me falem teus olhos. As palavras Também estão à beira desta loucura.

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Rodrigo Novaes de Almeida São Paulo – SP Publicou a ficção A saga de Lucifere (The Trinity Sessions — Cowboy Junkies, Ed. Mojo Books, 2009) e os livros Rapsódias. Primeiras histórias breves (contos, Editora Multifoco, 2009), A construção da paisagem (crônicas, Editora Sapere, 2012), e Carnebruta (contos, Editora Oito e Meio e Ed. Apicuri, 2012).

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Remição Era gente simples, daquela capaz de pensamento mágico que outros, homens instruídos, não alcançam; Eles não pronunciavam os nomes proibidos para não trazer ao mundo suas mazelas; E a interdição fazia deles a remição da humanidade.

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Adestramento Desde aquela tarde em que o coração pulou da boca e se estilhaçou como granada no vestido branco de Joana, Mateus treinava dizer: — Eu te amo. [Joana mandou o vestido para a lavanderia, mas ele jamais voltou à cor original.] Três meses diante do espelho, antes de ir outra vez ao encontro de Joana, que a esta altura estará de namorado novo e não escutará de Mateus as palavras adestradas.

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Matadouro Contemplou a morada dos deuses, e não havia deuses, não havia um único deus; Conheceu as ciências dos homens e sentido algum encontrou nelas; O mundo se apresentou como era, matadouro: a carne apodrecendo sem que lá fora existisse um abutre para se alimentar de todo esse desperdício; Estavam abandonados.

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© Victoria Topping

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Lucas Rolim Teresina – Piauí Veicula seus textos através de impressos e publicações artesanais independentes. É autor dos fanzines poéticos “Tetrapoemas” (três volumes, 2015), “Esquizofrenia” (2015), “No Panorama do Tempo o Menino se Alarga” (2016) e “Besouro” (org. em parceria com Demetrios Galvão, vol. 1, 2016). Também apareceu em jornais, blogues e revistas eletrônicas.

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visão do infinito vejo o terrível corpo de alguém que não conheço deitado na terna música das pedras – no som arfante do lodo na severa melodia dos alísios um terrível corpo – paisagem antrópica na película vegetal a dança estarrecida dos sóis sobre o ventre negro meus pequenos sonhos loucos na manhã carnívora – as primeiras vibrações da ternura mais remota gestos de um rito diário – adorno cinético da antiga alquimia deslizo pelo túnel das costelas – pela ferrovia óssea da noite meus olhos chovem na dureza de uma nuvem torácica cruzo as cicatrizes no campo risonho da memória agora rasgar a plumagem opaca dos segredos descer ao recôndito maquinário das corridas & chutes fazer girar a doce roda das vontades à mercê de um abismo azul a visão é um sentido egoísta – o tato é um garoto obsessivo desemboco na roupa das vísceras & entoo a litania do amor contemplo nos fragmentos de nudez a visão do infinito

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confessionário do kaos um ou dois meninos carregam o peso dos Indecisos. a grande fábrica suicida distribui ansiedades pela rua. [eu preciso acordar deste sonho apressado. diminuir o ritmo dos tambores do céu. afogar-me de vez numa nuvem, encher de pássaros o velho pulmão, rachar meu esqueleto e reparti-lo entre os estudantes de medicina.] a loucura boia sobre o corpo febril, o cais adormece com o sol distante. deito-me sobre a dúvida e amanso o delírio com a intimidade da voz.

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no pátio dos sonhos I uma geografia de dança sísmica acende revoluções no corpo da noite seções de encantamento prendem os garotos selvagens na rinha luminosa as visões sapateiam num ritmo de gargantas ferozes um dos garotos agarra um delírio & torna ao vapor da mente mergulha na língua multivisual & traz a historiografia do sono II teu nome geométrico acende minha casa de sons – lembro que há uma floresta com teu nome em Pasárgada meu corpo se converte em moléculas fractais & em poeira de mim – eu mapeio teu rosto feito um talismã secreto III todas as cores os mistérios as consciências que flutuam sobre a noite têm um peso de terra que revolve aos cuidados da manhã mas é preciso arriscar-se e conhecer o sol – é preciso aprender a transformar-se em dia

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© Chemical Sister

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Gabriel Abilio de Lima São João Del Rei – Minas Gerais Natural de Maravilhas, Minas Gerais. É licenciado, bacharel e mestre em História pela Universidade Federal de São João del-Rei. É professor, pesquisador e músico. Possui publicação no XII Concurso de Poesias da Universidade Federal de São João Del Rei (2012), obtendo o 3º lugar no mesmo concurso em 2014. Cursa o Doutorado em História e Culturas Políticas na Universidade Federal de Minas Gerais.

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Em tempo Amores liquefeitos intermináveis pingas... Planta-se de tudo ou nada se colhe, encolhem-se os silos fechados, cílios em água não sabem esconder a vermelhidão da seca. Quem daria a outra face? Em tempos de vil tortura, miséria nunca passa, sobra do amor a tontura e a embriaguez da cachaça.

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Branda chama Todos trabalham Muitos dormem Alguns descansam Poucos escutam Ninguém enxerga. Na mais bela cegueira (que é a do amor) O fogo, branda chama, Bruxuleante Um dia nos clama Para depois reascender-se Princípio de incerteza Nos precipícios infindos da solitude...

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Poema fraternal Que aprendam pela ausência e que não se descuidem da nossa mais viva presença. No tempo dos castigos, perdemos ventos e versos somos um outro agora e os mesmos de nunca mais. Não vamos viver sonhos sujeitos ao que não queremos vamos viver o mundo do jeito que à noite sonhamos.

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Contagem de tempo O presente é um nó entre o passado que conhece e o futuro que espera. Basta lembrar: a liberdade vem antes e depois do amor que é mais sedutor mas, não te entrega! O que foi enquanto dúvida nunca virá enquanto dívida... No dilúvio do tempo, em cada um, há uma infinda passagem dividida a palo seco, no ruído dos ponteiros, há passageiros que não merecem a ida, enfim, marinheiros que nunca voltaram da defloradora e derradeira viagem. Os segundos carregam, por enquanto, (quase que por um encanto) as contas da fugidia permanência...

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Mais valia Um gosto, um caminhão de abóboras depois da meia noite. Uma via sacra pelos becos e bares, pelos nus e arrepiados. Mais valia o suor dos que não trabalham (apenas se arranham) e amanheceram mais molhados que os pobres repositores do supermercado.

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Autorretrato (ou o último poema do ano) Minha barba é malfeita pra não levantar suspeita em meus olhos, tão vermelhos quando nus em frente ao espelho dormem homens de sexo regado... A Gal Costa encosta nos meus ouvidos e a resposta é um suspiro, uma ruga a mais na folha seca do meu autorretrato.

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Carlos Augusto Pereira São Paulo – SP Poeta, contista, cronista, letrista e redator de publicidade, Carlos Augusto tem poemas selecionados e publicados na revista Originais Reprovados, da ECA-USP, além de crônicas e contos em jornais e revistas de grande circulação. Prepara seu segundo livro, dedicado ao universo simbólico do elemento Terra. Do livro A natureza íntima da água (ainda inédito), que contempla o elemento Água como foco lírico primordial, são os poemas selecionados para exposição na revista 7faces.

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O domínio da natureza Na noite Aceso O rio se multiplica Feroz Insensível Consome as margens Incansável Vivo Faz leito na estrada Irascível Líquido Despapela pontes Depois Furioso Incontível Draga a cidade Onde o rio passa fica a revelação: Águas têm sede de terras.

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Tempo de tempestade O ar, ensopado de chuva. As telhas, rubrovermelhas. As ruas rios rápidos Sem rumo sem raiva. Água-enchente tão somente Sem culpa de obstáculos à sua frente. Atrás das janelas, crianças sonhavam um mundo simples Alheias ao medo-adulto que nos ameaçava mais do que a natureza. A chuva aguava os dias. Torrenciava as noites. Mas em nossos corações havia paz.

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Na esteira da ressaca O Sol de meio-dia brasava corpos seminus. A água corria lenta ao sabor da maré baixa. Ondas mansas porque o mar também se cansa de vagar. Sobre a areia corpos dormentes de uma noite vadia. Ou vazia? Flores de plástico entre as pedras Latas emaranhadas nos sargaços. E o Sol a cortar o ar como aço. Esteirareia dormitório de cansaços Curadjuvante de excessos O mar se encarrega de tratar também A ressaca que dele não vem.

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Marinas I. Hoje a lua está nua E eu posso ver sua pele surfando macia As ondas negras do mar Serena madrugada que agora dorme em mim. II. Nós de marinheiro Em nossa vida enovelada O que será que trazemos de outros dias? Nada? III. No mar homens que foram e não voltam mais. No cais um coro de ais! IV. As velas apontando para os céus As mãos clamando por Deus Os rostos cobertos de véus Rezando pelos filhos teus

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Do outro lado do tempo Casas pequenas, sonolentas. Paredes cansadas no eterno medir de forças entre cal e sal. Ruas estreitas, pedrentas, Lentas de caminhar Mas que nunca se afastam do mar. A baía defronte, À direita um monte. E águas que não ondeiam nem urgem. Submersa nas eras, a vila despreza o tempo. Só um cão de incerto dono insiste em ruar Ali, onde nem alma morta vem lhe guiar.

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Diante do abismo Os poços Ontem, sedes saciadas Hortas aguadas Fartura e alegria. Hoje, ocos esquecidos Mortos pela ambição Da água mercadoria Que a tudo proveria. Não proveu. E a água disse adeus. Hoje, o oco assaltou o copo O corpo, a represa, a torneira O caos que hoje nos beira. E a água que cai dos olhos Que aos céus chuvimplora Era preciso fosse um rio. Mas é pouca, inútil, um fio, Dará conta do vazio?

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Geovane Otavio Ursulino Maceió – Alagoas Historiador. Editor da revista Alagunas. Escreve para o blog Amorfo Poema.

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martinus esses beiços comidos o fogo o medo e a morte martinus o q você sabe disso? você não comeu não bebeu não trepou agora quer me pegar agora quer me dizer com esses beiços comidos q minha dança é de porco? martinus o q você sabe disso? o fogo o medo e a morte você não bebeu agora quer esconder agora quer mentir q enterrou nossos corpos nos ares q acendeu as fogueiras nas praças q ergueu os braços nas ruas? você não trepou não bebeu martinus o q você sabe disso? do fogo do medo e da morte? do leite negro da manhã? com esses beiços comidos martinus você também brinca com as serpentes agora quer esconder agora quer mentir agora quer me pegar agora quer me dizer

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guiti é quase tarde tarde demais esperamos há setenta e três dias as tropas de guiti q nos assolam nosso deus q de tudo sabe se adiantou a guiti e suas tropas nos avisando da destruição então nos adiantamos ao plano de guiti queimamos nós mesmos as casas envenenamos a água matamos os bichos pisunhamos a lavoura fodemos as virgens pra não serem violentadas pelas tropas de guiti alguns começam a dizer q guiti e suas tropas não virão cuidamos pra q se calem nosso deus nunca se engana é quase tarde tarde demais

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campo dos elefantes passam os dias as pragas vêm morrem as rãs morrem os piolhos morrem as moscas as feridas abrem nós permanecemos nós sobrevivemos mas não demora pro dia q o abismo se abrirá os gafanhotos cuspirão fogo sobre todos os campos nós permaneceremos nós sobreviveremos ensinamos a verdade pros jovens antes q escureça o sol a lua as estrelas pra tarem prontos pra justiça pro juízo pros gafanhotos q cuspirão fogo mas não demora pro dia em q as nuvens ficarão mesmo depois da chuva quando os campos esgotarão e só restará o fogo a morte e o medo passam os dias mas não demora o abismo as feridas os piolhos gafanhotos cuspirão fogo sobre os campos nós permaneceremos nós sobreviveremos

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herdade deixo teu corpo pros urubus não levarei nada comigo nem teus velhos braços ou tuas pernas cansadas deixo teu corpo pros urubus te velei sentado nu ao teu lado vi minha carne apodrecer enquanto teu riso amarelo não saia da tua cara deixo teu corpo pros urubus inda q a única estrada q restou não tenha árvores bichos cidades inda q seja o pântano envenenado por teus mortos deixo teu corpo pros urubus parto antes muito antes do sol parto antes muito antes do silêncio q sempre vem depois de tudo deixo teu corpo pros urubus com esse riso amarelo na cara porq inda é tempo tempo de ser deserdado

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gosto de sabão esse gosto de sabão não quero ouvir o q você tem pra dizer você não pode me ouvir você não sabe do fel da foz da foice da fé o preço da passagem vai aumentar não quero dizer sento do lado do sol o mar já mudou de cor minhas pernas doem não quero dizer a vida acontece lá fora sento do lado do fel você não pode não quero ouvir o q você tem pra dizer vou pra longe da foz rio acima o mar já mudou de cor você não sabe o preço da passagem vai aumentar não quero dizer todo lado é o lado do sol da fé da foice do fel a vida acontece lá fora deve ser rio acima não quero ouvir o q você tem pra dizer você não pode ouvir vou pra longe minhas pernas doem você não sabe desse gosto de sabão

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Elenco de Limite. Arquivo Mรกrio Peixoto

entremeio

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MAN’S FATE Por Saulo Pereira de Mello

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Merkur

Prometheus

Merkur

Elender! Deinen Göttern das Den Unendlichen? Göttern? Ich bin kein Gott, Und bilde mir so viel ein als einer. Unendlich? – Allmächtig? – Was könnt Ihr? Könnt Ihr den weiten Raum Das Himmels und der Erde Mir ballen in meine Faust? Vermögt Ihr zu scheiden Mich von mir sellbst? Vormögt Ihr mich auszudehnen, Zu erweitern zu einer Welt Das Schicksal! ______________________

Mercúrio Prometeu

Mercúrio

Miserável! Tratar assim teus deuses? Os eternos? Os deuses? Não sou deus. E creio valer cada um deles. Eternos? – Todo poderosos? Que podem vocês? O vasto espaço Do céu e da terra Encerrar em meu punho fechado? Vocês têm o poder de me separar De mim mesmo? De me tornar maior, De me fazer tão vasto quanto o mundo? O Destino!

(Johann Wolfgang Goethe)

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1 Limite, filme brasileiro de Mário Peixoto, é um filme insólito e surpreendente. Insólito na história do cinema silencioso que, sem ele, fica incompleto. Surpreendente na história do cinema brasileiro que, sem ele, ao contrário, fica completo. Limite liga-se mais ao cinema mundial do que ao cinema silencioso brasileiro; mas é um filme brasileiro de dimensões universais; suas imagens, na sua concretude particular, são fundamente brasileiras: casas, roupas; faces e cercas; céu, montanhas e alagados; barcos e mar, pescadores e redes – e, sobretudo, a luz, este céu branco e brilhante – tudo é Brasil. O tema de Limite é, por outro lado, universal na sua concretude: não tem pátria: a limitação essencial da condição humana, a fundamental inutilidade do agir humano – o que Limite faz é nos revelar, nos desvelar (e não contar ou narrar) o que é o Man´s Fate. Limite foi realizado em um meio cinematográfico não mais que suficiente tecnicamente, formalmente indigente e artística e expressivamente nulo – e, por isto, ele é também surpreendente. Limite é um filme de rara precisão técnica, formalmente elaborado, expressiva e artisticamente refinado – usa os “meios formadores” do cinema de maneira tão segura, tão hábil e tão adequadamente que tem o aspecto de uma obra de final de período, de esgotamento de estilo, de arte acabada – filme estéril que não terá e não teve descendência, nem no Brasil, nem no mundo. Limite é algo terminal, remate, conclusivo – e resumo: todos os grandes filmes silenciosos parecem contidos nele. Há nele um forte traço de tragédia e não apenas por seu tema, mas também por sua forma: o trágico do last of the breed. Limite é também um filme belíssimo e estranho: tão belo quanto Terra; tão estranho quanto La passion de Jeanne d´Arc. E trágico como eles. Ver Limite em uma tela de cinema – não na de um televisor! – na escuridão ritual da sala de projeção – é uma experiência única – e dilacerante. Desde o início, uma inquietação aparece e nos surpreende 7faces • 103


desde a primeira imagem; cresce insensivelmente e se espraia até o trágico – e inevitável – final. Limite tem essa qualidade que somente City Lights, Man of Aran e Mãe possuem: a cada vez que os vemos é como se os víssemos pela primeira vez. Limite tem esta característica raríssima, que toda obra de arte tem: é eternamente novo, moderno e atual. 2 Limite tem um prólogo; uma sequência inicial chave; uma situação trágica que esta sequência expõe: três náufragos – um homem e duas mulheres – em um barco perdido, imóvel no oceano vazio e calmo “cercado” pela linha do horizonte, 360º em volta dele que é a única coisa que eles podem ver; e, acima deles, um céu branco, infinito que vai até a linha do horizonte. Limite tem também um tema nesta situação; um tema, que se torna claro aí; três “histórias” que os três náufragos meio contam, balbuciam desordenadamente uns aos outros e que são o “desenvolvimento” deste tema e, neste desenvolvimento têm uma exposição do tema, que são o desenvolvimento desse tema – com voltas rítmicas à situação - um clímax; um desenlace e um epílogo. O prólogo, uma sequência fora do corpo do filme, estrutura-se em torna da imagem fundamenta de Limite – uma protoimagem, elementar, geratriz de todas as outras do filme; a face da mulher, de frente para a câmera, os olhos fixos diretamente na objetiva – rumo ao infinito, além da câmera, outside do quadro – da tela, além da imagem – envolvida por dois braços masculinos, com as mãos algemadas, em primeiro plano: quem limita é também limitado. A sucessão de imagens que Limite é, é uma metamorfose dessa protoimagem: Allegorie, alegoria (no sentido goethiano) do tema e que, no final, irão se metamorfosear em Symbol, símbolo (também no sentido goethiano). O tema que é apresentado no prólogo pela protoimagem é, simultaneamente, a essencial limitação e a inutilidade do agir, humanos: tema bifronte como as duas faces de uma mesma moeda. Deste tema vão fluir, em metamorfoses contínuas, a sede de infinito e seu clamor contra o trágico choque entre esta sede e a própria limitação essencial do desejo de liberdade de agir e da inutilidade deste agir; e as também trágicas consequências desse choque: derrota e frustração; desespero e fuga – e morte – subtemas de Limite. 7faces • 104


Equipe de filmagem de Limite. Arquivo Mรกrio Peixoto

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De Limite, filmagem de cena da grade. Arquivo Mรกrio Peixoto

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Mรกrio Peixoto e Edgar Brasil durante as filmagens de Limite Arquivo Mรกrio Peixoto

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Vinicius de Moraes, Carmen Santos e Mรกrio Peixoto durante as filmagens de Limite. Arquivo: Cinemateca Brasileira

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Mรกrio Peixoto e Edgar Brasil durante as filmagens de Limite. Arquivo Mรกrio Peixoto.

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3 A sequência inicial expõe a situação e os personagens: três náufragos, duas mulheres e um homem, abandonados em um barco perdido no oceano, contam-se mutuamente suas histórias. O barco com os três náufragos são a “realidade” do filme, o presente dele e dos náufragos, e o que se passa fora deles. Na verdade, não contam, não “narram” suas “histórias”: lembram-se de momentos de sua vida e que são motivos para a sua fuga – fuga que se exprime pelas rodas do trem e pelo obsessivo caminhar dos personagens. As “histórias”, que não são histórias, são o passado dos personagens e acontecem no interior deles. Nesta sequência, que é chave para Limite, tem-se o seu tema geral corporificado em imagens concretas na realidade do filme: o barco – ritmo, cadência, estilo formal e técnico, concepção da imagem, direção e atmosfera. Aqui, na realidade do filme – no presente dele – os enquadramentos são rigorosos, quase gráficos, minimalistas: as bordas do barco, o mar e a linha do horizonte são quase sempre visíveis. Os movimentos de câmera, geralmente panorâmicas, são simples, lentos e de pouca duração – são quase correções de câmera. Parecem “paisagem de esquizofrênico”, Carlos Lacerda dixit. Na atmosfera já se percebe claramente a presença da tragédia eminente da morte: a tempestade que virá, está no ar, tensa e trágica, entrevista pelo soturno oscilar do barco e pelos cabelos que o vento desfaz. Os cabelos vão ser, no filme, um signo multissignificativo. Aqui, a desordem deles aponta a desordem daquelas vidas que os náufragos mal escondem nas suas faces inexpressivas, veladas, vencidas e conformadas. Tudo é trágico neste barco que vemos, pela primeira vez, com seus personagens esfarrapados: linha do horizonte, bordas do barco, faces inertes e desesperançadas das personagens em sua trágica e triste imobilidade. Nas faces minerais, que os cabelos escondem mal, está a estranha calma do desespero imposto pela limitação de quem sabe ser inútil lutar: o duplo tema, o tema bifronte de Limite pode ser visto aí – nas faces dos personagens imóveis no espaço circunscrito do barco que é como um ataúde – porque lutar é lutar contra um universo infinito cuja presença se sente na linha do horizonte, nas bordas do barco, no mar inerte, no céu branco, indiferente. Os personagens, em cujas faces vemos o tema trágico do filme, não têm nome ou identidade; não são mais do que um – não passam de determinações do humano encerrado nos limites de sua própria existência finita que o espaço 7faces • 114


restrito do barco simboliza. É aí, no barco, que transcorre a tragédia de Limite – é aí que está o trágico presente e onde se espera o terrível futuro; é aí que ocorre a reação real; é para ele que convergem as personagens que andam continuamente, é o resultado das três “histórias” – que modificam, esclarecem, explicitam a situação no barco. É sobre ele que atuam as “histórias” que se contam mutuamente e sua narração vai nos desvelando a imensa tragédia daquelas vidas que são a própria existência humana em representações particulares mas sem identidade. Estas “histórias” que levam aspas não são, a rigor, histórias: não são reais na medida em que a única realidade de Limite é o presente do filme: o barco. Estas são histórias e são estruturadas narrativamente, contam o que se passa no barco, na realidade do filme. As “histórias”, porém, não são reais e se passam na mente dos náufragos. Não são estruturadas em narrativa, mas organizadas em função do tema, apenas. Assim mesmo, no sentido musical. São como lembranças que parecem se suceder aleatoriamente e que os náufragos afinal não narram, mas balbuciam (ou sussurram), voltados mais para si mesmos do que para os outros. A montagem das “histórias” deixa isto claro. Não é por outro motivo que o tratamento de câmera, a angulação, são diferentes dos do barco embora o estilo geral permaneça e as representações reiteradas do tema estejam também presentes. A montagem de Limite é montagem orgânica do passado e do presente – mas o todo resulta não narrativo. As imagens e a sucessão das “histórias” – todas concretas e particulares – agem (ou interagem; colidem ou completam) a/com as imagens e a sucessão de imagens do barco – todas também concretas e particulares – para fazer aparecer nele e a cada volta a ele, o “terceiro” sentido, concreto, porque sensível, mas único e universal: a imagem e a experiência do tema bifronte – um universal e que na metamorfose das imagens do filme vai desvelando o Symbol de Limite, exibindo-nos claramente a sua Idee que vemos, afinal, com os Geistesaugen ,“olhos do espírito”, ainda no sentido goethiano na imagem protéica (a mulher e as algemas) que reaparece (e que é uma Allegorie do temas – portanto particular – e reaparece no final do filme metamorfoseada em Symbol – o Universal: a Idee, ideia, do tema. Não vemos apenas, vivemos o tema. A Erlebnis dele. A intenção criativa de Mário Peixoto se revela, praticamente todo aí: os shots dos cabelos – ou da cabeça – revelam a entrada e a saída, na e da cabeça (e da mente) do personagem, no interior do personagem. A câmera entra e sai do interior da mente dos 7faces • 115


personagens em meio dos seus cabelos – imagem multissignificativa: encobrem as suas faces – revelam no revolto deles a confusão e a angústia dos náufragos – e anunciam, pelo vento, que os agita, a tempestade concreta que virá, a catástrofe iminente – no fim, a morte – a aniquilação da consciência. O uso da câmera, da montagem e da direção fortemente entretecido – a reunião de todas as principais vertentes do cinema silencioso. A única personagem cujos cabelos estão meticulosamente penteados, apesar do vento que desfaz os cabelos de Raul, é aquele em cuja mente nada se passa, é o homem do cemitério – que é o próprio Mário Peixoto – sentado na sepultura da mulher do homem número 1, Raul. Mário, pela própria interpretação (em relação ao acting no filme, um overacting pela ironia do sorriso, pelos gestos quase afetados com que guarda a aliança no bolso do colete, revelam que ele não estará no barco. E mesmo a ira com que fala (os únicos letreiros do filme) é tosca, pessoal, ofendida. Não irá para o barco, não sente o mau agouro do vento na blindagem dos cabelos escrupulosamente trimmed, e não será “absorvido” pelo mar, pela tempestade, não será aniquilado, não morrerá – ainda. 4 As três “histórias” são o corpo do filme. Todas elas “histórias” de decepção, frustração, derrota e fuga, inutilidade, decadência, morte e desespero, de luta contracorrentes, peias, cerceamentos, limitações impostas à ânsia de liberdade infinita do homem. Elas exprimem, ampliam e desenvolvem o tema no estilo técnico forma que se esboça na sequência inicial: mas apenas se esboça. O estilo de câmera muda – e muito: a imagem como que vai explodir outside the frame: a câmera extremamente móvel, agora. Todas as imagens destas “histórias” de fio narrativo fragilíssimo e tênue e de estilo de enquadramento, movimento e montagem completamente diferentes são ainda metamorfoses das imagens do prólogo. Marcadamente multissignificativas elas se estruturam mais em função deste múltiplo sentido do que algum fio narrativo, gerando uma história no sentido clássico. Suas significações, seu ritmo, enquadramento, comportamento de atores, ângulos são determinados muito mais por esta intenção multissignificativa do que pelo interesse narrativo. Limite não narra ou narra pouco. Na verdade, ele enfatiza e se reenfatiza, afirma e reafirma, reitera sempre e obsessivamente as 7faces • 116


imagens proteicas – e o tema bifronte. Não numa repetição pura e simples: ele reafirma, re-enfatiza e reitera a alegoria do limite em sucessivas e elaboradas imagens metamórfica: portas, janelas, grade, linha do horizonte, muro, cercas, ruínas e pântanos vão alterando seu sentido: vão deixando de ser portas (fechadas), janelas (que se fecham), horizonte, muro cercas, ruínas, pântanos – tudo o que limita, prende, cerca, encerra. Sempre há um obstáculo entre a câmera e a cena vista, raios de roda de carroça, árvores, leme e hélice, sempre o cerceamento da imagem, do ser humano, mas também da inutilidade do agir: comer é inútil; remar é inútil; o cigarro recusa-se a acender; a flor que Raul leva é inútil; andar é inútil; a piteira é inútil – não tem cigarro – e, finalmente, no final do filme, as mãos de Taciana, metidas sob o corpo – representação máxima da inutilidade de se lutar por qualquer coisa – no barco (a tempestade e a morte virão) e na vida que se extingue “not with a cry but with a wimper”. As histórias, já vimos, das lembranças, organizadas em função desta intenção de metamorfose, deste desvelamento do Symbol do “limite”, mas também do tema bifronte, vai-se afastando do particular, vai-se afastando do “real” para além da imagem (particular) em direção à imagem não particular que se aglomera e tende a ser uma experiência única, os nossos Geistesaugen, “olhos do espírito”, vão se abrindo pelo Resultat desta experiência: a metamorfose de todas elas que tendem ao Symbol, além da imagem – das imagens particulares que são apenas a summe, soma, das experiências singulares pelos olhos do corpo, Augen des Liebes, se organizam, em volta do tema, e cada vez, de forma mais longa, mais elaborada, mais complexa: a “história” de Olga é mais curta, mais simples, menos complicada. A de Raul é mais longa, mais complicada, muito mais elaborada. Nelas sempre vemos, com complexidade crescente, o mesmo reiterar do cerceamento da prisão, do limite, a inutilidade que dispara a fuga, e o andar obsedante; e tudo, todas as imagens em contínua metamorfose, convergem para o barco – e para a realidade desta tragédia cósmica. A cada “história”, na verdade, a cada série de lembranças aparentemente desconexas, a realidade do barco se torna mais trágica, mais agourenta – a catástrofe que se anuncia a cada momento retorna mais firme e mais próxima: a tristeza aumenta, mas aumenta também a conformação. Tudo no filme converge para o barco onde a calma conformação é, no entanto, plena de mau agouro: o ritmo, a desesperança, o destino trágico dos personagens vencidos pela própria limitação da existência, derrotados pela consciência crescente de sua própria inutilidade, limitados onde 7faces • 117


qualquer ação é inútil, no espaço restrito e trágico do barco vai tornando aquele limitado microcosmo, a cada volta, mais sufocante e pleno de desespero e antecipação da morte que está próxima: agora vemos – o próprio tema tem a forma de um ataúde. Tudo é pior, tudo é mais trágico, tudo é mais desesperado a cada volta ao barco. Sentimos o desenlace cada vez mais próximo. Assim, fundem-se harmoniosamente as metamorfoses da realidade (o barco) e as das lembranças (as “histórias”), no final, um único fluxo, uma única metamorfose que é o filme onde a acumulação dinâmica do tema bifronte – limitação e inutilidade – tende a unificar-se para gerar para nós o Symbol do tema bifronte que é o da protoimagem, e nos mostrar – para nossos “felizes olhos” do corpo e do espírito a Idee (ainda no sentido goethiano) de Limite, o filme de Mário Peixoto. Aí está a grandeza de Limite como filme e como obra de arte; ele não passaria de uma coleção de signos óbvios e pretensiosos, não fosse a maneira pela qual são realizadas as imagens – a direção – e a maneira pela qual elas são estruturadas – a montagem. É a realização que faz Limite. 5 O clímax do filme ocorre quase no final da “história” de Raul, a mais extensa e elaborada das três: a montagem destas recordações contadas – balbuciadas, talvez – é a mais elaborada e original. Ela se beneficia de todo o processo já vivido pelos espectadores do filme: limite e cerceamento, inutilidade e ausência de sentido da vida, já estão fortemente marcados e presentes em nós – e no filme. Os shots fixos e longos se alternam com os shots extremamente móveis e curtos – com a saraivada de avanços (17 shots) sobre a face angustiada de Raul que grita em desespero depois de uma corrida desenfreada. O clímax é uma longa panorâmica, pelo céu, pelo arco do mundo, movimento de câmera, circular e insólito, pelo meridiano celeste; a câmera que, saindo do pé enlameado de Raul, desesperado e trôpego de tanto andar e fugir do próprio destino limitado e cruel, sobe pela paisagem desolada e percorre lentamente um céu branco, tão branco, que é como uma cúpula, uma redoma abafante, num movimento circular meridiano, de duração saturante e, finalmente, desce, percorrendo novamente a paisagem, até a mão do próprio Raul, cravada na areia como uma garra. Esta imagem, essencialmente dinâmica, e que só tem o seu sentido pleno dentro de uma sucessão de imagens a que se liga organicamente, é em tudo oposta ao caráter espacial e plástico daquela da qual deriva, a qual é também a 7faces • 118


metamorfose final; máxima elaboração, final e cabal, dessa mesma imagem alegórica: a face da mulher e as mãos masculinas algemadas. É a metamorfose de alegoria em símbolo, da imagem estática em imagem dinâmica, da imagem isolada, válida em si mesma, em imagens visceralmente ligadas a todas as que passaram. É nesse momento que sentimos, dilaceradamente, todo o sentido profundo, emocionante, todo pathos do filme e de sua significação; vemos, em estado puro, presente e concreta, a emoção vivida, intensa e surpreendente, comovente e inquietante, de nosso própria, essencial e trágica limitação. Temos, então, consciência de que somos prisioneiros de nossa própria finita e insatisfatória corporalidade. Nessa mão cravada na terra vemos, com terrível clareza, a expressão derrotada de nossa sede de infinito – uma derrota cósmica e universal e que enche todo o universo com seu clamor e angústia. Esse céu infinito é uma redoma, um limite que a mão do homem não consegue “agarrar” – “Das Himmels und der Erde / Mir ballen in meine Faust?”. A fusão dessa mão com o túmulo, onde ocorre a cena dramática entre Mário e Raul e que dispara a sua fuga, é simbólica: evoca a presença da morte que a sucessão de cruzes vai enfatizar. Evocam o destino fúnebre da paisagem e do filme; do universo e da inutilidade de fuga. No fim, estaremos novamente no barco: no ambiente de profunda desolação e tristeza onde a sensação de desgraça iminente se estabelece. 6 O desenlace é a tempestade que resulta dessa sensação de desgraça iminente e que não cessou de se intensificar no barco, a cada volta a ele, e que, agora, se torna inevitável e fatal. A sequência da tempestade, que se segue, “resolve” o fim, temática e formalmente. Tematicamente porque provoca o desenlace, esperado todo o tempo, e que finalmente sentimos como inevitável. Formalmente, porque, com a saraivada de shots em montagem rápida, que se seguirão num crescendo, rompe-se o ritmo largo e a cadência lenta que ia tornando o filme cada vez mais angustiante. • Uma das características fundamentais de Limite é esta vinculação completa entre sentido e forma. É pela montagem que o tema e toda a progressão das imagens convergem para a tempestade. Depois da 7faces • 119


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Na pรกgina anterior e nesta: Frames de Limite. Arquivo Mรกrio Peixoto.

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“um mar de fogo e uma mulher agarrada a um épave”

(Mário Peixoto, entrevista a Saulo Pereira de Mello, 4 de janeiro de 1979, referência citada por Saulo em comentários sobre “Motivos para um diretor”, de Mário Peixoto, extraídas de Escritos sobre cinema)

Frame do filme Limite. Arquivo Mário Peixoto.

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grande panorâmica meridiana – clímax do filme – a situação no barco é insuportável; tudo está em suspenso, no ar; tudo já foi dito, tudo já foi vivido, tudo já foi realizado. Só resta, e isto é esperado quase com impaciência, o desenlace, a solução única para o que não tem solução – a morte, que é a tempestade. Sentimos isso com clareza, agora: ela esteve presente em todo o filme como a tragédia a vir, e se insinuava pela presença do vento que sopra insistentemente em todas as “histórias”. O vento que fustiga os capinzais; que impede Raul de acender o cigarro; que desfaz os cabelos, agita as roupas, bate as portas, e que, agora, neste final, se manifesta com toda a sua grandeza e fúria. Vem da linha do horizonte – símbolo de limitação e de desesperança – e resolve, pela morte, a situação e, pelo ritmo, a montagem. 7 O epílogo vem com o fim da tempestade – é novamente uma volta à calma. Dois náufragos já morreram – o terceiro, Olga, a mais decidida, vai morrer logo. A morte dos dois primeiros foi real: Raul pulou do barco para pegar o tonel e não voltou; Taciana, desapareceu na tempestade que despedaçou o barco; mas Olga morre simbolicamente; agarrada a um destroço, desaparece por lap dissolve. Na verdade, Olga se dissolve no “mar de fogo” (é assim que Mário Peixoto descreve o mar cintilante) do início, da sequência prólogo. Segue-se o mar, o mar, o mar, o mar vazio e tranquilo. Quando a imagem proteica volta, ela já não é mais uma Allegorie – é um Symbol. Nele, que é um particular; mas vemos nele o Universal. Não apenas entendemos a imagem, vivemos a imagem: Erlebnis. Mas esta calma é um lento e triste lamento sobre a derrota e a inutilidade humanas. Olga, agarrada a um destroço do barco, dissolve-se lentamente no mar cintilante. A volta insólita da imagem protéica, alegoria da limitação em meio a estas tristes imagens realistas, reaparecendo com trágica significação, finalmente desvela totalmente o sentido do filme: sabemos agora, sentimos agora, com emoção profunda e trágica, além da razão, o que Limite é: Man´s Fate.

* Este texto foi publicado em inglês no livro Ten contemporary views on Limite, organizado por Michael Korfmann e em português é publicado pela primeira vez nesta edição.

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Manuscrito com trecho inicial do scenario do filme Limite. Mรกrio Peixoto teria se equivocado quanto ao primeiro nome de Adhemar Gonzaga; pensou que ele pudesse dirigir o filme. Arquivo Mรกrio Peixoto. 7faces โ ข 125


Manuscrito com trecho final do scenario do filme Limite. Arquivo Mรกrio Peixoto.

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Na página seguinte: Capa do suplemento francês Vu. A imagem proteica de Limite, por onde o filme teria começado segundo o Mário Peixoto. Foto: André Kertész.

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Em pouco estava na rua. Gostava de andar a pé. Atravessei a espécie de recanto onde se erigia o hotel, onde o trânsito, mesmo para a época, era pequeno – e, naquela manhã translúcida, ainda um pouco fria – meti-me pelo Boulevard Montmartre, subindo-o, rumo à “Gare du Nort”. Subitamente varrera quase tudo da mente. Caminhava. Era um esporte que me dava prazer – que me revigorava, trazendo-me – pondo ao meu alcance, e era só esticar a mão com aquela impressão – a sensação de liberdade no seu autêntico, que eu arrancava das suas superpostas “cascas” de um artesanato chinês. Estava ali, simplificada e direta nas minhas palmas – mas eu não a via, propriamente – porque era subjetiva – metida também dentro de tantos fardos. E notei, então, que a caminhada, de repente – como um bafo de novidade que me exultasse – muniase, direcionava-se, de um certo comando – um sentido, que de pouco, só me despertara aquela orientação à princípio vaga, fornecendo-me aquela avalia de uma então palpável direção, vinculada ao meu discernimento, como se um revelado, num súbito cruzamento da imprudência de um trânsito, onde eu houvesse me metido, sem dar conta daquilo – me vendo atarantadamente no meio, sem conseguir alcançar a outra calçada ; era isso – onde eu me visse encurralado e preso à risco de perder-me, com veículos em cima. Deveria ter corrido ou me desviado, para livrar o corpo. Foi justo aí. Subitamente, debaixo dessa paralisante impressão lembrava-me da chegada de minha tia “S” e duas primas, suas filhas, com quem tinha muita afinidade, que vinham também na companhia da governanta inglesa Miss “K”, de uma pequena estada balneária – mais mesmo por causa de amigos em comum, que deviam se encontrar lá, em prosseguimento da estação do ano e férias : “Saint Jean Les Pins” – pequeno “roteiro”, que começava a fazer sua entrada, competindo com outras de sua classe – e que acabou se celebrizando – havendo «além disso», um prévio acerto para nos encontrarmos em Paris ; isso Atahualpa me transmitiu, pois que tia “S” era sua irmã caçula – com bastantes vínculos, entre eles. Apertei os passos, pois as horas haviam avançado sem que eu as houvesse sentido. Ia agora com um programa, como se num pequeno susto encontrando-me com os pés na terra, outra vez, a mente entrara em seu curso, sem embaraços, já varrida dos incidentes noturnos da véspera – mas havia uma certa trégua – uma certa exuberância, retinindo, que me montava até (apesar de tê-lo quase falhado), como se daquele compromisso tão à propósito, que viera me resgatar daqueles impasses tão condensados que, desde aquela noite passada (mas que ainda ludibriava meios «ou farsa» de um retorno, induzindo-se ao outro estado), tinham feito quartel dentro da minha recondicionada reação. Que horas seriam? Eu olhava para os lados e via os outros passarem. Eu tinha uma comoção mais alta de todos os que estavam vivos. E era genérico aquilo, como uma das 7faces • 131


primeiras vezes – e em público – que me assolava. Por que seria aquilo? Algo que se preparava – que abria seu caminho à minha vinda? Onde? Onde, ainda? Continuava a andar – certamente, os passos estugados mais rápidos – mais novos, também – como em beira de um alerta. Gente vinha e gente ia. Eu passava entre eles – e aquele ritmo me espantava pela sua leveza, como se eu ali me esgueirasse, sem eles me verem. As coisas totalizadas, de princípio – se diluíam, como bolhas de sabão, e eu prosseguia – eu estava no povo – eu era, repentinamente, o povo, propriamente. E no entanto não houvera transição – estava no sangue – caminhara comigo, palpitante, desse jeito, desde o berço – sim, desde esse início, confirmava – só que eu não vira. Comecei à ouvir o ruído do tráfego e a usual vida, enfim – como a denominamos – seguindo o seu curso, cada um cuidando do que era dele ou seu, depois daquela obstrução que me envolveu. Não sorria, nem estava sério – eu me encontrava num transporte. Pouco antes de atravessar a rua do “Rougemont” – (as coisas me vêm ainda bem claras, marcadas até, da memória desses detalhes, como teclas incidindo) – deparou-se no meu caminho – e à beira da larga calçada daquele “Boulevard”, casando-se ao meio fio, quase – isto é – deixando lugar ao público – e que eu subia rumo à estação que ainda ficava à um bom pedaço, pois para isso instigara meus passos – um Kiosque de jornais; lembro-me que passei-lhe à uma certa distância, com a pressa em que ia agora – mas dando para vistoriar de relance a aludida banca com revistas e noticiários que, no usual costume daquelas épocas, exibiam-se pendurados por meio de pregadores, gênero desses que se usa em varais de roupa à secar, e que, no momento da passagem – do eu cruzar com aquela banca – e os meus olhos percorrerem na superfície do que viam – realmente, não me causou mais do que um pequeno reconhecimento de estética, em uma imagem em sépia, ali estampada, na primeira página assim exposta, de um daqueles jornais menores, tipo suplemento. Estava junto com outros, num aglomerado mais ou menos indistintos, pois enfileirava-se à uma mesma corda repleta – mas onde só detalhei aquele – o porque, não sei. Instinto? Casualidade, onde o olhar, primeiro, foi bater? No rapidíssimo de tudo – naquela fugaz primeira impressão passada de raspão – decorei, uma mulher de cabelos claros, possivelmente louros – se tivesse tido tempo de os fixar melhor – olhos expressivos, que no instinto, «passando por mim», pareciam combinar – e vindo-lhe de trás, à altura do busto – essa circunstância que chocava: – dois braços, visivelmente de homem, que a enlaçavam (sim, era esse bem o termo) mas só pelo fato de a circundarem – pois eram mostrados de punhos cerrados onde um par de algemas aprisionava-lhe os pulsos – permanecendo esse alguém no escuro, completamente invisível, por estar presumível, recuado – atrás da primeira figura assim enredada. Como foi possível tudo isso se coadunar, não sei. Mas se passou – afirmo. Lembro-me que, ao atravessar a rua do “Rougemont” (portanto a visão ou descortinar do Kiosque, tendo ficado para trás e sido banida – não deixando nem mesmo vestígio), e ao descer o «meu» pé direito, do meio fio da calçada, em que vinha, para atravessá-la, e com atenção no tráfego – ao estender esse pé, « recordo-me bem – e » em meio do gesto, 7faces • 132


como se diz em cinema – uma forte centelha estalou dentro de mim projetandome a tal imagem do jornal “Vu” (era-lhe o nome) – um fascículo, talvez, sem importância, ou acostumado àquelas coisas, «fazendo um gênero policial, talvez», mas que vestia-se daquilo – que, pouco antes, entrevira e já o havia tirado da memória) – com a extrema força de um ultra-nítido impacto, dessa vez – como se o assistisse projetado no quadrângulo “monstro” e sem bordos, de uma anônima tela de cinema, sem designação (simplesmente sendo e constando, era isso) e aí fixada, não se sabia aonde e, provavelmente, ali mesmo urdida por mim, sem projeto concebível, só podia ser isso. Perturbado – fulminado pela circunstância – recolhi o pé, algo incerto, mas já dominado – e deixei a onda de transeuntes passar à minha frente, primeiro – ganhando o outro lado da rua. Eu permanecera imóvel. Perturbado – sim – «mas com o pé todavia recolhido» – como se algo de muito importante – «e mantendo essa posição de suspense» – houvesse «ali» se declarado em mim. E ai o ângulo projetava-se de uma grande altura, como se eu estivesse assistindo aquilo significativamente de pé – como estava ali na verdade – mas à beira do abismo panorâmico de uma encosta que eu mesmo situava junto ao mar metálico – mas agora tudo com vida – não tratava-se mais de uma imagem parada, como a do pequeno jornal (já havia aí alguma cooperação, notei), e naquele reflexo, pontilhado de fagulhas de fogo ondulantes, que feriam a vista, num concentrado efeito solar. E note-se que o jornal não tinha nada disso, saliento – nem mesmo sugerido – portanto eu estava adicionando – eu era também um agente, no que me tocava – tornando-me o próprio. Só aquela zona, limitativa e em círculo – um grande círculo – era atingida, para onde eu olhava – e a vista geral era infindável, não se limitava à nada. Ao mesmo tempo (aí, eu cooperando mais abertamente, quero crer), uma tábua surgia – um destroço de naufrágio, que eu próprio aproximava desse centro visual, no oceano, iluminado com aquele efeito poderoso – já criando, então (o estágio adiantava-se mais) – sem o saber, pois tudo era tão intenso, sendo presenciado – «que me deixava sem ação». Gente passava em volta de mim, enquanto isso me paralisara – indo e vindo, no afã de pedestres – mas eu não os via – embora, em outra esfera, consciente do estado, podendo avaliá-lo – concretizando em segundo plano esse fato. O fragmento de tábua com o vulto contra a luz, agarrado nela, era afastado para o fundo daquele imenso mar longínquo, sempre visto do alto – e, devido às correntes – empurrado para dentro do centro metálico daquele rebrilho fascinante onde iria se perder. E de fato, assim aconteceu. Diluiu-se – perdeu-se – absorvido no reverbero solar, no centro mais intenso daquele coruscante fenômeno de luz. Como que voltei à mim, instigado pelos transeuntes que quase me roçavam, «à essa altura», uns chegando a me esbarrar, mesmo. Foi rápido aquilo – como uma primeira imposição (um ensaio, talvez) do que deveria se completar ainda naquela mesma noite – quase ao madrugar. Atravessei então a rua, saindo do meu transe. Mas não; num repentino surto, «retroagi tornando» à voltar como se autuado por um comando que só eu ouvia – dessa vez «eles» me viam ou notavam, pois eu estava sendo por demais objetivo, causando 7faces • 133


alguns pedestres olharem para mim – e o mais rápido que pude, pois o tempo urgia – retrocedendo rapidamente meus passos. Ainda havia tempo – e suspendendo o pulso, consultei meu relógio, dirigindo-me à banca de jornais onde estendendo uma nota pedi «apressado» um exemplar da folha “Vu” que vira pendurada. Tinham só aquela – vejam o destino! – lembro-me desse detalhe – e o rapaz de avental foi obrigado a desprendê-la do fio onde com outros fazia parte da mostra. Como meus olhos foram bater justamente naquele, continuava-me o mesmo mistério – mas me atraía – me dominava ainda mais, agora – tornando-se uma urgência em mim, onde a causa me escapava. A imagem? – pensei, mais tarde – fora daquela pressa, mas na qual não cedia para possuí-la. Por ser a primeira, no ângulo de quem vinha, como eu? Insondável. Inútil aprofundar-me nessas casualidades, que revertem à diferentes fundos – chãos de outras verdades – que estudadas – devidamente aumentadas por uma lupa – se pode muita vez decifrar. Mas não havia ali tempo, esse fator intrínseco, no qual se esbarra a possibilidade. Ficava para um depois – não havia que me atribular. Apressado, olhei em volta para ver se ainda passava um táxi – um daqueles velhos táxis de Paris, que marcaram tanto uma época. Mas nenhum à vista e só passavam ocupados – parecia de propósito, irritando-me os nervos. Desisti logo, já impaciente – nem fazia conta «daquele número de jornal» pois já o comprara. Com passadas mais largas tratei de não perder mais tempo – sobraçava o pequeno suplemento dobrado ao meio, e me esgueirava do melhor que podia – a minha agilidade posta à prova – por entre os «passantes que superlotavam aquelas calçadas matinais». Andei depressa – não podia faltar àquele compromisso nem quebrar aquela civilidade imprescindível – «onde» Atahualpa me enviara como seu representante junto à irmã – «pois» fora o almoço do hotel, tão combinado já havia, que ele nem mencionara, «essa antecipada incumbência, de dias antes, tão normal em sua praxe repetindo-a», no bilhete. E alcancei a “Gare du Nord”, justo à tempo de ouvir o resfolegar do comboio que trazia minha tia e as duas filhas.”

Inédito: O inútil de cada um – Lins (Vol 2). Cap.22, 2ª Vigília, p. 98-107.

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O único filme de Mário Peixoto, Limite foi gravado em Mangaratiba, tendo a Ilha Grande como pano de fundo de algumas cenas. Depois dos desentendimentos que resultaram na impossibilidade de realização do que seria mais um filme seu, o escritor em uma visita à Ilha Grande, decide ir viver na casa que seu pai havia adquirido em 1938, dando início ao resgate histórico do lugar. Deu pulso a um projeto de transformar o sítio do Morcego em uma espécie de museu (daí o inventário do qual se apresentam alguns fragmentos*). A ideia, como muitas das planejadas por ele, não vingou. As dificuldades financeiras levaram Mário Peixoto a vender o sítio e morar num pequeno quarto no centro de Angra. A Casa do Morcego é uma residência de praia construída por volta 1629; a lenda atribui a Juan Lorenzo, pirata espanhol, a construção da casa, feita com madeira retirada da própria mata da região. Entretanto, documentos registram que, em 1622, o primeiro dono ali edificou um fortim. Segundo o Instituto Brasileiro de Patrimônio Cultural, a Mansão do Morcego foi a terceira construção de alvenaria edificada no país. Guarda um rico acervo, criado por Mário Peixoto, seu antigo proprietário. O escritor descobriu e reconstruiu as ruínas e reuniu dentro da casa, um maravilhoso acervo de peças artísticas e esculturas. O Sítio do Morcego serviu-lhe na reescrita do romance publicado em 1935, O inútil de cada um. Mário estende o curto livro original para um universo literário singular com traços autobiográficos de seis volumes e aproximadamente 2000 páginas. Trabalhou nesta obra obcecadamente quase até o final de sua vida**.

* Os manuscritos apresentados nesta seção foram cedidos pelo Arquivo Mário Peixoto. ** As informações deste texto foram pesquisadas a partir do site dedicado ao escritor, organizado pelo professor Michael Korfmann (UFRGS): mariopeixoto.com

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POEMAS DE PERMEIO

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Rosana Piccolo Curitiba –Paraná Publicitária e poeta. Autora dos livros Ruelas profanas (Nankin, 1999), Meio-fio (Iluminuras, 2003), Sopro de vitrines (Alameda, 2010), Refrão da fuligem (Patuá, 2013), Bocas de lobo (Patuá, 2015), além da plaquete O pão da neblina (no prelo, pela Leonella editorial). Participou em diversas antologias e revistas de literatura no Brasil, Espanha e Moçambique.

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Foto publicitária vestida de noiva, ela vinha adiante pisava a grama queimada do frio áspera bota calçava vestida de noiva contrária à lágrima escura dos pombos vestida de noiva buscava os degraus delgados da praça e deixava pelos cantos gavetas de olhares e erguia tantos leques de folha seca, porque abria aleias e arrastava a gente das lentes e das revistas quando voltou-se, no ponto mais alto, majestática olho vazio das estátuas, coroa de cristais coruscando ao sol a alma saiu pela boca como a saliva dos bichos-da-seda subiu, subiu e sumiu vestida de noiva, ali ficou para sempre

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Rotina andei nas ruas do trabalho usavam cocar as grandes vidraças em fogo cruzado andei por calçadas, todas pisadas não por sapatos mas por raízes e tão poderosas e espessas como madeira macabra rastejavam arrancadas semelhando saias extremidade de faca sem fio singrando o pó da sarjeta nas ruas do trabalho andei até virar figueira assassina ter cogumelos na sola dos pés

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Bárbaros quando vieram os hunos, inesperados e brutos era quase noite. não trouxeram arcos, nem peles mongólicas, nem cavalos nus. mas deixaram garfos de sangue o cheiro doce do crime no asfalto retorcido. não os liderava o Flagelo de Deus* nem cerveja bebiam – só o cão os pressentiu, nômades ainda. se suas pupilas eram miúdas e a barba feita de orvalho se eram morenos ninguém sabia -- vieram encapuzados. esfolaram guardanapos, pontas de cigarro escapulários desfiguraram. partiram então sobre rodas, à frente da grama amaldiçoada e a havaiana gasta dos querubins repórteres. * Átila assim se intitulava.

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Domingo vermelho quando não é o circo é a ruividão terrível dos touros desfiam-se e vestem ladeiras de mugido e debandam nas línguas da periferia roída e os chifres vertem bandeiras de sangue gargantas-avisos-ameaças-microfone afônico e fazem careta e fazem palanque e babam cravos vermelhos quando se põem a cantar e cantam os touros, madrugada afora hinos tão antigos que ninguém entende os guilhotinados sabem de cor porém jamais irão explicar

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Enigma que ali se dançava, contam as estátuas caramujos no crânio profundo e abstrato Porque ali haviam estado. não dançavam os negros porque brancos não havia não dançava o bárbaro romanos naquela banda jamais haviam existido não dançavam travestis, nem garotos de programa – pois o skinhead, a ele esmagara a rocha da noite não dançavam favelados, nem os senhores do asfalto menos ainda a dança da bruxa do enterrado santo ofício por overdose de chamas que o sangue, e era tanto, e a certa altura soltou a trança – e apenas ele dançou – contam as estátuas e quando a elas pergunto se era o da cruz ou da loucura da mênade levam à boca a mão esculpida como a deter sua gargalhada de mármore

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© Ernst Stöhr

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Izabela Sanchez Campo Grande – Mato Grosso do Sul Jornalista formada pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) em 2014. Trabalha como repórter em um jornal local.

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Aquilo que flutua E quem é que vai lembrar dessa calma? quem foi que disse calma? tem alguém aí? Olho no espelho e vejo o mundo aos meus pés. em cada centímetro da pele cada possibilidade. Eu olho da janela e vejo uma multidão. mas quem sou eu? pergunta alguém tem alguém aí? Eu olho no espelho e parece que envelheci com o mundo, enquanto os frutos apodreceram e caíram ao chão. ninguém na rua ninguém no mundo. solidão é um signo que se foi desapareceu com o mundo. Não conheço esses signos, esses signos não me conhecem. vivo? sei que a mão escreve o fogo queima as notícias saem. Sei quem em algum lugar você respira. o olho se abre no entanto eu já não sei se pulei mil anos de história. Flutua o corpo o chão os vultos a memória tudo escapa das mãos. uma sonolência vigilante impede que se tente alcançar qualquer coisa que seja. Sinto-me presa a um sonho sem força suficiente para acordar. 7faces • 163


Tudo está em ordem no caos tudo está em desordem Se eu estendesse a mão talvez ninguém visse. A verdade é que quando olho não vejo ninguém. onde foi parar mesmo...? a pergunta fica presa no meio da pergunta eu deixo mesmo assim nada termina agora. nada. mas onde foi mesmo parar a agulha que costurava essas linhas? Daqui vejo as cores os novelos todos perdidos voando no céu. Todo cambia dizia um ditado no fundo da mente. não, tudo flutua. as linhas agora se costuram no ar. Daqui ouço uma lágrima na face que não é a minha. Um murmúrio um protesto tímido no fim de noite. Não era, então eu que sempre estive ali? aquilo que flutua.

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É crua a vida É crua e dura a vida é nula É crua a vida nos dentes nos pelos É crua a vida na pele É dura a vida É fuga a vida fez as malas e fugiu a vida e vivo a correr tentando alcançar a vida É nula a vida se apresenta tão estéril que não sei se a pego pelos cabelos a vida que fugiu ou se a pinto como parede a vida que ficou É crua a vida É crua e dura a vida é nula

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Resina Resina resina grita minha retina ressentimento concreto engole diversas esquinas chão se abre coração se fecha moderna noturna sem noite sem lua sem foice riso sem riso choro sem água garganta abafada catraca quebrada na mente velocidade que dói no dente na pele no palco do dia no fio do cabelo de repente partido alma partiu dois meses um século toda inquisição nenhuma resposta resina resina grita minha retina 7faces • 166


resto seco pó praça vazia resiste resina e solidão grita minha retina

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Diego Ortega dos Santos Fortaleza – Ceará Nasceu em Ribeirão Preto, São Paulo e desde muito cedo foi morar em Fortaleza, no Ceará. Concluinte do curso de Medicina. Começou a escrever aos 20 anos, e em 2015 recebeu o Prêmio Moreira Campos de Melhor Conto, em 2015.

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Domingo É domingo as nuvens baixas dos fumantes fazem carneiros, letras, uma criança grita que quer fumar que quer fumar; é muito tarde para um passeio, resta vagar, os bueiros córregos tão prosaicos de barquinhos e bitucas, sossegados desaguam numa bonita praça de vidro é gente humilde, simples, anômala; repousam… o cascavel das folhas se dispersa pelo asfalto o arrepio de menos um dia mais um dia, tudo passa… a praça estica-se no fim da tarde, muda, quando: obnubilem os anos de mal-trato, de falta de caso! aí vem vindo uma caravana emplumada, rábica! chacoalham canos e címbalos, juntos cantoam: os vergalhões dobram por ti, somente por ti! por ti eles dobram, somente por ti! cantam tomados de pretérito mais-que-perfeito. mas, e menos um dia, mais um dia, onde passar a noite? latente, dói o tempo tripartido, o pedaço que foi escrito a promessa obliterada num salto ocultíssimo que ninguém viu. o latente, doído peito de vergalhões, nele repousa meu livro esquisito a mão craquelada desmanchou-se dele e sangrou nos córregos, sangrou azul e repleto de coágulos entre os barquinhos. Pois tome um cigarro, tome.

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Cerca distância nossa cerca distância faz exaurir (não longe, espalmado-se) aqueles mirantes do meio-dia, outrora pontos de encontro agora campos daninhos labirintos sem Borges e penso, aqui fincado: as certezas de infância, rememoro-as no anseio por soluções de cabeça, que ombros não vemos, não mais - (cerca-nos alta). pintada de só branco, ou só preto, toda meneios, cercamente não se importa deixa pintarem, treparem, delimitar lavoura qualquer, tornar-se degrau, palanque, satisfazer desejos voyeur… importantemente, cerca fosse oca de indiferença, não: cerceia nossas peles torna-se densa de suor. é certo que não trabalha: deixa trabalharem-na: o seu projeto todo acéfalo (todo ombros largos), cumpre-o cercando-nos, nós, parvos, nós, claustros, parecemos-lhe débeis indistinguindo o fora do dentro, tramando cercos de fazer o bem, vizinhos e hermeneutas. aproxima-se a lonjura em passos curtos vem dissimular proximidade, e a juventude fará o salto e como é bela, e porém em pleno ar será abatida de humores intratáveis… não irá longe… ao sopé desse que é o maior cerco, a vítima, encrustada de farpas, 7faces • 172


será lembrada em razão do quão fundo enterrada; eis o projeto: que corra suas ranhuras até o mar, de cima a baixo, isolada, essa tal cerca infâmia alastrando-se como fogo e no fim teremos nada. ou ignora tudo, e repara: (no fim não teremos nada) certas infâmias erguem-se, ainda semblantes da vida, ou coisas maiores ainda, que fazem - cerca de poucas ou pouquíssimas vezes as vezes de minas, de brocas, de martelos, serrilhas, tratores, mecanismos aptos e bons em derrubar, derrubar, bem derrubar o pau-madeira nobre que muito alto cresce rente à exaustão das vidas possíveis. toda queda é merecida e pouca se a vertigem vem de baixo e a investida de cima. vê: há cercas sombras castadas sem limites, sim, mesmo em pleno meio-dia mas uma só queda já basta e daí abaixo tudo entre nós

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Camisa de dormir corpúsculo de pano com suas estampas florais e os antiquados botões de osso eu não passo de uma camisa de dormir enquanto teus rincões resvalo e roço em meio a carnes e remendos e a cobertas sem dentes avisto-me todo peça, eu em ti vestido sem mesura em corpo de mulher avessa, o qual me toma amassa rebola a vida: que forma tenho?, além de pijama aperta-me e me diz, diz quem eu sou, quem tu és?, sou o 100% algodão que esquenta por teu calor e respira por tuas costelas roupa sua, desnuda e oculta que dentro há uma mulher dormente e eu não passo de uma camisa de dormir sozinho e já folgado, talvez eu, o investido de ti

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Passarinho certa feita na varanda de casa pousou um homem de fraque e cabeça de pássaro o que por si só já é um espanto, claro, mas ainda maior o espanto quando ele nada diz com seu bico de passarinho ele bem podia tirar-me a alegria da boa aparência, das orelhas, até mesmo das ventas. felizmente interessou mais a água com açúcar que era de hábito dos pardais não quis mais largar de mim por que, poesia, estreou por essas bandas assim? não queres carne (um alívio) nem te satisfaz a ração chamei meu tio, que é apenas enólogo, mas quem sabe; sendo que ele nada sabia, e sugeriu levá-lo ao parque onde não pude deixar de notar: que elegância, que firmeza. lustrados, os sapatos, e adequadamente verde a gravata. as vezes voava não raro chilreava sons assim, canalhas, meigos como sumo de frutas rosáceas, menos próximos do diálogo que duma frouxa musicalidade não tem garras, não tem asas; não passas de um periquito perfeitamente manicurado e versado em gostos finos - salvo o truco, que joga com meus pais, aos domingos achava que passarinho vivia à distância, no alto resfolegava as penas e os ossos por piedade de todos nós, humanidade, permitindo-nos ver a mesma fragilidade de que somos feitos livre e alta, toda potência, voando e sendo assim, de mansinho. eu que fui seco de infância só então aprendi (naquele dia, naquela varanda, lendo Vinícius de Moraes) que se tocamos num passarinho vivo é porque ele está ferido, mortalmente.

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Pessoa um homem deveio devagarinho plantou-se ao cascalho, possivelmente vestido, e deixou espraiar sem prumo coisa de anos a fio batia água na sua bunda o que por si só não significa nada – mas faz pensar. bem sabido que um rio, vários até, não passam de água correndo ou de um enorme dia em nossas vidas ou de duas bandas de uma semente mas por hábito as pessoas insistem que dele se faz um colírio fortíssimo, ora embargando os sentidos ora embarcando as gentes. elas têm para si memórias claras memórias claras que escoam da foz para a nascente e o homem, sendo mortal, foi-se ficando mais e mais na bunda batendo água, assim, pertinente a ponto de não dizer nada de dizer apenas: rio!, e abrir-se numa enorme gargalhada. até que morreu em meio ao cascalho ficou-se sabido que o rio ficava apenas perto da aldeia que não constava em mapa algum, que não era violeta; nele passava água, por certo tinha volume e dimensão, que jamais ferveu, jamais santo foi visitá-lo, nem almirante ou nau de loucos ou poeta; se peixes tinha eram todos muito discretos se margens havia eram das mais idênticas em verdade percebeu-se um rio (anômico) sabendo-se dele: ficava perto da aldeia e junto dum homem muito lúcido à sua maneira límpido

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Orlando Jorge Figueiredo Gafanha da Nazaré – Portugal É autor dos livros de poemas: os pássaros habitam a casa, Guardador de sonhos, Esta rua é uma rua feliz (em co-autoria com António Luís Oliveira) e A luz de Agosto (em parceria com Milagros Piris de Vieira). É membro fundador do Grupo Poético de Aveiro.

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recordo o último cálice amaldiçoado o banquete de Dionísio essa matéria rude de ouro e prata ainda guarda a sede da tua boca a música desperta os segredos de vãos pesadelos que flor denuncia a tua ausência?

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I o murmúrio das rosas apaga o silêncio da noite escura II digo olha o rio digo está frio III o homem conta os passos um a um como se medisse o poço da morte

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dos servos a corrente de bicos no pescoço dos servos as trevas e ameixas bravias dos servos o silêncio de ninguÊm dos servos o olhar vibrante dos servos o dedo acusador escuta a voz dos servos

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© Victoria Topping

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Felipe Simas Petrópolis – Rio de Janeiro Doutor em Letras (Literatura, Cultura e Contemporaneidade) pela PUC-Rio, com tese sobre as relações históricas e teóricas entre pintura e poesia, Mestre em Literatura Brasileira pela mesma universidade, com dissertação sobre poesia brasileira contemporânea, e Graduado em Literatura Inglesa pela Universidade Católica de Petrópolis, onde dedicou-se à poesia de Ezra Pound. No momento atua no Programa de Pós-Doutorado em Psicologia da Universidade Católica de Petrópolis.

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A sagração da Primavera I Jamais esqueceremos a beleza, apesar da raridade – sua quase inexistência – que nos impele à vigilância e ao sigilo e nos ampara sem que o conforto seja exato – jamais esqueceremos os desastres. Éramos sedes em domingos de desertos, transpondo terras rumo a promessas sem vestígios; éramos, na verdade, em transformados territórios, animais tão castigados pela tarde que nosso sangue convertia-se em memória. II E ao retornar à terra quase extinta, todo suor que nos salvou tornou-se idílico; não sendo alívio, nem temor, mas armistício – lúcido indício do interlúdio que perdura em quase tudo. Ainda que nos fira a fuga do homicida, o ser ferido é uma segunda natureza, alheia ao centro que promulga e resolve, dissolve o elemento, mas não parte a pedra – estável, tão imóvel quanto eterna.

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Três sonetos extemporâneos I Não sei se esta medida me devora ou se desvenda agora outra medida, que dentro desta vida se aprimora e na morte se encontra resolvida. Mas quando a morte é o ponto de partida, E a vida nada mais que aquele outrora, Como alcançar a síntese devida Entre a sombra que sente e a luz que ignora? Não sei. Mas sei que toco o que apavora, Pois a terra em que piso não termina; E a vida segue em marcha de demora, De medida em medida, hora em hora, Onde o tempo é um ponteiro que se inclina, À espada que nos mata e revigora.

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II O ciclo que nos cerca é sempre vário, Mas sempre tão envolto em alto adorno Que seu contrário atinge um tempo interno Indiferente ao horário e ao anti-horário. O tempo que o demarca é tão primário Que facilmente esquece seu contorno Quando o retorno inclina-se em seu turno, Tão diurno e noturno e temporário. E os dias são as noites que os separam, E as noites são os dias que virão, Que giram quase estáticos e param: Neste exato momento os ciclos são Transformações sutis que em vão operam Nos relógios, jamais no coração.

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III Sei que as coisas se vão tão transformadas Em coisas tão contrárias ao que são Que já não mais me espanta a confusão Daquelas que outrora foram nadas. E que coisas são essas tão mudadas Que nunca estando onde em verdade estão Nos consentem o exame da razão Mas se ausentam assim que assimiladas? O tal sol, que une o cego ao visionário, Mostrou-me prontamente a solução, Avessa às divisões do calendário, Situada entre a pedra e o coração. Mas a visão continha o seu contrário, E o contrário continha outra visão.

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Contra a parede clara de verão Consegue-se assim, sem dúvida, travar contato com a chama da vela, que agora na parede se aclara e a forma do fogo, cumprindo-se ainda em extinção. As duas metades se apresentam raramente à visão; a sala, que detalha opacos rudimentos do tempo, raramente aceita o alento de visita tão crua. (Mas e os restos que revivem na memória nua?) Houve um movimento, modulação de texturas, a expulsar, por assim dizer, dois centros em fuga que – elevados sutilmente em seus próprios termos – travaram, sem dúvida, um contato permanente entre a chama da vela, que agora se apaga na parede, e a forma do fogo, cumprindo-se, cumprindo-se....

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Anatomia da extinção Repara nestas mímicas solenes; rítmicas, mas sem dúvida desgastadas, obsoletas se comparadas à primeira vez que tocaram teu foco unificadas sob a égide de um silêncio incômodo, e reunidas, pouco depois, sob a forma memória. Saiba que as cartas são jogadas uma a uma sob lâmpadas de outrora, numa economia de palavras, entre entidades connaisseurs de ruínas; que mesmo aqueles que não são os mesmos, nós os reconhecemos – e reconheceremos – entre corpos provisórios, enganos espasmódicos, e encontros efêmeros. Observa, enfim, quão solenemente o jogo termina, como assim somos outros enquanto tão poucos, fossilizados no extremo de um calabouço crucial, demasiado extenso para que a primeira presença seja a presença final.

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Ascensão & queda Observar como exílios te rodeiam, tal qual salmos compostos para harpas noturnas tornou-se quase a obrigação primeira das ausências seguras que nunca ignoro. Durante alguns segundos sei que tudo se transforma – no entanto, constato-te intacta: calada, hagiografada, aliada ao nada, trazendo um cárcere e um palácio em cada mão. Na hora exata em que a visão se entrega, procuro em vão os argumentos que recolhes: vejo os lados opostos do espiral muito além do sinal abissal que os convoca.

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Jonas Leite Pau dos Ferros – Rio Grande do Norte

Natural de Cuité, na Paraíba, fez graduação em Letras e pós-graduação em Literatura em Campina Grande, onde morou por 12 anos. Atualmente, é professor de Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Escreve poemas e pequenos contos em anos bissextos.

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Imagino-te, amado ignoto Nos fluídos das tardes tépidas Descendo à noite, sem darmos conta. Imagino-te assim, Sem me dizeres nenhuma palavra (- Apenas eu no teu peito, imóvel, Como se tudo que fosse importante Desaparecesse).

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Um feixe de luz entrou pela janela rompendo a decisão de me fechar no quarto. Ele ficou, andou na dança do sol até que a noite apagou sua pequena revolução, maquiou o intransponível e conformou minha resolução.

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Depois que tudo passou as bocas emudeceram E o coração, igual a um tambor furado, não reverberou nada e calou-se tudo.

Depois que tudo acabou Nenhuma boca ousou dizer nada E o coração esmolambado bateu mudo feito um tambor furado.

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© Victoria Topping

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Lucas Facó Fortaleza – Ceará Formado em Sociologia, mora atualmente em Campinas, onde faz mestrado em teoria literária. Tem vinte e cinco anos e começou a escrever durante a graduação.

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Funcionamentos 1. não buscas a exata composição nem a verdade a soprar nas conchas que no entanto escutas, e das ondas imaginas o reboar do trovão nos penedos secos de um ser vazio

2. amiga, estamos sós deitados na cama do hotel, o mar bulindo em nós, e distantes os outros tentam amar, perdidos nas ilhas que deixamos para trás (os outros nunca vão saber amar)

3. amante, teus dedos de aranha descendo a janela – que medo! por que vens em tal disfarce por que trazes hoje tão triste semblante agora te escondes atrás das treliças do biombo oval onde teu rosto cartomante, quem és agora esfinge, diamante e fumaça, pedra vaga e rolante que passa toda noite 7faces • 199


em formas que nenhuma forma resolve por que te entendo, simples amante, por que teu beijo claro, beijo e instante?

4. voando nada à frente nada aos lados e nos flancos cegos convergindo rumo ao espaço entre os dedos da mão e a paisagem que a mão recolhe com os dedos

5. verso mumificado, teus ocos formam figuras com que inauguras um mausoléu

6. o escuro mel que dá nos sonhos de verão, o que não se arranja em favos, um cachorro na grama, a grama verde, o cavalo a galope – quem os recolheu com a mão da memória? o ouro azul dessa terra agreste com quem ficou? Com a morte, o instante ou ficou comigo só? 7. plantar palavra em chão ao contrário, chão que é arado e próprio te lavra

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MÁRIO PEIXOTO: O ESTETA DA OBSERVAÇÃO Por Roberta Gnattali

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7faces โ ข 203 Mรกrio Peixoto. Frame de O homem do morcego, de Ruy Solberg (1979)


Há muito tempo, quando eu tinha dez anos, Brutus Pedreira fazia parte do grupo de amigos de meus pais que frequentavam nossa casa aos domingos e em algum lugar da minha memória ficou gravado na voz de Brutus o nome de Mário Peixoto – que tinha uma casa em uma ilha e que marcava no chão com giz o lugar onde deveriam ficar as pernas da mesa. Então havia uma ilha, mar, é claro, e alguém que se preocupava em colocar os móveis em lugares unicamente seus! Trinta e seis anos depois, em 1986, estando eu na extinta e saudosa livraria Bookmakers, me deparo com o nome Mário Peixoto na lombada de um livro de capa branca e o título bem visível em negro: O inútil de cada um. Converso com Jorge, um vendedor do tempo em que pessoas que trabalhavam em livrarias liam, e fiquei sabendo ser aquele o volume um de uma série de seis, mas que ele não sabia se os outros realmente existiam. Como com Limite, pairava uma desconfiança quanto a sua existência. (De Mário Peixoto, eu só conhecia, e assim mesmo de nome e fama, o famoso Limite que eu nunca vira). Comprei o livro e fui ler. Li e me encantei com as descrições que Mário faz da natureza, com o estilo de contador sem pressa, apesar dos parágrafos enormes, não economizando palavras para dizer o que quer. Naquela época, morando no Recreio, dormindo com o barulho das ondas, sentindo a presença do mar tão claro e cheiroso que dava vontade de beber, do cheiro acre da maresia e das coisas que a ressaca trazia para a praia, senti-me em casa com aquele livro. Curiosa, fui à Biblioteca Nacional em busca de informação sobre Mário e naquele espaço fantástico achei um livro Mapa de Limite, cujo autor, Saulo Pereira de Mello, me mostrou o filme fotograma por fotograma, antes de vê-lo na tela. Foi incrível! E mais nada. Passou o tempo. Dez anos depois, em agosto de 1996, na Casa de Rui Barbosa, numa exposição sobre Mário Peixoto, com palestras e a exibição de Limite, se apresentou a mim um senhor dizendo se chamar Arleu; disse-me que, com os comentários que eu tinha feito, parecia conhecer bem Mário. Arleu é a quem o primeiro volume do romance é dedicado “o equivalente a um filho”. Convidou-me a ir com ele, no dia seguinte, ao Arquivo Mário Peixoto, recém-inaugurado. Aceitei e 7faces • 204


assim fui apresentada à pessoa que primeiro me fizera ver Limite, Saulo, e à sua mulher Ayla, os curadores do Arquivo, projeto sustentado por Walter Moreira Salles. E por lá fiquei até hoje, 2017. Acho que Mário Peixoto teve bastante sorte, pois conseguiu que quatro pessoas se interessassem por ele e se debruçassem sobre os seus feitos literários e cinematográficos com uma perseverança perpassada de afeto. Para mim, foi como proceder a uma escavação arqueológica do restante da obra e colocá-la de pé para ser conhecida. Saulo fez isso com Limite. Os textos estavam em caixas de papelão e a cada caixa aberta eu me certificava que a obra não só existia como estava cuidadosamente escrita, anotada e conservada. Eu queria trazer aquilo para o convívio dos vivos. E os seis volumes estão aí, inteiros, digitados. O inútil de cada um é um livro cheio de pessoas de permeio com a natureza; é narrado ora na pessoa do “navegador solitário” que acha os diários de Orlando, morto há 30 anos, ora na pessoa do próprio Orlando. A narrativa se dá ora no presente ora num passado reconstruído, em retrospecto. (A obra de Mário é algo como um arquivo vivo, que cresce. São inúmeros os bilhetes que dirige a si mesmo comentando o trabalho do dia, o seu estado emocional naquele momento, coisas que quer pesquisar e depois dizendo que já pesquisou e o que acho foi isso assim, assim. Durante o digitar da sua obra, eu me senti sempre acompanhada pelos seus comentários, alegrias, cansaços, dúvidas e esperanças. Era como ter Mário vivo ao meu lado). O primeiro O inútil de cada um, de 1931, está incrustado no segundo e resolvi colocar em negrito as partes que correspondem a ele para evidenciar que ele não muda nada; o que ele faz é acrescentar dentro da mesma linha mais e mais informação. Ele não se desdiz, não se contradiz, evolui como um trapezista na corda bamba, cada espetáculo uma situação única. Por exemplo, a sua relação com a morte evolui no sentido dos movimentos do trapezista ao longo da corda-romance. No início da obra parece um garoto que reage à morte com impertinência e medo; depois, vai aceitando não com conformismo, mas como quem está num barco, limitado sim, mas em trânsito, não paralisado, nem cínico nem revoltado.

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O inútil de cada um é obra de toda uma vida. O capítulo 69 do romance, que faz parte do quinto volume, começa assim: Daqui, da minha cadeira, entrevejo o mar lá fora rebrilhando ao sol, quebrando em espumas de encontro os recifes, na ilhota. Por que não levantar-me e investir nas possibilidades tremendas que a vida que palpita me oferece lá fora, distante deste meu abrigo?! Por que permanecer – propriamente – não conformado – mas acomodandome à inércia contínua de assistir? Nos recantos da praia, entrevejo as espumas que avançam na ponta das vagas, como recortes – como bicos de rendas avançadas que se estendem, e compassadas, se recolhem – tornando ao mar – escoadas em cadências e mansidão, deslizantes naquela areia submissa cheia de luz, obedientes aos seus militantes destinos ao sol! Submissão – postura inevitável aos caminhos, e harmonizado encadeamento de tudo!” Este assistir, observar é a posição de Orlando, o “esteta da observação”. Sobre os acontecimentos assistidos se dedica outro personagem, o “navegador solitário” que se propõe montar um romance como um filme, acrescentando as emoções que ele próprio sente, o modo como os fatos narrados por Orlando o afeta. E Mário Peixoto faz também uma montagem com suas experiências, suas cartas, fatos de família. Orlando não vive, assiste, monta cenas nas quais até ele é um personagem que ele, Orlando, assiste agir. Submissão... Nada em Mário é comum, é obvio, é vulgar ou medíocre. “O inútil não está nas palavras mas no universo que elas instauram” – diz no capítulo 59, volume 5. O tempo... Mário escreve sempre olhando para trás: não olha para o futuro, pois no futuro está a morte e se recusa a se curvar ao seu domínio. Para ele, o tempo é assassino, “a moenda das experiências sofridas”, “as memórias, o espelho do íntimo que desdobra e reflete”, “o que somos nós senão aquilo que deixamos?” Mas, quando Orlando se mata, querendo quem sabe matar a própria morte, ele, Orlando, escreve: “valeria muito mais ele ter agarrado essas coisas e vivido mais, os dons dessas mesmas coisas!” (cap. 79). 7faces • 206


“A cegueira de olhar para a frente”. Realmente o que se vislumbra é um ponto de fuga no horizonte. O futuro é invisível, pois não está acontecendo. Então, Mário Peixoto olha para trás, para o já vivido, para o visível. Anda para a frente, mas de costas. “Não adianta ... não adianta”; mesmo assim Mário insiste em colocar os personagens de costas para a morte numa “marcha ré para a frente”. Há uma melancolia percorrendo o livro onde “o efêmero se despede nos constantes”. O passar do tempo se transforma assim numa “sinistra voragem” na fala de Orlando, mas no final do livro o navegador solitário se reserva o seu próprio estar na vida e não se mata como Orlando e consegue iluminar os olhos com a luz do futuro, que contém a morte, certo, mas que contém também o mistério e o imprevisto que nos atiça a curiosidade, a esperança, os sonhos. Ao tentar recuperar o passado o que Orlando sempre encontra é “a descarnada face do tempo”, pois o passado é constituído de restos mortais daquilo que se viveu. O subtítulo dos volumes do romance é “o ruído persegue”. É... A “moagem do pensamento” faz um ruído e o ruído persegue: o ruído da máquina do tempo a moer os fatos, os acontecimentos, as emoções, as sensações, a vida. O tempo – a eternidade: “Escreva Orlando e eu jamais te esquecerei!”, diz Cadio para Orlando. Escrever é deixar uma parte de si mesmo, como um filho, depois que se morre. Mário fez isto: não deixou uma descendência carnal, mas uma filiação encarnada nos seus escritos. Os personagens buscam um sentido para o viver com persistência desesperada para que este viver não seja inútil, mas é nesta busca que o viver se torna realmente inútil. No entanto o ruído persegue; o ruído da vida é alheio à filosofias e modos de pensar e no último capítulo, o 84, Mario “corta as amarras” e deixa a quem vem depois dele o julgamento do escreveu: “para o bem e para o mal...” Mário constrói um personagem, o “navegador solitário”, que reconstrói outro personagem, Orlando, através dos diários deste, achados trinta anos depois de sua morte, ainda nas mãos de sua múmia. Da exumação das remanescentes memórias de Orlando, o navegador põe de pé a história que ele conta e que vai até a decisão 7faces • 207


de se matar. Porém, o navegador, que trilha o caminho de Orlando nessa reconstrução, dá para si mesmo um outro final e recusa o suicídio ajudando também os personagens que ficaram, a exumarem as memórias transformando-as em lembranças. E Mário termina o livro deixando aos outros o direito de pensarem o que quiserem sobre o que escreveu, parecendo não pretender mais interferir no pensamento alheio, não pretender mais controlar o mundo mesmo depois de sua morte, aceitando o fado, o destino, a vida sem angústia e revolta. Como viver é para mim a arte que cada um de nós tem de contar uma história, a sua história, “para o bem ou para o mal”, leio as histórias que Mário conta e o observo a partir de seus escritos e gosto de imaginá-lo cortando as amarras; liberto afinal tanto do útil como do inútil; liberto da angústia do “eterno efêmero (...) pois isto cava-me um amargo (...) impedindo-me (...) de uma maior participação naquela aurora” (cap.36, vol. 3); liberto da necessidade de se ter uma razão de ser para poder usufruir do fato de se estar vivo bastando apenas dançar no ritmo e na cadência do ruído que a vida faz e como que nos persegue. O que afinal não é tão pouco assim.

Rio de Janeiro, 25 de outubro de 2017

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<<< Nas páginas anteriores, manuscritos de O inútil de cada um. Arquivo Mário Peixoto.

Imagens retardadas “O ruído persegue” III (trecho de diário)

A realidade para mim não tem consistência; o que é que se há se fazer...?! Eu constato e tal, mas absolutamente não tomo parte... É como se não fosse... Não há dúvida que eu a vejo, mas só. E se me refiro a ela - mas aquilo não me penetra - é num tom ou num pensamento em que a gente se refere às coisas que não constam nem impedem, porque não afetam. Basta te dizer que eu nunca estou sozinho, nem nunca me sinto só, pelo contrário: só – que diz: eu e mais ninguém visível – e é quando eu me sinto mais acompanhado. Num turbilhão, às vezes, é mais fácil eu me sentir sozinho (ou isolado), assim no meio de pessoas que me rodeiam conversando, posto que me oprimem, me vexam (como se eu fora um culpado), tirando-me - roubando-me mesmo toda a naturalidade que me pertencia. O meu pensamento (refiro-me ao processo desse pensamento) é tão forte que me leva, às vezes, ao meio da casa onde, quando dou acordo de mim, estou ali parado à-toa e de pé, sem saber por quê. Parece que, mecanicamente, há qualquer necessidade de base de que eu me agite como um estranho - eu mesmo fazendo qualquer coisa enquanto o raciocínio se desenvolve emancipado e os movimentos (que eu fiz) ignorados e autômatos, agiram em tônico. Não sei... “Eu vivo os meus dias como se vivesse um só dia” (deixou-me esta frase, imposta, e que só depois repetiu-se sozinha, muitas vezes, diante do meu espírito e alarmando-me com a sua insolúvel ansiedade). “Eu vivo os meus dias como se vivesse...” Não; inútil prosseguir, repetir-me porque quantas diretrizes assim impostas e quantas interrogações que irão se perder - predirá um grito desses...?! É uma questão, também, de aceitar, de se conformar. A realidade para mim não tem importância, não me modifica, não adianta, o que é que eu hei de fazer?! Procuro me convencer, mas à toa. A imaginação sim, substitui tudo e convence - aliás, é só o que existe para mim. Vivo dela porque é o que verdadeiramente me faz vibrar, a única que pode me empolgar - cria e apaga ao meu feitio - como um halo e um sopro. A realidade, não. Esbarro logo nela - e absolutamente não me convenço das suas malhas - é questão de sentir ou não sentir. É inútil. Eu sofro uma dor física, mas isto não impede que eu viva fora da realidade - porque além do mais ela é feia, barulhenta, desarmoniosa e exaustiva. É o mesmo que me obrigar a enxergar um átomo a olho nu: não o vejo. Eu não vejo a realidade; posso estar passando por ela - como devo estar neste momento, segundo vocês dizem - mas o que me adianta se eu não tenho os olhos apropriados para ela? Essa água (por exemplo) pode me molhar, mas passará toda na minha peneira... E depois sempre haverá sol para me enxugar. Da realidade, nem poeira...!

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O tempo é um só I antes Da luminosa indiferença, onde não mais se distinguiram dias nem amigos, de suas velhas malas cintadas da proximidade do mar, de suas noites abaulando-se de umidades, desataram-se por fim, respirantes ainda dos escritos amarelados, os sintomas tardios da sua invisível solidão. Porém, não só das calcificadas atitudes, como ainda dos seus mais impulsivos gestos, nenhum foi aquele – o irreprimível que se estampa – como um ríctus, o poema que dele descobririam já haver esperado, quantos, nesse dia, chegassem a ouvi-lo! Não seria este nenhum proscrito, ou corruptor; nenhum vaso algoz onde à garganta trágica, antes de alçada à claridade murchasse ainda débil a bravura da flor. Para mim que o discerni na sua boca, quando ainda nem poema – porque jamais o seria – para mim, que pressentia a tensão dos seus nervos que, jamais afilados, escreveriam a separada projeção, para mim, ele contornou esse destino... e partiu. Partiu tranquilo, como que seguro, sabedor de há muito, que dos seus manuscritos e dos seus livros 7faces • 214


– além da simpatia – por mais que fizessem, nada brotaria fora da sua condição: todo o orgulho, todo o amor, forasteiro na comunhão geral. Das coisas esparsas que nele pernoitassem, todas partiriam como vários destinos; umas se perdendo, outras, nem mesmo voltando. E aqui estaria eu, junto ao seu descanso onde cresce capim, trazendo flores molhadas, apanhadas na costeira: braçadas amarelas, de um velho tronco espinhoso que, como um nome fatigado, pendeu sobre a orla de pedregulhos, e que ele, se hoje voltasse, gostaria de olhar sem sofrimento. Surdo, arquejam o mar e a mata, que respiram: ambos o conheceram. Choveu; e pelo dia, com indiferença, tudo emana essa indolência na umidade. Mas idêntico, seria o dia de muito homem que o atravessasse sem saber; embora, os instantes que não fossem transfigurar, nessa obra como neles os coagulassem em espaços, que no primeiro só transbordaram sem as afinidades de cicatrizarem mais além. Se um dia – um dia acordando sozinho – sentir a gelatina do destino descida à frio no seu rosto, não demore : aproxime-se da janela, abrindo-a enquanto é tempo, e reflita. Em seguida, sabendo, vista-se com cautela, – porque talvez amanhã 7faces • 215


o recuo de tudo isso que sentir já não forneça o aprovamento destas tréguas. E saia. Vibre a sua maioridade. Espere, plainando mesmo, ainda que à superfície do momento ... Não importa o quarto aberto, o ar que invade; nem olhe para trás. E por se sentir satisfeito, cabendo em você a distância e a pequenez, será também reflexo à impressiva condensação das montanhas – de serra em serra reafirmada, naquilo que poderá cercar seu mundo raso. Então, irá pisar seguro e alheio. Meditará nos seus pés que marcaram a terra – apenas nos seus pés – e olhará para eles. Sentirá no ar prenúncios de nova chuva, observará as últimas gotas de água, guardadas nas primeiras folhas, e traduzirá ao fundo, recuado, o imóvel capuz de nuvens escuras que encapacetam a cordilheira. Irá passear à toa pela borda do mar, saltando pedras que emanam hálitos de maresia, e descerá a uma praia sem retirar as mãos dos bolsos, revivendo de há muito que um dia terá de morrer. Estremecerá aí... E voltará, então, margeando a linha férrea; quando ouvir a batida do sino suspenderá o rosto para as abas da estação isolada, apertando instintivo os seus passos, apesar de que na realidade, ninguém espera e você também sabe não ser esperado de ninguém. 7faces • 216


Da plataforma. distinguirá na pensão seu quarto e sua janela, arejados pelo vento dos morros reabastecido na vazante; e ligeiro – ou vagamente – traços sem brilho de alguma forma indescritível que à parte e ao acaso com você se depare nessa estação. II dura nte Seu é o dia; não o perca. O fato de estar sozinho e não sentir nada perturbável, o fato de se escoar na indigência – será ele um indício? A chuva peneira em obediência, após o meio-dia; resvala sobre sua capa, cilha no seu velho guarda-chuva enrugado, chumba fino na folhagem envernizada que oscila. Tudo sombrio; único, suspenso. Do nada a sentir essa harmonia aconchegada, do nada que não trará feitio que recorte e que pese, você tira um espreguiçamento de poema. Não bastará você a si próprio para envolver a simplicidade que o cria a essa imagem... Se esses instantes durassem, confirmassem!? Cessa o passeio. Volta! Tornando pelos trilhos, escuta o “sereno” dos grilos nos morros; nos morros de árvores imóveis, e copas esgarradas ressurgindo de neblinas; como num espelho que transpira, 7faces • 217


as ilhas estão próximas e enevoadas no mar. Depressa, o seu quarto de persianas encostadas; seu contrito descanso sobre a cama, seu agasalho; a chuva tamborilando luzidia no alfange das moitas e nas abas pesando dos taiás da horta. Estender os braços ao alto; depois acima dos ombros, ao encontro da cabeceira da cama. Você revolve um vago gosto de poesia na boca... ...confessa...! Mas será mais simples seu abandono, recostar os olhos por enquanto – ou indefinidamente: o que também não tem coragem de averiguar com você mesmo. Ah! o sombrio desse dia que respira: que se estende, se ingurgita... ... e de novo se agasalha! Deitar-se a gente na cama e abstraí-lo: vivendo-o sobre o corpo, pelos olhos penumbrados – cortejado pela boca que nem fala... Quase adormece... mas ouve, pensa, anestesiado ainda nessa volta volumosa; sabendo, contendo, sentindo tudo que há lá fora aberto na umidade, e gota a gota tranquilo, dosando no sensualizado sutil desse tempo: “Quando eu mais não estiver – irá pensando – falharão por mim tantos destinos... ! Jardins crescerão ervas; jardins que possuíram caminhos abertos, sentenciosos – como se cumprissem eternidades – e nos velhos beirais, 7faces • 218


onde passarinhos fizeram ninhos, no meu tempo – e eu nem soube – outros telhados mais altos pingarão a toada da chuva nas goteiras. Passarinhos, onde estarão eles, que eu já os vi? E as rodas dos carros que passaram? E o olhar das crianças”? III depois Dia, levanta e perdoa: porque o poema que velaram jamais virá agasalhar; e tal não fosse antes mil vezes dedicado a coisas do que a seres... Seria ele – o cerco hermético e tranquilo de um só dia – sua mais próxima perfeição, a que não suportaria contatos com o atrito de um só instante: negativo exposto à luz! Úmido, sombrio, quem sabe? será também o dia de que ele irá lembrar-se – o derradeiro, talvez, a que se apegue, e em que seus olhos pensem, para libertá-lo de uma vez... Porque nos horizontes ninguém distinguirá o cerco de suas montanhas; nem pelo mundo, como ele quis, sensualizará o afago da sua região liberta. Meu inútil, meu tão mortal sensitivo, quão destinatário! ...E sobre a vasta terra, como em exílio, eu sentirei inveja, do riso despreocupado das crianças, 7faces • 219


que nessa mesma tarde nos seus folguedos, rirem Ă toa, poeta, ignorando a sua morte.

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Terra na boca (Canguéra)*

Há um poema surdo rumorejante das profundas entranhas das raízes que se alojaram como polvos nos ataúdes de velhos corpos carcomidos, violados no segredo da terra... O ar insolúvel da morte escancarou-se com o esquife num mesmo arrombamento inútil, de úmidas dobradiças, cedendo ao faro macio das tenazes, que percorrendo o vão despido das costelas, tatearam por fim o coração resvalado no escuro de um tórax... ...E da víscera bloqueada petrificando-se nas garras envolventes desse monstro, sobem as glebas coloridas do meu mundo tonto, que os meus olhos devoram nos caminhos... Mas nada sacia a amargura da possibilidade alarmante que tudo aflora sobre a terra e um farejo inculto ainda não conseguiu preferir... O meu corpo se esbarronda na secura de torrões, conservando a boca entreaberta no fito do paladar Pois onde quer que eu esteja esse poema intangível, que eu não consigo dominar, esgueira-se na emergência do meu instante, e na seguinte aurora, estrangeiro, mas à beira dos meus lábios, ainda me acena de um imperecível rastro de partida... ! A canção macabra da entranha da terra, cravando a letargia nos meus sensos, deixa-me esgotado, * Caveira, em tupi.

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o dorso hirto, sobre o chão, roçando no encontro das minhas pálpebras cerradas, o bafo desordenado de todas as criações... Nem o quebrantado afago das marés, nem o hálito das ribanceiras descarnadas onde, de bruços, me escoro procurando a terra das raízes, nem mesmo o mar – o mar visto de cima, refletido à beira de declives ou renovado em cobre de outros sóis, poderão afivelar a correia de ternura que provoca o espaço uniforme dos meus atos... Unhas que trazem terra na migalha sediciosa das pontas; e onde corro, à procura de um apoio, o afastar infindo, da paisagem que recua, trocando-se à frustrar-me o tato da loucura! Coração meu nessa intraduzível multidão de testemunhas; e antecipando um corpo que ainda não foi prisioneiro, minha tendência concretizada pelo solo, como planta dominada que se inclina e procura pela luz... Fugir! fugir para confins que a gente imaginou, um dia, em hora e aspecto; fugir ao desvario do solo, de vontade própria antes que outros classifiquem, com as mãos, o nosso destino. Cevar na rocha ou na clareira, junto ao mar, o sítio para o destino tranquilo e a única sonoridade capaz de aproveitar essa ira ainda dormente... A última terra que pousar nos meus lábios, me fará humilde; e será aquela com a qual, instigarei meus sintomas, espalhando-a, de propósito, sobre o comovido dorso dos meus dedos... 7faces • 222


Festeja, oh! terra o teu ganho de causa no meu corpo; o gosto que eu tinha na boca, o sentido perfeito – ainda há pouco escapou, volatilizou-se como sempre – como o poema volúvel que se aproxima fácil dos meus olhos e de repente se dispersa nalgum infinito do meu ser... O que deixar para o fim, a sua fonte de ternura não poderá traduzir para a vida a queda voltejante de uma última folha, nem desvendar pelo sulco rancoroso das estradas, o amor às pegadas que forem derrapando para trás. Murmúrios atrasados, ainda me alcançam de partida... Escrevo-os na areia ressequida, junto à uma casa antiga de morada – há muito que não chove – e quem sabe, esse terreno tão varrido não fertilizar ainda o meu poema fracassado?! Vãos frenesis, esses meus... como a lanterna colorida de trens que se afastaram pela noite para nunca mais voltarem, reincidindo nesse aspecto, de uma vez. Restam guirlandas de acácias que poderão acenar pro meu destino... (Com o nascer do sol, a corrida pelas orlas dos barrancos...) O mar dos ouriços e dos corais... A lamina das ostras que resplandecem de poder... O recanto dos cemitérios pequeninos. E em certas noites, em casa, a magia das velas que aproximarem de um cigarro, e não sei porque, por algum visitante, desnudada repentino a rápida verdade de um semblante – trarão de novo este meu instante verídico. Estendo-me na crosta pura do chão, mordendo o cheiro dos barrancos depravados...! de quantos corações apodrecidos, subiu a gleba de uma nova inspiração...?! 7faces • 223


Porque é só um sentido que provoca o chamado de todos os poemas ... Como o pião da raiz, que aninhou-se no peito da morte, e ainda emerge à tona desse grito como se espavorido fugisse do vaso soterrado ...

* PEIXOTO, Mário. Poemas de permeio com o mar. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.

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ENIG MÁRIO Por Joel Pizzini

“Tudo o que não invento é mentira” Manoel de Barros

Fui levado a fazer cinema após ver Limite nos anos oitenta na Cinemateca de Curitiba. O filme deixava de ser lenda (há décadas não era exibido) e voltava a circular entre os iniciados e desavisados como eu, por obra incansável do restaurador Saulo Pereira de Mello, discípulo de Plínio Sussekind que lhe conferiu essa meticulosa missão. Confesso que fiquei siderado com as náufragas imagens de um barco à deriva com três personagens-signos, na contracorrente da lógica realista. Na época eu cursava jornalismo, tinha cometido um livrinho de poemas e percebi pela primeira vez que podia me arvorar livremente pelo cinema de poesia (cf. Pasolini). Saí desconcertado da sala, inundado pela escritura vertiginosa de um menino de vinte e poucos anos, cuja câmera desvelava inusitados pontos de vista, apontando-nos desde os anos trinta outras possibilidades narrativas muito além do habitual psicologismo. Com pose de repórter investigativo, saí determinado a conhecer a fonte daquela proeza estética que tanto me comovia. Descobri que Limite era invenção única de um cineasta então recluso num quarto de um antigo hotel em Angra dos Reis que se transformara num agitado centro comercial. O quarto permanecia intacto, em respeito ao notável hóspede, uma figura excêntrica reverenciada 7faces • 226


pelos lojistas vizinhos. Mário Peixoto me recebeu polidamente como se fosse mais um dia de visita ao templo do esteta errante. De pijamas e tênis branco, abriu-me da portada memorabilia do filme que atravessava ainda sua vida. Museu do Eu, o apartamento acomodava pilhas de artigos, recortes de revistas, rascunhos de poemas lacrados em sacos plásticos como estufas primitivas. Comportamento típico de quem fazia hora extra na terra, Mário se recolhia na sombra de sua obra prima, remontando o filme-infinito reduzido pelos idiotas da objetividade (como diria Nelson Rodrigues) a simples devaneio metafísico. Assombrado pela condição social que por si só despertava desconfianças do artista no metier, Peixoto começou a ser hostilizado desde a avant première no Cine Capitólio, onde Limite desafinava o coro de melodramas que imperava no período. Durante o Cinema Novo, foi taxado por Glauber Rocha, primeiro como burguês decadente, depois revisto pelo próprio cineasta baiano que o considerou um gênio da vanguarda latina. Ao longo de décadas, tentou-se em vão diluir a grandeza do filme a partir de argumentos nada artísticos. Quando Mário é taxado de um “Cineasta de um filme só”, Saulo devolve sabiamente: – E, precisa de outro? Acusado de formalista, hermético, Mário se tornou um autor inconveniente aos apelos de brasilidade que os nacionalistas de plantão exigiam. Adotou-se Humberto Mauro como paradigma do cinema nativo, mas poucos sabem, porém, que Mário após esboçar o seu roteiro, procurou o próprio Mauro para dirigir Limite e foi, aliás, o cineasta mineiro inclusive, que indicou Edgar Brasil para assinar a fotografia. Ao ler as sequências imaginadas pelo jovem realizador, Humberto Mauro, concluiu que só o criador daquelas cenas insólitas poderia dirigir o filme, mas para tanto precisava das soluções técnicas que apenas seu fiel colaborador, Edgar Brasil poderia oferecer por conta de seu absoluto domínio ótico. Justiça seja feita também a Júlio Bressane, Rogério Sganzerla, Walter Lima Jr e Walter Hugo Khoury que valorizaram Peixoto, quando este se encontrava isolado, sem condições de trabalhar. Aliás, Noite Vazia virou seu filme (brasileiro) de cabeceira e o inglês David Lean, seu mestre assumido. Frequentei seu apartamento em Angra durante os últimos meses de sua vida e nos tornamos amigos. Para saciar minha curiosidade acerca das soluções técnicas e estéticas empregadas na realização de Limite, fizemos um pacto: eu o ajudaria 7faces • 227


a organizar os últimos capítulos de seu romance autobiográfico O inútil de cada um e ele me decifraria alguns enigmas deflagradores do filme. Movido pela vontade inicial de gerar um ensaio documental sobre sua vida-obra, Mário me concedeu na época os direitos por escrito para recriar sua trajetória e, que ora se desdobrou num projeto de ficção, intitulado “Mundéu, a invenção de Limite”. Compreendi afinal in loco a razão de seu apelido Maçarico, pois ele sempre esquentou a cabeça quando limitavam toda sua arte ao filmeúnico. Quando de repente eu propunha revermos Limite reagia indignado jurando que faltava meia hora na versão sonorizada disponível em vídeo. Em compensação, deu-me a lista das sequências faltantes do filme assinadas em baixo de próprio punho. (Desconfia-se que Mário elaborou tais cenas após a produção da fita). Outro fato imperdoável para setores da comunidade cinematográfica é a autoria do ensaio sobre Limite atribuído ao diretor russo Sergei Eisenstein reproduzido até no dicionário de Georges Sadoul (a partir do original publicado numa revista de arquitetura editada por Cacá Diegues). Mesmo se tratando talvez da reflexão mais séria existente sobre sua obra, a provável heresia de Mário ofereceu munição definitiva aos detratores do cinema de poesia. Na verdade, toda a mitologia criada em torno do artista e da obra se tornou com o tempo parte integrante do imaginário antropofágico brasileiro. Pós-Limite, Mário abandonou em plena filmagem – o barco para a superprodução de Onde a terra acaba, bancada e estrelada por Carmen Santos, escreveu inúmeros argumentos, poesias, roteiros, concluiu o livro-testamento O inútil de cada um e, por pura intransigência estética caiu no ostracismo. No final da vida, Mário sobrevivia de algum direito autoral, de um prêmio da Bolsa Vitae e da venda de objetos de arte que colecionava para a criação de um museu de antiguidades. Na ocasião, presenciei a visita a ele do cineasta Walter Salles (levado por Ruy Solberg), interessado a princípio em filmar seu roteiro inédito Alma segundo Salustre. Mário aprovou a ideia sob a exigência, contudo, que Salles encarnasse também o protagonista. O filme ainda não saiu do papel, mas o encontro foi providencial para que Mário Peixoto tivesse todo o amparo necessário. Seu acervo foi instalado na Videofilmes, sob a égide de Saulo e sua companheira, Ayla, se tornando acessível aos pesquisadores e enfim, salvaguardado. Este gesto nobre permitiu uma saída de cena digna para o nosso cineasta número um.

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Enquanto Mundéu, o filme, não ganha contornos, irrompeu o Mar de fogo, um breve filmensaio que acabou se tornando em 2015, o único representante do país, na competição internacional do Festival de Berlim. Concebido a partir de cenas, making of e relatos do diretor, MAR DE FOGO transcria livremente a pulsão visionária de Peixoto para experimentar as sensações e amplificar os limites de sua aventura artística. Durante sua exibição na Mostra Internacional de São Paulo, antecedendo a cópia restaurada de Limite, uma espectadora ilustre, a atriz Geraldine Chaplin, me procurou no dia seguinte, convencida que Mário Peixoto era o Rimbaud do cinema. Falou que ficara excitada com a sessão e que Mar de fogo deveria ser mostrado sempre depois de Limite, pois segundo ela, tem uma luz própria e reverbera vertiginosamente o mergulho iniciático. Um alento para Mundéu pedir passagem.

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Pรกginas manuscritas de Sombrio e O continente que submergiu, dois dos romances inacabados de Mรกrio Peixoto. Arquivo Mรกrio Peixoto

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Os convidados GERALDO BLAY ROIZMAN É cineasta e artista plástico; graduado em Arquitetura e Urbanismo pela PUCCAMP (1987); mestre em Artes Visuais pela UNESP/SP com o estudo “Mário Peixoto, um olhar fenomenológico” (2003). Aluno de Doutorado, desde março de 2015, pelo Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais, Linha de Pesquisa: História, Teoria e Crítica na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. CIRO INÁCIO MARCONDES É professor, crítico e pesquisador de Histórias em Quadrinhos e Cinema. Foi professor da Faculdade de Comunicação da UnB, do curso de Cinema do IESB e de Audiovisual no Unicesp. Atualmente ministra aulas no curso de Comunicação do UniProjeção. É Doutor em Comunicação e Mestre em Literatura pela UnB, com passagem por Paris IV-Sorbonne. É o editor do site www.raiolaser.net, especializado em crítica de Histórias em Quadrinhos, e mantém semanalmente, no portal Metropoles, a coluna Zip – Quadrinhos e Cultura Pop. SAULO PEREIRA DE MELLO É pesquisador de cinema silencioso, ensaísta e organizador de Escritos sobre cinema, Poemas em permeio com o mar, dentre outros livros que tratam Limite e Mário Peixoto. É curador titular do Arquivo Mário Peixoto. ROBERTA GNATTALI É médica psicanalista. Com seu interesse paralelo por literatura e cinema, trabalha no Arquivo Mário Peixoto desde a sua fundação, em 1996. JOEL PIZZINI É cineasta, pesquisador, autor de ensaios documentais premiados internacionalmente como Caramujo-Flor (1988), Glauces (2001) e Dormente (2006); conquistou com os longas 500 Almas (2004) e Anabazys (2009), além da seleção oficial no Festival de Veneza, os prêmios de Melhor Filme, Som, Fotografia, Especial do Júri, Montagem, nos Festivais do Rio, Mar Del Plata, e Brasília. Para a televisão, a convite do Canal Brasil, realizou os retratos Um homem só (2001), Elogio da Luz (2003), Retrato da terra (2004), Helena Zero (2006), entre outros. Conselheiro da Escola do Audiovisual de Fortaleza e Professor da PUC-RJ (Pós-Graduação em Comunicação) e Faculdade de Artes do Paraná, Pizzini foi artista residente da Unicamp do Arsenal/Fórum da Berlinale, dentro do projeto “Living Archive”. Trabalha ainda como Curador da Restauração da obra de Glauber Rocha. Pesquisador de novas linguagens, participou do projeto Artecidade e da Bienal de São Paulo, Mercosul com videoinstalações e direção de performances. Entre as direções recentes estão o filmensaio Olho nú (sobre Ney Matogrosso), coproduzido pelo Canal Brasil e Paloma Cinematográfica, premiado como Melhor Filme no Festival In-Edit e FestCine América do Sul e selecionado oficialmente para o DocLisboa e Festivais de Havana, Guadalajara, FIPA (Biarritz) e o curta Último trem em Super 8, exibido no Festival Internacional de Curta-Metragem em São Paulo. Em abril de 2017, teve seus filmes apresentados em programa especial da Cinemateca Francesa, dentro de uma Retrospectiva do Cinema Brasileiro. Coordena atualmente o projeto Núcleo Criativo aprovado pelo Fundo Setorial da Ancine que prevê o desenvolvimento de cinco roteiros e pilotos para séries televisivas.

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7faces www.revistasetefaces.com A Revista 7faces é uma produção semestral independente com interesse na publicação de poesia. Editores Pedro Fernandes e Cesar Kiraly Organização desta edição Cesar Kiraly, Filippi Fernandes e Pedro Fernandes Conselho editorial Eduardo Viveiros de Castro Ésio Macedo Ribeiro Maria Filomena Molder Nuno Júdice

Colaboradores (por ordem de apresentação) José Luís Peixoto Rosana Piccolo Chary Gumeta Diego Ortega dos Santos Rodrigo Novaes de Almeida Izabela Sanchez Lucas Rolim Orlando Jorge Figueiredo Gabriel Abilio de Lima Felipe Simas Carlos Augusto Pereira Jonas Leite Geovane Otavio Ursulino Lucas Facó Agradecimentos Especiais, ao Filippi Fernandes – pela seleção, organização e revisão de materiais e ao Arquivo Mário Peixoto, na pessoa do seu curador Saulo Pereira de Mello. Aos convidados pela atenção para com esta edição. E a todos que enviaram material para a ideia.

Contato Pelo correio eletrônico dos editores, pedro.letras@yahoo.com.br, ckiraly@id.uff.br ou através do correio eletrônico da redação revistasetefaces@ymail.com Revista 7faces. Natal – RN. Ano 7. Edição n. 14. Ago.-Dez. 2016. ISSN 2177-0794

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