Cartas a futuros escritores

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Wislawa Szymborska

Cartas a futuros escritores



Wislawa Szymborska

Cartas a futuros escritores





A revista polonesa Vida literária passou a incluir a partir de 1960 uma seção que recuperava a tradição de um gênero comum neste suporte; nesse caso, um correio literário, espaço através do qual se respondia aos autores que enviassem suas obras para leitura e eventual publicação no periódico. Uma das pessoas responsáveis por esta seção era Wislawa Szymborska; ela ficou do início da ideia até 1981. Mais tarde os textos do “Correio literário” foram recolhidos e formaram parte num livro cujo título em português (tradução livre) é Correio literário ou como chegar a ser (ou não chegar a ser) escritor. Foi organizado por Teresa Walas. Neste catálogo se copia algumas das cartas de Szymborska e uma entrevista realizada pela antologista exclusivamente para a edição apresentada em 2000.



Escrever nos tempos antes da internet oferecia aos estreantes meio escrupulosos um mundo quase infinito de possibilidades de plĂĄgio. E os plagiadores nĂŁo respeitavam nem Franz Kafka nem Thomas Mann. Ou William Shakespeare.



J. Szym (Łódź) Veja, veja... Copiou cuidadosamente alguns excertos dos contos de Jan Stoberski e nos envia com o pedido de que publiquemos como estreia literária. Mas isso não é nada comparado a um titã do trabalho

Reconhecido escritor polonês do século XX.

como Gdansk, que copiou um capítulo de A montanha mágica com outros nomes para as personagens para despistar a cópia. Eram umas trinta páginas. Você nem se sai muito bem com estas quatro folhas manuscritas. Precisa por mãos à obra. Para abrir o apetite propomos A comédia humana. Não é nada mal e é grande. J.St (Bratislava) Não fomos capazes de sentir essa atmosfera de mistério e de terror indefinido que paira sobre o conto intitulado “A minhoca”. Porque esse terror é um empréstimo direto de Kafka e, como acontece muitas vezes, se faz um uso indevido das coisas emprestadas. É uma grande sorte que o proprietário não venha reclamar sua devolução. Zegota (Bialystok) No caso de publicarmos seu texto, envie-nos, por favor, o endereço atual de Kazimierz Przerwa para que possamos enviar-lhe os oitenta Poeta polonês que morreu por cento dos honorários a respeito dos direitos do autor.

em 1940.


W. S. (Londres) É uma lástima que antes de começar a escrever esta tragédia você não ter estudado com mais atenção as relações sociais da Dinamarca feudal. Infelizmente, você renunciou a verossimilhança em favor do sensacionalismo. Claro exemplo disso é o Fantasma do Pai, sem a tal manifesta aparição toda essa sangrenta fábula não poderia se produzir de nenhuma maneira. Como materialistas estamos convencidos de que os fantasmas nunca dizem a verdade. Por isso, fica impossível para nós acreditar numa intriga urdida no além e as peripécias

subsequentes

acompanhamos

com

resignação.

Aconselhamos que leia mais, que saia com maior frequência e tenha mais contato com a realidade e escreva menos e que se faça apenas aquelas perguntas em que é possível dar alguma resposta.


À redação de Vida literária chegavam poemas e contos manuscritos cheios de erros. Szymborska se mostrava implacável.



WI. T-K (Poronin) “Peço perdão de antemão pelas falhas com a ortografia, mas tinha muita pressa quando estava passando o texto a limpo...” É curioso. Até agora pensávamos que as pressas afetavam só a legibilidade da caligrafia. Mas, já que disse isso, faia se escreve mais rápido que falha mas... pensando bem, para quê mesmo toda essa pressa? Primeiro, o fim do mundo não será até meados de fevereiro. Segundo, não se sabe se o fim do mundo afetará também o “Correio literário”. Terceiro, seus versos são fatuais, apenas anotações soltas, das que só com uma imaginação transbordando se poderia chegar a fazer um poema. Saudações. P. G. Kr (Varsóvia) É fundamental mudar de caneta. A que usa comete muitos erros. Suponho que seja estrangeira. G. O. É verdade que Nero tinha um caráter nauseabundo, que se entregava à libertinagem e à grafomania, mas que comesse batatas fritas é algo do que não pode acusá-lo. Apesar de batata rimar muito bem com fogueira. L. Ar. (Cracóvia) Parece que Liev Tolstói se escondia num armário para escutar as conversas das criancinhas da família. Desejamos a você pelo menos uma mínima parte dessa curiosidade. Porque você escreve um romance sobre a vida das universitárias numa residência estudantil e, embora a trama seja ágil e bem realizada, as meninas falam como em um romance de Madame de La Fayette.


Grazyna (Starachowice) Para você a poesia é o sublime, o absoluto, a eternidade, o suspiro e o gemido, tudo isso numa concentração tamanha que supera inclusive a dos álbuns de recordação das senhoritas de princípios do século. Com essa grandiloquência vai ser difícil conquistar o leitor atual. E mais, até a pessoa mais próxima e de confiança, depois de ouvir uma frase dessas, olhará para a interlocutora com pavor e em alguns instantes lembrará logo que precisa sair para uma urgência. Então, o que fazer? Soltamos as asas e tentamos escrever algo com os pés no chão.


Com frequência a redação sofria o entusiasmo dos amigos de um poeta que havia se destacado numa tertúlia com seus versos. Animavam-no a publicá-lo na revista. Que grande erro! As cartas de Szymborska, bem-humoradas e rigorosas, explicam melhor que qualquer tratado como concebia a literatura.



M. D. Vamos supor que já teve a oportunidade de recitar esses simpáticos versinhos em alguma celebração íntima, depois da parte oficial, claro está, uma vez terminado os grandes discursos e a Polonesa de Chopin, interpretada por uma menininha com uns laços de cor de rosa. O público se retorce nos seus assentos sem saber o que vem depois ou se já é hora de ir beber algo. E de repente esses poemas sobre nosso pequeno público! O autor é mencionado pelo seu nome por todos e, que educação, que amabilidade! A sala estala em risos e aplausos. Justo depois de tudo isso chega o momento desafortunado. Alguém comenta com o autor: “Teria que enviá-los a algum lugar para que sejam publicados, seria uma pena que não restasse nada mais”. Ai, ai, ai! Isso não é um bom conselho. O poema deixou sua marca, claro que sim, emocionou a todos os interessados, pronto, conseguiu seu objetivo. Agora vai e põe tudo a perder, quando se coloca sobre a mesa de alguma redação e começam a analisá-lo com critérios literários. E no fim dizem que isso não é poesia, e causarão ao autor um enorme desgosto. Desgosto que poderia ter sido evitado. H. C. (Cracóvia) A falta de talento literário não é nenhuma desonra. É algo que acontece a muitas pessoas inteligentes, ilustres, nobres e extraordinariamente dotadas em outros campos. Quando dizemos que um texto é ruim, não pretendemos ofender a ninguém nem lhe apagar a fé no sentido da existência. Também é certo que nem sempre emitimos nosso parecer com a proverbial amabilidade chinesa. Ah, os chineses! Eles sim sabiam, há tempos, antes da Revolução Cultural, responder a poetas não muito talentosos. A resposta era algo como: “Seus poemas superam tudo que foi escrito até agora e tudo o que fica ainda por escrever. Se se publicarem, sua deslumbrante luz faria empalidecer toda a literatura e outros autores que a cultivam se dariam conta de sua nulidade...”


Ewa (Bytom) Quem sabe? É possível que algumas forças poéticas dormitem no fundo de sua alma; o fato, talvez, é que nem sempre consigam aflorar. Você coloca em seu caminho obstáculos feito de muitas metáforas, tantas que fica impossível perceber o mundo além delas. Os esforços por sua vez cada vez mais poéticos são a insegurança mais frequente dos poetas de primeira viagem. Temem a mais sensível das frases e tentam escondê-la, complicam a própria vida e a dos outros. De dez, um consegue sobreporse a essa forma afetada e chega a se converter num bom poeta, cinco deixam de escrever, um passa para a prosa (oxalá que seja com um melhor resultado!), e os outros quatro continuam escrevendo e estranhando cada vez mais porque seus poemas não impressionam a ninguém. Se fizer os cálculos, aqueles dez se convertem de repente em onze. Está claro que enquanto estávamos escrevendo o texto, alguém mais se somou ao grupo. B-dan (Chelm, região de Lublin) [...] Primeiro, deveria se preocupar por saber se tem algo a dizer. Desse ponto de vista, seus poemas são um deserto e isso nenhum truque formal pode ocultar. “Quero ser poeta”. De novo, você começa pelo fim. Preferimos os que simplesmente “querem escrever”. Acontece que isso é algo muito sério. Kamila W. O que separa as pessoas? Um muro invisível. Com que se pode comparar uma grande cidade? Com uma colmeia ou com uma selva. Como é o vazio? O vazio é estéril. Que acontece com uma linha tensa? Se parte, claro. O que decepcionou este redator? Tudo isso.


Ludomir (Olsztyn) Pelos poemas que nos envia, chegamos à conclusão que está apaixonado. Alguém disse que todos os apaixonados são poetas. Mas provavelmente é um exagero. Desejamos todo tipo de sucesso em sua vida pessoal. Zygfryd Miel. (Gdansk) Em seus textos há alguma coisa: certa imaginação, certa ironia, certo sentido do absurdo (muito na moda!). Mas precisaria reescrever cada conto, no mínimo, umas cinco vezes. Lembro, por acaso, que Tchekhov reescrevia seus textos sete vezes e que Thomas Mann fazia cinco correções (entretanto, se inventou a máquina de escrever). Baska. “Meu noivo diz que sou muito bonita para escrever boa poesia. Que pensam sobre os poemas que envio?” Acreditamos que você é efetivamente uma mulher muito bonita. C. P. (Szczecin) “No que se refere à cor verde, sou como uma amante num filme erótico. Sinto um grande desejo de corrigir as fundações de um fantástico romance em honra ao meu amigo cibernético”. Com estas palavras começa o capítulo “Desespero infinito”. Que o título sirva de alguma coisa. Lubin “Como chegar a ser um escritor?” A pergunta que você nos faz é muito comprometedora. É como um menino que pergunta à sua mãe como se fazem os bebês e a mãe lhe responde que só explicará mais tarde porque está muito ocupada e o menino começa a insistir: “Então me explica, mesmo que seja só como se faz a cabeça...” Veja, tentamos também explicar pelo menos a cabeça: pois bem, é preciso que tenha algum talento.


Marlon (Bochnia) Nem todo mundo que sabe desenhar um gato sentado, uma casa com fumaça que sai da chaminé e uma cara composta por círculo, duas linhas e dois pontos será um grande pintor. No momento, teus poemas, querido Marlon, estão justamente na fase desses desenhos. Continua escrevendo, pensa na poesia, lê poesia, mas preocupa-te também em conseguir um trabalho de futuro, independente da proteção das musas. Segundo entendemos, são umas histéricas e as histéricas não são de fiar. Halina W. (Bialystok) O que vamos dizer a seguir soa muito desmoralizante: você é uma pessoa muito sincera e cândida para escrever bem. Nas entranhas de um escritor com talento volteiam os mais diversos demônios. E inclusive se antes ou depois de escrever se encontram adormecidos (ou deveriam encontrar-se adormecidos), durante a escrita têm uma frenética atividade. Sem sua ajuda, o escritor não poderia mergulhar nas complicadas vivências das personagens. Nada humano me é alheio: oh, esta frase não se pode aplicar às vidas dos bondosos santos! Receba nossos mais cordiais cumprimentos. J. W. (Varsóvia) Preocupa-nos muitíssimo que um autor de primeira viagem, depois de publicar seu primeiro poema numa revista, abandone seus recém-iniciados estudos universitários e decida, a partir de então, viver de e para a poesia. O que pode ocorrer é que perde irremediavelmente um ano e que seus poemas seguintes ficam esquecidos durante meses em diversas redações esperando, no melhor dos casos, a oportunidade para serem publicados nas páginas de algum semanário. Nosso conselho, paternal, é que você seja prudente, muito mais que seus poemas, no momento são apenas certinhos e com poemas assim, como é sabido por todos, está forrado o inferno dos poetas. E, também, abandonar o quê, Medicina? Os estudos de Friedrich Schiller?


Ula (Sopot) Definir a poesia numa só frase? Ufa! Conhecemos ao menos quinhentas definições de outros, mas nenhuma nos parece suficientemente precisa e completa. Todas elas expressam o sabor de seu tempo. Nosso natural ceticismo nos impede de tentar definila novamente. Mas, recordamos um bonito aforismo de Carl Sandburg: “A poesia é um diário escrito por um animal marinho que vive na terra e que quer voar pelos ares”. Serve, no momento? L. P. (Kutno) Na verdade, seria justo e admirável que a intensidade do sentimento por si só determinasse o valor artístico do poema. Nesse caso, Petrarca seria, sem dúvida, um zero à esquerda se comparado com um jovem chamado, por exemplo, Bombini, já que Bombini realmente enlouqueceu de amor, enquanto Petrarca conseguiu conservar o equilibro emocional para inventar belas metáforas. K. K. (Bytom) Lamentamos ter que repetir todo o tempo: imaturo, trivial, amorfo... Mas, no fim de tudo, não se trata de uma seção para prêmios Nobel, mas para os que terão que esperar todavia um tempo antes de encomendar um fraque e viajar a Estocolmo. Temos pena que você considere o verso livre como liberação de todo tipo de regras. Você escreve frases soltas que corta como lhe vêm à cabeça e coloca algumas palavras à direita e depois outras à esquerda. A poesia (independentemente das considerações que possamos fazer sobre ela) é, tem sido e será sempre um jogo e não existe um jogo sem regras. É algo que as crianças sabem perfeitamente. Por que os adultos esquecem?


M. N. (Varsóvia) “No caso da publicação destes poemas, quero que apareçam com o pseudônimo de Consuelo Montero. Obrigada”. É uma grande ideia para uma cabecinha de treze anos. Seria interessante saber se a redação de algum semanário espanhol recebeu poemas da verdadeira Consuelo Montero que deseja publicá-los com o exótico nome pseudônimo de Marysia Nowak. Isso sim que seria autêntico intercâmbio cultural, não é verdade? Mas, ainda é cedo para começar a publicar. Que as senhoritas continuem trabalhando duramente e sejam pacientes. Mil (Brzesko) As descrições da natureza não fazem parte das parcelas obrigatórias de um escritor. Se não se tem palavras suficientemente frescas para fazer com que a descrição seja interessante, é melhor esquecer dos reflexos da lua na água. Além disso, o fragmento do romance que nos foi enviado, trata do roubo de uma vaca. Nesse momento nem o ladrão nem a vaca roubada do estábulo estão para admirar os encantos da natureza. Helena B. (Lublin) À sua grata pergunta sobre qual poeta se considera atualmente o mais atraente constatamos atentamente que continua sendo Publius Ovidius Naso. Ata (Kalisz) Nos fez sonhar esses finos versos carregados de afetação cortesã. Se tivéssemos um castelo e as possessões aldeãs, você desempenharia o papel de poetisa da corte. Seus poemas, querida, são antiquados tanto na forma como no âmbito das ideias. É surpreendente numa jovem de dezenove anos. Não serão versos copiados do álbum de recordações de sua bisavó?


Observador (Cracóvia) Você nos acusa de cortar as asas dos jovens talentos literários. A esses frágeis brotos – lemos – é preciso criá-los entre algodões e não, como fazem vocês, criticar sua fragilidade e sua incapacidade de dar um fruto já maduro. Não somos partidários da criação de estufas para brotos literários. É necessário que cresçam num ambiente natural e que se adaptem desde o início à suas condições. Às vezes, o broto acredita que vai ser um carvalho e nós vemos que não é mais que uma mudinha de grama. Nem o mais atento dos cuidados será capaz de convertê-lo em carvalho. Às vezes, evidentemente, podemos nos equivocar em nosso diagnóstico. Mas por acaso proibimos a esses brotos que cresçam, por acaso arrancamos pelas raízes? Podem continuar crescendo livremente para, num futuro, dar testemunho de nossa falibilidade. Sentiremos encantados por reconhecer nosso erro. E mais, se você lê nossa coluna com melhor disposição, poderia se dar conta de que sempre quando encontramos algo digno de elogio, tentamos destacá-lo. Que os elogios sejam relativamente poucos já não é nossa culpa. O talento literário não é um fenômeno de massas. Z. Z (Łódź) Você considera nossa resposta uma ofensa pessoal. Sem nenhum motivo, é verdade. Por acaso é uma afronta dizer a um loiro que não é moreno, se é o que pergunta? Persiste, todavia, a romântica ideia de que ser poeta é maior das glórias e um grande prestígio. Na verdade, a maior honra e o maior prestígio é fazer de forma irretocável o que se sabe fazer. Nossos melhores desejos. Eug. L. (Inowroclav) O certo é, sem dúvida, que um escritor se forma em seu interior, no coração e na cabeça: graças a uma inata (sublinhamos, inata) predisposição a abstrair-se, a viver de forma emocional emotiva as menores coisas, a espantar-se inclusive ante aquilo que para os demais parece normal. Viajar ao estrangeiro? Desejamos-lhe de todo coração. Em algumas ocasiões, pode ajudar. Sim, antes de ir a Capri, lhe recomendamos que vá ao primeiro povoado perdido que encontrar. Se você voltar dali sem nenhuma impressão digna de ser anotada, tememos que não haverá grutas azuis que valham.


P. Z. D. (Chorzów) “Não me mates a esperança, por mínima que seja, de ser publicado, e se não, ao menos, me console...” Depois da leitura de seu texto nos vemos obrigados a escolher o segundo. Mas, atenção! Aí vão nossas palavras de consolo. Espera por você uma vida fantástica, uma vida de leitor, e de leitor dos melhores, de leitor desinteressado; a vida de um amante da literatura, um amante que será sempre o membro mais forte do casal, isto é, não é o que tem que conquistar, mas o que é conquistado. Você lerá as coisas mais diversas pelo prazer de ler. Você não terá que estar pendente de “recursos”, nem parar para pensar se você poderia escrever melhor ou tão bem, nem de outra maneira. Nada de invejas, nem de crises emocionais, nem de suspeitas de um leitor que também escreve. Dante será para você Dante, independente se teve ou não teve uma tia na editora. À noite não lhe torturará a questão de por que Fulanito que não rima foi publicado e eu que rimei tudo e contei as sílabas com todos os dedos, não mereci nenhuma palavra de resposta. Você não precisará ter cuidado com as caras feitas pelo editor e nem em qualquer fase, nada apenas nada. Outra coisa boa é que com frequência se fala de “escritores malsucedidos” e nunca de “leitores malsucedidos”. Existem, certamente, aos montes, leitores falidos – e está claro que não vemos você entre eles – mas não parece que tenham de pagar por isso, e talvez, se alguém escreve e não se sai muito bem, a gente ao redor suspira e faz todo tipo de careta. Nem sequer pode-se confiar muito na própria namorada. E então, se sente agora como um rei? Esperamos que sim.




EU TAMBÉM COMECEI COM POEMAS RUINS entrevista



Teresa Walas: De quem foi a ideia do “Correio” em Vida literária? Wislawa Szymborska: Não foi necessário inventar nada. É uma velha tradição das revistas literárias. Sempre foi necessário responder a alguns autores, sobretudo iniciantes, sem escrever cartas diretamente para eles. Por regra geral, se resolvia a questão com um breve “não contempla” ou “recomendamos trabalhar um pouco mais o texto”. Consideramos que em alguns casos valia a pena justificar a decisão. Nós quer dizer quem? Wlodzimierz Maciag e eu. Nós dois nos revezávamos para manter o “Correio literário”. Nossos textos são fáceis de diferenciar. Wlodek escrevia com as formas masculinas do verbo no passado – li, pensei – e eu utilizava a primeira do plural. Como era a única mulher na equipe, se houvesse escrito com as formas femininas, teria sido logo identificada. Os carrascos preferem ser anônimos e vestem um capuz preto. Soa forte. Mas acredito que não se tratava de execuções irreversíveis. O condenado podia continuar escrevendo como fazia até chegar a ocasião de enviar os textos a outras revistas. Ou começar a escrever de repente melhor e de maneira diferente. Nossos correspondentes podiam ser jovens e na juventude, todavia tudo é possível. Inclusive que algum deles chegasse a se tornar um verdadeiro escritor. E quando tinhas ante teus olhos a obra de um indefeso e tímido candidato a debutante não te sentias um ser sem piedade? Desapiedada? Eu também comecei com poemas e com contos ruins. E sei que isso de jogar um balde de água fria na cabeça tem efeitos terapêuticos. Quando fui realmente desapiedada foi quando alguém que se dizia professor escreveu em sua carta adição com ss.


Bom, isso é uma simples questão ignorância, não uma questão artística. No nível do “Correio”, todavia era muito prematuro falar de arte. Eu tentava que entendessem coisas elementares, os animava a refletirem sobre o texto escrito, que fossem minimamente críticos com eles mesmos. E, o mais importante, animava-os a ler livros. De qualquer forma tenho minhas ilusões, mas espero que alguns deles tenham preservado esse maravilhoso costume por toda a vida. Apresentou-se pessoalmente a alguns dos teus correspondentes? Não. E, ninguém tinha essa obrigação. Os primeiros textos, desajeitados, são frequentemente superados e até esquece-se que foram enviados para algum lugar. Sempre estavas segura de teus critérios de valoração? Nem sempre, mas nos casos de grafomania extrema, sempre. Passemos a outra questão. Acabas de utilizar a palavra grafomania, uma palavra estigmatizada sem piedade. Não sei se reparastes em outros campos da atividade humana, o trabalho mal feito não dispõe de epítetos marcados tão emocionalmente. Labrogeiro, por exemplo, não é agradável, mas está muito longe da palavra grafómano. Um mal carpinteiro, um mal encanador, um relojoeiro inexperiente vivem tão tranquilos e ninguém se dedica a insultá-los. Ataca-se sobretudo os criadores medíocres: um grafómano, um pintorzinho, um musicastro. E aos desafortunados amantes, porque impotente é um insulto do mesmo calibre de grafómano. Só que um grafómano em sua disciplina pode fazer coisas. Pode muito, muitíssimo. Por outro lado, se não me recordo mal, nunca chamei ninguém de grafómano no “Correio”. No meu caso tentei reconduzir melhor essa sobrexcitação escritural em outras direções. Por exemplo, escrevia cartas, um diário, pequenas rimas para pessoas do círculo mais íntimo.


Quer dizer, uma espécie de via de escape no território da escrita não profissional. É isso. O problema começa quando o autor de uma dessas rimas ocasionais, certas, escuta o que seus conhecidos dizem: “É muito bom, tio, tens que publicar em algum lugar”. Como consequência, o que pode ser agradável e adequado em certo contexto e se tornou a menina escolhida, de olhos grandes, azuis, cai em mãos de um redator injusto que não compartilha dessa admiração. Talvez nos encontremos ante uma manifestação do espírito da modernidade. Porque houve um tempo em que era algo completamente natural que uma pessoa com estudos mostrar certa habilidade artística amateur. Escreviam-se poemas comemorativos da mesma maneira que se pintavam aquarelas ou se tocava piano. Só que então eram poucos que lhe vinha à cabeça enviar imediatamente o texto a alguma revista ou a algum periódico. O âmbito privado bastava. Depois a escrita se converteu numa profissão e o romantismo a situou no mais alto (especialmente os poetas) da hierarquia social. E nos poucos românticos tempos do “Correio”, os poetas, no imaginário coletivo, eram situados ainda mais alto. Recordemos que era uma época gris, severa, austera. Perderse entre a massa anônima era algo que tinha encher de felicidade o indivíduo. Não existiam muitas possibilidades de escolha. A melhor que aparecia era ver impresso o nome de alguém. Hoje para existir basta aparecer na televisão. E responder, por exemplo, a pergunta: quem é o autor de Treny? a) Shakespeare, b) Michal Balucki, c) Jan Kochanowski, d) Winnie the Pooh. E o mais curioso é que inclusive o que elege a opção Balucki volta para sua casa entre aclamações. E durante um tempo a gente o reconhecerá quando o avistar pela rua.


Enquanto lia o “Correio”, me dei conta de que és uma das poucas pessoas que têm o valor de dizer a um simpatizante da literatura que um escritor precisa ter talento. Os críticos sérios, em nossos dias, não se sentem à vontade utilizando essa palavra, agora parte entre as palavras silenciadas, para não dizer desacreditadas. E talvez seja justo que seja silenciada, porque o talento é um conceito difícil de definir cientificamente. Isso, todavia, não significa que algo difícil de definir não exista. A verdade é que eu, como não me dedico à crítica literária, posso me permitir a certas liberdades. O talento... Alguns têm, e outros não terão nunca. E que conste que isso não significa que esses outros não tenham nada a fazer. Podem chegar a ser excelentes bioquímicos ou descobrir, por exemplo, o polo norte. Se minha memória não me trai, há muito que se descobriu. Certo, me empolguei um pouco. Mas queria dizer que o talento literário é um entre muitos talentos. Podem-se ter outros. E teus correspondentes costumavam fazer referência aos exemplos de gênios incompreendidos? De vez em quando. Mas o autêntico calvário do “Correio” era Rimbaud. Os autores de dezesseis anos, por regra geral, sabiam que em sua idade havia escrito poemas geniais, e por isso por que iam ser piores que os seus? Chegavam ao “Correio” textos “inaceitáveis” do ponto de vista político e que por esse motivo precisava ignorar? Não me recordo de nenhum texto desse tipo. Textos “fora da linha oficial” sim, esses chegavam sim à redação, mas eram pessoas que tinham algum nome que enviavam, que já eram alguém.


Quer dizer isso que o primeiro não era a revolução, mas o conformismo? Não sei se então era tão estranho como agora me parece. O que passava, pura e simplesmente, era que a primeira ideia era estrear. Há que se ter em conta que, primeiro precisava saber sobre o que escreviam os autores e o que se publicava, e depois tentar escrever algo parecido. Só mais tarde é que aparece no autor algum pensamento próprio e uma forma de expressão pessoal... É preciso acrescentar aqui que estamos falando de um tempo quando não existia ainda um circuito clandestino de publicações que abriu uma série de possibilidades completamente diferentes não só para os escritores maduros, mas também para os principiantes. Os jovens tiveram então a possibilidade de começar imediatamente com temas inaceitáveis para a censura. Fico feliz que tenha aceitado publicar este “Correio”. Diga-nos, que sensações tens agora quando voltou a lê-lo? Que nesse “Correio” havia mais diversão que valores didáticos. E que a maior parte da responsabilidade dessa desproporção corresponde a mim. Mas o resto corresponde a tu, Tere, porque foste quem recuperou da memória esse “Correio” e que andou buscando os velhos números da revista.




Os textos de Wislawa Szymborska e a entrevista com a poeta são traduções de Pedro Fernandes de Oliveira Neto a partir de (SZYMBORSKA, Wislawa) Correo literario. Trad. Abel Murcia e Katarzyna Moloniewicz. Madri: Nórdica Libros, 2017.

As duas primeiras imagens são colagens de Wislawa Szymborska. A imagem que separa as correspondências da entrevista é Wislawa Szymborska por Judyta Papp.




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