Ir ao cinema

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ir ao cinema


“só quem assistiu à infância do cinema no Brasil pode avaliar o que era essa magia dominical das fitas francesas e italianas, sonho da semana inteira.” Carlos Drummond de Andrade, Tempo vida poesia.


O poeta Carlos Drummond de Andrade em 29/09/1972 Fernando Bueno/AE


“Ir ao cinema”, crônica de Carlos Drummond de Andrade publicada com o pseudônimo Antônio Crispim no jornal Minas Gerais em 22 de maio de 1930. Foto: Acervo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB


Ir ao cinema¹ De tôdas as artes, parece que o cinema é até hoje a menos compreendida. Talvez porque seja a mais recente e não materialmente tempo para compreendê-la. Enquanto a pintura levou séculos a evoluir de Apelles para Matisse, e a poesia abrange, de Salomão e Paul Eluard, uma série infinita de nomes, de obras e de expressões, o cinema, em pouco mais de dez anos, passou das arlequinadas meramente recreativas de Max Linder à complexidade dolorosa de Carlito. Sem falar na técnica e nos processos, que ontem eram os da lanterna mágica e hoje são os do talkies, com tôdo o jogo sutil das super-posições de imagens, os truques variadíssimos, as trouvailles que cada dia enriquecem o plano cinematográica e lhe dão uma amplitude só percebida por uma fração mínima de espectadores. Nós vamos ao cinema para passar hora e meia vendo figuras animadas e ouvindo música sem responsabilidades, música “sem ser de concerto”. Intenções de burguesia dispética. Nem mesmo se vai mais ao cinema para namorar: já não há intervalos como antigamente, em que os atores pediam 5 minutos de interrupção para pitar um cigarro, 5 minutos durante os quais a gente olhava uns para os outros, ou para as outras. Hoje, repito, vai-se ao cinema com propósitos muito limitados. Quando não é para matar o tempo bem simplesmente, é para ver o astro ou a estrêla mais atual ou para escutar o último Fox-trot. Eis ali a moça que é doida por Douglas Fairbanks Jr. Coitada, está ficando velha: em 1926, era louca pelo finado Rodolfo Valentino; em 1927, sofreu muito com indiferença do Rol La Rocque; em 1928, adoeceu devido aos maltratos de Richard Barthelemess; em 1929, tentou suicidar-se por causa de Joseph Schildkraut. Vejo ali também o rapaz que está namorando Annita Page, aliás, sem maiores probabilidades. São membros de uma mesma família, a família dos freqüentadores especializados neste ou naquele “astro” glorioso da tela. Mas não são fãs. Não entendem do riscado. Ir ao cinema pelo cinema, eis a questão. Ir para compreender, sentir e, por que não? ser feliz. No Rio, dúzia de sujeitos raros e difíceis fundaram o Chaplin Clube, que não é clube de jantares nem de partidas de pocker. Também não é clube literário, político, esportivo, noticioso ou de classe. Não é nada: apenas um clube de freqüentadores de cinema, para ensinar a gente a freqüentá-lo e compreendê-lo. Imaginem um clube dêsses prosperando em cada cidade do Brasil. Ou pelo menos em cada capital. Certas fábricas medonhas dos Estados Unidos abririam falência. Certos atores da Paramont seriam obrigados a pedir demissão. O cinema falado em inglês seria uma estupidez pretérita. Êsses Chaplin –clubes orientadores e renovadores só não coseguiriam acabar com uma coisa: com o cinema falado em português. Porque muito antes de Hollywood enviar-nos os seus talkies, já tínhamos o hábito de falar desvairadamente no decorrer da projeção. Brasileiro é povo falador.

¹ A transcrição mantém a grafia do original.


O padre e a moça Adaptação do poema narrativo de Lição de coisas. O filme é de Joaquim Pedro de Andrade e foi produzido em 1966.


Cenas de O padre e a moça Fotos do site Filmes do Serro.Reprodução


O padre, a moça

O padre furtou a moça, fugiu Pedras caem no padre, deslizam A moça grudou no padre, vira sombra, aragem matinal soprando no padre. Ninguém prende aqueles dois, Aquele um Negro amor de rendas brancas. Lá vai o padre, atravessa o Piauí, lá vai o padre, bispos correm atrás, lá vai o padre, lá vai o padre lá vai o padre lá vai o padre, diabo em forma de gente, sagrado. Na capela ficou a ausência do padre E celebra a missa dentro do arcaz. Longe o padre vai celebrando vai cantando todo amor é o amor e ninguém sabe onde Deus acaba e recomeça. Forças volantes atacam o padre, quem disse que exércitos vencem o padre? Patrulhas rendem-se O helicóptero desenha no ar o triângulo santíssimo, o padre recebe bênçãos animais, ternos relâmpagos douram a face da moça. E no alto da serra O padre entre as cordas da chuva o padre no arcano da moça o padre. Vamos cercá-los, gente, em Goiás Quem sabe se em Pernambuco? Desceu o Tocantins, foi visto em Macapá Corumbá Jaraguá Pelotas em pé no caminho da BR 15 com seu rosário na mão lá vai e a moça vai dentro dele, é reza de padre.


Ai que não podemos contra vossos poderes guerrear ai que não ousamos contra vossos mistérios debater ai que de todo não sentimos contra vosso pecado o fecundo terror da religião. Perdoai-nos, padre, porque vos perseguimos. E o padre não perdoa: lá vai levando o Cristo e o Crime no alforje e deixa marcas de sola de poeira. Chagas se fecham, tocando-as, filhos resultam de ventre estéril mudos e árvores falam tudo é testemunho Só um anjo de asas secas, voando de Crateús, senta-se à beira-estrada e chora porque Deus tomou o partido do padre. Em cem léguas de sertão é tudo estalar de joelhos no chão é tudo implorar ao padre que não leve outras meninas para seu negro destino ou que leve tão leve que ninguém lhes sinta falta, amortalhadas, dispersas na escureza da batina. Quem tem sua filha moça padece muito vexame; contempla-se numa poça de fel em cerca de arame. Mas se foi Deus quem mandou? Anhos imolados não por sete alvas espadas mas por um dardo do céu: que se libere esta presa à sublime natureza de Deus com fome de moça. Padre, levai nossas filhas! O vosso amor, padre, queima como fogo de coivara não saberia queimar. E o padre, sem se render ao ofertório das virgens, lá vai, coisa preta no ar.


A atriz Helena Ignêz que viveu Mariana (a moça) em cena de O padre e a moça Foto do site Filmes do Serro. Reprodução


Onde pousa o padre é Amor-de-Padre onde bebe o padre é Beijo-de-Padre onde dorme o padre é Noite-de-Padre mil lugares-padre ungem o Brasil mapa vela acesa. Mas o padre entristece. Tudo engoiva em redor. Não, Deus é astúcia, e para maior pena, maior pompa. Deus é espinho. E está fincado No ponto mais suave deste amor. Se toda a natureza vem a bodas, e os homens se prosternam, e a lei perde o sumo, o padre sabe o que não sabemos nunca, o padre esgota o amor humano. A moça beija a febre do seu rosto. há um gládio brilhando na alta nuvem que eram só carneirinhos há um instante. – Padre, me roubaste a donzelice ou fui eu que te dei o que era dável? Não fui eu quem te amei como se ama Aquilo que é sublime e vem trazer-me, rendido, o que eu não merecia mas amava? Padre, sou teu pecado, tua angústia? Tua alma se escraviza à tua escrava? És meu prisioneiro, estás fechado em meu cofre de gozo e de extermínio, e queres liberar-te? Padre, fala! ou antes, cala. Padre, não me digas que no teu peito amor guerreia amor, e que não escolheste para sempre. Que repórteres são esses entrevistando um silêncio? O Correio, Globo, Estado Manchete, France-Presse, telef otografando o invisível? Quem alça cabeça pensa e nas pupilas rastreia uma luz fosforescente responde não? Quem roga ao padre que pose e o padre posa e não sente que está posando


entre secas oliveiras de um jardim onde não chega o retintim deste mundo? E que vale uma entrevista se o que não alcança a vista nem a razão apreende é a verdadeira notícia? É meia-treva, e o Príncipe baixando entre cactos sem mover palavra fita o padre na menina-dos-olhos ensombrada. A um breve clarear, o Príncipe, em toda sua púrpura como só merecem defrontá-lo os que ousam um dia. Os dois se medem na paisagem de couro e ossos estudando-se. O que um não diz outro pressente. Nem desafio nem malícia nem arrogância ou medo encouraçado: o surdo entendimento dos poderes. O padre já não pode ser tentado. Há um solene torpor no tempo morto, e, para além do pecado, uma zona em que o ato é duramente ato. Em toda a sua púrpura o Príncipe desintrega-se no ar. Quando lhe falta o demônio e Deus não o socorre; quando o homem é apenas homem por si mesmo limitado, em si mesmo refletido; e flutua vazio de julgamento no espaço sem raízes; e perde o eco de seu passado, a campainha de seu presente, a semente de seu futuro; quando está propriamente nu: e o jogo, feito até a última cartada da última jogada. Quando. Quando. Quando. Ao relento, no sílex da noite, os corpos entrançados transfundidos sorvem o mesmo sono de raízes


e é como se de sempre se soubessem uma unidade errante a convocar-se e a diluir-se mudamente Mas de rompante a mão do padre sente o vazio do ar onde boiava a confiada morna ondulação A moça, madrugada, não existe O padre agarra a ausência e eis que um soluço humano, desumano e longiperto trespassa a noitidão a céu aberto A chama galopante vai cobrindo um tinido de freios mastigados e de patas ferreadas, e em sete freguesias passa e repassa a grande mula aflita. Urro de fera fúria de burrinha grito de remorso choro de criança ? Por que Deus se diverte castigando? Por que degrada o amor sem destruí-lo? e a cabeça da mula sem cabeça ainda é o rosto de amor, onde sem sigilo a ternura defesa vai flutuando? Um rosto de besta entre as ciências do padre entre as poderosas rezas do padre nenhuma para resgatá-lo Resta deitar a febre na pedra e aguardar o terceiro canto do galo No barro vermelho da alva a mão descobre o dormir de moça misturado ao dormir de padre. E já sem rumo prosseguem na descrença de pousar, clandestinos de navio que deitou âncora no ar Já não se curvam fiéis vendo réprobo passar, mas antes dedos em sustos implantam a cruz no ar A moça, o padre se fartam


da própria gula de amar O amor se vinga, consome-os laranja cortada no ar. Ao fim da rota poeirenta ouve-se a igreja cantar Mas cerraram-se-lhe as portas e o sino entristece no ar. O senhor bispo, chamado com voz rouca de implorar, trancou-se na sua Roma de rocha, castelo de ar. Entre pecado e pecado há muito de epilogar. Que venha o padre sozinho, o resto se esfume no ar. Padre e moça de tão juntos não sabem se separar. Passa o tempo no destinguo entre duas nuvens no ar. E de tanto fugir já fogem não dos outros mas de sua mesma fuga a distraí-los. Para mais longe, aonde não chegue a ambição de chegar: área vazia no espaço vazio sem uma linha uma coroa um D. A gruta é grande e chama por todos os ecos organizados. A gruta nem é negra de tantos negrumes que se fundem nos ângulos agudos a gruta é branca, e chama. Entram curvos, como numa igreja feita para fiéis ajoelhados. Entram baixos terreais na posição dos mortos, quase. A gruta é funda a gruta é mais extensa do que a gruta o padre sente a gruta e o padre invade a moça


a gruta se esparrama sobre o musgo, o calcário, o úmido medo à maneira católica do sono. Primas de luz primeira despertando de uma dobra qualquer de rocha mansa. Cantar angélico subindo em meio a cega fauna cavernícola e dizendo de céus mais que cristãos sobre o musgo, o calcário, o úmido medo da condição vivente Que perdão mais solene se humaniza e chega à provação e paira em benção? Que festiva paixão lança seu carro de ouro e glória imperial para levá-los à presença de Deus feita sorriso? Que fumo de suave sacrifício lhes afaga as narinas? Que santidade súbita lhes corta a respiração, com visitá-los? Que esvair-se de males, que desfal ecimentos teresinos? Que sensação de vida triunfante no empalidecer de humano sopro contingente? Fora ao crepitar da lenha pura e medindo das chamas o declínio, eis que perseguidores se perseguiam.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Lição de Coisas. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1962


“O padre e a moça”, texto de Carlos Drummond de Andrade publicado no Correio da manhã, edição de 5 de junho de 1966. Foto: Site Filmes do Serro. Reprodução.


Imagens perseguidas: O padre e a moça¹ Vejo que o Padre e a Moça, depois de queimados vivos no interior de uma gruta, estão ameaçados de nova fogueira, esta ateada por pessoas zelosas da moral pública e dos valores da religião. E isso me entristece. Não por mim que os cantei em verso, depois de os ver referidos em prosa por publicação técnica do Museu Nacional. Nem por Joaquim Pedro de Andrade, que os levou para o cinema, num filme que recebeu prêmio oficial no Estado da Guanabara e foi exibido no Rio de Janeiro em meio ao interesse e à compreensão do público, sem o menor escândalo. Entristeço-me, que pena! Porque as obras de arte – e este filme é uma – continuam entre nós na dependência e à mercê de grupos ou pessoas capazes de influir em sua livre circulação, com prejuízo incalculável para o desenvolvimento cultural do país. Quem conhece o raro e consciente Joaquim Pedro sabe que ele seria incapaz de fazer um filme obsceno ou ofensivo a qualquer credo religioso. Antes de mais nada, seu bom gosto lhe travaria essa intenção. Suas realizações anteriores – Couro de Gato, O Poeta do Castelo, Garrincha, Alegria do Povo – atestam outras preocupações. Por que Joaquim Pedro negaria de uma hora para a outra seu senso artístico, sua concepção severa da cinematografia? Não pretendo, porém, defender O Padre e Moça passando atestado de bom comportamento ao cineasta. O filme defende-se por si mesmo, pela dignidade, pela poesia, pelo sentimento humano, pelo desapego a qualquer intuito escandaloso ou panfletário. É, inicial e fundamentalmente, uma criação artística, e constitui um esforço de compreensão e apresentação, em termos estéticos, de um caso psicológico de intensa dramaticidade, conflito não inventado pelo diretor nem pelo autor do poema, pois dera nome a uma gruta na Bahia e se insere na problemática humana de qualquer tempo ou lugar, saindo da vida para a literatura e a arte. Uma entidade oficial financiou a produção, depois de examinar-lhe o argumento; uma comissão oficial de peritos em cinema a premiou; o diretor do Festival Internacional de Berlim encantou-se com ela e pediu uma cópia para levá-la àquele certame. O público do Rio, que não é cego nem tendencioso, viu e julgou a obra. Tudo isso, é claro, depois que o Serviço de Censura do Departamento Federal de Segurança Pública, órgão que deve saber o que faz, viu e liberou o filme para maiores de 18 anos. Por que, agora, proibir para o Brasil aquilo que foi oferecido à Guanabara? Por que determinadas pessoas, que não assistiram ao filme, o tacham de imoral e anticlerical? Nesse caso, feche-se por inútil o Serviço Federal de Censura e cometa-se a essas pessoas o cuidado de zelar pelas diversões públicas ao sabor de seus conceitos e preconceitos. Não teria cabimento manter um órgão sem autoridade para exercer sua missão específica ou que abrisse mão dela para desmentir-se a si mesmo, condenando hoje o que ontem aprovara. Este é o problema da censura, na circunstância: prezar-se a si mesma, não cedendo a pressões descabidas. E se ceder, terá prestado um desserviço a valores culturais realmente muito mais ameaçados do que os valores ético-religiosos em cuja defesa se quer injustamente proibir um filme que foi aplaudido pelos que o viram, e agora é atacado pelos que o não viram.

¹ transcrição do texto de Carlos Drummond de Andrade publicado no Correio da Manhã, de 05 de junho de 1966.



A atriz Gabriela Duarte em diferentes cenas de O vestido. Fotos: Reprodução/ Divulgação


Caso do Vestido

Nossa mãe, o que é aquele vestido, naquele prego? Minhas filhas, é o vestido de uma dona que passou. Passou quando, nossa mãe? Era nossa conhecida? Minhas filhas, boca presa. Vosso pai vem chegando. Nossa mãe, dizei depressa que vestido é esse vestido. Minhas filhas, mas o corpo ficou frio e não o veste. O vestido, nesse prego, está morto, sossegado. Nossa mãe, esse vestido tanta renda, esse segredo! Minhas filhas, escutai palavras de minha boca. Era uma dona de longe, vosso pai enamorou-se. E ficou tão transtornado, se perdeu tanto de nós, se afastou de toda vida, se fechou, se devorou, chorou no prato de carne, bebeu, brigou, me bateu, me deixou com vosso berço, foi para a dona de longe, mas a dona não ligou. Em vão o pai implorou.


Dava apólice, fazenda, dava carro, dava ouro, beberia seu sobejo, lamberia seu sapato. Mas a dona nem ligou. Então vosso pai, irado, me pediu que lhe pedisse, a essa dona tão perversa, que tivesse paciência e fosse dormir com ele... Nossa mãe, por que chorais? Nosso lenço vos cedemos. Minhas filhas, vosso pai chega ao pátio. Disfarcemos. Nossa mãe, não escutamos pisar de pé no degrau. Minhas filhas, procurei aquela mulher do demo. E lhe roguei que aplacasse de meu marido a vontade. Eu não amo teu marido, me falou ela se rindo. Mas posso ficar com ele se a senhora fizer gosto, só pra lhe satisfazer, não por mim, não quero homem. Olhei para vosso pai, os olhos dele pediam. Olhei para a dona ruim, os olhos dela gozavam. O seu vestido de renda, de colo mui devassado, mais mostrava que escondia as partes da pecadora.


A atriz Gabriela Duarte em cena de O vestido Para transformar o poema "Caso do Vestido" em cinema, o diretor Paulo Thiago trabalhou em uma primeira etapa com o escritor mineiro Carlos Herculano Lopes no desenvolvimento do poema sob forma de um romance. Em uma segunda etapa, o romance de Carlos Herculano serviu de base para o roteiro escrito por Paulo Thiago e Haroldo Marinho Barbosa. Foto: Reprodução/Divulgação


Eu fiz meu pelo-sinal, me curvei... disse que sim. Sai pensando na morte, mas a morte não chegava. Andei pelas cinco ruas, passei ponte, passei rio, visitei vossos parentes, não comia, não falava, tive uma febre terçã, mas a morte não chegava. Fiquei fora de perigo, fiquei de cabeça branca, perdi meus dentes, meus olhos, costurei, lavei, fiz doce, minhas mãos se escalavraram, meus anéis se dispersaram, minha corrente de ouro pagou conta de farmácia. Vosso pais sumiu no mundo. O mundo é grande e pequeno. Um dia a dona soberba me aparece já sem nada, pobre, desfeita, mofina, com sua trouxa na mão. Dona, me disse baixinho, não te dou vosso marido, que não sei onde ele anda. Mas te dou este vestido, última peça de luxo que guardei como lembrança daquele dia de cobra, da maior humilhação. Eu não tinha amor por ele, ao depois amor pegou. Mas então ele enjoado


confessou que só gostava de mim como eu era dantes. Me joguei a suas plantas, fiz toda sorte de dengo, no chão rocei minha cara, me puxei pelos cabelos, me lancei na correnteza, me cortei de canivete, me atirei no sumidouro, bebi fel e gasolina, rezei duzentas novenas, dona, de nada valeu: vosso marido sumiu. Aqui trago minha roupa que recorda meu malfeito de ofender dona casada pisando no seu orgulho. Recebei esse vestido e me dai vosso perdão. Olhei para a cara dela, quede os olhos cintilantes? quede graça de sorriso, quede colo de camélia? quede aquela cinturinha delgada como jeitosa? quede pezinhos calçados com sandálias de cetim? Olhei muito para ela, boca não disse palavra. Peguei o vestido, pus nesse prego da parede. Ela se foi de mansinho e já na ponta da estrada vosso pai aparecia. Olhou pra mim em silêncio,


mal reparou no vestido e disse apenas: — Mulher, põe mais um prato na mesa. Eu fiz, ele se assentou, comeu, limpou o suor, era sempre o mesmo homem, comia meio de lado e nem estava mais velho. O barulho da comida na boca, me acalentava, me dava uma grande paz, um sentimento esquisito de que tudo foi um sonho, vestido não há... nem nada. Minhas filhas, eis que ouço vosso pai subindo a escada.

ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 2000.



Cena de O amor natural, documentário de Heddy Honigmann filmado no Rio de Janeiro. A diretora convida pessoas idosas a lerem em voz alta versos eróticos do livro homônimo escrito por Carlos Drummond de Andrade. Foto: Reprodução/Divulgação


Amor — pois que é palavra essencial

Amor — pois que é palavra essencial comece esta canção e tudo a envolva. Amor guie o meu verso, e enquanto o guia, Reúna alma e desejo, membro e vulva. Quem ousará dizer que ele é só alma? Quem não sente no corpo a alma a expandir-se até desabrochar em puro grito de orgasmo, num instante de infinito? O corpo noutro corpo entrelaçado, Fundido, dissolvido, volta à origem Dos seres, que Platão viu contemplados: é um, perfeito em dois; são dois em um. Integração na cama ou já no cosmo? Onde termina o quarto e chega aos astros? Que força em nossos flancos nos transporta a essa extrema região, etérea, eterna? Ao delicioso toque do clitóris, já tudo se transforma, num relâmpago. Em pequenino ponto desse corpo, a fonte, o fogo, o mel se concentram. Vai a penetração rompendo nuvens e devassando sóis tão fulgurantes que nunca a vista humana os suportara mas, varado de luz, o coito segue. E prossegue e se espraia de tal sorte que, além de nós, além da própria vida, como ativa abstração que se faz carne, a idéia de gozar está gozando. E num sofrer de gozo entre palavras, menos que isto, sons, arquejos, ais, um só espasmo em nós atinge o clímax: é quando o amor morre de amor, divino. Quantas vezes morremos um no outro, no úmido subterrâneo da vagina, nessa morte mais suave do que o sono: a pausa dos sentidos, satisfeita.


Cena de O amor natural. A diretora convida pessoas idosas a lerem em voz alta versos eróticos do livro homônimo escrito por Carlos Drummond de Andrade. Foto: Reprodução/Divulgação

Então a paz se instaura. A paz dos deuses, estendidos na cama, qual estátuas vestidas de suor, agradecendo o que a um deus acrescenta o amor terrestre.

ANDRADE, Carlos Drummond de. O amor natural. Rio de Janeiro: Record, 1992.


Ilustração de Carlos Leão para a coletânea de poemas eróticos Amor, amores publicada pelas Edições Alumbramento, em 1975. Foto: Carlos Leão/ AMLB/FCRB


A castidade com que abria as coxas A castidade com que abria as coxas e reluzia a sua flora brava. Na mansuetude das ovelhas mochas, e tão estreita, como se alargava. Ah, coito, coito, morte de tão vida, sepultura na grama, sem dizeres. Em minha ardente substância esvaída, eu não era ninguém e era mil seres em mim ressuscitados. Era Adão, primeiro gesto nu ante a primeira negritude de corpo feminino. Roupa e tempo jaziam pelo chão. E nem restava mais o mundo, à beira dessa moita orvalhada, nem destino.

ANDRADE, Carlos Drummond de. O amor natural. Rio de Janeiro: Record, 1992.



Os versos do Poema de Sete Faces (Alguma Poesia, 1930), são inspiradores para o filme Poeta de sete faces. O documentário foi escrito e dirigido pelo diretor mineiro Paulo Thiago e investiga e interpreta, os diversos momentos da vida e obra de Carlos Drummond de Andrade, aí apresentada em três fases: "Vai Carlos, ser gauche na vida", registra desde o seu nascimento em Itabira, em 1902, até o final da sua "Poesia Modernista", em Belo Horizonte, antes da mudança para o Rio de Janeiro, em 1934. A segunda fase, "A vida apenas, sem mistificação", começa com a mudança de Drummond para o Rio de Janeiro e mostra o "poeta do seu tempo", o momento de atuação política na vida do escritor, aliado à sua obra de crítica social. E a terceira, "Como ficou chato ser moderno, agora serei eterno", do início dos anos 50 aos 80. Foto: Cena de Poeta de sete faces. Reprodução/Divulgação




Poema de sete faces Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos. O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada. O homem atrás do bigode é serio, simples e forte. Quase não conversa. Tem poucos, raros amigos o homem atrás dos óculos e do bigode. Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco. Mundo mundo vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração. Eu não devia te dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo.

ANDRADE, Carlos Drummond de. “Poema de sete faces”. In: Alguma poesia. Poesia completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 2006.






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