Ezra Pound no manicômio

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EZRA POUND • O POETA NO MANICÔMIO William Carlos Williams


Capa: Ezra Pound, 1938. Tradução: Pedro Fernandes de O. Neto Letras in.verso e re.verso




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Pouco antes de quando Hitler invadiu a Polônia, Ezra Pound me escreveu dizendo que a ajuda fornecida por Mussolini ao generalíssimo Franco não era mais que uma tentativa de limpar um pântano dos mosquitos. Respondi-lhe com uma explosão de cólera: ele, Ezra – disse – era um triste representante de seu país etc. Declarada a guerra, deixamos de trocar correspondências durante vários anos. Certo dia, ao voltar para casa, Floss me contou que um dos empregados do Banco perguntou se eu sabia de alguém na Itália conhecido como Ezra Pound. Acrescentou que durante a tarde do dia anterior a dita pessoa havia falado no rádio e havia dito que o doutor Williams, de Rutherford, Nova Jersey, o compreenderia. – Meu Deus! Com que direito me arrasta em suas sujas histórias? – Só repito o que me disseram – respondeu Floss. Teus “amigos” sempre te envolvem em suas histórias. Perguntei mais ao empregado, mas não sabia nada mais. Havia escutado a transmissão por acaso. Nunca ouvia esse programa. Logo, outro dia, um jovem me abordou na porta de meu escritório, mostrou-me seus papéis e me perguntou se havia escutado Ezra Pound na rádio italiana. Disse-lhe que não, mas que havia escutado sobre.


– Seria você capaz de identificar sua voz? – Não, certamente não; mas poderia talvez reconhecê-la. – É amigo seu desde há muito tempo? – Sim, desde a época da universidade. – Aceitaria testemunhar que a voz que você escuta é a voz de seu amigo? – Pode ser, se estiver seguro de que realmente é ele quem fala. Mas, como posso ter certeza? – Nós traremos as gravações de suas entrevistas para o seu escritório numa cassete. Você é um cidadão leal? – Perguntou-me olhando fixamente nos meus olhos. Fiquei meio perturbado. – Certamente que sim. Dediquei, posso dizer, toda minha via ao meu país; tenho tentado servi-lo por todos os meios. Até escrevi um livro sobre o tema. – Qual livro? – Chama-se In the American Grain... E escrevi ainda muitos artigos e ensaios que se opõem ao desmando dos “legisladores”; os guias compassivos mas ignorantes que fazem o jogo dos criminosos das cidades, estados e nações. É do nosso primeiro dever como artistas, nós que somos os únicos membros da comunidade que conhecemos algo e que devemos abraçar todo o campo do conhecimento. Não pretendo transpor exatamente as palavras de Ezra, mas tento transmitir o que senti desse arrebatamento, dessas frases inacabadas e suas réplicas. Devia voltar a Washington. Ele levantou-se para despedir-se de mim e caminhou até ao portão, a cabeça cheia de pensamentos. Fora, chamei um táxi.


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Começamos a conversar, o motorista e eu, como faço sempre com esses importantes mensageiros, falando antes sobre o clima da região. Digo-lhe que sou médico e que fui ao hospital ver um velho amigo que estava internado. Mas o homem, como todo mundo, se interessa especialmente por ele mesmo. – Ah você é médico? Diga-me, doutor, dói-me as costas. – Pode ser talvez uma fratura de disco. Desde quando está assim? – Tem mais ou menos dois anos. – Como começou? Basicamente depois de um acidente ou logo depois de levantar algo pesado? – Me dei conta mais ou menos uma semana depois de dormir com uma de minhas amiguinhas. Fizemos tudo o que se pode imaginar. Mais ou menos uma semana depois comecei a sentir. Acredito que tenha sido isso. – O esforço terá sido muito. – Sim, acredito que sou muito forte. Ficamos em silêncio por um instante num cruzamento e logo prossegui a conversa. Falei da situação política do mundo e sobre isso o motorista tinha algumas convicções bem firmes. Explicou-me que Stálin era um imbecil; que possivelmente passariam dois ou três anos sem que fizessem nada contra os Estados Unidos e que durante esse tempo nós deveríamos nos preparar para enfrentar um eventual ataque. “Pode ser que você tenha razão” – disse-lhe.


– É claro que tenho razão. Você não faria o mesmo se estivesse em seu lugar? É necessário que ganhemos, mas logicamente ele também quer ganhar. – E o que podemos fazer? – Nada. Por enquanto. Refletir e esperarmos na legalidade. – É por haver pensado coisas como essas que meu amigo foi preso lá, nesse hospital. – Não é possível! Quem fez isso? – Conversas antipatrióticas na Itália quando estávamos em guerra. – Foi um erro. Não se pode fazer isso. O que dizia? Então me lancei numa breve exposição das opiniões de Ezra sobre a política internacional; o papel que ele atribuía à Bolsa, a quadrilha internacional que governava o mundo, o fracasso de Franklin D. Roosevelt que foi incapaz de cortar pela raiz o mal num momento crítico. O homem só me escutava com atenção enquanto fazíamos o caminho até meu hotel através da via Washington. Quando concluí, parou o táxi e se voltou para mim. – E por isso o prenderam? – Perguntou. – Sim. – Ele não é louco – responde-me, olhando-me. Fala muito. Somente. ***

Não tenho sempre a possibilidade de visitar Ezra. Vou quando posso; como da última vez, por exemplo, em pleno inverno. Quando não podemos sair, devemos ficar próximos das


grandes janelas, ao lado da velha mesa de madeira redonda, nessa espécie de pequeno quarto limitado ao fundo da grande sala por um biombo capenga. Nunca vi sua cela onde está autorizado a receber livros e outras pequenas regalias. Pound tem 65 anos agora e desde há um ano começou a engordar. Deixou crescer a barba, o bigode e os cabelos ruivos; essas longas mechas mantém suas características sem mudanças de uma maneira semicômica, semivaporosa, embora se acredite ver o rosto da Besta do célebre filme de Cocteau. E neste sentido existe uma semelhança ainda mais profunda entre Pound e essa criatura imaginária do poeta francês: Pound tem uma grande admiração por Cocteau; ano passo, Dorothée enviou-me seus últimos poemas.

Havia escutado que iniciaram esforços para reabrir o processo e para transferir Pound para um lugar mais agradável que Saint-Elizabeth. Mas Pound havia recusado afirmando que sabia que seria morto por um grande agente do “lado internacional” no momento em que atravessa a porta do hospital. Pode ser que tenha razão, mas uma coisa é certa: não se calará jamais. Toda minha vida, este amigo de sempre gritou contra meu pouco interesse em apreciar a gravidade da situação internacional nos termos de sua dialética. Em muitos casos teve consciência de que analisou corretamente o que diz respeito à degradação criminal em função do dinheiro e o papel que deve colocar o poema na batalha que devemos liderar. “Ataque a esse nível”, grita Pound. Porque não vemos, como ele nos faz notar, que nas formalidades do poema o crime está seguro, bem protegido. E tampouco entendemos que o poema (e não a


poesia, esse osso de roer) é a cápsula ideal onde as vezes, habilmente, certos feitos podem se conservar protegidos. Daí provém certo ódio pelo poema, as tentativas odiosas e violentas para suprimi-lo, o choque que as vezes provoca, e a constante tentativa de difamação em relação a qualquer um que esteja tocado por sua chama. O poema é o instrumento eficaz de um assalto que frequentemente é decisivo. Queimam-se livros, suprime-se a liberdade de imprensa, prende-se autores e ainda se tenta com o mesmo espírito queimar um quadro como o Guernica. Tudo isso não faz mais que reafirmar Pound em sua decisão de servir-se do poema como trampolim. ***

Faz um ano, neste mesmo mês de fevereiro, quando deixei Ezra e me dirigi até a saída sob a chuva fria, chapeando o barro do parque, passando diante de um desses velhos edifícios. Comecei a reconhecer alguns lugares e meu primeiro território (apesar de ser médico), sobretudo aqueles escondidos, desapareceram. No primeiro dia havia sentido o sangue congelar em minhas veias ao passar pela estreita porta da torre a partir da qual uma interminável escada de pedra, em caracol, conduzia aos andares superiores. Eu havia subido um andar a mais. Toquei a campainha e me abriu a porta um desconfiado empregado. Encontrei-me rodeado por pensionistas alinhados a cada lado do largo muro, que estavam parados, sentados ou encostados na parede. Segui o empregado que logo depois de telefonar para o setor principal a fim de assegurar-se de minha identidade, deixou-me sair dizendo-me que descesse um andar e


que batesse com insistência até ver se alguém respondesse à primeira batida. A isso já havia me acostumado. Voltei a encontrar certo sentido da humanidade enquanto saía por um pátio a menos de um metro e meio do edifício contíguo ao de Pound. Um grito regularmente repetido vinha do edifício ao lado e chamou minha atenção. Então, ao dobrar a esquina, percebi uma silhueta que não podia deixar de olhar.

O parque que rodeava a instituição estava livremente aberto e sem vigilância: se passeia, se entra ou se sai, sem que aparentemente ninguém lhe observe, nem detenha. Mas levantando a vista do chão sobre o qual andava com precaução, percebi um homem nu dos pés à cabeça e imóvel. Os braços levantados como para escalar um muro, esmagado contra uma das altas janelas desse velho edifício como um peixe contra a parede interior de um aquário; o ventre, por assim dizer, pegado ao vidro manchado ou sujo pelo mal tempo. Não parei mas continuei levantando o olhar vez em quando. Olhava ao redor para ver se não havia mulheres por perto. Mas neste lugar não havia ninguém além de mim. Os órgãos sexuais do homem estavam contra o frio vidro (supostamente devia estar muito frio), contra, ali, numa atitude desesperada. Quando virão leválo? Depois de tudo, era um vidro, embora existissem barras por detrás. A carne branca, parecia o ventre branco de uma lesma separada do mundo exterior, pegada ao vidro, em silêncio. Não sei de Pound, aparentemente tão pouco preocupado com seu encarceramento, é, no fundo, culpado ou inocente. Suas opiniões não mudaram em nada. É necessário reconhecer que Pound é um prisioneiro privilegiado e que o pessoal do hospital o trata


com cuidado. Mas ele faz bom uso dos favores que lhe concedem. Trabalha sem parar, lê interminavelmente. O diretor da Biblioteca Oriental de Washington lhe envia os textos que lhe interessam e que lhe fazem falta: está decifrando certo livro grego. Pode traduzir; tem sua máquina de escrever, sua erudição é mais impressionante à medida que o tempo passa, seja qual for o resultado. E é necessário dizer-se a favor da reclusão, se sobrevive, que muitas das grandes obras tiveram que esperar para serem conhecidas, muitas depois que o autor já havia sido separado do mundo. Um homem tem necessidade de concentrar-se para que sua reflexão tenha frutos. Nossos contatos nos mudam e ninguém escapa a essa regra; mas para extrair o essencial, é necessário estar tranquilo. A cela dos monges é ideal para isto, embora esteja limitada por restrições de sua ortodoxia e o caráter partidário de suas concepções. É, sem dúvida, um refúgio de paz ao abrigo dos imperativos econômicos. A prisão, de toda maneira, é ainda superior ou parece haver sido no passado. Esopo era escravo; mais de um grego criou sua obra-prima durante o exílio na Sicília ou ainda na cidade vizinha. Safo precisou sentir-se terrivelmente confinada em Lesbos. Raleigh escreveu belas páginas na prisão. Pilgrim’s Progress nasceu de uma longa reclusão, mas o melhor exemplo é Dom Quixote de La Mancha, escrito quando Cervantes estava na prisão. E há muitos outros exemplos. *** O poema é capsula onde encerramos nossos segredos castigáveis. E se adquirem sua virtude específica é porque


encobrem o único gérmen da vida, faculdade de desenvolver sua estrutura secreta até nos detalhes ínfimos de nossos pensamentos. É por isso que escrevemos, para que a semente nasça e desta maneira o poema se converta na prova mais sólida de uma permanência da vida que pode reconhecer a experiência. Atualmente Pound escreve e seja o que for que pense dos governos, do nosso em particular, neste caso, isso se permite nos limites de sua capacidade, utilizar as reservas de conhecimentos acumulados no capital nacional. – Sim – digo-lhe no momento de separarmo-nos uma vez mais, depois de minha última visita –, isso que tu dizes é verdade, mas não esqueças, Ezra, que por mais lógica que sejam tuas análises, a lógica, a lógica pura, não convence a ninguém. Por uma vez não contesta, mas Dorothée levanta bruscamente os olhos, marca-o com o dedo e sinaliza para frente sorrindo, como dizendo: touché. Ele não disse uma palavra. Mas quando voltei a Rutherford me enviou – como se houvesse recuperado sua respiração – uma carta semi-injuriosa como é seu costume, seguida de outra, uma ou duas semanas mais tarde, quando lhe falei sobre a Autobiografia que estava escrevendo, dizendo: “Podes dizer tudo o que queres sobre mim, visto que não tenho status legal nos Estados Unidos”.





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