Espuma das palavras

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RUI SANTOS

ESPUMA DAS PALAVRAS Ilustrações: Diane Sbardelotto

7faces

caderno-revista de poesia





RUI SANTOS

ESPUMA DAS PALAVRAS

Ilustrações: Diane Sbardelotto



PREFÁCIO

UM POEMA PARA SARAMAGO Por Pedro Fernandes de Oliveira Neto

Em 2014, os saramaguianos celebraram dezesseis anos da entrega do Prêmio Nobel a José Saramago. Para assinalar essa ocasião, Rui Santos escreveu este longo poema que agora é publicado como encarte para a edição n. 10 do caderno-revista 7faces. Além do motivo do autor, há outro motivo, o do editor, que também é necessário deixar por escrito a título de sanar a possível curiosidade dos leitores.

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Tive a oportunidade de conhecer Rui Santos durante as celebrações do aniversário de José Saramago, marcadamente o Dia do Desassossego, evento criado e fomentado pela Fundação que zela pela memória do escritor; em 2014 estava em Lisboa, onde, além de acompanhar muito proximamente as manifestações culturais preparadas para marcar esse dia sublime, apresentar uma ideia cujo princípio se confunde com o das minhas atividades de leitor, a Revista de Estudos Saramaguianos. Ao saber do Letras in.verso e re.verso, Rui me propôs o texto tão logo retornei de Portugal. Quando o li, logo descartei, pela forma, sua apresentação no blog: é um texto que beira a forma de uma crônica ou de um conto manifestado na forma de poema. Mas, roguei ao autor do interesse em fazê-lo público através do caderno-revista 7faces, embora ainda estivesse diante de um poema cuja especificidade temática e dimensão não compreendia as zonas fronteiriças do periódico. É quando me lembrei que, logo depois da morte de José Saramago, juntei esforços para organizar uma edição especial com interesse na face poética do escritor português. O trabalho de um ano de dedicação foi publicado com o título de Variações de um mesmo tom: diálogos sobre a poesia de José Saramago. São 232 páginas acordadas pelos professores Aurora Gedra R. Alvarez (Universidade Presbiteriana Mackenzie), Carlos Reis (Universidade Aberta de Lisboa), Conceição Flores (Universidade Potiguar), José Rodrigues de Paiva (Universidade Federal de Pernambuco), Gerson Luiz Roani (Universidade Federal de Viçosa), Maria Edileuza da Costa (Universidade do Estado do Rio Grande do Norte), Márcio de Lima Dantas (Universidade Federal do Rio Grande do


Norte), Márcio Muniz (Universidade Federal de Feira de Santana) e Miguel Alberto Koleff (Universidad Católica de Córdoba); e com textos de Carlos Reis (quem assina o prefácio), Fernando J. B. Martinho, José Rodrigues de Paiva, Sandra Ferreira, Jorge Valentim, Lucas Antunes Oliveira, Rosidelma Pereira Fraga, Maria Elena Legaz, Hilda Orquídea Hartmann Lontra, Elielson Antônio Sgarbi, Luciana Stegagno Picchio, Soares Feitosa, José Saramago e Horácio Costa. Durante o período de concepção desta edição, junto com o Letras in.verso e re.verso, organizei um concurso de textos cujo interesse era que o autor escrevesse sobre a importância exercida pela obra de José Saramago sobre sua vida. Este texto foi publicado na contracapa da revista e o autor recebeu uma edição dos então recémpublicados A viagem do elefante e Caim, os dois últimos romances escritos e apresentados ainda em vida pelo escritor português. Para acompanhar a edição compilei uma fala minha tomada de uma conferência e um curso que ministrei sobre a obra do escritor homenageado e tornei um catálogo; é nele em que o leitor encontra a presença de Horácio Costa numa entrevista feita sobre um dos primeiros textos críticos publicados sobre a obra de Saramago. Este feito que, apesar de virtual (o caderno-revista 7faces é um periódico com exposição na web) contou com sessão pública de apresentação. Os dois acontecimentos, a publicação e a apresentação alcança agora em 2015 cinco anos. Assim, eis o motivo para o texto de Rui Santos galgar o espaço necessário e devido; escrito para assinalar

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uma data, bem pode assinalar não uma, mas várias datas e coincidências felizes que marcam um encontro entre leitores e fomentadores da obra saramaguiana. * Marcado pelo título abstrato, “Espumas das palavras” não trata de abstrações, no entanto. Metaforiza a relação do leitor com a obra de José Saramago e pode ser lido indiretamente como um depoimento agradavelmente poético sobre a força da sua literatura sobre os indivíduos que se depararam com ela e tem feito dela alimento sobre a existência. Portanto, elege um leitor muito específico: aquele que, igual a mim, foi seduzido em algum tempo pela obra saramaguiana e não conseguiu mais, de então, olhar as coisas à sua volta da mesma maneira e nem um pouco ser mais o mesmo. Toda literatura tem essa especificidade: fazermos ver o mundo de outro modo ou passar a encontrar determinada coisa que nunca imaginaríamos existir dessa maneira. E, no caso da obra de José Saramago, sempre uma interrogação sobre o mundo, estaremos, uma vez tomado por ela, condicionados (no sentido de ter condições sobre) a nos perguntar o porquê das coisas ou ainda por que dessa maneira e não de outra. O escritor é o melhor que urdiu essa interrogação sobre a natureza da visão e com ela construiu toda sua obra e alcançou o seu limite de compressão quando dedicou um romance a refletir sobre – Ensaio sobre a cegueira. Agora, é bom dizer que, apesar da especificidade do público leitor do poema de Rui Santos, não estamos diante de um público pequeno. Pode ser que nem todos tenham


feito da obra outra chave de acesso ao mundo, mas, no final, ela segue, como se diz em bom ditado, agradando a gregos e troianos; basta olhar a quantidade de estudos acadêmicos ao redor do mundo, as traduções para as línguas mais improváveis, as homenagens e, claro, sem fugir da expressão contemporânea, a febre das citações aleatórias produzidas no calor de se demonstrar leitor de uma obra que, somente pela justificativa de ser leitor produz em quem afirma, outra posição sobre o outro. Sobre esta última condição, minha posição não permite apenas mencioná-la sem que deixe registrada minha indignação a respeito. Isso porque, embora seja uma marca da popularização da leitura, da obra ou do nome de um escritor e, logo, um maior alcance da literatura (feito que outros escritores terão gastado mais tempo para alcançar) só tende a introduzir visões deturpadas porque findam na especulação falsa, na fofoca de gosto pela intriga e na depreciação do seu pensamento. Minha posição sobre o tema é muito clara: se não tem o pulso para ler atentamente e zelar pelo que se lê, tome o rumo da literatura de massa (as livrarias fazem pilha com esse tipo) e não queira bancar o intelectual porque “conhece” a tal escritor. Entre o falso conhecimento e a ignorância, eu prefiro a ignorância. Ela é parva, mas é mais sincera e não reluta em afirmar a hipocrisia como um fenômeno inerente à condição humana, embora, nos dias atuais, eu tenha cada vez mais a certeza de que nunca esteve tão na moda ser um hipócrita. E Rui Santos cede espaço na trajetória mansa do criador, no zelo que ele mantém com a palavra e na aproximação que desenvolve com um público de outros tipos – isto é, não apenas aqueles aficionados pela obra saramaguiana. O grupo, então, para o qual o

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autor se dispõe representar no seu texto é mais que amplo. Cruzamos aqui, sobretudo, com aquele que não despertou para sua obra, ou o que apenas leu com a força de um passatempo. Mas, é bom que se diga, não sobra espaço para esse que faz o uso hipócrita da palavra embora concorde que “as palavras nunca têm dono”. Não têm dono, mas atribuí-las falsamente será sempre um atentado à memória do autor; não têm dono, mas quem as dê forma com a força de expressar sua posição no mundo. De sorte, o poema de Rui não possui a dimensão de uma homenagem aos tipos do leitor hipócrita; o olhar desse eu que observa pela tela da metáfora sobre exercício de extrema parcimônia do escritor na luta com palavras (“luta vã”, vem a voz de Carlos Drummond de Andrade me completar) é tão somente um registro sobre o alcance da palavra. Afinal, seja qual for a obra, sua forma de chegar ao leitor é diversa e é talvez por isso que haja boas e más leituras. Além de propor essa imagem do mago, uma construção forjada pela especificidade do termo aqui ampliado, termo que, aliás, confunde-se com as duas últimas sílabas do sobrenome ao acaso do autor português, Rui se dedica ao exercício de dar forma à ideia de laboração verbal. O poema assim refigura alguns dos acontecimentos da própria vida de José Saramago de maneira a compreender que o processo de construção literária não é mera obra do acaso, nem um recurso de magia tal como fomos levados a pensar em determinada ocasião na aurora das reflexões sobre o ato criativo. Espuma das palavras traz o exercício da força imaginativa do escritor como produto da relação com os acontecimentos de sua própria vida, das leituras e da aproximação que


mantém com os principais temas de seu tempo. Se fôssemos enumerar de maneira simplista diríamos que, no caso do escritor português, tudo aquilo que produziu foi graças à vida simples que o levou a ter uma posição imaginativa sobre o mundo, isto é, a refletir a vida por um ângulo diverso do usual, e, claro, pela dedicação à palavra na leitura dos clássicos e, já escritor feito, na posição que ocupa frente aos principais temas definidores da situação humana no mundo. As duas dimensões – a do autor e a do escritor – estão juntas, sobretudo, quando o Saramago se descobre como alguém dedicado a preencher uma pequena fresta nos principais canais de popularização da opinião. Este foi diferencial que fez de Saramago não apenas alguém dedicado a laboração da palavra, mas o intelectual cuja posição é a de ser um interventor e fomentador do pensamento; uma figura ativa sobre a consciência do outro, interessado em removê-lo da inércia a que está submetido ou suscetível na atual conjuntura social. A palavra, pois, não é apenas artefato para enfeitar, é maneira de ação sobre mundo. Se ansiamos por outra realidade, mais justa, mais humana, havemos de começar por mudar os usos da palavra. Eles dão forma ao mundo. Eles são o mundo. Embora, seja necessário ressalvar que nenhum escritor atende em oferecer respostas sobre tudo – como terão feito acreditar aqueles a quem muitas vezes se dedicaram a perscrutar a compreensão de Saramago sobre o mundo e o colocaram sempre na responsabilidade de opinar sobre toda e qualquer questão colocada na pauta diária pela mídia.

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Esses quiseram dele mais que um escritor, fizeram-no, erroneamente numa espécie de oráculo a quem deviam recorrer sempre que perdidos de encontrar uma resposta. Parte isso se deve ainda a compressão igualmente falsa de ser o escritor um iluminado por forças ocultas e por isso capaz de compreender melhor sobre a conjuntura na qual se insere e nos seus desdobramentos; outra parte porque a humanidade encontra em figuras da dimensão do escritor português a capacidade de um líder ou o responsável por trazer uma solução para quaisquer questões, urgente ou não. As duas partes seriam contempladas pelo termo óbvio do mago. E, possivelmente, é nesse cruzamento de possibilidades que Rui Santos faz mistério com o termo ao longo do “Espuma das palavras”. É uma dimensão, porém, já registrada no belíssimo filme de Miguel Gonçalves Mendes que acompanhou os últimos dias do escritor e a escrita de A viagem do elefante como uma metonímia para a própria biografia de Saramago, toda ela, sem grandes acidentes, mas dedicada à construção de uma unidade cujo sentido pudesse ser alcançado pela força do nome: José Saramago. É Miguel Gonçalves Mendes em José e Pilar quem perscruta o sentido da vida no tempo em que recorta o dia-a-dia do escritor, provando, antes de tudo, que um escritor é como os outros homens. A dimensão do mago está nos vários trânsitos da última fase da sua vida: por onde passou, sempre esperava de Saramago uma opinião sobre temas da natureza mais diversa. Saturado de jornalistas, o escritor nunca terá se recusado a dizer nem que um chiste.


Particularmente, não tenho bom olho para essa perseguição desenfreada da mídia e me parece que o escritor poderia ter exercitado melhor o silêncio a fim de não se tornar marionete nas mãos da imprensa, exercício que jamais teria algum efeito para alguém interessado em falar às consciências e apelar à fuga da apatia a que vimos nos reduzido com a imposição do modo de vida cada vez mais individualizado do capitalismo. Não é caso de Saramago o de se fazer um escritor midiático, é que se reservar era para si, não exercer sua posição de cidadão; silenciar é, para si, fazer vista grossa para tudo o que grassa nossa capacidade de ser humano. Nesse ponto nos encontramos: Saramago, Rui Santos e eu.

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Não roubei palavras, as palavras nunca têm dono Todos somos donos de todas as palavras Uso-as como retratos do meu ser Às vezes peço-as emprestadas Outras vezes são-me oferecidas Um dia, lá longe, tão longe, longínquo Que da memória apenas guardo um afago Um mago bateu à minha porta Deixei-me abrir, abri a porta, como teria aberto antes Abrirei se assim voltar a acontecer Estupidamente não perguntei quem era, como que já o esperasse Estupidamente não perguntei ao que vinha Deixei-me abrir assim a porta, como quem abre o coração da sua casa Ele não estava, estando, não estava Não bateu só à minha porta Não iria bater só à minha porta

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O mago seguia o seu caminho Por cada porta que passava, batia três vezes Três vezes, como os antigos carteiros faziam para anunciar as novas que traziam Mas, da vez que bateu à minha porta, Quando a abri, o mago já ia longe Percebi-lhe apenas a sombra, caminhava, seguia Percebi que a sombra de um homem é tão grande quanto ele a possa imaginar A sua sombra caminhava e crescia O mago seguia o seu caminho, Caminhando, deixava suas palavras, com cuidado, À beira de cada porta Não eram peças que pudessem ser arremessadas



Algumas portas estiveram fechadas, numa eternidade enclausurada, Eternamente cerradas em si Nem toda ou qualquer pessoa está precisada de palavras Nem toda a gente, debaixo da sua própria sombra, procura palavras E muitas são as portas que ficam fechadas, muitas as que ignoram Muitas são as casas para sempre reclusas, Com suas janelas quais como olhos fechados Janelas fechadas como mentes inertes, imóveis e estanques no que são Alguns ainda vêm à porta escutar se os passos já foram Ignorando que as palavras podem ser mudas Outros abrem a medo o postigo Não raros, entreabrem a porta presa por uma corrente Não vão as palavras assaltar sem avisar e invadir esses antros receosos Incautos e surpreendidos, muitos barram passagem à espuma das palavras Essas, que de umas, trazem companhia, outras e mais outras, e mais e mais que se aproveitam ☙ 24



Ouvem-se portas bater Que batam, quem das palavras não aprouver necessidade Que batam, quem medo tenha de novas palavras Que batam, por deseducação Que batam, porque sim, e por distracção Ouvem-se portas bater Confusos por não estar ninguém, que estando, deixava cuidadosamente as suas palavras Uns que ainda as aproveitavam, outros, nem tanto


Tantas palavras que assim esmoreciam e esfumavam, regressariam ao caminhante, talvez Aqui e ali, pelo caminho fora, observa-se que muitos, Tantos, mais do que o mago previra ou iria algum dia vir a prever Seguem o mesmo caminho


Colhendo-as, como que pardais que esmiúçam as migalhas do chão Tantos que seguem esse caminho

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E há homens e mulheres que com as palavras dadas procuram outros significados Mais significados para respostas já dadas Mais significados que descobrem novas perguntas Buscam mais certezas para avolumar às suas incertezas primeiras Que dos pesadelos das terras áridas buscam novos sonhos Mas que mago será este, será mesmo um mago? Se as suas palavras entregues a quem as aprouver não têm respostas Não dará um mago a resposta a todas as perguntas? Se as suas palavras depositadas mais perguntas levantam Dizem que ouviram perguntar – para quê e o porquê de mais perguntas? Não bastava já as que os idos tempos ainda não tinham resolvido Mas que mago será este? Quando os que abriram as portas, que das entranhas sopram urgência de respostas Quando os que desorientados procuram novos sentidos e indicações que façam sentido ☙ 31


Um dia, lá longe, tão longínquo Das memórias guardo apenas um afago Tive a sorte de me baterem à porta Tive a necessidade de procurar palavras E muitos de nós tivemos a sorte de nos bateram à porta Terríveis palavras, tormentas e atormentadas

Cruas verdades para os que se levantam do chão e das suas terras Mais palavras para os que tentam construir empresas maiores que as suas capacidades, Recordando de igual forma, os tempos dos caminhantes marítimos que empreendiam viagens longínquas Viagens promissoras a descobrir novos horizontes O mago caminha, altruísta, o caminho que o escolhia para que seus passos o seguissem Não pedia que o seguissem



Não assobiava para se anunciar Não havia qualquer murmúrio de chamamento Memória que alguém testemunhasse

O mago será mago? Se não era feiticeiro, nem paladino, nem profeta de outras causas gastas Abominava as outras palavras, as palavras que anunciavam as certezas Seguia o seu caminho


Não carregava paus, cruzes e amuletos, Tocava às portas e não estando para quem as abrisse, estava

Ouviram dizer muitos murmúrios sobre o mago Ouviram dizer que procurava que as pessoas saíssem debaixo da própria sombra

☙ 35




Abandonassem a caverna dos sentidos ensombrados onde se permitiram mergulhar Sabe-se lá quantos são, os amarrados e mergulhados nesse assombro Ouviram dizer, que alguns tinham visto um belo sol, Tão belo quanto aquele sol que se vê pela primeira vez Outros mesmotinham sentido um sol tão forte Como aquele que nos aquece a alma Ou o sol luminoso, como aquele que nos obriga a tapar o olhos com os dedos entreabertos Quanto sol seria necessário existir para que as pessoas pudessem vislumbrar a si por cima das suas sombras Houvera também quem tivesse dito que o vento que varre as folhas das árvores Esses ventos fortes, tão fortes, poderiam não ser suficientes para abanar as consciências nubladas Eólo poderia soprar eternamente, mas poderia não bastar para esta gesta


Mas o mago não trazia nenhum sol Mas o mago não colocava nenhum floco de luz ao lado das palavras depositadas Não deixava correr nenhum vento maior que aquele que soprava na rua Iluminava a alma de muitos sem anunciar a luz Soprava a consciência de outros tantos sem lhes soprar Tocava à porta três vezes como os carteiros ainda fazem para anunciar as novas Deixava as palavras a quem as procurava Palavras a quem por assombro as pudesse recolher Deixava um trilho já caminhado a quem procura um novo sol Que das sombras das casas fechadas, as janelas pudessem ser finalmente abertas de par em par

☙ 39


O mago batia às portas e seguia As mentes que se agigantavam de novo, agora maiores que a sua própria sombra Os medos que não desapareciam, mas que eram enfrentados As consciências que subiam das cavernas As sombras que subiam chaminés, trepavam muros intransponíveis E eram obrigadas a desvanecer O mago, que mago será este? Aqui e ali ia trazendo pessoas a uma nova luz, a um novo sol Sem querer ia destapando buracos de onde emergiam sombras Outros que iam somando a mais alguns Havia palavras havia luz Havia perturbação havia inquietação Inquietos que procuravam novas palavras Iluminados que assumiam novas inquietudes Qual legião de desassossegados brotavam das suas almas



Um dia, depois de muitas portas ter batido O caminho devolveu-lhe o regresso Conduziu-o pela tal encosta acima O mago foi obrigado a pausar o seu passo de caminhante Conduzido, regressou ao seu espaço Sentou-se numa pedra, perto da sua Oliveira, ainda apanhando um pouco da sua sombra Sua que não sendo, porque as árvores são como as pedras, e as pedras não são de ninguém Mas o mago pedia este espaço emprestado e dele se servia Os seus olhos apontavam o horizonte, muito para lá de onde os nossos olhos alcançam O lugar para onde enviamos a nossa mente quando buscamos um local para pensar As pernas cansadas de tanto percorrer caminhos Os pés doridos de tantos sulcos terem cavado pelas terras que pisaram



As mãos, essas pobres coitadas, poderiam estar esvaídas em sangue de a tantas portas terem batido A sua Oliveira, porto de abrigo, como se de uma jangada tratasse Tão retorcida estava, abria largos braços disformes Desde tempos, que o tempo deste mago desconhecia, suas raízes tinham cavado as terras fundas Cada vez o mago aqui tornava Aproximava-se da Oliveira e abraçava-a Era assim que pensava sentir o mundo, o pulsar das gentes e das terras Seria aqui onde vinha buscar mais palavras?

☙ 44


A árvore sempre esperava o seu abraço, mesmo que não o pudesse esperar Por um momento, tudo se fundia num só sentido, num sentir diferente O homem, a sua árvore, a sua pedra, As raízes da Oliveira sentem o pulsar do sangue bombeado Os braços do mago asfixiam o tronco, se mais pudessem, para sentir a seiva desta raiz profunda Assim era desde que há memória, e mesmo que ninguém estivesse presente para agora testemunhar

☙ 45



Depois de tantos retornos ao sítio da Oliveira Quando mal o mago voltou antes do caminho, pausou antes A urgência impunha que se sentasse na pedra Desta vez a árvore não foi logo abraçada O homem sentou-se Simplesmente, unicamente, sem mais olhares para mascarar o remorso Foi a pedra, cuja face estava enterrada no chão, que sentiu a urgência de quem lhe chegava A urgência tem um sentir diferente sobre o frio marmóreo Nada vibrava, nada tremia, faltava a energia, faltava a pressa de quem se lhe apoiava para descansar entre jornadas Desta vez, aqui chegado, o mago não tinha urgência de seguir Teria talvez perdido a impaciência de retomar caminho Não, era o tempo que já não o permitia retornos Naquela rua, qualquer rua, o mago não bateu três vezes à porta Lá longe, a gigante sombra do caminhante não está seguindo



Naquela rua, onde os cães não ladram e agora poisam as suas cabeças sobre as patas Ali mesmo esses cães deixam cair lágrimas Como em todas as outras ruas, onde alguns tinham aberto a porta Onde alguns haviam recolhido palavras depositadas Onde alguns, espalhados por todas as ruas Abriram as suas portas e janelas, deixando entrar a luz que lá de fora aprouvera existir Desta vez, o mago não pôde testemunhar Portas e janelas abrindo, como se fossem peças de dominó, caindo, umas após outras A luz que entrava pelas portas adentro, a luz que servia para iluminar as palavras depositadas Hoje as palavras já não foram deixadas Alguns não recolheram palavras Nem foram depositadas palavras emprestadas, para novas perguntas fazer amanhecer ☙ 49




Hoje, alguns, os que sentiram necessidade de abrir a porta, Os outros, que entretanto, chegando e aproximando aos poucos, destes alguns Largaram um suspiro ao vento Largaram ao sopro do vento, uma forรงa para que pelas terras pudesse empurrar novos ventos Largaram um suspiro que levantasse todas as palavras semeadas


Palavras ditas, agora murmuradas entre lábios fechados, sussurrando pelos caminhos da sombra do mago Um murmúrio silencioso e abafado ecoava Tal não é a força do som do silêncio

☙ 53




O mago sentiu ao longe, tão longe, os murmúrios que ecoavam A aragem que não era uma brisa deixou de ser aragem A brisa que não era vento deixou de ser uma brisa O vento que não era vento era já outra coisa O mago adivinhava a chegada, sentia um fim do regresso Chegava tudo até si Lá em baixo, os juncos e as canas oscilavam e adornavam junto ao riacho Era a hora, tinha chegado a hora



Levantou-se, ergue-se sobre si Dos seus pés nascia uma sombra, a sombra que o acompanhava A sombra com que muitos homens e mulheres se sentiam desencaminhados Esta sombra que nascia dos seus pés regressava também E o caminho que sempre se abriu para novas palavras Era sombra que sempre abriu novas perguntas Tudo regressava agora ao tamanho do seu mundo Erguido sobre a sombra que agora o ampara Da algibeira retirou o coto, aquele que ontem teria sido o lápis com que ia depositando as palavras Este coto depositado sobre a pedra, que aqui ainda se agiganta através da sua sombra Da mesma pedra sentinela, de onde se contemplava o horizonte Agora esta pedra, que deixará de observar o ali, lá longe, é já guardiã do lápis que teria oferecido palavras A sombra regressou ao tamanho do homem O seu a seu dono, o lápis e a réstia de grafite em cima da pedra


A sombra também agora regressada, fraca e assustada com a finitude do caminhante O seu a seu dono, o mago que não era mago, era tornado mestre, De mestre vestiu tal pele durante a vida Pela força da sua sombra abraçava homens e mulheres que escolhiam abrir as suas portas O mestre erguido, dobrou-se e apanhou com as duas mãos um punhado de terra negra Terra que é o princípio e o seu fim A terra, mãe original de todos nós e onde acabamos por ficar, Levantou ao ar a terra negra Lançou ao vento, ao vento que era a força das vontades O vento carregado de murmúrios e de palavras ditas em silêncio As palavras empurradas pelo vento abraçavam agora cada grão de terra

☙ 59




Os ventos aqui chegados com suas línguas melancólicas deixaram cair de alguns lágrimas Cada lágrima caída, cada palavra abraçada, cada gota entornada como uma troca O mestre erguido sobre a sua sombra sentia tocar sobre si o afago de homens e de mulheres De pé, sentia as gotas abraçadas e entrelaçadas com palavras dentro, Sabia da urgência que o tinha feito sentar naquela pedra onde jaz o coto do lápis Os ventos que ali depositaram as nossas gotas sofridas de tantas perguntas


Os ventos que ali descarregaram as nossas lágrimas Estes ventos retornaram os mesmos caminhos com estas novas O carteiro que também era companheiro deste mestre, que mago não era, Regressou depois de passar os ventos Regressou à sua gesta de todos os dias, Todos os dias batia três vezes a cada porta Tinha chegado a hora, Chegava o tempo em que a urgência esmorecia a sua pressa

☙ 63



O mestre aproximou-se da sua Oliveira e, enfim, abraçou-a Abraçou esta sua amiga, o seu tronco nodoso Apertou sobre o seu peito, apertou e entrelaçou os seus dedos Encostou a face e deixou-a descair Tanto para a Oliveira como para o mestre foram segundos de eternidade Um tempo sem fim, um momento em que as raízes sentiram o lento pulsar do mestre Em que o mestre sentiu a paz em que esta Oliveira sempre viveu A eternidade estava de regresso Tinha poisado sobre este mestre, discípulo da pedra e da Oliveira

☙ 65


A Oliveira enraizada e entranhada na terra-mãe, sempre à espera do nosso regresso, O outro enraizado sobre a sua Oliveira, donde todas as palavras tinham sido colhidas Sentado à beira do tempo Depois disto não depositou palavras, simplesmente se despediu



Um dia um menino, subiu este monte, e ao lado da Oliveira colheu uma flor Disse tudo isso, sentido de dentro de si, disse-me estas palavras: Sempre chegamos ao sĂ­tio aonde nos esperam



Selo Letras in.verso e re.verso 7faces caderno-revista de poesia ISSN 2177 0794

Editores Cesar Kiraly Pedro Fernandes de Oliveira Neto Catálogo Espuma das palavras Rui Santos http://www.revistasetefaces.com/ Editoração e diagramação Pedro Fernandes de Oliveira Neto Revisão Cesar Kiraly e Pedro Fernandes de Oliveira Neto

Capa, contracapa e ilustrações © Diane Sbardelotto 2015






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