Conversa com Tolstói

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CONVERSA COM

TOLSTÓI



CONVERSA COM

TOLSTÓI



Não me dirijo à minha casa, não me conduz o velho Mitréi, mas o cocheiro do conde Tolstói, Andréi; um cocheiro acostumado a levar estrangeiros notáveis e orgulhosos, é esse o motivo. Busco na bolsa – aproveito que ninguém nos vê aqui, na via arborizada –, encontro cinquenta copeques e os entrego na mão de Andréi. Olha-me, olha os cinquenta copeques, e depois sem dizer nada guarda o dinheiro no bolso e por alguma razão arreia forte o cavalo... é uma verdadeira bobagem. E sinto pena por ele e por mim. Logo avistamos a casa. Sim! Sim! Exatamente como a víamos quando crianças: limpíssima, branca e a pequena varanda coberta de trepadeiras onde há uma mesa, na mesa um samovar, sobre o samovar uma cafeteira. Só que eu aqui sou um forasteiro, um penetra, que irrompe sigilosamente no sossego de uma importante pessoa. É embaraçoso para mim passar esta varanda com alegria e desenvoltura, e enquanto permaneço no saguão, secando cuidadosamente os pés sobre um pequeno tapete, inquieto pergunto ao lacaio: – Já terá se levantado? Como está de saúde? Não o incomodarei? – Licença, irei informá-lo que o espera – me responde. – Leve o meu cartão de identificação. O empregado sai; dois minutos depois aparece de novo: – Pedem para aguardar um pouco; já vêm. Mas, volte à varanda. Pela porta da varanda aparece uma pessoa amável, de barba, e diz: – Entre, por favor.


Entro, um pouco nervoso, certamente; tudo é um bocado estranho: é a primeira vez que estou nesta casa e de repente, assim, quase de imediato, sou levado diretamente a um lugar à mesa. – Sente-se, por favor, sente-se. Este é seu nome? O meu é Tolstói (filho de Liev Nikolaiévitch). Deseja tomar chá? Café? Tem de tudo. De onde você é? De Moscou? Sepultaram Tchekhov?* Meu pai ficará contente com sua visita... Ele queria ver alguém da imprensa... Quer falar sobre Anton Pávlovitch e outras coisas... Beba, por favor. Assim, sentados à mesa, falamos; a duras penas respondo, porque me distraio pensando: “Agora me chamarão onde está o escritor; passarei e o verei no escritório meio escuro, cheio de livros, em silêncio, sentado numa poltrona”. E logo sinto, contra minha vontade, absolutamente, uma força que me faz ficar de pé. E, sem compreender, todavia, me levanto e olho: a porta para o alpendre bate bruscamente e com passo firme e veloz entra um senhor de baixa estatura, com o rosto inteiramente coberto pelo cabelo, um chapéu flexível branco sobre a cabeça. Rapidamente se aproxima de mim e embora me encontre tímido estende-me sua mão e diz: – Como está? Muito prazer…. Sou Tolstói.


Os pintores e fotógrafos o representam de maneira incorreta. Olhando-o alguém pode não notar nem aquela barba, que tão escrupulosamente atribuem os pintores, nem a face volumosa, especialmente, nem a expressão severa do rosto. O que ninguém pode ver é antes tudo uns olhos: pequenos, redondos e – como uma característica muito particular – completamente planos que irradiam uma só cor; é como se alguém olhasse uma potente fonte de luz: vê-se um resplendor contínuo e não se pode distinguir de onde vem nem como se constrói. Tudo o mais, o nariz achatado, a testa nua, as sobrancelhas espessas, a barba, e inclusive todo o corpo, parece construído para acompanhar esses olhos. Primeiro os olhos e depois o restante. Assim me parece que é Tolstói. Passa por um lado da mesa, sem se sentar; me diz: – Não o apetece uma caminhada?




– Sim, por favor – por alguma razão quis chamá-lo “conde” – Liev Nikolaiévitch... – Olha cuidadosamente meus pés, calçados com umas botas urbanas de sola. – Você não está de sapatos de borracha? Bem, caminharemos por onde possa andar com essas botas. Saímos. Descemos pela escada. Ele caminha rapidamente. Olha-me de soslaio: – Gostei que alguém da imprensa tenha vindo me ver. Quero dizer algumas palavras sobre Tchekhov; algo que eu mesmo não me disponho a escrever. Agora, como então, não consigo captar nem o som de sua voz, nem suas entonações. Percebo diretamente o que ele me diz. – Assim que Anton Pávlovitch morreu... Você disse que os funerais foram bem? Excelente… Não fizeram discursos? Foi do seu desejo? Perfeito, assim deve ser. Os discursos não são necessários. Precisamente por isso eu não aceito nenhuma participação em funerais. Sou adversário de toda manifestação… Inclusive, pela mesma razão, neguei a Turguêniev quando veio sinceramente me convidar para os festejos de Púchkin, essa é a visão que tenho desde há algum tempo: não são necessárias manifestações de nenhum tipo, especialmente as póstumas. Mas já que tocamos no tema, posso falar contigo sobre o que penso de Tchekhov. Fica me olhando: Tolstói caminha com presteza e animosamente, mantém certa distância com as mãos para trás.


– Tchekhov… Tchekhov foi um artista incomparável... Sim, sim... Incomparável… Um artista da vida... E a virtude de sua obra é clara e interessa não só a qualquer russo, mas a cada pessoa em geral... E isto é o mais importante... Há pouco li um livro de um autor alemão, em que um jovem deseja fazer uma surpresa especial à sua namorada e decide presenteá-la com livros. Sabe de quem? De Tchekhov. Porque o considerava o maior de todos os escritores conhecidos... Parece-me muito justo. Quando o li fiquei surpreso… – Tchekhov retirava da vida o que via – continua dizendo Tolstói –, independentemente do conteúdo do que via. Mas se ele pegava algo, o transmitia a um mesmo tempo de maneira extremamente simbólica e compreensível, clara até a insignificância... O que o ocupava no momento da escrita, ele o repetia até os últimos detalhes. Era sincero, e isso é uma grande virtude; escrevia sobre o que via e como via... E graças a essa sinceridade, logrou criar formas inéditas, em minha opinião, completamente novas no mundo da escrita, como não encontrei igual em nenhuma parte! Sua língua é uma língua insólita. Recordo quando comecei a lê-lo pela primeira vez: pareceu-me um tanto estranho, “desalinhado”; mas tão logo o li com atenção, sua escrita me pegou... Sim, graças a esse “desalinho”, ou não sei como chamar, é que Tchekhov constrói de um modo excepcional, e com precisão involuntária, implanta em você na sua alma maravilhosas imagens artísticas.


Olho Liev Nikolaiévitch e rio sem sentido, já que sobre sua própria escrita poderia falar com a mesma convicção, quase com aborrecimento. Surpreso, dirige-me um olhar. – Perdoe-me, Liev Nikolaiévitch – me apresso em explicar-lhe o motivo de meu riso. É que precisamente esta é uma das características suas: escrever plenamente de uma maneira nova, sensível e, graças a isso, prender inteiramente o leitor! – Não, não! – Responde Tolstói com enfado e sacode a cabeça. Repito que as novas formas foram criadas por Tchekhov e, longe de qualquer falsa modéstia, afirmo que pela técnica ele, Tchekhov, é muito melhor que eu. É um escritor único em seu gênero. – E Maupassant? – Atrevo-me a lhe perguntar. – Maupassant? – Repete. Sim, talvez. Para mim é complicado dar a algum deles preferência... Escreveu o que disse? Todo o tempo me observava com atenção para me dar possibilidade de apontar em minha caderneta suas palavras. – Já anotou? Quero lhe dizer além disso que em Tchekhov há ainda uma peculiaridade muito especial: é um daqueles raros escritores que, como Dickens, Púchkin e alguns outros, se pode reler várias, várias vezes. Sei por experiência própria... Temo voltar a chateá-lo e por isso já não digo mais nada, mas penso: “Outra vez essa é uma de suas próprias características... Guerra e Paz, Anna Kariênina, quem de nós não as releu uma dezena de vezes? E Tolstói termina seu raciocínio: – Posso lhe dizer uma coisa: a morte de Tchekhov é uma grande perda para nós, já que, além de um artista


incomparável, perdemos uma pessoa encantadora, sincera e honesta... Foi uma pessoa cativante, modesta, amável... Tolstói dizia as últimas palavras pensativo e afetuoso... Vamos por uma estrada estreita, coberta de gramíneas. As vezes paramos e, olhando-me diretamente nos olhos, profere seus pensamentos, logo caminhamos de novo e ele continua falando, olhando ao redor... Nos aproximamos por fim da casa, dando uma volta grande pelas margens do jardim... Tolstói silencia por um instante e logo volta a falar sobre Tchekhov de novo: – Já não há discursos nos funerais? Sim? Isso está bem. Porque os discursos ante a tumba… sempre são mentirosos. Veja você – nesse momento suas palavras soaram de certo modo mais lentas, mais precisas. Veja você, quando estamos ante uma tumba e queremos falar logo recordamos como vivia o defunto e o que fazia... Queremos falar da morte e não da vida. Compreende? A morte é um acontecimento tão importante que, ao contemplá-la, pensamos já não “como viveu” a pessoa e sim “como morreu”. Silencia de novo. E já estamos ante a varanda.




Tolstói entra rapidamente na varanda, pega da mesa um pacote de cartas e os jornais e vai trabalhar. Eu peço permissão para ir ao jardim, refletir um pouco e terminar de anotar nossa conversa: quero antes de minha partida ler tudo para ele. E ele me concede essa cortesia: está de acordo em me ouvir. Num banco, debaixo de um tilde espigado, escrevo, preocupado e atordoado para não esquecer nada importante. Tudo parece estar bem. Com quanto gosto e naturalidade captei tudo o que disse sobre Tchekhov. De novo, ante Tolstói. Se senta à mesa, mas não come nada. A filha lhe fala de uma tal Maria, que deve ser hospitalizada. – Não, melhor tu, chama assim e faz assim... – Há um tempo falávamos sobre Górki, Liev Nikolaiévitch, de seu poema “O homem”. Logo se anima: – É uma declínio, uma autêntica decadência. Começou a ensinar e isso é ridículo... No geral não compreendo por que fizeram de Górki um tão “grande”. Que foi que ele disse: que o vagabundo tem alma? Supostamente que é assim, mas isso se sabe há muito tempo... Não há nada de novo nele... Anotou tudo? – Dirigese a mim. – Sim, sim, sem falta. Você foi muito amável ao prometer que escutaria o que escrevi de nossa conversa. – Bem, bem… Vamos ao meu escritório.


Vamos. Próximo à porta da entrada principal há outro pequeno quarto todo branco e claro; há uma cama coberta com um colchão fino e uma manta velha. Nos sentamos à mesa. Leio para ele o que escrevi e ele escuta com atenção; apago uma coisa, acrescento outra... – Eu – lhe digo – escrevi como entendi; tratei, enquanto pude, de transmitir seu ponto de vista... – Leia… Leia… Assim… Assim… Aqui isto não é assim, estas não são minhas palavras. Assim! Assim! – corrobora Liev Nikolaiévitch. Muito bem! Bom, termine você de escrever, depois venha à varanda, sem cerimônias. Eu estarei lá. – Devo ir agora, Liev Nikolaiévitch. – Já? Aonde? – A Tula. Quero telegrafar o mais rapidamente nossa conversa para o jornal. – Telegrafar? Tantas palavras? – Sim, certamente.


Tolstói sai e me deixa só neste templo, onde se respira com maior liberdade que em nenhum outro lugar. Acabo de escrever e saio do quarto. Na varanda está Tolstói e uma mulher que chora. Vagamente, me chegam os ecos de sua conversa. Ao notar que quero voltar, Tolstói me chama: – Venha, venha, por favor. Conheça Sofía Andréievna... É a condessa. Deus, aqui todas as pessoas são famosas. Sofía Andréievna é como se a conhecesse há dezenas de anos. A conversa com ela se encaminha para os nossos conhecidos em comum em Moscou, que são muitos, enquanto Tolstói se senta à mesa e toma o café da manhã. A condessa pergunta, amavelmente: – Ficará um bom tempo conosco? Já perguntou tudo o que queria a Liev Nikolaiévitch? – Não, devo ir agora a Tula. – Já? Valeu a pena vir de Petersburgo a Iásnaia Poliana só por duas horas? Aqui tudo é muito agradável. Sim, ouves Liev Nikolaiévitch, quer ir-se já! – Sim, sim – muito sério responde Tolstói –, deve telegrafar ao jornal. – Já – disse a condessa –, acabam de enterrar Tchekhov, você conseguiu falar com Tolstói; é um grande material. Quando vejo a carinhosa condessa e Liev Nikolaiévitch, que com semblante sério come suas vagens, um sentimento bom e alegre chega a minha alma: que sensíveis e bons me parecem. Ao olhar pela última vez para Tolstói um pensamento persistente e absurdo me ronda a cabeça: “E


se não é ele quem está ante mim, ele que escreveu Guerra e paz e Anna Kariênina”.

Nota da tradução * Refere-se aos funerais de Tchekhov. O escritor morreu em 15 de julho de 1904 em Badenwieler, Alemanha e as exéquias tiveram lugar em Moscou em 22 de julho do mesmo ano.


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A entrevista a Aleksei Zenger apareceu no jornal Rus de Petersburgo em 28 de jul. de 1904. Tradução a partir do espanhol Por Pedro Fernandes de O. Neto. A versão espanhola foi apresentada na revista Letras Libres, em nov. de 2010. Imagens. Capa: Olga Shirmina. Fotografias internas: Liev Tolstói em Iasnaia Poliana / Russain Photos. Blog Letras in.verso e re.verso








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