Encarte para edição especial da Revista 7faces

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Um ensaio itinerante para ler José Saramago, paisagens.

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7faces Caderno-revista de poesia

Edição especial Variações de um mesmo tom: Diálogos sobre a poesia de José Saramago ISSN 2177 0794 Encarte Um ensaio itinerante para ler José Saramago, paisagens

Pedro Fernandes de Oliveira Neto

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7faces Caderno-revista de poesia Edição especial Variações de um mesmo tom: Diálogos sobre a poesia de José Saramago ISSN 2177 0794 Encarte Um ensaio itinerante para ler José Saramago, paisagens

Editor-chefe Pedro Fernandes de Oliveira Neto set7aces.blogspot.com Editoração, diagramação e organização Pedro Fernandes de Oliveira Neto Capa José Saramago. Fotografia: mAcc (Reprodução) Contracapa José Saramago em 2003. Fotografia: José Caria (Reprodução)

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A necessidade desse encarte é o da reprodução desse texto. Ela dá-se por duas constatações: primeiro, é que quando ele foi escrito eu já estava no calor da produção desta edição especial da 7faces; segundo, este texto, resultado de notas para preparação de uma palestra que, a princípio indiretamente, depois diretamente, foi parte da série de atividades desencadeadas também durante o período de gestação e de elaboração desta edição. As notas deram norte para uma palestra ministrada às turmas de Literatura Luso-Brasileira da Faculdade de Letras e Artes (FALA) da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), no dia 9 de fevereiro de 2010. A partir dessa fala deu-se o curso Um universo de José Saramago – paisagens, que foi ofertado na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Campus Avançado Prefeito Walter de Sá Leitão, em Assu, por ocasião do I Simpósio de Letras do Vale do Assu, em dezembro do mesmo ano. A integridade do roteiro da fala foi preservada e, muitas vezes, o mesmo tom da oralidade com que pensei certas notas foi também preservado. Alguns ajustes temporais, entretanto, foram necessários de fazer; até o mês de fevereiro de 2010, o escritor ainda estava vivo e trabalhando num novo romance, o que me fez tomar alguns acréscimos e alterações de muitas considerações em torno da sua obra.

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Página inicial da primeira versão da peça teatral A segunda vida de Francisco de 7faces – edição especial Assis. Fonte: Colóquio/Letras, ed. 151­152. Fundação Calouste Gulbekian.

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a paisagem é sem dúvida anterior ao homem (José Saramago, Levantado do chão)

A

epígrafe acima, recorte do segundo romance de

José Saramago, traduz, em linhas gerais o objetivo deste ensaio, uma vez que, o que

pretendo aqui é um esboço das dimensões de uma paisagem

que sendo anterior ao homem-escritor é, ao mesmo tempo, também um elemento, senão o principal, o constituinte de si. E quando falo em paisagem não falo somente da paisagem física, aquela geográfica, ou histórico-biográfica, ou paisagem humana, aquela que aponta no meio da História, solitária, a árvore genealógica do sujeito; falo, evidentemente, destas, mas também da paisagem subjetiva e principalmente da paisagem ficcional que o escritor vai compondo, uma vez que, é no congraçamento daquelas e destas paisagens, mas ainda sem se reduzir a elas, que se abre uma possibilidade para o entendimento do conjunto da obra literária.

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1 Meu primeiro contato com os traços da paisagem literária de José Saramago – e tantas vezes já disse isso, mas que seja dito mais só vez para que fique registrado a vocês – meu primeiro contato vem ainda quando da minha Graduação em Letras, em meados de 2006. Na época, estava passando por um período de transição para os estudos com o texto literário e numa das constantes visitas à biblioteca da universidade, minha atenção se voltou para o alaranjado do frontispício da edição de bolso brasileira do romance O evangelho segundo Jesus Cristo. Quando comecei a lê-lo, fiquei extasiado. Não com o conteúdo, que também é suficiente para tal reação, mas com um aspecto Edição de bolso para O evangelho segundo Jesus Cristo publicada pela Companhia das Letras. Do mesmo autor, a editora já publicou nesse formato A jangada de pedra, O homem duplicado e História do cerco de Lisboa.

quase que unânime e corriqueiro aos que se deparam a primeira vez com a materialidade verbal do escritor português: aquele estilo de narrar, que ora preserva, ora mais que isso, intensifica a oralidade no trajeto da escrita, fazendo do texto literário “exercício muscular” – para usar dos termos do próprio romancista. Sua forma escorreita torna impossível, à primeira vista, precisar momentos de narração, falação ou volição psicológica do narrador e da personagem; “um movimento fluido cujas articulações fonológicas, sintáticas e proposicionais vão sendo feitas envolvidas por um processo de desagregação agregada e de caotização ordenada, como se, o que o narrador aspirasse, fosse uma simultaneidade, aspirasse dizer tudo num só close.” (OLIVEIRA NETO, 2010, p.6).

Quando de posse desse estilo único de narrar, saramaguiano por natureza, pude ver a beleza poética que aí reside; que nisso tudo há uma espécie de ruído, que é o próprio rumorejo do toque das palavras, que é também o próprio

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ruído do interno pelo o de fora, e vice-versa, que a tudo perpassa, costurando o fio do discurso, os fluxos de pensamento ou de outras falas, seja do narrador, seja das personagens, tudo, enfim, irrompido e entrelaçado numa rede principal, que a nós se manifesta como uma narrativa densa, sofisticadamente densa. De modo que, Saramago parece captar não o close da oralidade apenas, mas o seu avesso, no sentido do que está por debaixo dela, isto é, as linhas compositoras da materialidade oral, o verbo em seu estágio bruto, uma oralidade que é “fala de boca cheia” – nos termos de Guattari (1992, p.113) – “cheia de dentro e cheia de fora. Ao mesmo tempo complexidade em involução

caótica

complexificação

e

simplicidade

infinita.

Dança

do

em caos

vias

de

e

da

complexidade”.

Depois de lido O evangelho – a mesma edição de bolso que vi dias antes na biblioteca da universidade – fui pesquisar melhor quem era esse José Saramago. Daí, produzi aquilo que seria minha primeira apreciação escrita da obra desse escritor: “Um Deus diabo, um Diabo deus: reflexões acerca do sacro/profano em O evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago”.

Hoje, depois de recolhidas já tantas informações acerca do escritor e depois de outras tantas apreciações escritas acerca da sua obra, volto meu olhar contemplativo para umas imagens de Saramago – as primeiras que encontrei do escritor menino; são umas fotos tiradas com a pompa da simplicidade: Saramago é do seio de uma família de agricultores do Ribatejo, nascido na aldeia de Azinhaga, Golegã, em 16 de novembro de 1922.

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O sol mostra-se num dos cantos superiores do rectângulo, o que se encontra à esquerda de quem olha, representando, o astro-rei, uma cabeça de homem donde jorram raios de aguda luz e sinuosas labaredas, tal uma rosa-dos-ventos indecisa sobre a direcção dos lugares para onde quer apontar, e essa cabeça tem um rosto que chora, crispado de uma dor que não remite, lançando pela boca aberta um grito que não poderemos ouvir, pois nenhuma destas coisas é real, o que temos diante de nós é papel e tinta, mais nada. Por baixo do sol vemos um homem nu atado a um tronco de árvore, cingidos os rins por um pano que lhe cobre as partes a que chamamos pudendas ou vergonhosas, e os pés tem-nos assentes no que resta de um ramo lateral cortado, porém, por maior firmeza, para que não resvalem desse suporte natural, dois pregos os mantêm, cravados fundo. Pela expressão da cara, que é de inspirado sofrimento, e pela direcção do olhar, erguido para o alto, deve de ser o Bom Ladrão. O cabelo, todo aos caracóis, é outro indício que não engana, sabendo-se que anjos e arcanjos assim o usam, e o criminoso arrependido, pelas mostras, já está no caminho de ascender ao mundo das celestiais criaturas. Não será possível averiguar se este tronco ainda é uma árvore, apenas adaptada, por mutilação selectiva, a instrumento de suplício, mas continuando a alimentar-se da terra pelas raízes, porquanto toda a parte inferior dela está tapada por um homem de barba comprida, vestido de ricas, folgadas e abundantes roupas, que, tendo embora levantada a cabeça, não é para o céu que olha. Esta postura solene, este triste semblante, só podem ser de José de Arimateia, que Simão de Cirene, sem dúvida outra hipótese possível, após o trabalho a que o tinham forçado, ajudando o condenado no transporte do patíbulo, conforme os protocolos destas execuções, fora à sua vida, muito mais preocupado com as consequências do atraso para um negócio que trazia aprazado do que com as mortais aflições do infeliz que iam crucificar. Ora, este José de Arimateia é aquele bondoso e abastado homem que ofereceu os préstimos de um túmulo seu para nele ser depositado o corpo principal, mas a generosidade não lhe servirá de muito na hora das santificações, sequer das beatificações, pois não tem, a envolver-lhe a

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cabeça, mais do que o turbante com que sai à rua todos os dias, ao contrário desta mulher que aqui vemos em plano próximo, de cabelos soltos sobre o dorso curvo e dobrado, mas toucada com a glória suprema duma auréola, no seu caso recortada como um bordado doméstico. De certeza que a mulher ajoelhada se chama Maria, pois de antemão sabíamos que todas quantas aqui vieram juntar-se usam esse nome, apenas uma delas, por ser ademais Madalena, se distingue onomasticamente das outras, ora, qualquer observador, se conhecedor bastante dos factos elementares da vida, jurará, à primeira vista, que a mencionada Madalena é esta precisamente, porquanto só uma pessoa como ela, de dissoluto passado, teria ousado apresentar-se, na hora trágica, com um decote tão aberto, e um corpete de tal maneira justo que lhe faz subir e altear a redondez dos seios, razão por que, inevitavelmente, está atraindo e retendo a mirada sôfrega dos homens que passam, com grave dano das almas, assim arrastadas à perdição pelo infame corpo. É, porém, de compungida tristeza a expressão do seu rosto, e o abandono do corpo não exprime senão a dor de uma alma, é certo que escondida por carnes tentadoras, mas que é nosso dever ter em conta, falamos da alma, claro está, esta mulher poderia até estar inteiramente nua, se em tal preparo tivessem escolhido representá-la, que ainda assim haveríamos de demonstrar-lhe respeito e homenagem. Maria Madalena, se ela é, ampara, e parece que vai beijar, num gesto de compaixão intraduzível por palavras, a mão doutra mulher, esta sim, caída por terra, como desamparada de forças ou ferida de morte. O seu nome também é Maria, segunda na ordem de apresentação, mas, sem dúvida, primeiríssima na importância, se algo significa o lugar central que ocupa na região inferior da composição. Tirando o rosto lacrimoso e as mãos desfalecidas, nada se lhe alcança a ver do corpo, coberto pelas pregas múltiplas do manto e da túnica, cingida na cintura por um cordão cuja aspereza se adivinha. É mais idosa do que a outra Maria, e esta é uma boa razão, provavelmente, mas não a única, para que a sua auréola tenha um desenho mais complexo, assim, pelo menos, se acharia autorizado a pensar quem, não dispondo de informações precisas acerca das precedências, patentes e hierarquias em vigor neste mundo, estivesse obrigado a formular uma opinião. Porém, tendo em conta o grau de divulgação, operada por artes maiores e menores, destas iconografias, só um habitante doutro planeta, supondo que nele não se houvesse repetido alguma vez, ou mesmo estreado, este drama, só esse em verdade inimaginável ser ignoraria que a afligida mulher é a viúva de um carpinteiro chamado José e mãe de numerosos filhos e filhas, embora só um deles, por imperativos do destino ou de quem o governa, tenha vindo a prosperar, em vida mediocremente, mas maiormente depois da morte. Reclinada sobre o seu lado esquerdo, Maria, mãe de Jesus, esse mesmo a quem acabamos de aludir, apoia o antebraço na coxa de uma outra mulher, também ajoelhada, também Maria de seu nome, e afinal, apesar de não lhe podermos ver nem fantasiar o decote, talvez verdadeira Madalena. Tal como a primeira desta trindade de mulheres, mostra os longos cabelos soltos, caídos pelas costas, mas estes têm todo o ar de serem louros, se não foi pura casualidade a diferença do traço, mais leve neste caso e deixando espaços vazios no sentido das madeixas, o que, obviamente, serviu ao gravador para aclarar o tom geral da cabeleira representada. Com tais razões não pretendemos afirmar que Maria Madalena tivesse sido, de facto, loura, apenas nos estamos conformando com a corrente de opinião maioritária que insiste em ver nas louras, tanto as de natureza como as de tinta, os mais eficazes instrumentos de pecado e perdição. Tendo sido Maria Madalena, como é geralmente sabido, tão pecadora mulher, perdida como as que

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mais o foram, teria também de ser loura para não desmentir as convicções, em bem e em mal adquiridas, de metade do género humano. Não é, porém, por parecer esta terceira Maria, em comparação com a outra, mais clara na tez e no tom do cabelo, que insinuamos e propomos, contra as arrasadoras evidências de um decote profundo e de um peito que se exibe, ser ela a Madalena. Outra prova, esta fortíssima, robustece e afirma a identificação, e vem a ser que a dita mulher, ainda que um pouco amparando, com distraída mão, a extenuada mãe de Jesus, levanta, sim, para o alto o olhar, e este olhar, que é de autêntico e arrebatado amor, ascende com tal força que parece levar consigo o corpo todo, todo o seu ser carnal, como uma irradiante auréola capaz de fazer empalidecer o halo que já lhe está rodeando a cabeça e reduzindo pensamentos e emoções. Apenas uma mulher que tivesse amado tanto quanto imaginamos que Maria Madalena amou poderia olhar desta maneira, com o que, derradeiramente, fica feita a prova de ser ela esta, só esta, e nenhuma outra, excluída portanto a que ao lado se encontra, Maria quarta, de pé, meio levantadas as mãos, em piedosa demonstração, mas de olhar vago, fazendo companhia, neste lado da gravura, a um homem novo, pouco mais que adolescente, que de modo amaneirado a perna esquerda flecte, assim, pelo joelho, enquanto a mão direita, aberta, exibe, numa atitude afectada e teatral, o grupo de mulheres a quem coube representar, no chão, a acção dramática. Este personagem, tão novinho, com o seu cabelo aos cachos e o lábio trémulo, é João. Tal como José de Arimateia, também esconde com o corpo o pé desta outra árvore que, lá em cima, no lugar dos ninhos, levanta ao ar um segundo homem nu, atado e pregado como o primeiro, mas este é de cabelos lisos, deixa pender a cabeça para olhar, se ainda pode, o chão, e a sua cara, magra e esquálida, dá pena, ao contrário do ladrão do outro lado, que mesmo no transe final, de sofrimento agónico, ainda tem valor para mostrar-nos um rosto que facilmente imaginamos rubicundo, corria-lhe bem a vida quando roubava, não obstante a falta que fazem as cores aqui. Magro, de cabelos lisos, de cabeça caída para a terra que o háde comer, duas vezes condenado, à morte e ao inferno, este mísero despojo só pode ser o Mau Ladrão, rectíssimo homem afinal, a quem sobrou consciência para não fingir acreditar, a coberto de leis divinas e humanas, que um minuto de arrependimento basta para resgatar uma vida inteira de maldade ou uma simples hora de fraqueza. Por cima dele, também chorando e clamando como o sol que em frente está, vemos a lua em figura de mulher, com uma incongruente argola a enfeitar-lhe a orelha, licença que nenhum artista ou poeta se terá permitido antes e é duvidoso que se tenha permitido depois, apesar do exemplo. Este sol e esta lua iluminam por igual a terra, mas a luz ambiente é circular, sem sombras, por isso pode ser tão nitidamente visto o que está no horizonte, ao fundo, torres e muralhas, uma ponte levadiça sobre um fosso onde brilha água, umas empenas góticas, e lá por trás, no testo duma última colina, as asas paradas de um moinho. Cá mais perto, pela ilusão da perspectiva, quatro cavaleiros de elmo, lança e armadura fazem voltear as montadas em alardes de alta escola, mas os seus gestos sugerem que chegaram ao fim da exibição, estão saudando, por assim dizer, um público invisível. A mesma impressão de final de festa é dada por aquele soldado de infantaria que já dá um passo para retirar-se, levando, suspenso da mão direita, o que, a esta distância, parece um pano, mas que também pode ser manto ou túnica, enquanto dois outros militares dão sinais de irritação e despeito, se é possível, de tão longe, decifrar nos minúsculos rostos um sentimento, como de quem jogou e perdeu. Por cima destas vulgaridades de milícia e de cidade muralhada pairam quatro anjos, sendo dois dos de corpo inteiro, que choram, e protestam, e se lastimam,

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não assim um deles, de perfil grave, absorto no trabalho de recolher numa taça, até à última gota, o jorro de sangue que sai do lado direito do Crucificado. Neste lugar, a que chamam Gólgota, muitos são os que tiveram o mesmo destino fatal e outros muitos o virão a ter, mas este homem, nu, cravado de pés e mãos numa cruz, filho de José e de Maria, Jesus de seu nome, é o único a quem o futuro concederá a honra da maiúscula inicial, os mais nunca passarão de crucificados menores. É ele, finalmente, este para quem apenas olham José de Arimateia e Maria Madalena, este que faz chorar o sol e a lua, este que ainda agora louvou o Bom Ladrão e desprezou o Mau, por não compreender que não há nenhuma diferença entre um e outro, ou, se diferença há, não é essa, pois o Bem e o Mal não existem em si mesmos, cada um deles é somente a ausência do outro. Tem por cima da cabeça, resplandecente de mil raios, mais do que, juntos, o sol e a lua, um cartaz escrito em romanas letras que o proclamam Rei dos Judeus, e, cingindo-a, uma dolorosa coroa de espinhos, como a levam, e não sabem, mesmo quando não sangram para fora do corpo, aqueles homens a quem não se permite que sejam reis em suas próprias pessoas. Não goza Jesus de um descanso para os pés, como o têm os ladrões, todo o peso do seu corpo estaria suspenso das mãos pregadas no madeiro se não fosse restarlhe ainda alguma vida, a bastante para o manter erecto sobre os joelhos retesados, mas que cedo se lhe acabará, a vida, continuando o sangue a saltar-lhe da ferida do peito, como já foi dito. Entre as duas cunhas que firmam a cruz a prumo, como ela introduzidas numa escura fenda do chão, ferida da terra não mais incurável que qualquer sepultura de homem, está um crânio, e também uma tíbia e uma omoplata, mas o crânio é que nos importa, porque é isso o que Gólgota significa, crânio, não parece ser uma palavra o mesmo que a outra, mas alguma diferença lhes notaríamos se em vez de escrever crânio e Gólgota escrevêssemos gólgota e Crânio. Não se sabe quem aqui pôs estes restos e com que fim o teria feito, se é apenas um irónico e macabro aviso aos infelizes supliciados sobre o seu estado futuro, antes de se tornarem em terra, pó e coisa nenhuma. Mas também há quem afirme que este é o próprio crânio de Adão, subido do negrume profundo das camadas geológicas arcaicas, e agora, porque a elas não pode voltar, condenado eternamente a ter diante dos olhos a terra, seu único paraíso possível e para sempre perdido. Lá atrás, no mesmo campo onde os cavaleiros executam um último volteio, um homem afasta-se, virando ainda a cabeça para este lado. Leva na mão esquerda um balde e uma cana na mão direita. Na extremidade da cana deve haver uma esponja, é difícil ver daqui, e o balde, quase apostaríamos, contém água com vinagre. Este homem, um dia, e depois para sempre, será vítima de uma calúnia, a de, por malícia ou escárnio, ter dado vinagre a Jesus ao pedir ele água, quando o certo foi ter-lhe dado da mistura que traz, vinagre e água, refresco dos mais soberanos para matar a sede, como ao tempo se sabia e praticava. Vai-se embora, não fica até ao fim, fez o que podia para aliviar as securas mortais dos três condenados, e não fez diferença entre Jesus e os Ladrões, pela simples razão de que tudo isto são coisas da terra, que vão ficar na terra, e delas se faz a única história possível. (SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.7-13)

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Foi nestes lugares que vim ao mundo, foi daqui, quando ainda não tinha dois anos, que meus pais, migrantes empurrados pela necessidade, me levaram para Lisboa, para outros modos de sentir, pensar e viver, como se nascer onde eu nasci tivesse consequência de um equívoco do acaso, de uma casual distracção do destino, que ainda estivesse nas suas mãos emendar. (SARAMAGO, 2006, p.10) A contemplação de hoje se justapõe ao resultado dessas primeiras observações biográficas e me permite enxergar meu aprofundamento na literatura do escritor; aprendizagem que se tateia depois de alguns ensaios e um trabalho monográfico de conclusão do curso de Licenciatura em Letras. Neste, me propus a uma leitura d'O conto da ilha desconhecida, entendendo-o como um texto permeado de uma residualidade do Existencialisme sartriano; pela superfície complexa do texto literário e do texto teórico refleti sobre a constituição do ser, tendo um corpus que remetia aos movimentos operados pela personagem central do referido conto.

À paisagem saramaguiana ainda voltei várias vezes e agora posso dizer que nela estou para extrair as forças que me guiem o nascimento deste ensaio. À Azinhaga também Saramago voltaria várias vezes; segundo ele, “para nascer”.

Durante toda a infância, e também os primeiros anos da adolescência, essa pobre e rústica aldeia, com a sua fronteira rumorosa de água e de verdes, com as suas casas baixas rodeadas pelo cinzento prateado dos olivais, umas vezes requeimadas pelos ardores do Verão, outras vezes transidas pelas geadas assassinas do Inverno ou afogada pelas enchentes que lhe entravam pela porta dentro, foi o berço onde se completou minha gestação, a bolsa onde o pequeno marsupial se recolheu para fazer da sua pessoa, em bem e talvez em mal, o que só por ela própria, calada, secreta, solitária, poderia ter sido feito. (SARAMAGO, 2006, p.11)

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O escritor nasce enquanto tal muito antes de seus primeiros rabiscos ou publicações, muito antes de se fazer um autodidata, às claras, por entre as paisagens dos livros, sem bússola e sem roteiro, nas constantes noites em que visitava as bibliotecas públicas; o escritor nasce do convívio com a paisagem alentejana, com os avós alentejanos e com as histórias desses antepassados – “enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que meu avô ia contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e de pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias”, afirmaria ele no seu discurso da noite de 7 de dezembro de 1998, na Real Academia Sueca. Em 1999, a Editorial Caminho organizou uma edição reunindo os discursos de José Saramago por ocasião do recebimento do Prêmio Nobel no ano anterior. No livro é possível ler a íntegra o discurso pronunciado na Academia Sueca em 7 de dezembro de 1998 e o discurso no banquete Nobel, em 10 de dezembro de 1998. Logo, depois, a Caminho reeditou o material em formato de e-book.

O Prêmio Nobel, entretanto, não dá grandeza ao escritor; o Prêmio é antes o reconhecimento daquilo que ele já era: um escritor “que, com parábolas portadoras de imaginação, compaixão e ironia torna constantemente compreensível uma realidade fugidia” (citação do comunicado da Academia Sueca à imprensa no dia 8 de outubro de 1998).

É

lugar

comum

afirmar

que

Saramago

é,

contemporaneamente, em toda extensão de sua obra, um dos maiores escritores na literatura de língua portuguesa, aliando-se a nomes como Camões, Eça de Queirós, Fernando Pessoa... Entretanto, é preciso que só mais uma vez se repita, sem que se pareça ordinário, como se assim fosse uma maneira outra de reconhecimento. Sua obra assume em todos os cantos da arte literária, da prosa (conto, crônica, romance, diário, ensaio, discursos), à poesia e ao teatro. Trata-se de uma obra multifacetada – característica de toda obra de arte que busque apreender a complexidade da existência do mundo, essa imensa instituição labiríntica.

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Cito para efeito a fala do escritor português numa conferência em Turim, Itália, em 1998, A estátua e a pedra. Nela, Saramago comenta quanto à sua obra, sua relação com a História e com o romance histórico, em geral, sobre sua escrita. Essa conferência, entendo, como entende Luciana

Stegagno

importância

para

Picchio, o

como

entendimento

de

fundamental

dessa

paisagem

multifacetada do autor.

Em A estátua e a pedra Saramago compara a sua escrita fazendo o uso de uma imagem metafórica, bem a seu modo, da estátua e da pedra: O que é uma estátua? A estátua é a superfície da pedra, a estátua é só a superfície da pedra, é o resultado daquilo que foi retirado da pedra, a estátua é o que ficou depois do trabalho que retirou pedra à pedra, toda a escultura é isso, é a superfície da pedra e é o resultado dum trabalho que retirou pedra da pedra. Então é como se eu tivesse ao longo destes livros todos andado a descrever essa estátua, o rosto, o gesto, as roupagens, enfim, tudo isso, descrever a estátua. Imaginem que bela é, ou pelo contrário, que horrível, e essa descrição teve várias expressões que vão desde o Manual de Pintura e Caligrafia passando por todos os outros livros até a O Evangelho segundo Jesus Cristo, porque quando o acabei eu não tinha, não sabia que tinha andado a descrever uma estátua, para isso tive de perceber o que é que acontecia quando deixávamos de descrever e passávamos a entrar na pedra. E isso só pôde acontecer com o Ensaio sobre a Cegueira, [...] que foi quando eu percebi que alguma coisa tinha terminado na minha vida de escritor que era ter acabado a descrição da estátua e ter passado para o interior da pedra, [...] (SARAMAGO, 1998, p.9). Vejamos que o autor, num tom crítico de si, traceja o que podemos entender como duas fases para sua escrita: uma fase voltada para como se fosse a recomposição paisagística de um cenário e outra fase para como se o desenrolar da trama para um enredo. Esta primeira fase delimita-se,

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grosseiramente, como uma fase histórica. Grosseiramente porque não é o escritor autor de livros históricos, mas tratase de uma fase em que sua preocupação está em revolver, como num trajeto arqueológico, como num apreender os interstícios da materialidade histórica, para, num modo muito próprio, redimensioná-la, em busca de uma compreensão mais afinada e, consequentemente, mais profícua da constituição histórica da existência. Quero com isso dizer que História não é o problema central de sua obra, nem é elemento figurativo, pano de fundo para sua ficção, mas que a História aí é “situação”. O escritor, portanto, se volta para o passado – materialidade nebulosa estendida por uma essência que se diz coletiva – para, então, fazer seu balanço, para apreender sua história, sua pedra, sua própria materialidade.

A segunda fase, uma escavação do homem e da sua existência;

do

homem,

não

apenas

enquanto

ser

antropológico, mas, principalmente, enquanto ser social, político, sujeito inserido nas correntezas fibrosas da História; da existência, não como algo que aconteceu, mas aquilo que somos; ou ainda por que somos dessa maneira e não de outra. Acerca desse último aspecto ele não se pergunta quanto ao emaranhado de motivações interiores que nos determina ser “isso” e não “aquilo”, mas que possibilidades, que elementos exteriores a nós nos possibilita que sejamos “isso” e não “aquilo”; e, ainda, que chances temos nós num mundo cujos paradoxos e a fragmentariedade tornaram a realidade produto cada vez mais volátil ao homem.

Conforme sonda Ana Paula Arnaut em José Saramago: a literatura do desassossego, há o aparecimento do que ela

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chama de “novo ciclo na produção romanesca” ou, em outras palavras, uma terceira fase, quando da publicação d'As intermitências da morte. Nessa fase o escritor permanece com as mesmas rotas de escavação no existencial humano e social, só que marcado por “uma substancial simplificação na estrutura da narrativa em concomitância com uma maior obediência à sintaxe e à pontuação tradicionais”; não só isso, mas também “uma alteração no tom e na cor com que os fios condutores da narrativa são apresentados” (ARNAUT, 2007, p.19).

Nesse meu itinerário pela paisagem saramaguiana e com o aparecimento nela de mais dois romances – A viagem do elefante e Caim –, em que parece o escritor fazer uma revisitação

a

primeira

fase,

compreendo

que

o

estabelecimento dos dois ciclos, o de miragem e o de escavação da pedra, feito pelo próprio escritor na conferência de Turim, são suficientes para que possamos dispor nessa fala um entendimento, pelo menos em linhas genéricas, de como está organizada sua obra; ainda mais que,

é

o

perfil

temático,

mais

do

que

estruturação/composição do texto, o que melhor se usa como critério para soldagem das tais linhas pedagógicas para uma compreensão didática da obra de um autor.

Mesmo sabendo que todas as categorizações do tipo são falhas, me parece pertinente ainda afirmar, com base nas considerações da professora Maria Alzira Seixo em Dez anos de literatura portuguesa (1974-1984) – Ficção, de que a paisagística da obra saramaguiana se consolida, em linhas gerais, tomando por base três relações temáticas: homemterra, indivíduo-grupo, destino-usura; não necessariamente nessa ordem, mas todas elas marcam, de uma maneira ou de

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outra, a formação de uma atmosfera pela qual respira sua produção literária. É verdade que as considerações da professora foram feitas ainda numa época que Saramago só havia publicado até Memorial do convento, e logo, essas três relações temáticas se apresentam mais visíveis nos romances da primeira fase, mas se olharmos para romances como Ensaio sobre a cegueira ou mesmo o último do escritor, Caim, haveremos de perceber que tais relações ainda se ajustam.

Entendo que o seu caráter de ficcionista não somente renova o romance pela temática e pelas técnicas de narrar próprias – e falo do romance como um todo, não apenas o português –, mas, sobretudo, pela pertinente reflexão acerca da condição humana e, como disse antes, acerca dessa realidade cada vez mais fragmentada, paradoxal e possessa de esvaziamentos pelo excesso de matérias visuais; dessa realidade cujos elementos exteriores representam tanto a ponto de cercear a própria existência humana. Se nisso tudo o sujeito é em que mais se revelam tais condições, o projeto saramaguiano de escrita, se é que posso falar assim, ganha importância no cenário literário por considerar os sujeitos e sua existência como acontecimentos, elementos materiais e estruturas no/do funcionamento na/da engrenagem social. E por assim ser, o homem saramaguiano é aquele dotado de prolongamentos e é usando desses prolongamentos que Saramago compõe o mote de sua narrativa denunciando com certo ressentimento irônico o mundo tal como existe.

2 Em certo sentido poder-se-á mesmo dizer que, letra a letra, palavra a palavra, página a página, livro a livro, tenho vindo, sucessivamente, a implantar no homem que fui as

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personagens que criei. Creio que, sem elas, não seria a pessoa que hoje sou, sem elas talvez a minha vida não tivesse logrado ser mais que um esboço impreciso, uma promessa como tantas outras que de promessa não conseguiram passar, a existência de alguém que talvez pudesse ter sido e afinal não tinha chegado a ser. (SARAMAGO, 1998, p.3). Depois da conferência A estátua e a pedra, volto ao discurso de Saramago na Real Academia Sueca e noto em excertos como esse a expressão de uma linha de raciocínio no exame para com a sua história e das suas personagens; tal linha, me parece, dá conta de que a relação criadorcriatura é simbiótica – as suas figuras literárias ao passo que emergem do autor-criador acabam por ganhar vida própria e atuam como elementos transformadores da sua própria figura de escritor: Agora sou capaz de ver com clareza quem foram os meus mestres de vida, os que mais intensamente me ensinaram o duro ofício de viver, essas dezenas de personagens de romance e de teatro [...] essa gente que eu acreditava ir guiando de acordo com as minhas conveniências de narrador e obedecendo à minha vontade de autor, como títeres articulados cujas acções não pudessem ter mais efeito em mim que o peso suportado e a tensão dos fios com que os movia. (SARAMAGO, 1998, p.3) Isso, entretanto, não quer dizer que as suas personagens possam ocupar o lugar de seres vivos, conforme possa sondar o senso comum. Não; como toda personagem literária elas não passam de seres imaginários, mas seres que têm vida própria e capacidade própria de, pela imaginação, intervir na vida do autor. Esse me parece ser o entendimento do escritor português.

3

Talvez por essa intensa relação de paisagens (real-

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imaginário, autor-obra), um episódio em 1992, veio marcar a carreira de José Saramago, já iniciada tardiamente; afinal, só se definiu enquanto tal quando já havia se aposentado (por conta própria) de outro papel seu, o de funcionário público. Remeto a esse famoso episódio porque ele terá, certamente, se observarmos com cautela, um significado na sua produção literária. O episódio de que falo trata-se do repúdio expresso pelas autoridades portuguesas para com aquele primeiro romance que tive oportunidade de ler: O evangelho segundo Jesus Cristo. Com a justificativa de que a obra “era profundamente polémica, pois ataca princípios que têm a ver com o património religioso dos cristãos e, portanto longe de unir os Portugueses, desunia-os naquilo que é o seu património espiritual” (cf. AGUILERA, 2007, p.114) o subsecretário de Estado da Cultura, Sousa Lara, proíbe a sua participação para o Prêmio Literário Europeu. Em protesto, pelo desrespeito à sua obra e sentindo-se censurado, o escritor decide por se refugiar em Lanzarote, uma ilha das Canárias, localizada entre os continentes da Europa e da África. A significação, senão direta, mas em partes, na composição de uma arquitetura de sua paisagem literária, percebo no trato dos temas de suas obras, que agora passam a temas mais comuns ao homem como um todo, e não apenas ao português, processados pelo olhar cada vez mais irônico e fino para acerca das ideologias e do poder; e, para efeito, por que não citar as quantas ilhas – cartográficas e subjetivas – presentes na sua obra?

Relações conturbadas à parte, o fato é que, durante muito tempo, Saramago esteve alheio ao que hoje é possível chamar de sua própria estética. Essa relação parece ser, aliás, a mais conturbada e não é uma particularidade sua, é verdade, mas de qualquer escritor; falo da relação com a

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escrita, materialidade fugidia, deslizante. Até se assumir, perante si e pela crítica, enquanto romancista foi um árduo e longo trajeto; tateio pelas superfícies agudas da palavra que lhe permitiu compor outras paisagens textuais, como a poesia, a crônica, o conto e o teatro.

Ao ler boa parte da obra primeira do escritor português constato aquilo que já foi dito por muitos outros críticos: que sua escrita se constitui numa longa porfia. Terra do pecado – seu primeiro romance – e a leva de textos menores que se seguiram, cada um, contêm já parte de toda a experiência inerente à fase dos grandes romances, inaugurada com Levantado do chão. Tal constatação se dá pela quantidade dos temas e das experimentações estruturais que marcam tais textos, chegando ao ponto de, muitos dos temas, por exemplo, serem retomados mais tarde nesse ciclo dos

grandes

romances;

ainda

nesse

circuito

das

experimentações, tais textos, é bom que se frise isso, não se reduzem apenas ao trabalho estrutural e temático, eles se marcam por um aspecto de experimentação também narrativa e linguística; e tudo, certamente, desencadearia, na forma tal qual é conhecida hoje: um texto que absorve as marcas discursivas da oralidade e de outros meios de práticas linguageiras, como o jornal, o cinema, as artes plásticas, a música etc. Além daquilo que já disse Leyla Perrone-Moisés em As artemages de Saramago: a engenhosa aliança do erudito com o popular, do livresco com a oralidade.

Nessa esteira, para Perrone-Moisés, a prosa saramaguiana trata-se de uma construção que incorpora em si “uma rica tradição literária, de Fernão Lopes a Vieira, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós e Pessoa, aí presentes num

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intertexto que não é apenas alusivo ou citacional, mas que age num nível mais difícil de captar, o da arquitetura sintática, da prosódia, das técnicas narrativas e descritivas.” A essa tradição, assinala a estudiosa, “Saramago trouxe sua nota pessoal que, na superfície do texto, consiste na supressão da maior parte dos sinais convencionais de pontuação, marcadores de pausas ou de entoação.” (PERRONE-MOISÉS, 1998, p.2). Esse modo de escrever, diz Saramago na já citada entrevista a Carlos Reis, lhe ocorreu de repente, após a vigésima página de Levantado do Chão. E, desde então, tornou-se sua marca estilística. Entretanto, bem poderia não ser uma marca eminentemente saramaguiana, afinal, desde o início do século passado, as vanguardas, que sempre buscaram na subversão a reinvenção da ordem linguística, já trabalhavam com a necessidade de subversão gramatical. O fato é que em Saramago não estamos meramente diante de um experimentalismo, como nos escritores das vanguardas, mas, sim, de um autor que tem o pleno domínio do plano e da lógica da oralidade, inclusive dos próprios movimentos respiratórios do falante, o que o leva ao procedimento de subversão da ordem gramatical no limite em que o seu leitor jamais se perde no emaranhado labiríntico da sua escrita.

Começarei a falar pelo trajeto que fiz enquanto leitor: pelos romances; aqui, só por uma mínima lógica de organização, opto por uma ordem cronológica que não reflete, claro está, a minha ordem de leitura.

4 Terra do pecado foi o primeiro romance de José Saramago.

É sabido que, aos vinte e quatro anos Saramago publicou

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Terra do pecado, que, antes tinha como título A viúva. A Um dos primeiros registros de Saramago a comentar sobre o Terra do pecado data de 1º de novembro de 1966; uma entrevista feita pelo jornalista Serafim Ferreira e publicada na edição do então Jornal de Notícias: “- Os Poemas Possíveis não é o meu primeiro livro. Vai para 20 anos publiquei um mau romance que acabou, sem glória, ao lado de muita coisa boa, nos tabuleiros. Ganhou assim uma difusão que doutra maneira não teria… É que o negócio dos arrematadores, para que fosse suficientemente rentável, uma “distribuição” tão eficiente que chegasse à mais escondida das nossas aldeias. Quero crer que não ficou um livro por vender. Numa entrevista ao semanário Independente de 17 de maio de 1991, José Saramago dá mais detalhes sobre a história desse seu primeiro livro: “Escrevi o meu primeiro livro aos 25 anos, em 1947. Chamava-se A viúva. Foi publicado pela Minerva, mas o editor achou que Terra do Pecado não era um título comercial e sugeriu que se chamasse A Viúva. Pobre de mim, queria era ver o livro editado e assim saiu. De pecados sabia muito pouco e, embora a história comporte alguma actividade pecaminosa, não eram coisas vividas, eram coisas que resultavam mais das leituras feitas do que duma experiência própria. Não incluo na minha bibliografia, apesar de os meus amigos insistirem que não é tão mau como eu teimo em dizer. Mas como o título não foi meu e detesto aquele título... Acho que é por isso que resisto a aceitá-lo. Um dia, quem sabe se não reconhecerei a paternidade uma vez que há por aí exemplares. Ainda outro dia encontrei um, numa dessas bancas em segunda mão, e paguei por ele oito contos. Com desconto, porque o homem reconheceu-me e abateume quinhentos escudos. Um preço completamente disparatado e exorbitante.” Nos diálogos que manteve com a propósito de Terra do Pecado, Saramago diz: “a conclusão parece fácil: este senhor preparou-se para escritor muito cedo. Mas (questão que há que deixar muito clara) acontece que eu não me preparei: aquele senhor escreveu aquele livro, mas não com a consciência de que se tinha preparado para ser escritor. Aquele livro resulta do seguimento de leituras mal arrumadas e mal organizadas – e saiu aquilo. Há quem diga que o livro, apesar de tudo, não é assim tão mau e que está correctamente escrito. E eu tenho a impressão de que sim.” À época o livro já estava sendo reeditado pela Editorial Caminho.

obra permaneceu rejeitada pelo escritor até meados de 1995; depois escreveu Claraboia na lacuna de mais de trinta anos passados entre a primeira experiência com o romance e mais adiante o seu Manual de pintura e caligrafia, de 1977. Terra do pecado, segundo Horácio Costa, num dos primeiros textos mais acurados acerca do período inicial da escrita saramaguiana, José Saramago – o período formativo, diz ser este um romance que é dotado de uma “defasagem estilística e, mesmo, temática, em relação à escrita romanesca que então se processava em Portugal” (1997, p.28) – (para entender isso basta que se volte para a época no cenário literário português da época, este, abanado pelos ventos do Neo-realismo de escritores como Fernando Namora, Alves Redol, Virgílio Ferreira, Jorge de Sena). No entendimento do crítico português, esse texto estaria bem mais próximo da proposta do naturalismo de Émile Zola e do realismo de Gustave Flaubert; por conseguinte, acrescento um Eça de Queirós, fortemente influenciado por tais escritores e lembro-me de um Eça como em O primo Basílio, por exemplo, cujas tramas, a de Terra do pecado e da obra de 1878, aliás, a meu ver, em muito são assemelhadas. Entretanto, trata-se de um romance que assume um papel importante para o entendimento da sedimentação temática do escritor e cito a presença em Terra do pecado de duas das principais marcas críticas que pontilha toda sua produção romanesca maior, desde Levantado do chão: o posicionamento de crítica a Deus e a religião.

Manual de pintura e caligrafia é, desde o título, um romance de observação de si; escrita dobrada – que vai refletindo de observação de si; escrita dobrada – que vai

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refletindo a si própria enquanto é pintada na nudez pálida do papel. O manual de Saramago, apesar do nome, não condiz, lidas duas linhas do texto, com o sentido corriqueiro dado ao gênero. Ao contrário de aí está apresentado o resultado final de algo elaborado – como são de certa forma os manuais – o que se assiste é um espaço de elaboração do escritor e da escritura. As idas e vindas de H. com o conhecimento e o exercício da pintura e depois com o da escrita refletem, para além das relações valorativas da arte e da relação de conhecimento de si, o tateio do próprio escritor e seu auto-reconhecer-se na escrita. É na relação de reflexão acerca da arte pictórica que o romancista vai Edição de Manual de pintura e caligrafia publicado pela Moraes Editores, edição de 1976.

refletindo sobre o traçado da escrita –

Escrever não é outra tentativa de destruição mas a tentativa de reconstruir tudo pelo lado de dentro, medindo e pesando todas as engrenagens, as rodas dentadas, aferindo os eixos milimetricamente, examinando o oscilar silencioso das molas e a vibração rítmica das moléculas (SARAMAGO, 1992, p.19-20). O Manual já traz em si, por esse tratado metalinguístico, muito dos traços que viria transbordar em romances a partir do Levantado do chão. Também a construção do drama que modela H. consegue motivar a nossa empatia a ponto de nos arrastar consigo pelos labirintos virtuais do texto. Estão, na imprecisão física e linguística dessa personagem que se assina apenas com “H.”, as imagens de sujeito em dissolução, outro elemento dos romances saramaguianos e que virá ser elaborado em romances como O homem duplicado, Ensaio sobre a cegueira e A caverna. No Manual, um sujeito a Kafka – se lembrarmos aqui de romances como A metamorfose e O processo – despindo-se de uma identidade fixa, o sujeito preso ao mundo frio de si e

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invadido constantemente pelo inusitado, o que vem de fora, o inapreensível e o incompreensível, o sujeito reduzido às funções mais banais, porém, tão essenciais à sua própria existência. Estão aí ainda – reiterando a subversão do gênero manual – as subversões operadas pelo escritor a outros gêneros, como o ensaio, o evangelho, o conto, e o próprio romance.

Da paisagem labiríntica de um sujeito, chego à paisagem de uma coletividade; a paisagem de Levantado do chão, romance que marca em definitivo o início da carreira de romancista de Saramago. Levantado do chão é aquilo que disse, certa vez, o escritor:

Isto é um livro sobre o Alentejo. Um livro, um simples romance, gente, conflitos, alguns amores, muitos sacrifícios e grandes fomes, as vitórias e os desastres, a aprendizagem da transformação, e mortes. É portanto um livro que quis aproximar-se da vida, e essa seria a sua mais merecida explicação.” (citação impressa na contracapa da edição brasileira do romance publicado pela Bertrand Brasil). Levantado do chão publicado na noite de 24 de fevereiro de 1980, na Casa do Alentejo, em Lisboa. Fruto de uma longa pesquisa junto aos camponeses do Alentejo, o romance foi o que, definitivamente, projetou o nome José Saramago para os compêndios da crítica literária portuguesa. Esse coroamento ainda terá de aguardar o surgimento de outros romances, como Memorial do convento e O ano da morte de Ricardo Reis.

Na paisagem de Levantado do chão encontro três gerações da família alentejana dos Mau-Tempo: Domingos, o seu filho João e seus netos António e Gracinda, esta casada com outra personagem central, António Espada. Mas, mais que um livro sobre o Alentejo, seus homens e dos movimentos de luta à repressão trabalhista e ao regime totalitarista de Salazar – sentido apreendido pelo leitor na superfície do romance – e mais que um simples romance – como admitiu o escritor – vejo Levantado do chão como uma obra que vem registrar os lances do poder em torno e sobre os mais fracos, os do chão; de um poder, pois, de repressão e de opressão (do Estado, da Polícia e tudo justificado pela cadência do discurso religioso, em que a Igreja, na figura do

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padre Agamedes, cumpre com o dever da preservação da ordem através do silenciamento). Também não é só denúncia, Levantado do chão é a história de uma luta, o registro do levantar-se de toda uma classe operária, que não é para ser vista apenas como a portuguesa, mas toda a do redor do mundo. Na luta dos trabalhadores do Alentejo, posta nessa família dos Mau-Tempo, reside ainda a luta dos povos em torno do desmantelamento da ordem de cerceamento dos sujeitos e na busca pela liberdade. Por trás de todas essas histórias de lutas, percebe-se uma convicção: a de mostrar que as engrenagens de tudo que está aí são construções dos próprios homens e é pela ação (primeiro individual, depois coletiva) que o homem pode sair do universo repetitivo e encasulador do cotidiano; é pela ação que os sujeitos agregam valores que os tornam indivíduos, sujeitos de si. E nisso vejo uma outra característica particular a esse romance frente àquele Manual de pintura e caligrafia;

naquele,

a

ação

é

compreendida

como

autorretrato, exercício de autorreflexão daquele que age, neste a ação é compreendida como exercício/atividade coletiva.

Outro fato a ser observado ainda nesse romance está no modo como que tudo isso é construído e nos é apresentado; Levantado do chão não é um livro descritivo/prescritivo que se põe a enumerar situações, sujeitos e/ou ações como serviçais de uma dimensão histórico-político-social, seresmarionetes, mas tudo como que embutido na própria ordem do sistema, na própria situação em estágio existencial; existencial não no plano de uma reflexão dos sujeitos em torno de si na busca de uma transcendência para além de si, mas dos sujeitos – uma geração de homens e mulheres que

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Joasefa Caixinha e José Meirinho, avós de José Saramago. Fotografia: Arquivos da Fundação José Saramago

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José de Sousa e Maria da Piedade, pais de José Saramago. Fotografia: Arquivos da Fundação José Saramago

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José Saramago e a filha Violante. Fotografia: Arquivos da Fundação José Saramago

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José Saramago, Piteira Santos, Maria Rosa Colaço, Manuel da Fonseca, José Cardoso Pires e Urbano Tavares em Lisboa, 1983. Fotografia: Luís Uchoa

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José Saramago em 1991. Fotografia: Luís Ramos

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José Saramago recebe o Prêmio Nobel do rei Carl Gustaf, em Estocolmo. Fotografia: Peter Mueller.

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José Saramago e Pilar del Río, em Lanzarote. Fotografia: Rui Duarte Silva

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agem e fazem uma revolução, ato final que lhe escapa e toma forma frente a opressão.

Em Memorial do convento – romance que sucede o de 1980 – mais que o aperfeiçoamento do modo de narrar, o que salta aos olhos do leitor é uma instância narradora e um tom efabulador polidos no caráter da observação sarcástica e irônica para com os fatos que vão se desenrolando ao longo da diegese. Em Memorial do convento cada instantâneo representa um universo que se perde, ou melhor, que se transforma no instantâneo seguinte. Trata-se de uma instância narradora dotada de um grande globo ocular capaz de prender na retina a fugacidade do real histórico e fazer com

que vejamos,

simultaneamente,

a

história de

construção de um convento em Mafra e o desenlace de Uma das edições de Memorial do convento publicada pela Bertrand Brasil. No fechamento de duas décadas de publicação do romance, foi feita uma edição especial, ilustrada, publicada em Portugal pela Editorial Caminho. O romance foi matéria para que o músico Azio Gorghi escrevesse a ópera Blimunda, que estreou no Scala de Milão, em 20 de maio de 1990. Num texto intitulado O destino de um nome, e escrito para o programa da estreia de Blimunda no Teatro S. Carlos, escreve José Saramago: “Creio que sei hoje a resposta, que ela me acaba de ser apontada por esse outro misterioso caminho que terá levado Azio Corghi a denominar “Blimunda” uma ópera extraída de um romance que tem por título “Memorial do Convento”: essa resposta, essa razão, acaso a mais secreta de todas chama-se Música. Terá sido, imagino, aquele som desgarrador de violoncelo que habita o nome de Blimunda, profundo e longo, como se na própria alma humana se produzisse e manifestasse, que me levou, sem nenhuma resistência, com a humildade de quem aceita um dom de que não se sente merecedor, a recolhê-lo num simples livro, à espera, sem o saber, de que a Música viesse recolher o que é sua exclusiva pertença: essa vibração última que está contida em todas as palavras e em alguma magnificamente.”

outras histórias: a história do amor de Baltasar , um exsoldado que voltara sem a mão esquerda da Guerra de Sucessão em Espanha, e Blimunda, capaz de ver o interior das pessoas (verdadeira história desse romance); há ainda a história do padre Bartolomeu de Gusmão que queria voar, construiu seu voo numa passarola, mas morreu doido. Tudo convenientemente cerzido com outras curtas histórias que vão atuando no processo de condução, andamento e desfecho dessas três histórias principais.

Memorial do convento é, juntamente com o romance anterior, por terem suas estruturas basilares na construção (de uma luta, de um sonho) e por terem como cenário o Portugal medievo, o retrato outro, apesar de textos ficcionais, da própria formação histórica portuguesa. Por ambos romances, além de se entrever um reengendrar da história oficial, por esta ser revista sob outro olhar, o dos de baixo, assiste-se também as raízes que viria fundar outros

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grandes romances do escritor: como a raiz da sua preocupação para com o avesso do sentido comum no intuito de colocá-lo em questão – isso que somente a sensibilidade tátil das antenas do romance é capaz de tocar.

Em 1984, é a vez d'O ano da morte de Ricardo Reis. As notas para composição desse romance começam muito antes da ideia de escrever o Memorial, mas, somente após publicado este, é que ele viria à cena literária. O ano da morte de Ricardo Reis leva-nos aos acontecimentos que marcaram o final da vida de Reis, em Lisboa, depois ter regressado do Brasil com a morte de Fernando Pessoa; trata-se de um romance, pois, no momento preciso de 1936.

O ano, como aquele 1993 do outro livro (O ano de 1993), é simbólico: a ditadura salazarista se fazia vigorosamente Edição de O ano da morte de Ricardo Reis publicada pela Editorial Caminho. Sobre este livro disse, certa vez, José Saramago: “Neste livro nada é verdade e nada é mentira”. O romance é, dentre os da obra de José Saramago, um dos mais traduzidos, tendo versões em mais de 29 diferentes línguas.

presente em Portugal, o Fascismo na Itália, o Nazismo na Alemanha, e, o acontecimento mais que todos marcante, no livro: na Espanha dava os primeiros tiros da Guerra Civil. Ao “ressuscitar” um dos heterônimos de Fernando Pessoa e por em rotação a duplicidade de um herói que partilha uma vida e uma morte, numa nebulosa de fatos históricos, Saramago constrói seu trabalho sobre as contradições humanas e as fragilidades do sujeito – apresentadas estas da maneira mais brilhante possível.

Ainda no tom efabulador inaugurado nas páginas do Memorial, retomado em O ano da morte de Ricardo Reis e tomando como mote as discussões históricas – no caso de agora, para a então criação da Comunidade Europeia – em 1986, Saramago escreve A jangada de pedra; um romance que narra a irreal ruptura da Península em relação aos Pirineus transformando-a numa verdadeira jangada que

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baila, a princípio, sem destino pelas correntezas do Atlântico, para depois ir estacionar em alhures, entre o continente africano e o americano. As personagens – Joana Carda, Joaquim Sassa, José Anaiço, Maria Guavaira, Pedro Orce e os outros milhares de habitantes – estão diretamente presas nesse processo e devem encontrar, também por uma rota em torno de si e do que lhe cerca, o comportamento adequado a esse novo modo de está em terra. É sobre os itinerários de uma identidade em deslocamento o grande assunto que move as viagens nesse romance. Ironicamente Saramago vem contrapor que, Portugal e 2000, pelas mãos do diretor George Sluizer. Em Uma Longa Viagem com José Saramago, o escritor diz a João Céu e Silva, que é em A jangada de padra onde existe a única referência autobiográfica que decididamente se lembra de ter colocado num dos seus livros. A situação dá contas do seu encontro com a jornalista Pilar Del Río, quando os dois se conheceram justamente em 1986. O escritor também admitiu, certa vez, que é um livro que poderá entender-se como uma ideia contra a integração de Portugal na Comunidade Europeia, porque essa integração, não teve em conta os nossos interesses culturais e materiais. Mas não é um livro antieuropeu: “Neste livro tentei mostrar duas coisas; primeiro: a Península Ibérica tem pouco a ver com a Europa no plano cultural. Dir-me-ão que a língua vem do latim, que o Direito vem do Direito Romano, que as instituições são europeias. Mas o certo é que, com este material comum, fez-se nesta península uma cultura fortemente caracterizada e distinta. Segundo: há na América um número muito grande de povos cujas línguas são a espanhola e a portuguesa. Por outro lado, mesmo em África novos povos que são as nossas antigas colónias. Então imagino, ou antes, vejo uma enorme área iberoamericana e ibero-africana, que terá certamente um grande papel a desempenhar no futuro. Esta não é uma afirmação rácica, que a própria diversidade das raças desmente. Não se trata de nenhum quinto nem sexto império. Trata-se apenas de sonhar – acho que esta palavra serve muito bem – com uma aproximação entre estes dois blocos, e com o modo de o demonstrar. Ponho a Península a vogar para o seu lugar próprio, que seria no Atlântico, entre a América do Sul e a África Central. Imagine, portanto, que eu sonharia com uma bacia cultural atlântica.”

Europa, no momento em que discutem projetos de laços, fortalecimento e hegemonia econômica, devem é sim, se querem fazer algo que dê sentido a esses projetos e possa servir de exemplo a outras nações, é voltar para si a fim rever o desaparecimento progressivo daqueles valores comuns que os definem; e como espelho coloca os países da África e da Latino-América a fim de que possam enxergar que tais perdas vem se acumulando desde os danos cometidos ao longo dos anos de exploração sistematizada; a formação de uma bacia a-continental é onde reside os elementos

para

uma

caracterização/remodelagem

da

identidade europeia e portuguesa e não o isolamento numa cuba em que se porta como bloco avesso ao mundo. Com isso, A jangada de pedra é um romance de possibilidades: uma possibilidade da Europa, uma possibilidade do homem, uma possibilidade do mundo.

História do cerco de Lisboa, de 1989, esse sim, trata-se de um romance em que a História, mais precisamente a verdade histórica, se manifesta como problema. Trata-se do romance, depois do Ano da morte de Ricardo Reis, cuja


malha narrativa se apresenta mais bem elaborada. O romance é na verdade o entrecruzamento de três “Histórias do cerco de Lisboa”; três textos como que palimpsestos, a se alimentarem de si próprio, num processo de constituição simbiótica. A primeira história é um livro de título História do cerco de Lisboa que é entregue a Raimundo Silva como encomenda de ser revisado. O ato de revisão desencadeia a segunda história. Nela, ao contrário da primeira lê-se que os mouros “não auxiliaram os portugueses a conquistar Lisboa” (SARAMAGO, 2006, p.50); isto é, toda a cadeia de reflexão acerca da materialidade compositora da verdade Edição de História do cerco de Lisboa, de 1989, publicada pela Editorial Caminho. Como é sabido dos leitores saramaguianos, as personagens femininas integram grande parte de seus romances. Ao comentar sobre o fato, numa entrevista dada à Francisco José Viegas, para a Revista Ler, no ano de lançamento desse romance, Saramago afirma que, História do cerco de Lisboa, mais que os outros romances, tem sua força nas mulheres: “Aí, a força está nas mulheres… Claramente das mulheres. Isto não é uma atitude feminista – deve-se ao facto de eu crer que elas são realmente, fortes, que têm muito para dar. E porque eu gosto muito delas… Acho que, para não cair na frase “la femme est l’avenir de l’ homme” – que é uma coisa mais vazia do que à primeira vista se possa pensar ou dizer – eu penso que elas têm mais autenticidade e mais generosidade que nós. Valem mais que nós, homens. Na verdade, daquilo que é substancial e essencial na vida, aprendi pouco com homens e aprendi muito com as mulheres. Não por idealizações. É o ser humano inteiro, aquilo que elas são… Bom, algumas, eu sei, não são nada disto…”

histórica passa necessariamente pelas engrenagens desse categórico “não”. E a terceira história: o próprio romance que abarca em si as duas primeiras.

O ato de Raimundo Silva de violação da materialidade do texto e conseguinte a da História vem refletir as linhas fronteiriças entre esta e ficção (não opondo uma à outra) e a noção de verdade histórica, reinstalando para a primeira, a quebra já operada visualmente nos romances anteriores a este. Ao reescrever a história oficial Raimundo Silva instala que a relatividade, fator operante nos fenômenos físicos e subjetivos, rege os desígnios daquilo que convencionamos o “real”. O mesmo ato vem mostrar, nisso tudo, que é pelo fio do discurso que se move o mundo e a estrutura que criamos não passam de arcabouços de linguagem – e como linguagem sua materialidade é ao seu modo, contraditória.

Não lhe importa a fidelidade à verdade histórica – ela é fato secundário ao romancista. Digo isso para entender o entrelaçamento dessas outras histórias que vão sendo gestadas no interior desses territórios de reescritas e que dão contas de amores muito particulares, fato este, aliás

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observado já na construção narrativa do Memorial do convento: neste a história do casal Baltasar e Blimunda e naquele a história de amor entre o revisor Raimundo Silva e a redatora Maria Sara que é por extensão a história de amor entre o soldado mouro e a camponesa Ouroana. No Memorial tal história só é possível dado ao desfecho trágico da rebeldia da mãe de Blimunda – que de certo modo foi também a história de um “não” – um “não” em relação a opressão religiosa. Já a história de amor em História do cerco de Lisboa, que vai sendo processada na e pela veia erótica da palavra só é possível dado o “não” de Raimundo Silva – um “não” contra o dogmatismo e propósito do inquestionável que sustenta a verdade histórica.

Em

1991, Saramago escreve aquele que foi até agora,

mesmo depois de Caim, o mais conturbado de seus escritos: O Evangelho segundo Jesus Cristo. E tudo porque o escritor se aproxima do texto sagrado sobre vida de Jesus e propõe um evangelho romanceado. Isso, entretanto, não se é feito gratuitamente, no novo evangelho o que ocorre é a quebra da auréola religiosa de divindade para dar lugar a um Cristo humanizado “nascido como todos os filhos homens, sujo de sangue de sua mãe, viscoso de suas mucosidades” (SARAMAGO, 2006, p.65). Uma das edições brasileiras para O evangelho segundo Jesus Cristo. A obra é uma das mais polêmicas. O veto dado ao romance fez José Saramago sair de Lisboa e fixar residência numa ilha do arquipélago das Canárias.

Logo, é bom frisar que isso não é, sozinho, o que faz, por exemplo, esse romance ser vetado à participação do Prêmio Literário Europeu – ápice da polêmica. Mas o que marca é sim o tratamento dado a alguns discursos teológicos já sedimentados na e pela crença cristã; juntam-se um coro de subversões a figura de um Deus impiedoso, mesquinho e interesseiro, preso às rédeas fartas da ganância, preocupado em tão somente no sacrifício de seu próprio filho – um

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cordeiro, literalmente – no pretexto de ampliar a legião de fiéis a ele temente; ainda nesse rol, Deus emerge como comparsa do Diabo, este, explicitamente angelizado, caridoso, ofertando-se como vítima em detrimento da preservação da vida de Cristo. Tais fatos assinalam que novamente estamos no plano da relatividade: os laços entre divino e demônio aparecem como que não foram totalmente desfeitos, conforme se imagina, e a suposta ordem natural do Bem em oposição Mal, é reinventada: o Bem e o Mal, são postos como opostos harmônicos – um está contido no outro, um carece do outro para existir enquanto tal (cf. OLIVEIRA NETO, 2007, p.309). Nesse ínterim, o trabalho operado pelo escritor para com as páginas do Novo Testamento não é o de olhar por trás dos textos canônicos e/ou desfazê-los, mas o de procurar as contradições, as obscuridades, aquelas brechas que discurso cristão insiste em chamar de espaços para uma leitura simbólica, a fim de iluminar e esclarecê-las. O livro vem por a tona que a religião, o pecado e a culpa também são construtos discursivos, e estes dois últimos falácias da exegese religiosa, que tem por função, dentre tantas, a de manipulação e cerceamento dos corpos. A ideia de um Jesus carnal vem sucatear a ordem de uma divinização construída politicamente a fim de satisfazer interesses particulares e escusos – representados nesse romance na figura de Deus. Todos os romances até agora comentados tomam como matéria de composição os meios da história oficial e das crenças culturais. Ao entender que o ofício do historiador é o de trabalhar voltado para o passado, Saramago quer de certa forma voltar esse passado, mas não para recuperar, não para relembrar, tampouco para preencher lacunas, mas para refazê-lo de outra maneira, dando poder de voz a outras

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personagens, as que correm pela marginalidade da História, as esquecidas dos compêndios em que figura a “história verdadeira”. Cito, para efeito, a preocupação que o narrador deita para com os nomes dos sujeitos – seja para reconduzilos ao seio da História, seja para reforçar que são seres insignificantes, seres que se fosse dado a eles uma existência empírica não teriam, certamente, o sentido que têm no universo da ficção e que, por isso mesmo, não apresentam-se como matéria da história oficial. São cinco excertos a seguir – um do Manual de pintura e caligrafia, seguido de outro do Levantado do chão e mais outro de O homem duplicado; e, por fim, um do Memorial do convento e outro do Ensaio sobre a cegueira: Qualquer homem é também isto, enquanto não morre (morto já não é mais possível saber quem foi): dar-lhe nome é fixá-lo num momento do seu percurso, imobilizá-lo, talvez em desequilíbrio, dá-lo desfigurado. Deixa-o indeterminado a inicial simples, mas determinando-se no movimento. [...] S. é uma inicial vazia que eu só posso encher com o que saberei e com o que inventarei [...]. Qualquer nome começado pela inicial pode ser o nome de S. Todos são sabidos e todos são inventados, porém nenhum nome será dado a S.: é a possibilidade de todos eles que torna impossível a escolha de um. Conheço minha razão e confirmo-a já. Basta moer os sons que são os nomes que a seguir vão escritos para reconhecer o que é o vazio de um nome acabado. Posso eu escolher qualquer destes para S. (esse)? Sá Saavedra Sabino Sacadura Salazar Saldanha Salema Salomão Salústio Sampaio Sancho Santo Saraiva Saramago Saul Seabra Sebastião Secundino Seleuco Semprónio Sena Séneca Sepúlveda Serafim Sérgio Serzedelo Sidónio Sigismundo Silvério Silvino Silva Sílvio Sisenando Sísifo Soares Sobral Sócrates Soeiro Sófocles Solimão Soropita Souza Souto Suetónio Suleimão Sulpício. Escolher, sim, poderia, mas já aí estaria a classificar, a pôr em classe. Se disser Salomão, é logo homem; se disser Saul, outro é; mato-o à nascença se preferir Seleuco ou Séneca. [...] O nome é importante, mas não tem qualquer importância quando releio, de seguida, sem pausa, todos quanto escrevi: logo na segunda linha me impaciento, e na terceira venho a concordar que a inicial me satisfaz completamente. Também por isso vou ser eu próprio um

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simples H., não mais. Um espaço em branco, se fosse possível distingui-lo dos espaços laterais, bastaria para dizer de mim o possível. (SARAMAGO, 2007, p.24-25) [...] este home chama-se por acaso Silva, mas também se chama Manuel Dias da Costa, é um supor, Silva para aqueles com quem vai estar na Terra Fria, para a guarda Manuel Dias da Costa, para o registo civil um nome diferente e também para o padre Agamedes que o baptizou muito longe destes sítios. Há quem defenda que sem o nome que temos não saberíamos quem somos, é um dito que parece perspicaz e filosófico, mas este Silva ou Manuel Dias da Costa que carrega nos pedais por um caminho carreteiro enlameado, já felizmente deixou a estrada por onde a guarda de improviso passa ou está dias inteiros sem aparecer, mas nunca se sabe, quem adivinha vai para a casinha, este ciclista avança tão em paz na sua alma, que bem se vê como lhe não tocam estas subtis questões de identidade, tanto de si próprio como de papéis. Reparando melhor, porém, não é tanto assim, mais seguro ele está de quem é, do que os documentos que o nomeiam. (SARAMAGO, 2005, p.208) O homem que acabou de entrar na loja para alugar uma cassete vídeo tem no seu bilhete de identidade um nome nada comum, de sabor clássico que o tempo veio a tornar rançoso, nada menos que Tertuliano Máximo Afonso. Ao Máximo e ao Afonso, de aplicação mais corrente, ainda consegue admiti-los, dependendo, porém, da disposição de espírito em que se encontre, mas o Tertuliano pesa-lhe como uma lousa desde o primeiro dia em que percebeu que o malfadado nome dava para ser pronunciado com uma ironia que podia ser ofensiva. (SARAMAGO, 2008, p.7) [...] tudo quanto é nome de homem vai aqui, tudo quanto é vida, sobretudo se atribulada, principalmente se miserável, já que não podemos falar-lhes das vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, é essa nossa obrigação, só para isso escrevemos, torná-los imortais, pois aí ficam, se de nós depende, Alcino, Brás, Cristóvão, Daniel, Egas, Firmino, Geraldo, Horácio, Isidro, Juvino, Luís, Marcolino, Nicanor, Onofre, Paulo, Quitério, Rufino, Sebastião, Tadeu, Ubaldo,Valério, Xavier, Zacarias, uma letra de cada um para ficarem todos representados [...] (SARAMAGO, 2007, p.233) Tão longe estamos do mundo que não tarda que comecemos a não saber quem somos, nem nos lembrámos sequer de dizer-nos como nos chamamos, e para quê, para que iriam

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servir-nos os nomes, nenhum cão reconhece outro cão, ou se lhe dá a conhecer, pelos nomes que lhes foram postos, é pelo cheiro que se identifica e se dá a identificar, nós aqui somos como uma outra raça de cães, conhecemo-nos pelo ladrar, pelo falar, o resto, as feições, cor dos olhos, da pele, do cabelo, não conta, é como se não se existisse, eu ainda vejo, mas até quando. (SARAMAGO, 1995, p.64) Notemos as diferentes posições acerca da questão do nome: no primeiro excerto está atrelado o entendimento do rotular, do espartilhar, instituindo a reflexão de que aliado ao nome está o fechamento e enclausuramento do sujeito; no segundo, está atrelado a ideia de escolha, de papeis, perante cada contexto é que a personagem se apresenta como Silva ou como Manuel Dias da Costa, instituindo a reflexão de que o nome é espécie de alegoria de tirar e por e seu usuário sujeito flexível a esse fluxo de troca; o terceiro fragmento justapõe-se, de certo modo, ao segundo, o nome enquanto rótulo é artefato pesado de se usar; no quarto, o signo do nome está associado à ideia de perpetuação da vida; e, por fim, o quinto excerto, sob o ícone de um total anonimato há uma clara reflexão acerca dos fluxos da identidade pósmoderna, os sujeitos interessam-nos pelo o que eles são fisicamente, são seres em vias de formação que se constituem apenas enquanto segmentos de sombras virtuais. Há, no entanto, uma característica preponderante que vem amarrar todas essas relações para com os nomes pessoais: em todos eles o que o narrador saramaguiano faz é destituílos e/ou deslocá-los, compondo o que seria um mapa da impossibilidade de ser, oferecendo-nos a possibilidade de refletir, seja sobre o passado – Levantado do chão, Memorial do convento –, seja sobre o presente – Manual de pintura e caligrafia, O homem duplicado, Ensaio sobre a cegueira – acerca de nossas próprias identidades. Como numa espécie de epifania o autor consegue isso às claras na

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reflexão da personagem da mulher do médico em torno do nome (último excerto), fazendo do texto um espelho com reflexos que miram a nossa própria visualidade para acerca daquilo que nos tornamos e do que são os outros para nós no mundo contemporâneo e na constituição do espaço social. Isto é, mais que uma intriga com a História, o que está em jogo é o homem lançado no turbilhão desse processo de construção da História, compreender seus gestos (e o da feitura da História é um deles), suas atitudes, encontrar uma face para o que seria esse ser comum e disforme, parece ser o que importa ao escritor. Recordo-me da resposta que o escritor deu na entrevista a Carlos Reis quando perguntado acerca do seu interesse pelos seres comuns: “É esse sentido da pessoa comum e corrente, aquela que passa e que ninguém quer saber quem é, que não interessa nada, que aparentemente nunca fez nada que valesse a pena registar, é a isso que eu chamo as vidas desperdiçadas.” (1998, p.59) O que Saramago pretende com sua fala é admitir que a História não se constitui via de mão única, mas um mosaico de diferentes peças e cores e que são do impasse das colorações que se constrói o tecido do real e por conseguinte o tecido dos sujeitos. Nessa variação de tonalidades é possível que a grande maioria dos sujeitos não passem de “desperdiçados”. Sua “revisitação” ao passado histórico dá-se no intuito de considerar o discurso real e o discurso acerca do real; o discurso que instituiu e o que escondeu. Assim, o que está em jogo não é uma eternização do já-dito mas uma constante indagação; uma constante busca por um interdito; é o entendimento de que a realidade é em si plural, caleidoscópica e os sujeitos também seguem nesse eterno lusco-fusco. Partindo do pretexto de que não existe real,

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porque tudo são artefatos de linguagem e logo escrita é materialização das representações de um suposto real, esses romances são fragmentos de um mundo possível, um mundo que se é fundado pela escrita e pelos circuitos da linguagem. Na paisagem escrita de Saramago, vem à tona a publicação de dois romances que, marcam, de certa maneira, uma espécie de retoque ao que já havia sido produzido nessa primeira fase findada com O evangelho. Trata-se de A viagem do elefante e de Caim.

Em A viagem do elefante o escritor faz do episódio histórico de doação de um elefante por parte do rei dom João III, em 1551, como presente de casamento ao então arquiduque austríaco Maximiliano II, recém-casado com a filha do imperador Carlos V, ser narrado de uma forma cuja fama e protótipo de herói cabe ao paquiderme Salomão, alcunha do animal, e ao seu cuidador, o cornaca Subhro. Já em Caim Saramago revisita novamente os textos canônicos bíblicos, e num texto aproximado à estrutura de uma cyber-narrativa, conduz o errante Caim, protagonista do romance, a dar conta dos principais acontecimentos do Antigo Testamento.

Ambos os romances inseriram novo fôlego à produção Edição brasileira para A viagem do elefante. O livro teve lançamento no Brasil em 2008. À época José Saramago havia passado por uma longa enfermidade, mas que não interferiu em nada no “humor” do livro – tido pela crítica como um dos melhores escritos depois do Prêmio Nobel, em 1998. No mesmo ano de lançamento da obra, Saramago também abriu, em São Paulo, no Instituto Tomie Ohtake, a exposição comissariada por Fernando Gómez Aguilera José Saramago – a consistência dos sonhos.

literária do escritor – seja pelo refinamento lúdico-irônico, seja pelo trabalho com a polidez da linguagem dado numa tessitura mais leve, seja pelo tom humorístico, seja por uma refiguração poética, seja ainda pela capacidade de apreender as turras do homem com sua natureza e do homem do seu suposto criador. Ambos os romances também ressignificam o tema e o roteiro das viagens – estas que podem muito bem se

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constituir numa presença constante na obra saramaguiana já desde Manual de Pintura e Caligrafia. Na última narrativa, Caim, é onde mais se nota essa ressignificação do tema: o motivo de concretização da mudança, vem traduzida na deslocação física, marcada por uma forma outra de deslocamento no tempo-espaço que nos remete a uma virtualização dos trajetos e na quase que total dissolução das linhas demarcatórias das categorias de presente, passado e futuro. O que prevalece durante toda a narrativa é apenas uma faixa opaca a qual podemos insinuar sê-la um presente e nela própria vão se armando buracos negros que arrastam Edição portuguesa de Caim. Este é o romance que fez Saramago voltar a uma polêmica desde O a personagem, seja para um passado, seja para um futuro, evangelho segundo Jesus Cristo. O livro foi escrito num “impulso” de quatro meses depois de permitindo a ela uma cobertura da penca fatos que se A viagem do elefante e nasceu da necessidade, segundo o escritor de rever “quantas histórias mal processam no texto bíblico do Antigo Testamento em contadas” da Bíblia. O romance, em si, entretanto, não possui o mesmo gesto polêmico daquele espaços temporais de muitos milhares de anos. Desse modo Evangelho, mas as declarações dadas pelo escritor ao longo de várias entrevistas e durante o seu é válido pensar que a materialidade do espaço físico lançamento na Penafiel, fez do livro um acontecimento que reacendeu velhos ódios: também se é desfeita, é fisgada por uma rede virtual – e este Numa das muitas entrevistas disse Saramago: “Uma polémica que, no fundo, não tem grande passa a ser como que num videogame em que o que se tem sentido. Se não fosse a requintada sensibilidade da Igreja em certos casos - outros há em que não é um roteiro por um campo de diversos lugares e ora teve nenhuma - isto não teria acontecido. Tive a ingenuidade de supor que a Igreja Católica não se estamos neste ora naquele, numa projeção dinâmica, ia meter nisto, porque era o Antigo Testamento. Como digo, e eles não negam e as sondagens ou captável apenas pelos movimentos do globo ocular; são inquéritos confirmam, os católicos não lêem a Bíblia. Quando muito, lêem o Novo Testamento, e espaços em constante mutação que vão, a um só tempo, algum mais curioso, ou mais amante da beleza de textos, irá ler o Cântico dos Cânticos, os Salmos e permitindo no fluxo da viagem, o fluxo da constituição de pouco mais. Era o que eu pensava que ia acontecer e não se compreende que pessoas tão uma pluralidade de situações no corpo do romance e uma habituadas à diplomacia secreta, como é a da Igreja, saltem à arena mal o livro saiu, tomando recomposição da fisicidade do próprio sujeito. como pretexto as declarações que fiz em Penafiel. Só que o que disse em Penafiel já o tinha dito antes, que [a Bíblia] não é livro recomendável às crianças. Mas isso não quer dizer nada, os 5 protestantes da facção evangelista são educados na interpretação literal - se é literal não é interpretação, é aquilo que lá já está - e é por aí se regem.O teólogo Hans Kung disse sobre isto uma Já que estou falando de uma arquitetura da paisagem frase que considero definitiva, que as religiões nunca serviram para aproximar os seres humanos literária em Saramago, é preciso admitir que essa segunda uns dos outros. Só isto basta para acabar com isso de Deus. Mas há coisas muito mais idiotas, por fase, a do mergulhar na pedra, que se inicia com Ensaio exemplo: antes, na criação do Universo, Deus não fez nada. Depois, decidiu criar o Universo, não se sobre cegueira, constitui certamente o ápice da sua carreira sabe porquê, nem para quê. Fê-lo em seis dias, apenas seis dias. Descansou ao sétimo. Até hoje! de escritor. Os cinco romances desta fase não remete o leitor Nunca mais fez nada! Isto tem algum sentido?”, perguntou.“Deus só existe na nossa cabeça, é o único lugar em que nós podemos confrontar-nos com a ideia de Deus. É isso que tenho feito, na 7faces – edição especial parte Encarte – Um ensaio itinerante para ler José Saramago, paisagens que me toca."

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Homem e cão saíram cedo do parque, as sanduíches foram compradas para comer em casa, não houve sestas ao sol. A tarde foi longa e triste, o músico pegou num livro, leu meia página e atirou-o para o lado. Sentou-se ao piano para tocar um pouco, mas as mãos não lhe obedeceram, estavam entorpecidas, frias, como mortas. E, quando se voltou para o amado violoncelo, foi o próprio instrumento que se lhe negou. Dormitou numa cadeira, quis afundar-se num sono interminável, não acordar nunca mais. Deitado no chão, à espera de um sinal que não vinha, o cão olhavao. Talvez a causa do abatimento do dono fosse a mulher que apareceu no parque, pensou, afinal não era certo aquele provérbio que dizia que o que os olhos não vêem, não o sente o coração. Os provérbios estão constantemente a enganar-nos, concluiu o cão. Eram onze horas quando a campainha da porta tocou. Algum vizinho com problemas, pensou o violoncelista, e levantou-se para ir abrir. Boas noites, disse a mulher do camarote, pisando o limiar, Boas noites, respondeu o músico, esforçando-se por dominar o espasmo que lhe contraía a glote. Não me pede que entre, Claro que sim, faça o favor. Afastou-se para a deixar passar, fechou aporta, tudo devagar, lentamente, para que o coração não lhe explodisse. Com as pernas tremendo acompanhou-a à sala de música, com a mão que tremia indicou-lhe a cadeira. Pensei que já se tivesse ido embora, disse, Como vê, resolvi ficar, respondeu a mulher, Mas partirá amanhã, A isso me comprometi. Suponho que veio para trazer a carta, que não a rasgou. Sim, tenho-a aqui nesta bolsa, Dê-ma, então, Temos tempo, recordo ter-lhe dito que as pressas são más conselheiras, Como queira, estou ao seu dispor. Di-lo a sério. É o meu maior defeito, digo tudo a sério, mesmo quando faço rir, principalmente quando faço rir, Nesse caso atrevo-me a pedir-lhe um favor, Qual, Compense-me de ter faltado ontem ao concerto, Não vejo de que maneira, Tem ali um piano. Nem pense nisso, sou um pianista medíocre, Ou o violoncelo, É outra cousa, sim, poderei tocar-lhe uma ou duas peças se faz muita questão. Posso escolher, perguntou a mulher, Sim, mas só o que estiver ao meu alcance, dentro das minhas possibilidades. A mulher pegou no caderno da suite número seis de bach e disse, Isto, É muito longa, leva mais de meia hora, e já começa a ser tarde, Repito-lhe que temos tempo, Há uma passagem no prelúdio em que tenho dificuldades, Não importa, salta-lhe por cima quando lá chegar, disse a mulher, ou nem será preciso, vai ver que tocará ainda melhor que rostropovitch. O violoncelista sorriu, Pode ter a certeza. Abriu o caderno sobre o atril, respirou fundo, colocou a mão esquerda no braço do violoncelo, a mão direita conduziu o arco até quase roçar as cordas, e começou. De mais sabia ele que não era rostropovitch, que não passava de um solista de orquestra quando o acaso de um programa assim o exigia, mas aqui, perante esta mulher, com o seu cão deitado aos pés, a esta hora da noite, rodeado de livros, de cadernos de música, de partituras, era o próprio johann sebastian bach compondo em cöthen o que mais tarde seria chamado opus mil e doze, obras elas quase tantas como foram as da criação. A passagem difícil foi transposta sem que ele se tivesse apercebido da proeza que havia cometido, mãos felizes faziam murmurar, falar, cantar, rugir o violoncelo, eis o que faltou a rostropovitch, esta sala de música, esta hora, esta mulher. Quando ele terminou, as mãos dela já não estavam frias, as suas ardiam, por isso foi que as mãos se deram às mãos e não se estranharam. Passava muito da uma hora da madrugada quando o violoncelista perguntou, Quer que chame um táxi para a levar ao hotel, e a mulher respondeu, Não, ficarei contigo, e ofereceu-lhe a boca. Entraram no quarto, despiram-se e o que estava escrito que aconteceria, aconteceu enfim, e outra vez, e outra ainda. Ele adormeceu, ela não. Então ela, a morte, levantouse, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. Olhou em redor como se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaixo da almofada em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a cozinha, acendeu um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar, reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu.

desta fase não remete o leitor a épocas concretas para a partir das

(SARAMAGO, José. As intermitências da morte. Lisboa: Caminho, 2006, p.212-214)

quais se efetuar uma recriação fictiva, do contrário, o leitor é levado para uma espécie de espaço distendido, que é o espaço seu e o alheio

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a épocas concretas para a partir das quais se efetuar uma recriação fictiva, do contrário, o leitor é levado para uma espécie de espaço distendido, que é o espaço seu e o alheio simultaneamente, e instigado a atentar para temáticas mais universais, coletivas, num processo de indagação e reflexão, sobre sua condição humana e sobre a condição humana alheia. Não que isso seja algo estritamente dessa fase, mas é que aqui se trata de uma característica mais acentuada do que na primeira. Há algo, no entanto, que se preserva: é a perspectiva ou o olhar para o das margens, marcada seja pela forte incursão da imagem do feminino, nascida desde o Terra do pecado, seja pela imagem dos assalariados serviçais à riqueza alheia, nascido desde o Levantado do chão.

No Ensaio sobre a cegueira, de 1995, uma praga inexplicável e incurável começa a existir – nomeadamente uma cegueira branca, pois as pessoas afetadas pelo mal percebem à sua vista apenas uma superfície leitosa; é, pois, uma cegueira diferente da cegueira comum, que é negra. O governo

intervém

e

manda

internar

todos

os

“contaminados” num manicômio abandonado. Em vão. Mais tarde todo o país estará cego, e apenas uma mulher, por ironia, a de um oftalmologista, consegue enxergar; caberá a ela o papel de guia a um seleto grupo numa viagem pelas mais desumanas condições, numa busca quase que Edição mais recente de Ensaio sobre a cegueira. A capa integra um novo projeto gráfico da Editorial Caminho/LeYa que tem reeditado toda a obra do escritor português. É este um dos romances mais bem quistos pela crítica. Em 2008, teve uma adaptação para o cinema pelo diretor brasileiro Fernando Meirelles, filme que abriu o Festival de Cannes nesse ano.

infinda pela civilização. O valor dessa obra está no sentido. Com um plano alegórico fortemente armado ela conduz, dentre as diversas vias interpretativas pelas quais podemos nos guiar, pelo o entendimento posto já na sua clássica epígrafe – “Se podes olhar, vê. Se podes vê, repara” – entendendo o reparar como que uma espécie de libertar-se da superficialidade da visão, para, ao aprofundar o interior

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do homem, finalmente conhecê-lo.

De 1998, é o romance Todos os nomes. De posse das suas características como escritor – a ironia fina, cortante e mordaz, uma escrita falsamente simples, e os jogos espelhares dos exercícios de metalinguagem – Saramago compõe aquilo que pode ser lido como uma parábola ou a história de um pungente sentimento de melancolia e comiseração pela humanidade, um jogo de amor e ódio, espanto e agonia. Tudo através do Sr. José, um funcionário da Conservatória Geral do Registro Civil, um lugar labiríntico onde estão arquivados todos os documentos fundamentais à constituição e definição da identidade das Edição brasileira de Todos os nomes publicada pela Companhia das Letras. Quando perguntado do assunto-tema desse livro, se o tema aqui versa sobre a questão das identidades, Saramago responde: “(...) o livro descreve uma procura, uma busca, que há nele uma investigação. A grande e decisiva diferença está no facto de que a pessoa procurada não sabe que a procuram e a pessoa que procura não tem a certeza de querer encontrar o objecto da sua busca. Que este romance possa ser entendido como um ensaio sobre a existência - talvez. Julgo que todos os livros o são, que escrevemos para saber o que significa "viver", e não já para tentar encontrar resposta às famosas perguntas: quem somos? Donde vimos? Para onde vamos? Que o livro possa ser visto como uma indagação sobre a identidade, sim, mas não sobre a identidade própria. O que aqui se procura é o "outro".” (José Saramago. Público, 25 de outubro de 1997)

pessoas: as certidões de nascimento e os certificados de óbito. É neste lugar que o escriturário se aventura em buscar recortes de vidas de pessoas famosas, seu principal hobbie. De números e nomes sua vida passa a ser refeita a partir do momento em que descobre nessa sua busca o nome e a vida de uma desconhecida.

O Sr. José se constitui numa personalidade única, prótese separada do resto do corpo da humanidade. No romance, apenas ele possui nome próprio. Isto o faz além de único, a um só tempo abrangente e nulo. “Todos os nomes é uma reflexão sobre a solidão, medos e subserviências, procuras e fugas, homens e mulheres, acasos e amores, ilusões e desilusões. Isto é, sobre a vida, sobre as condições humanas.” (ARNAUT, 2007, p.14). Em Todos os nomes Saramago aprofunda-se, pela via da abstração, pelas encruzilhadas

do

preenchido

vazio

da

sociedade

contemporânea, corpo já esboçado no véu branco da cegueira no ensaio anterior.

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Saindo da virtualidade cega no Ensaio sobre a cegueira e aprofundando-se pelos labirintos da Conservatória Geral em Todos os nomes me deparo com a paisagem de A caverna, romance de 2000, em que Saramago recobra, na contemporaneidade, o já conhecido mito da caverna de Platão. A personagem principal da obra é Cipriano Algor, um oleiro desassalariado, que luta para sobreviver através do seu trabalho, que é, antes de tudo, um empenho: fazer viva a sua profissão num universo dominado pela produção em massa, que dá vez a utensílios feitos com plástico e não mais aos de barro. Até quando a personagem se vê obrigada a adequar-se aos moldes mercadológicos, já que seus para escrita do romance surge em setembro de 2007, conforme relatou José Saramago em seus Cadernos de Lanzarote: “... e à entrada de Lisboa, quando passávamos debaixo do primeiro viaduto interrompi o que ela estava a dizer-me: “Espera, acabei de ter uma idéia.” À nossa frente, sobre o lado direito, um enorme painel publicitário anunciava a próxima inauguração do Centro Comercial Colombo. Uma ideia de quê?”, perguntou Maria José. “Aquilo”, respondi, “talvez esteja ali um livro.” “O anúncio?” “Não propriamente o anúncio.” “Então?” “Não te posso dizer mais, foi como um relâmpago que me tivesse atravessado.” “Como em outras vezes...” “Talvez, quem sabe...” Os caminhos pareciam multiplicarse dentro da minha cabeça. “Podia chamarse “O Centro”, murmurei. Depois, quando numa de sua viagens ao Brasil, foi numa visita ao Museu do Pontal, no Rio de Janeiro, (cf. relata Horácio Costa em resenha ao livro) que “Saramago conheceu umas estatuinhas de barro feitas há quarenta anos por um artista popular, Zé Caboclo, representando figuras humanas.” A ideia para o romance acabara de ficar pronta. Ao comentar sobre o romance José Saramago disse: “É uma história de perdedores cuja única vitória é que não se entregam ao triunfador. É a revolta possível, mas sem ela não poderá haver outra. A derrota definitiva seria a submissão, e mesmo assim não devemos esquecer que as gerações se sucedem, mas não se repetem. Assim como de insubmissos podem nascer submissos, também dos que se submeteram poderão nascer os que haverão de se revoltar. Não diria exactamente sobre a globalização, mas sobre essa fatalidade económica que faz com que venha um momento em que já não somos necessários”

produtos não mais estarão à venda no Centro. Ao perder o ofício, o oleiro perde a razão de viver e muda-se para a cidade com o genro e a filha. O Centro é uma verdadeira caverna onde milhares de pessoas se divertem, comem e trabalham sem darem conta do dia ou da noite; é um gigantesco monumento do consumo, onde os moradores usam crachá, são vigiados por câmeras de vídeo e não podem abrir as janelas de casa. O mundo virtual de A caverna reflete diretamente nosso presente, o “Centro” é parte de nosso cotidiano. Pode-se entender que o que Saramago quer com esse livro é o entendimento de que aquele mito de Platão nunca esteve tão em voga contemporaneamente – isso ele reforça na sua fala no documentário intitulado Janela da alma. É na comum e simples cena de comportamento zumbi, que notadamente marca os sujeitos diante das vitrines ou com futilidades outras por horas e horas nos shoppings centers, por exemplo, que Saramago depura seu olhar, pela lente do mito da caverna de Platão, para o entendimento de sua tese, a da fragmentação

ou

virtualização

da

sociedade

pelo


consumismo.

Essa

aparente

simples

constatação

é

fundamental para entender esse livro. Cito, para corroborar, um texto seu publicado no Diário de notícias:

Todos os dias desaparecem espécies animais e vegetais, idiomas, ofícios. Os ricos são cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Cada dia há uma minoria que sabe mais e uma minoria que sabe menos. A ignorância expande-se de forma aterradora. Temos um gravíssimo problema na redistribuição da riqueza. A exploração chegou a requintes diabólicos. As multinacionais dominam o mundo. Não sei se são as sombras ou as imagens que nos ocultam a realidade. Podemos discutir sobre o tema infinitamente, o certo é que perdemos capacidade crítica para analisar o que se passa no mundo. Daí que pareça que estamos encerrados na caverna de Platão. Abandonamos a nossa responsabilidade de pensar, de actuar. Convertemonos em seres inertes sem a capacidade de indignação, de inconformismo e de protesto que nos caracterizou durante muitos anos. Estamos a chegar ao fim de uma civilização e não gosto da que se anuncia. O neo-liberalismo, em minha opinião, é um novo totalitarismo disfarçado de democracia, da qual não mantém mais que as aparências. O centro comercial é o símbolo desse novo mundo. Mas há outro pequeno mundo que desaparece, o das pequenas indústrias e do artesanato. Está claro que tudo tem de morrer, mas há gente que, enquanto vive, tem a construir a sua própria felicidade, e esses são eliminados. Perdem a batalha pela sobrevivência, não suportaram viver segundo as regras do sistema. Vão-se como vencidos, mas com a dignidade intacta, simplesmente dizendo que se retiram porque não querem este mundo. (SARAMAGO, 2009, p. 63) A caverna trata-se de um romance que demarca o fecho de uma trilogia crítica e “involuntária” de Saramago sobre o atual estágio da sociedade: o poder, o capitalismo, a política; interceptado pela perda de identidade dos indivíduos. Preponderante em A caverna o capitalismo que, na velocidade do espetáculo, espetaculariza o próprio homem, desarranjando de sua sustentação.

Depois dessa tríade, vem O homem Duplicado, em 2002.

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Seguindo a risca de romances como Ensaio sobre a cegueira esta narrativa parte de um acontecimento insólito para o seu desenrolar: um professor de História de nome Tertuliano Máximo Afonso descobre num vídeo a existência de um sósia, de um gêmeo, ou como diz a personagem, mais que isso, um “duplicado” seu. Apesar do fato insólito, esse sósia não se trata de uma cópia feita em laboratório ou clone, é ele simplesmente um duplicado nas aparências físicas. Dada a descoberta, o que se assiste é uma viagem investigativa a fim de encontrar-se pessoalmente com o outro, que é para isso que parece está dirigida a todo tempo a trama; outro, que é aparecido com o nome de Daniel Santa .

tema do “outro”. Se o “outro” é como eu, e o “outro” tem todo o direito de ser como eu, pergunto-me: até que ponto é que eu quero que esse “outro” usurpe o meu espaço? Nesta história o “outro” tem um significado que nunca antes teve. Actualmente no mundo entre “eu” e o “outro” há distâncias, e não é possível superar essas distâncias, e por isso cada vez menos o ser humano pode chegar a um acordo. Cerca de 95% das nossas vidas é obra dos demais. No fundo, vivemos num caos e não há uma ordem aparente que nos governe. Então a ideiachave do livro é que o caos é um tipo de ordem por decifrar. Com este livro proponho ao leitor que investigue a ordem que há no caos.”

Clara, mais tarde António Claro, outro que é também o verdadeiro Tertuliano Máximo Afonso, esse que vai, na sua mesmice, se revelando capaz das atitudes mais adversas quando se vê na posse desse envolvimento com o sósia.

O homem duplicado trata-se de um romance com trama imprevisível, labiríntica, como num verdadeiro suspense; a cada esquina de uma frase o rumo a que pode tomar a narrativa é o do qualquer que caiba à imaginação. Se tem sido o interesse de Saramago refletir acerca das questões que dizem respeito ao homem e ao espaço em que nele vive, como é fato em romances como Ensaio sobre a cegueira ou Ensaio sobre a lucidez, para ficarmos apenas em dois exemplos, O homem duplicado vem tratar das questões que dizem respeito à fragmentariedade e a perda das identidades no atual estágio de uma sociedade que prima pela individualidade,

pelo

narcisismo

e,

paradoxalmente

estabelece padrões estreitos de conduta e de aparência. Ainda no território das perdas, volto agora ao mesmo país imaginário do outro Ensaio para ver outra situação que

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INÉDITOS

(crônica)

Livros, Leitores e Leitura, crônica publicada no volume As opiniões que o DL teve (Lisboa: Seara Nova/Editorial Futura, 1974). Provas tipográficas com emendas (Reprodução). Fonte: Coleção José Saramago. Acervo da Biblioteca Nacional de Portugal. Lisboa: 2008.

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remete para o instante de iluminação das consciências da cegueira – a situação se dá no romance Ensaio sobre a lucidez, romance que vem ao lume em 2004. O que está em questão aqui é o poder do voto e com ele os rumos da democracia. É ao fim de uma eleição nesse país que, apurados os votos, tem-se a surpresa: uma nova onda branca, agora materializada nas cédulas de votação, vem tomar conta dessa paisagem. É conduzindo o leitor por entre as tramas do poder – o governo, a polícia e a imprensa – que o narrador saramaguiano recupera a discussão instaurada no – do voto em branco como arma para por em discussão a democracia. O ideia do voto em branco acompanha Saramago já desde abril de 1975, altura em que, dando concordância ao apelo do MFA para que assim votassem os que não estavam esclarecidos sobre o sentido do seu voto, escreveu um apontamento publicado no Diário de Notícias: “É preciso que fique esclarecido que o voto em branco ou inutilizado com um traço também é voto. É voto que deve merecer tanto respeito como aquele que se exprime firmemente por uma opção partidária. O voto em branco é o voto de quem não sabe e o afirma. O voto em branco é uma forma de protestar contra quarenta e oito anos de fascismo que, eles sim, são os verdadeiros responsáveis por esta discussão tão pouco clara, em que se procura pescar votos como em águas turvas se pescam peixes cegos.” Na entrevista concedida a João Céu e Silva, publica em Uma longa viagem com Saramago, o escritor assim se explica: “Porque uma democracia que não se decide, que não sabe que uso fazer dos votos expressos – ou que às vezes sabe muito bem o que é que há-de fazer dos votos expressos, exactamente o contrário daquilo que foi prometido aos eleitores, chega a um momento em que faz uma pessoa perder a paciência. Há quantos anos é que andamos a meter papéis dentro de urnas? Uma quantidade deles e continuamos a fazê-lo porque a democracia é muito boa e, portanto, é preciso levá-la a toda a parte para que mais pessoas metam papeis dentro de uma urna (…) Isto é também uma comédia, só que uma comédia que tem consequências muito graves e uma delas é que da democracia à demagogia vai um passo –que está constantemente a ser dado, pois os políticos não respeitam a sua própria palavra.”

Ensaio sobre a cegueira: entram em jogo a ética e a vida coletiva humana. Nesse romance, como no primeiro ensaio, Saramago vem alertar para a fragilidade dos sistemas institucionais que criamos e, por esse aspecto, necessidade de sempre repensá-los por outra ótica.

E é ainda sobre a fragilidade dos sistemas sociais que Saramago escreve As intermitências da morte, em 2005. Novamente num país inominado, agora num dia de réveillon, a Morte, sem um motivo aparente, desiste do seu ofício de matar. O mais irônico em tudo é que, para além das fronteiras, se morre como de costume. Esse sonho da não-morte, o sonho mais antigo do ser humano, a eternidade, logo se torna pesadelo porque as pessoas não morrendo passam a viver um estado de latência permanente. A crise assola todas as dimensões sociais: o Estado, que não tem como dar conta de tantos velhos e nem da saúde deles, além de não conseguir impedir o surgimento e o crescimento de um negócio ilegal, a Maphia, responsável por transportar os velhos até a fronteira para que lá possam, enfim, morrer; a Igreja, por não ter mais o discurso da salvação como sustento, nem mais enterros e missas a celebrar; os coveiros, que não mais têm enterros a fazer.

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Outra crise é própria nossa: notando que o Ocidente insiste na cultura de não “aprender” a morrer, o escritor parece nos sugerir com esta sua obra a pensar sobre, vendo-a nas linhas fronteiriças, nas intermitências, que a morte é algo necessário para a própria manutenção da vida.

6

Depois das paisagens que esses romances ocupam na paisagem natural da escrita saramaguiana devo me reportar, ainda que brevemente, para o entorno de outras produções, com o intuito de enxergar o mais longe que me for possível o horizonte que circunscreve sua obra. Começo por outras produções da prosa (a crônica, o conto e os diários), passando pela poesia e findo esta minha fala com o teatro.

A prosa saramaguiana guia-se por uma linha tênue, pisa num terreno movediço com se é próprio do terreno da escrita; como já dito noutro momento, a sua escrita passa por uma longa porfia, é transitória por diversas experiências verbais até encontrar a sua forma no romance. Se esta escrita guia-se por uma linha tênue, num terreno movediço, delgado e isto é também uma característica preponderante do gênero crônica, sendo múltipla, flexível e localizada numa zona movediça, é da crônica que Saramago se beneficia nesse longo exercício de porfia. Não poucas vezes As duas primeiras edições de crônicas publicadas por José Saramago. A primeira, Deste mundo e do outro e a segunda – que reúne textos do Jornal O fundão e A capital – A bagagem do viajante.

o escritor português chegou a admitir que seu leitor, para entender sua obra e a gênese dela, haveria de, primeiro, começar a ler suas crônicas, e depois passar aos romances. Nas crônicas residem boa parte dos temas, nexos e obsessões do autor.

As duas primeiras publicações vem de 1971 uma, a

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primeira, Deste mundo e do outro e, de 1973, outra, a segunda, A bagagem do viajante. N'A bagagem do viajante, diz Saramago (1996, p.104):

Quero eu dizer na minha que estas crônicas são também os dizeres de um fala-só. Que esta continuada comunicação tem qualquer coisa de insensato, porque é uma voz cega lançada para o espaço imenso onde outras vozes monologam, e tudo é abafado por um silêncio espesso e mole que nos rodeia e faz de cada um de nós uma ilha. Reside na voz do cronista aquela certa inquietude perante tudo – principalmente quanto a um espaço para sua voz. O autor mostra-se na procura de um delineamento para construção de vários mundos, este seu de escritor e outro do seu leitor, dois mundos desconhecidos a procura de conhecer-se, universos concretos palpáveis, de vozes e de escrita, e universos abstratos de ecos dessas vozes e dessa escrita, sabendo que há entre tais mundos um fio nas suas fronteiras, um fio tênue sempre prestes a romper-se e a deixar entrever um outro contendo o outro lado das coisas.

Há nesse roteiro mais duas outras obras que são As opiniões funções de diretor adjunto do jornal Diário de Notícias. Até Novembro desse mesmo ano escreverá, na 1ª página do jornal os seus Apontamentos, que virão a ser publicados em 1976, pela Seara Nova. – “Pôr o jornal ao serviço das classes trabalhadoras, ao serviço do proletariado industrial e agrícola”, ao serviço do socialismo, para tudo dizer em uma palavra.” (José Saramago. Prefácio de 7 de dezembro de 1975 para a edição de Os apontamentos). Já entre fevereiro de 1972 e dezembro de 1973, o escritor publicou, opiniões no jornal Diário de Lisboa. Essas opiniões ganham forma de livro em janeiro de 1974 sob o título de As opiniões que o DL teve: “Muito do que então escrevi não ultrapassa o nível do circunstancial (…) Entre os artigos alguns há que, redigidos na sua altura, apenas agora vêem a luz do dia: o facto não precisa explicação. Permita-se-me, contudo, que lamente o que nem sequer pude escrever, só porque de antemão sabia que não valai a pena. (Mas recuso, neste justo momento, a fácil complacência de me louvar ao que não cheguei a fazer…)” ( José Saramago. Prefácio de 31 de dezembro de 1973 para a edição As opiniões que o DL teve.

que o DL teve, de 1974, e, de 1976, Os apontamentos. Nessas duas, para além do viés de reflexão do estágio contemporâneo no qual se situa o cronista, há preponderante um viés histórico conforme o autor afirma em Os apontamentos: são textos que aparecem “ligados por esse fio histórico que é o seu sentido e por esta outra história que é a de uma reflexão discorrendo sobre os factos e os ditos do tempo dos homens portugueses de hoje” (SARAMAGO, 1990, p.191). São dois livros escritos no período em que trabalhou na redação do jornal Diário de notícias; neles o leitor assiste pelas lentes de um cronista político o trajeto pelo qual a sociedade portuguesa fez no decorrer dos anos


de Salazarismo, por exemplo; fatos que viriam povoar Além dos quatro livros de crônicas – Deste mundo e do outro, A bagagem do viajante, Os apontamentos e As opiniões que o DL teve – José Saramago publicou uma recolha de crônicas políticas escritas entre os anos1976 e 1998 numa edição pela Editorial Caminho chamada de Folhas políticas. Em comentário sobre essa obra o próprio escritor assim se pronuncia: “Não vai faltar quem me acuse de que alguns destes textos são desapiedados e injustos, que, tendo sido já politicamente inoportunos e impertinentes na própria época em que foram escritos, muito mais o vêm a ser agora, e que, argumento final, não é atitude das mais prudentes e sensatas da minha parte, considerando que todos temos os nossos ‘telhados de vidro’, reabrir as chagas que o tempo, melhor ou pior, teve a caridade de cicatrizar. Disso, como do resto, pensará cada um o que quiser, e por isso responderá. Em todo o caso, creio que estas Folhas Políticas, de cuja honradez cívica não reconheço a ninguém o direito de duvidar, levam dentro verdades suficientes para que sejam capazes de defender-se sozinhas, sem ajuda. Nem sequer a minha.”

outras obras, como a peça de teatro A noite, o livro de poemas O ano de 1993, ou romances como Manual de pintura e caligrafia e Levantado do chão.

Do gênero conto, Saramago só publicou quatro livros, embora o espólio apresentado na exposição de 2007 dê contas de uma quantidade significativa de outros textos do gênero.

O primeiro deles foi Embargo publicado numa tiragem limitada quando o escritor trabalhava na editora Estúdios Cor. A editora todos os anos, por dezembro, publicava um pequeno livrinho, com um conto de natal escrito pelos autores da casa. Este, de José Saramago, publicado em 1973, terá sido o último que a Estúdios Cor publicou neste formato.

Depois vem a lume a coletânea Objecto quase, em 1978; O conto da ilha desconhecida, em 1997; e o conto infantil A maior flor do mundo, escrito em 2001. Se são experimentações na forma textual e na temática o que se opera nas crônicas, como as d'A bagagem do viajante, nos contos

de

linguísticas

Objecto –

a

quase

fronteira

são entre

as

experimentações

sua

decomposição

confundida com a própria decomposição do .– “Objecto quase não é um livro fácil. Um escritor não tem o direito de rebaixar o seu trabalho em nome de uma suposta maior acessibilidade. A sociedade, isto é, todos nós, e que temos o dever de resolver os problemas gerais de acesso e fruição dos bens materiais e culturais.” (José Saramago In. Extra. 1 de junho de 1976)

estágio de

sujeito e a sua recomposição em objeto de si mesmo. Desse conjunto faço ressalvas para contos como “A cadeira”, “O embargo”, “Coisas” e “Refluxos”.

Em O conto da ilha desconhecida, é a viagem, tema preponderante

em

outros

momentos

da

escrita

saramaguiana, conforme comentei antes, o que salta o


tecido da narrativa e se faz marcante; fazendo jus ao pensamento pessoano de que “para viajar, basta existir” e sendo o homem entendido por através da máxima filosófica de uma ilha, o narrador saramaguiano, engendra uma personagem inominada ou em processo de nominação em que ela, enquanto tal, tem a necessidade de sair de si para se constituir enquanto ser; diante da metafórica busca do homem, primeiro, junto ao rei por um barco, depois, junto ao povo por um marujo, e tudo à busca de uma ilha desconhecida inclusive para ele próprio, lê-se como aquela sob encomenda, O Conto da Ilha Desconhecida também foi escrito sob encomenda. O conto foi escrito e publicado pela Expo’98/Assírio e Alvim em 1997, a pedido dos organizadores responsáveis pelo Pavilhão de Portugal para a EXPO’98, a última exposição do século XX. No decorrer desse evento, Portugal celebrava a relevância histórica dos descobrimentos das últimas décadas do século XV, culminando com os 500 anos de uma empreitada que havia dado certo: a 18 de novembro de 1497, Vasco da Gama dobrava o Cabo da Boa Esperança e, no ano seguinte, 1498, iniciava a trajetória de volta. Além disso, Pedro Álvares Cabral, em 1500, chegava ao Brasil. Notemos, pois, que é no epicentro desses fatos que escritor português está “transportado” quando escreve o conto em questão. A primeira edição do conto veio ilustrada por telas do artista plástico Pedro Cabrita Reis; no Brasil, a edição publicada pela Companhia das Letras vem trabalhada com telas de Arthur Luiz Pisa.

viagem que todos somos capazes de fazer, uma viagem em que o sujeito a realiza parado, à volta de si, dobrado para si como reflexo; “A personagem central do conto apresenta-se nesse balé sincro-diacrônico do mundo, numa busca quase que contínua e incessante, o seu projeto e esboço de mundo comandado por ele enquanto ser ao mundo lançado.” (OLIVEIRA NETO, 2008, p.3).

7

Obra que constitui uma outra face da paisagem escrita saramaguiana são as reflexões em torno de si próprio, enquanto escritor, de sua escritura e de toda sorte de temas que o autor vai presenciando. Os diários, inicialmente Cadernos de Lanzarote, depois, muito depois, um blog, O Caderno, que foi dando origem a mais três volumes impressos que foi nomeado com a mesma alcunha da web, são peças fundamentais para o entendimento da obra e da linha de pensamento de um escritor de crenças fortes e muitas delas inabaláveis.

Os Cadernos de Lanzarote estão editados em cinco volumes – entre os anos de 1994 e 1998; são escritos desde que o

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escritor se refugiou nas Canárias, devido ao episódio com o Governo Português acerca d’O Evangelho, sobre o qual já comentei antes. Concordo com Massaud Moisés (1999) quando este afirma que as circunstâncias que levam o escritor português a registrar-se num diário ao público reflete muito mais que um narcisismo próprio de quem escreve. Coloca para o leitor o escritor além da transfiguração comum que se dá, por exemplo, na obra literária.

Entendo que Os cadernos tem um papel relevante no corpo da obra de José Saramago porque eles próprios trazem uma novidade ao trajeto literário do escritor e da literatura por ele produzida. Neles se apresentam um verdadeiro ensaio metalinguístico para questões diversas, seja para sua obra, seja para a literatura. Funcionam, pois, como uma caixa de máquinas de muitas delas – como que surgiram, como que foi o processo de escrita etc. – além, é claro, de traduzir um volto do autor, do seu pensamento acerca do mundo dos livros, das pessoas e do mundo empírico. Há uma particularidade que coloca os volumes desses diários num patamar de importância: neles encontramos a exposição de um escritor que se coloca aos olhos do mundo, não na sua verdadeira face, como o autor mesmo compreende: “Escrever um diário é como olhar-se num espelho de confiança, adestrado a transformar em beleza a simples boa aparência ou, no pior dos casos, a tornar suportável a máxima fealdade. Ninguém escreve diário para dizer quem é. Por outras palavras, um diário é um romance com uma só personagem.” (SARAMAGO citado por MOISÉS, 1999, p.1)

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Há ainda, seguindo o mesmo estilo, mas mais elaborado ou como quer o senso comum, “romanceado”, um livro de memórias que o romancista chama “as memórias de quando fui pequeno”; falo d'As pequenas memórias, publicado aqui no Brasil em 2006. O livro apresenta as memórias do Saramago criança até a adolescência, expondo a formação de sua personalidade bem como da sua opinião crítica sobre determinados temas. Não se trata, entretanto, de uma ficção de alcova. Portador de uma poesia singela, esse livro reúne, sim, como num feixe, fragmentos de memória daquilo que levou Saramago a ser a pessoa perscrutadora, reflexiva, humanista e interventiva que foi. Antes de ser um livro sobre seu passado, é uma escolarização para a atual geração – em que tem vez a simpleza e a dificuldade como força motriz e valores modelares à sua formação do sujeito.

8

Acerca da poesia saramaguiana, só tenho conhecimento de textos esparsos, já que aqui pelo Brasil, até o presente, não se foi publicado sequer uma antologia sua, apenas O ano de 1993 – único que tenho leitura na íntegra. (É talvez por isso que cogite a organizar futuramente uma edição em livro ou revista sobre a poesia saramaguiana; é este um terreno ainda necessário de exploração por parte da crítica). Para comentar acerca da poesia me valerei aqui de alguns textos que foram publicados num número monográfico, sob chancela da professora Maria Alzira Seixo, da Revista Colóquio Letras, da Fundação Calouste; textos que, a meu ver, melhor sistematizam sobre a poesia do escritor português. (Ver Apêndice no Caderno-revista 7faces).

A obra poética de José Saramago está resumida a três livros:

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Os poemas possíveis, de 1970, Provavelmente alegria, de 1982 e O ano de 1993, de 1975. Carlos Reis sonda nos seus diálogos com o escritor a escrita da produção poética em Saramago como a conjugação (resultado) de dois fatores: a leitura dos poemas de José Régio, em Filhos do homem, e “uma experiência de ordem sentimental ocorrida em sessenta e dois, sessenta e três, à volta disso” (REIS, 1998, p.110). Dois vetores, claro está, que não podem, ou pelo menos não devem, ser vistos como únicos e exclusivamente definidores da produção poética saramaguiana. Isto porque ao observar a composição de obras com O ano de 1993, por exemplo, estamos diante de um escritor de forte maturidade poética – seja no feitio da cadência rítmica dos versosversículos, seja na elaboração estrutural e linguística do poema. Além do que a ideia sua de, mais tarde, rever as duas primeiras publicações; se assim o fez é porque o já escritor percebe nesses livros uma produção literária de suma de importância para a composição da face de sua obra.

Logo, sua produção poética não se resume apenas a uma poética da inspiração; a prática da poesia entra em seu quadro de produção como um exercício de escrita, configurando numa espécie de “fabricação poética”– termos do próprio Saramago. A poesia figura, destarte, como uma inquietude perante o desconcerto do homem e do mundo.

Parece pertinente, aqui, a título de reforçar o pensamento que venho elaborando, os versos do poema Fala do velho de Restelo ao astronauta, do livro Os poemas possíveis, em que se nota aquele aspecto da preocupação de não se desligar das questões humanas; as comparações e metáforas aí enumeradas estão ligadas a todos os movimentos da experiência sócio-humana, promovendo, desse modo, uma

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abertura para a meditação e consolidação de um consciência crítica acerca da realidade: Aqui na Terra, a fome continua, A miséria, o luto, e outra vez a fome. Acendemos cigarros em fogos de napalme E dizemos amor sem saber o que seja. Mas fizemos de ti a prova da riqueza, E pusemos em ti sei lá bem que desejo De mais alta que nós, e melhor e mais puro. No jornal, de olhos tensos, soletramos As vertigens do espaço e maravilhas: Oceanos salgados que circundam Ilhas mortas de sede, onde não chove. Mas o mundo, o astronauta, é boa mesa Onde come, brincando, só a fome, Só a fome, astronauta, só a fome, E são brinquedos as bombas de napalme. O segundo aspecto é que pulsa já em Saramago poeta aquela veia trágico-irônica que daria mote para a composição da escrita de seus romances; no poema acima, grita a voz do antigo que clama erguendo-se contra a diafaneidade da ambição desmedida, errônea, que torna o homem estrangeiro de si numa terra que ainda ressoa a infernal cavalgada da fome, da miséria, da doença e da guerra.

Voltando-se para O ano de 1993 este livro é aquele enumerado pela crítica como o que melhor aponta para a vocação narrativa do escritor. Trata-se de um livro que foi escrito um ano depois do desfecho do regime ditatorial de Salazar.

Essa

data

é

significativa

num

poema

vanguardista, que, por sua estrutura versicular mais o aproxima da estrutura de uma narrativa – pelo fato de que, nele, o poeta, aproveitando-se dos movimentos políticos

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ocorridos em Portugal à época, delineia através da alegoria acerca da extremidade incerta do futuro. O livro trata, numa espécie de nebulosidade escura, de uma invasão e o desfecho heroico de uma comunidade rural contra seus invasores.

Pelo seu caráter alegórico, o texto não pode ser resumido à “simplicidade” de um tempo histórico português. Estendo essa impressão a passos ainda mais largos; Saramago reteve na escrita de O ano não apenas com os movimentos políticos de Portugal, mas de toda uma época: a época de sombras que varreu todos os países; as ditaduras e outras formas de violência do homem para com o próprio homem. Isto é, O ano de 1993 é, sem dúvidas, assim como é Levantado do chão, uma espécie de livro-denúncia de todos os movimentos de opressão – os justificados, praticados nos porões das ditaduras, e os camuflados pelo véus das ideologias. Muito dessa treva reaparece na coreografia cenográfica da peça teatral A noite.

9

Quanto a produção literária para o teatro, Saramago, de sua própria voz a Carlos Reis, diz: “todas as peças de teatro que escrevi resultaram de convites e de propostas. Nunca tive qualquer motivação para escrever teatro; continuo a não têla.” (REIS, 1998, p.113-115).

São cinco peças: A noite, de1979; Que farei com este livro, de 1980; A segunda vida de Francisco de Assis, de 1987; In nomine Dei, de 1993 e Don Giovani ou o dissoluto absolvido, de 2005. A obra teatral do escritor se marca por uma feitura não tão comum do teatro contemporâneo: trata-

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se de um texto dramático profundamente marcado pela tessitura da palavra escrita, o que o aproxima de mestres como Bertolt Brechet; há nele uma espécie de fio intervencionista que alinhava o texto. Basta que citemos as ocasiões onde figuram esses dramas: (i) em A noite a peça se passa no decorrer da noite de 24 para 25 de abril de 1974 – remetendo a um contexto histórico-político, ainda vivo em carne, do fim da Ditadura salazarista; (ii) Que farei com este livro, uma volta de Camões – não um supra-Camões pessoano, mas um autor e sua humildade orgulhosa “que vai chamando a todas as portas à procura de quem esteja A Saramago no teatro – “Como pude eu escrever uma peça? Aí está uma questão para que ainda não fui capaz de encontrar resposta e que eventualmente a crítica repetirá, não já em todos os tons, mas naqueles só que exprimam decepção, azedume, contrariedade vária ou ironia.” (“Sete”, 16 de Maio de 1979) – e é também o seu primeiro livro publicado pela que Editorial Caminho. A peça foi escrita para Luzia Maria Martins, que dirigia a Companhia Teatro Estúdio de Lisboa, sediada no Teatro Vasco Santana. Possivelmente, por falta de apoio financeiro, Luzia Maria Martins não conseguiu avançar com o projeto. Será então que, Joaquim Benite, com a Companhia do Teatro de Campolide, em Junho de 1979, no Teatro da Academia Almadense, quem cumprirá a missão de levar a obra para o palco.

disposto a publicar-lhe o livro que escreveu, sofrendo por isso o desprezo dos ignorantes de sangue e de casta, a indiferença desdenhosa de um rei e da sua companhia de poderosos, o escárnio com que desde sempre o mundo tem recebido a visita dos poetas, dos visionários e dos loucos” (SARAMAGO, 1998, p.3); (iii) em A segunda vida de Francisco de Assis, o recontar da biografia do santo que, semelhante a do Cristo em O evangelho segundo Jesus Cristo, é posto em sua humanidade, em confronto entre o seu ideal de pobreza e a espetacularização comercial do seu nome; (iv) em In nomine Dei, uma volta ao passado histórico de 1532-1535, na Alemanha, para retratar os anabaptistas, cristãos da ala radical da Reforma Protestante, e falar dos fantasmas do fanatismo e da intolerância religiosa

na

batalha

sangrenta

em

Münster:

“Os

acontecimentos descritos nesta peça representam, tão-só, um trágico capítulo da longa e, pelos vistos, irremediável história da intolerância humana.” (SARAMAGO, 1993, p.9); (v) em Don Giovani ou o Dissoluto absolvido o escritor português reconta um dos mais importantes e conhecidos enredos da história da literatura: o mito do Don Juan, o implacável sedutor – personagem presente na obra

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de inúmeros autores, com Tirso de Molina, Molière, Hoffman, Byron e Pushkin. Em Don Giovani continua o interesse do escritor pela desestabilização dos lugarescomuns e para mostrar que nem tudo é o que parece ser. Trata-se de uma peça, cujo seu alvo mais evidente é o da noção do pecado.

10 A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o viajante se sentou na areia da praia e disse: ‘Não há mais que ver’, sabia que não era assim. O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. (SARAMAGO, 2007, p.475-476) O trajeto que cumpri pela paisagem saramaguiana foi uma Na época em que foi publicado em Portugal, Viagem a Portugal teve uma tiragem de 30 mil exemplares. E foi uma das obras que constituiu o grande salto para a consagração do autor. Levantado do Chão já havia sido publicado, mas seguia um lento caminho na relação escritor-livroleitor. Quando publicado esse livro pelo Círculo de Leitores deu-se a conhecer o autor por todo país e não só deu-se a conhecer um outro Portugal – um Portugal visto com outros olhos, longe do guia turístico, longe dos livros de viagens.

viagem – uma viagem como as muitas que pontilham seus romances, uma viagem como a que escreveu em 1981, em Viagem a Portugal de onde colhi a epígrafe de desfecho dessa fala. O fim dela é para ser o início de outras. Certamente mais ricas. Mas aqui chegando é para estabelecer algumas considerações gerais que possam cerzir num feixe todas as observações feitas. Não sei se atendi ao que me foi pedido e ao objetivo estabelecido no início dessa fala. Sei que foi cansativa, talvez, mas creio ter oferecido as linhas de uma densa paisagem que compõe o material literário do escritor português; uma paisagem, sobretudo, vastíssima, e olhando do ponto em que agora estou, impossível de pensar em alcançá-la. O que fiz, percebo, foi

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nada mais que apenas deixar rastros numa paisagem; foi jogar tintas num painel panorâmico acerca da obra literária saramaguiana num acordo daquilo que até hoje já li ou li sobre.

Não se pode pensar a obra saramaguiana apenas trânsito por diferentes gêneros e materialidades de escrita (poesia, conto, crônica, teatro, diários, romance) mas também como uma obra em constante gênese, em constante recriação de si e uma recriação incansável de dois temas entre si complementares e a meu ver bussolares à sua obra – ainda que

o

escritor

admita

não

ter

construído

um

empreendimento meramente literário; os dois temas dos quais falo são: o da cegueira e o da lucidez – transmutados nos dois ensaios. Não se trata de uma cegueira e de uma lucidez como elementos de uma patologia clínica, mas de sentimentos engendrados na ordem dos sistemas que compõem a contemporaneidade: a visão e a razão.

Essa recorrência que vejo e o leitor há de ver nesse todo trajeto que compus se apresenta como uma espécie de necessidade de Saramago em definir dois sentimentos que juntos são a própria ordem da contemporaneidade. São dois temas tidos como um ponto zero em Levantado do chão e para o qual vão convergindo todos os escritos até suas representações literárias nos campos alegóricos no Ensaio sobre a cegueira e no Ensaio sobre a lucidez.

Quero com isso dizer que há na obra de Saramago uma circulação de imagens, um sistema de vasos comunicantes entre seus textos: todos eles são também pontos de reflexão ensaística (não é à toa que eclodem dois romances que trazem a tônica no título que carregam) e não podem ser

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dissociados sem levar em consideração essa necessidade de concretização de uma imagem acerca da cegueira e da lucidez. Como escritor de uma época de extremos, Saramago parece trazer consigo a necessidade de frequentar todos os grandes temas dessa época: a banalização do homem, a ausência de sentido, a crise das identidades, o totalitarismo disfarçado, as revoluções para reordenamento do espaço social, a revalidação da utopia de uma possibilidade. E tudo é feito, à sua maneira, que consiste na reflexão lúcida e na refiguração dos atos margeados pela necessidade de preservação de uma indignação ética, que é uma consciência acerca do absurdo e do abuso das ideologias fundadas e arregimentadas pelo próprio homem.

No curso de sua obra é natural esse movimento pendular de oscilação entre o tido natural e o tido inverossímil, entre os encontros e os desencontros, entre a fortaleza e as fragilidades dos sistemas humanos – afinal o que Saramago vem refletir e propor não é uma escolha por esse ou aquele modelo de sistema, mas a necessidade por uma reflexão crítica por parte dos indivíduos acerca desses planos duais e recriação de outros modelos de pensar e de agir humanos. As obras de Saramago são uma espécie de testamento-chave acerca das dilacerações trágicas da condição humana e do tempo – um tempo que é de extremos, um que é tempo de regresso à barbárie. São obras em diálogo vivo, contínuo, cerrado, mais ou menos velado, com as lentes embaçadas dessa realidade, sem perder de vista que tudo o que nos cerca, inclusive nós próprios, são construtos de nós mesmos, e que, por assim sê-los, carecem de constante revisão.

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CONTO INÉDITO DE JOSÉ SARAMAGO Por João Domingos de Brito

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JOSÉ SARAMAGO

CÃO ACHADO

Vou a um negócio de homens, desta vez tens de ficar em casa, disse Cipriano Algor ao cão, que correra para ele quando o viu aproximarse da furgoneta. E claro que o Achado não necessitava que o mandassem subir, bastava que lhe deixassem aberta a porta do carro o tempo suficiente para perceber que não o expulsariam depois, mas a causa real da sobressaltada corrida, por muito estranho que possa parecer, foi ter ele suposto, em sua ansiedade de cão, que o iam deixar sozinho. Marta, que saíra para o terreiro conversando com o pai e o acompanhava à furgoneta, tinha na mão o sobrescrito com os desenhos e a proposta, e embora o cão Achado não tenha idéias claras sobre o que são e para que servem sobrescritos, propostas e desenhos, conhece da vida, em todo o caso, que as pessoas que se dispõem a entrar em carros costumam levar consigo coisas que, em, geral, mesmo antes de para eles subirem, atiram para o banco de trás. Instruído por estas experiências, percebe-se que a memória do Achado o tenha levado a pensar que Marta iria acompanhar o pai nesta nova saída da furgoneta. Apesar de estar aqui há poucos dias, não tem dúvidas de que a casa dos donos é a sua casa, mas o seu sentido de propriedade, por incipiente, ainda não o autoriza a dizer, olhando em redor, Tudo isto é meu. Aliás, um cão, seja qual for o tamanho, a raça e o carácter, jamais se atreveria a pronunciar palavras tão brutalmente possessivas, diria, quando muito, Tudo isto é nosso, e ainda assim, revertendo ao caso particular destes oleiros e dos seus bens móveis e imóveis, o cão Achado nem daqui a dez anos será capaz de ver-se a si mesmo como terceiro proprietário. O máximo a que talvez consiga chegar quando for cão velho é ao obscuro e vago sentimento de participar em algo arriscadamente complexo e, por assim dizer, de escorregadias significações, um todo feito de partes em que cada uma é, ao mesmo tempo, a parte que é e o todo de que faz parte. Idéias aventurosas como esta, que o cérebro humano, grosso modo, é mais ou menos capaz de conceber, mas que logo tem uma enorme dificuldade em trocar por miúdos, são o pão nosso de cada dia nas diferentes nações caninas, quer de um ponto vista meramente teórico quer no que se refere às suas consequências práticas. Não se pense, contudo, que o espírito dos cães é como uma

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nuvem bonançosa que levemente passa, uma alvorada primaveral de suave luz, um tanque de jardim com cisnes brancos vogando, se o fosse não teria o Achado começado, de repente, a ganir lastimeiro, E eu, e eu, dizia ele. Para responder a tal desgarramento de alma aflita, não tinha achado Cipriano Algor, apreensivo como ia pela responsabilidade da missão que o levava ao Centro, melhores palavras que desta vez ficas em casa, o que valeu ao angustiado animal foi ter visto Marta dar dois passos atrás depois de ter entregado o sobrescrito ao pai, assim ficou o Achado ciente de que não o iriam deixar sem companhia, na verdade, mesmo constituindo cada parte, de per si, o todo a que pertence, como cremos que já deixámos demonstrado por a + b, duas partes, desde que estejam unidas, fazem muita diferença no total. Marta acenou ao pai um cansado gesto de adeus e voltou para casa. O cão não a seguiu logo, ficou à espera de que a furgoneta, depois de descer a ladeira para a estrada, desaparecesse por trás da primeira casa da povoação. Quando daí a pouco entrou na cozinha, viu que a dona estava sentada na mesma cadeira em que tinha trabalhado durante estes dias. Passava os dedos pelos olhos uma , e outra vez como se precisasse de aliviá-los de uma sombra ou de uma dor. Decerto por estar no tenro verdor da mocidade, Achado não teve ainda tempo de adquirir opiniões formadas, claras e definitivas sobre a necessidade e o significado das lágrimas no ser humano, no entanto, considerando que esses humores líquidos persistem em manifestar-se no estranho caldo de sentimento, razão e crueldade de que o dito ser humano é feito, pensou que talvez não fosse desacerto grave chegar-se à chorosa dona e pousar-lhe docemente a cabeça nos joelhos. Um cão mais idoso, e por essa razão, supondo que a idade está obrigada a suportar culpas duplicadas, mais cínico do que o cinismo que não pode evitar ter, comentaria com sarcasmo o afectuoso gesto, mas isso deveria ser porque o vazio da velhice o teria feito esquecer-se de que, em assuntos do coração e do sentir, sempre o demasiado foi melhor que o diminuído. Comovida, Marta passou-lhe devagar a mão pela cabeça, acariciando-o, e, como ele não se retirava e continuava a olhá-la fixamente, pegou num carvão e começou a riscar no papel os primeiros traços de um esboço. Ao princípio, as lágrimas impediam-na de ver bem, mas, pouco a pouco, ao mesmo tempo que a mão ganhava segurança, os olhos foram aclarando, e a cabeça do cão, como se emergisse do fundo de uma água turva, apareceu-lhe na sua inteira beleza e força, no seu mistério e na sua interrogação. A partir deste dia, Marta vai querer tanto ao cão Achado como sabemos que já lhe quer Cipriano.

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HORÁCIO COSTA, O PERÍODO FORMATIVO

Entrevista por Pedro Fernandes de Oliveira Neto

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m 1997, quando a crítica literária ainda pouco comentava acerca da obra de José Saramago – para se ter uma ideia apenas havia sido publicado José Saramago entre a história e a ficção: uma saga de portugueses, da professora Teresa Cristina Cerdeira, em 1989, pela Dom Quixote, e o famoso conjunto de excertos críticos da professora Maria Alzira Seixo intitulado O essencial sobre José Saramago, publicado dois anos antes – um então brasileiro se apresentava no rol dessa curta produção crítica com um texto – José Saramago: o período formativo – que fora resultado de uma tese de doutoramento “mal sucedida” na Universidade de Yale, Estados Unidos. Basta que se diga que Horácio Costa, é este o nome em questão, recebera da banca examinadora, além de comentários depreciativos acerca de seu trabalho, a sugestão de publicação aos pedaços daquilo que classificaram como perda de tempo.

O próprio José Saramago chegou a contar o caso no terceiro volume dos seus Cadernos de Lanzarote: “Horácio Costa não tinha culpa de que até aí ninguém se tivesse interessado seriamente pelo que andei a fazer nos anos do eclipse, mas os meritíssimos professores não arredavam pé: uma tese em boa e devida forma, uma tese que se respeite, quer-se com bibliografia, e esta não tinha. Levaram tempo a perceber que o trabalho de Horácio Costa até nisso teria de ser inovador: inaugurava a bibliografia que não existia.” Mais que inaugurar a bibliografia inexistente, a publicação de 1997, pela Editorial Caminho, foi já um tapa com luvas de pelica na face dos que lhe “desbancaram”. E não sei se demorou tanto a que os professores entendessem esse ponto inaugural do seu trabalho, já que no ano seguinte, em 1998, o próprio José Saramago ganha projeção mundial pelo recebimento do mais importante prêmio da literatura mundial, o Premio Nobel, e, no ano seguinte, a Revista Colóquio/Letras, da Fundação Calouste Gulbenkian, publicaria um dossiê sob chancela da pro-

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fessora Maria Alzira Seixo que dava contas de um olhar por sobre toda a produção literária de José Saramago e justo nesta edição é o nome de Horácio Costa, que aliás colabora com um ensaio para a revista, o mais citado no corpo dos referenciais bibliográficos, corroborando, desde já, esse caráter inovador e inaugural de seu texto.

Num texto para a edição 17 da revista Cult, o crítico literário Adriano Schwartz, em resenha a este texto do professor e poeta Horácio Costa assim adimite: “A delimitação do campo de estudo oferecia sérios riscos para o pesquisador, uma vez que a questão do valor da obra literária é, na atualidade, muitas vezes posta de lado, o que implica a tentação tão comum de superdimensionar o objeto analisado (pressupondo-se – absurda conseqüência – a supervalorização do analista). […] Outro risco corrido foi adotar a posição de, dentro do espaço de tempo escolhido, não excluir nenhum aspecto das atividades de Saramago ligadas à literatura.” Riscos à parte, o fato é que José Saramago: o período formativo se constitui, no rol da produção crítica em torno da hoje imensa fortuna crítica do escritor português, como um texto de suma importância e o único, senão, que procura “fazer valer” o período dos “anos do eclipse” e que Horácio Costa originalmente chamou de “período formativo”. Não apenas fazer valer, mas fazer entender o poeta, o dramaturgo, o contista, o tradutor, o crítico e o cronista que o romancista português também foi.

Por estas constatações, que em muito se aproximam do contexto de produção do material reunido na edição especial do Caderno-revista 7faces, foi que convidei Horácio Costa a responder umas quantas perguntas acerca da construção desse seu trabalho. Não é, portanto, a face tão plena de poeta que hoje o então professor da Universidade de São Paulo exerce, já com vários livros publicados em diversas línguas, como a espanhola, a inglesa, ou a búlgara, o que o leitor encontrará especificamente aqui. Mas é a face de crítico – função que ele também em muito bom tom ocupa – que vai se mostrar aqui, sobretudo como quem olha do presente uma fase dos seu passado. De formação heterogênea – Horácio Costa possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo, mestrado em Artes pela New York University, mestrado em Filosofia, mestrado em Artes e doutorado em Filosofia, todos pela Yale University – assistimos um Horácio que não se fecha a rememorar o que foi o nascimento e a construção de sua tese, mas da sua relação com a obra de José Saramago, com a poesia e com o papel da crítica em torno da obra literária.

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Pedro Fernandes: No terceiro volume de seus Cadernos de Lanzarote José Saramago conta que quando você defendeu sua tese de doutorado na Universidade Yale, nos Estados Unidos, você foi recriminado pelas lacunas bibliográficas do texto. Eu queria que você comentasse sobre isso e dissesse o que ficou dessa experiência em ter sido, primeiro, um dos precursores, à crítica em torno da obra de José Saramago, segundo, o único que melhor compreendeu aquilo que o escritor chamou de os “anos do eclipse” e que você denominou de “período formativo”.

Horácio Costa: A história foi pior, ainda. A questão não foram as “lacunas bibliográficas”, forma eufemística de referir-se a todas as críticas negativas que eu recebi. Tudo começa com o fato de os examinadores da minha tese nunca terem ouvido falar em José Saramago, no final de 1993, quando a submeti à apreciação. Tive a pior nota possível: 5,5 de média. O ponto comum foi dizer que minha tese era “fair”, i.e., apenas aceitável. Um deles, cujo nome prefiro não recordar, me recomendava que a desmembrasse e publicasse os capítulos como ensaios isolados, já que nenhuma editora quereria publicá-la integralmente. O presidente do comitê avaliador, o único especialista em literaturas de língua portuguesa, diga-se de passagem e por sua vez, frisou que a tese tinha sido uma oportunidade perdida, já que eu poderia ter tratado de estudar um nome consagrado... Me orgulho de fato muito por ter tido, naquela ocasião, comentários tão desastrados. Quando o Saramago ganhou o Nobel, pois, tiveram que dar-lhe um honoris causa em Yale e, pois, por sua mesma recomendação, foram a bem dizer obrigados a me convidar a participar da dita homenagem, e lá fui eu. Mas deram um jeito de não me convidar para o banquete oficial. Acho que teria sido muito penoso para os membros do comitê avaliador me ver na mesma mesa, porque afinal todos eles se lembravam muito bem de seus comentários de havia apenas cinco anos.

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Conto sempre essa história para os meus alunos na USP, com um suave sabor de vingança, e a transformo em lição para eles: lhes recomendo para sempre, sempre confiarem mais em seu instinto crítico e em seus gostos pessoais do que nos modismos literários ou críticos, que variam ao sabor dos ventos nas comunidades acadêmicas do mundo todo.

Pedro Fernandes: Diga-me ainda o que significou, na sua opinião, esse período na obra do escritor português.

Horácio Costa: O que tinha a dizer já disse naquela ocasião; serei breve, portanto. Para Saramago, escrever tantas obras em tantos gêneros literários diversos, antes de redescobrir a prosa de ficção, significou uma espécie de aprendizado autodidático para quem jamais tinha tido uma educação literária formal. E, de quebra, enriqueceu a escritura de Saramago com matrizes escriturais originárias de cada uma dessas incursões, que lhe serviram muito, em sua prosa de ficção e nos demais livros de outros gêneros, posteriores a este período formativo.

Pedro Fernandes: Quais foram as primeiras obras de José Saramago que você teve contato? O que nessas obras despertou seu interesse que veio a desembocar num interesse pelo autor?

Horácio Costa: O primeiro livro de sua autoria que li foi Memorial do Convento, no começo de 1984. Eu tinha feito o mestrado na Universidade de Nova Iorque – saí do Brasil ainda sob o governo Figueiredo, porque já não aguentava mais viver numa ditadura militar – e havia começado os cursos de doutoramento em Yale e naquele momento tinha chegado a escolha do tópico da tese. Como poeta que sou, tinha tido que fazer uma escolha difícil: sentia que se trabalhasse criticamente a obra de um poeta determinado, a tese decorrente talvez influísse demasiado em minha própria escritura

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de poesia, e não queria escrever poesia “como quem”; depois de assistir aos seminários de Harold Bloom com suas teorias sobre a angústia da influência em Yale, essa questão de autorizar a minha própria voz poética me parecia de suma importância. Por isso, assumi trabalhar com a prosa. Em Teoria Literária, os cursos que frequentei com o Jacques Derrida focalizavam a questão do nacionalismo e da nacionalidade na literatura e na filosofia, e pensei trabalhar o tema em Guimarães Rosa, sobre o que, de fato, escrevi um longo ensaio que foi posteriormente publicado pela Revista USP. O meu tutor em Yale era o critico uruguaio Emir Rodríguez Monegal, quem tinha um bom conhecimento da literatura brasileira e da língua portuguesa. Ora, li o Memorial, que me tinha sido dado por Renina Katz, artista plástica e minha ex-professora na FAU-USP, no voo de volta aos Estados Unidos, e lá chegando, como tinha uma reunião programada com o Emir em algumas semanas, decidi ver na biblioteca Sterling, a maravilhosa, sublime biblioteca central de Yale, o que havia de crítica sobre a obra do português. Surpresa: não havia nada. Na Biblioteca do Congresso em Washington tampouco, nem na Pública de Nova Iorque nem na de Boston... e nem em Austin. O sistema de empréstimo interbibliotecas nos Estados Unidos já funcionava então maravilhosamente e de fato, simplesmente parecia que ninguém nunca tinha escrito nada sobre o Saramago nem em Portugal nem no Brasil e nem, claro, nos Estados Unidos. Cheguei então para o Emír e disse: me parece que é um excelente romancista esse português e que ainda espera por alguma crítica que lhe faça jus. Depois me inteirei que isso já tinha começado a acontecer e que a Teresa Cristina Cerdeira da Silva tinha acabado de defender uma tese no Brasil que tinha virado ou viraria em breve um livro, que a Maria Alzira Seixo tinha escrito um pequeno livro sobre ele, em Portugal, e assim por diante. Mas a sensação em 1984 era de que os estudos saramaguianos estavam engatinhando. Resolvi fazer uma aposta. Não me arrependo.

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Pedro Fernandes: Por que, num universo tão amplo de temas na produção em prosa saramaguiana e suscetíveis à pesquisa, sua escolha se dá pela produção inicial? E como foi dar contas de um objeto até então esvaziado de fortuna crítica?

Horácio Costa: Ora, na USP, na NYU e em Yale eu tinha recebido uma boa educação critica, e sabia que um dos tópicos por assim dizer quentes do momento era justamente “história e ficção”. Em Yale, tinha eu lido Ricœur, Le Goff, Collingwood, Hayden White, tutti-quanti. Pensei: muita gente vai correr atrás disso em se tratando de José Saramago, por razões óbvias, e não quero escrever mais um estudo sobre história e ficção, um viés sim importante para entender o texto saramaguiano, porém apenas um dos vieses analíticos possíveis. Pensei em estudar Guimarães Rosa e Saramago como superadores de dois movimentos literários de longo alcance em seus respectivos países, a literatura regional brasileira e o neorealismo português, mas o enfoque me parecia muito frio e discutível; mais tarde trabalharia este tópico comparando a obra de Rosa com a de Rulfo, no México, e a de Borges, na Argentina, como se pode ler em meu livro Mar Aberto. Naquela altura, pensei: qual o tópico que parece não chamar a atenção de ninguém? Pois, a quantidade de livros que ele tinha escrito antes de virar um fenômeno literário. Nunca achei, mesmo porque tenho história psicanalítica individual, que alguém possa “nascer pronto”, que um grande narrador ou um grande poeta possa ser esquentado e servido como Sopa Campbell. A Luciana Stegagno-Picchio me dizia: o Saramago nasceu narrador. Eu discordava e sigo discordando. Mesmo porque a alguém que aos 58 anos escreve o primeiro romance da série literária que lhe granjeará reconhecimento de público e crítica – Levantado do Chão- dificilmente se pode caracterizar como alguém que “nasceu” de uma forma ou de outra. Não queria fazer uma leitura simplesmente genética de sua obra, demonstrando que “estava escrito nas estrelas” que se transformaria em um grande romancis-

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ta. Eu mesmo queria entender como um jovem escritor português sem educação formal chegava à prosa de ficção, ou retomava prosa de ficção que interrompera em sua primeira e singularmente falha tentativa literária, por aproximações sucessivas, em um ziguezague por diferentes gêneros, ao longo de mais de três décadas de atividade escritural. O meu olhar sobre Saramago foi, assim, em boa medida, o de um poeta que se pergunta sobre o impulso literário em alguém, que sempre se pergunta sobre o impulso literário em todas as circunstâncias, e que com a paciência de um crítico vai estudando pari passu essa configuração num caso específico, porque, em resumo, se preocupa com as configurações desse impulso.

Como foi dar conta de um objeto sem fortuna crítica? Pois, foi liberador. Eu podia escrever basicamente o que eu quisesse. Eu tinha acabado de cumprir 30 anos. Que jovem não quer a liberdade? Eu sei que isso vai contra o que se aprende nas faculdades de letras, que na verdade são faculdades de crítica literária. Há uma disciplina imposta na mecânica citacional que corresponde a uma espécie de sistema de poder e de reserva de mercado: você comenta o que se disse sobre um autor infinitamente, no mais das vezes reverencialmente, e dá a sua contribuição ao final. Tem muito de escolástica nisso, de preservação de um nicho de um certo saber, um saber enviesado, como se o objeto literário pertencesse, afinal, aos seus comentaristas. Ora, as faculdades de letras deviam sê-lo em sua plenitude, a meu ver. O que eu trato de ensinar aos meus alunos, e de fazer chegar aos meus leitores tanto como crítico como quanto poeta, é a liberdade da crítica como criação, porque acredito no prazer barthesiano da crítica, e tento inculcar-lhes responsabilidade diante dessa liberdade e desse prazer, já que aí reside o nó ético que vincula todos esses princípios.

Pedro Fernandes: Dessa experiência, comente como você entende a relação de Saramago com a poesia e como você associa a impor-

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tância desse gênero para a atividade de romancista assumida anos depois.

Horácio Costa: O Saramago poeta se insere num momento específico da poesia portuguesa, marcado, em um de seus vetores, pela objetividade diccional como estratégia de resistência cultural a um regime então já francamente caquético. Em meu estudo, aproximo Saramago a João José Cochofel, um dos melhores nomes da poesia do Novo Cancioneiro, movimento que, creio, o marcou profundamente. É nítido o débito de Saramago para com esse movimento. Entretanto, se para um Carlos de Oliveira, por exemplo, o recurso à prosa de ficção estava submetido, creio eu, às suas urgências como poeta, em Saramago, ainda sem o que ele mesmo soubesse quando da escritura de seus livros de poesia, se dava o contrário. O que ele próprio escreve sobre a sua poesia, quando da republicação de Provavelmente Alegria e Os Poemas Possíveis, é revelador disso. Sua autoavaliação não é demasiado dura: é real.

Agora, evidentemente a escritura de poesia é um dos pilares do texto de Saramago. Há excertos em seus romances que são, literalmente, poemas em prosa. E o que dizer da pulsão lírica, que “resolve” poeticamente alguns problemas da enunciação? Para dar um único exemplo: o final de As Intermitências da Morte. Sem uma visão poética da linguagem e do fato poético em si, o José não teria conseguido tamanha economia, tamanha pungência.

Pedro Fernandes: Nesse ínterim, como você assinala a produção poética de José Saramago e qual a importância que ela assume no conjunto da obra do escritor português?

Horácio Costa: Acho que já respondi. Mas o que você não pergunta é o papel que joga a poesia na prosa de ficção de alguns dos melhores nomes de nosso acervo literário. O Machado de Assis não

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foi um grande poeta, mas poetou não apenas porque os grandes narradores costumavam poetar no século XIX, mas porque aquela linguagem lhe dizia algo específico. Não é sugerir que o prosador se traveste em poeta para melhor conhecer os mecanismos da prosa, ou não é apenas isso. A poesia é um gênero velhíssimo, e se encontra na base do dizer de qualquer civilização; a palavra poética vem com a descoberta da linguagem. O conto O Relato de Brodie, de Jorge Luis Borges, cenifica esse momento magnificamente bem. A exposição ao fato poético é indispensável para um narrador-mestre, me parece, e neste momento penso em Alexandre Herculano. Se essa exposição devém texto, tanto melhor. Veja: se tal não acontecesse com o Saramago, ele não teria querido republicar os seus livros de poesia, depois de ter-se afirmado como narrador. O mesmo não aconteceu com o seu primeiro romance, Terra do Pecado, que por anos ele manteve em um congelador bem congelado.

Pedro Fernandes: Que o destaque deva ser merecidamente dado ao singularismo de sua narrativa é, sim, fato indiscutível. Mas, se o estatuto de romancista ofusca o de poeta, desnecessário seria dizer, por exemplo, que o caráter lírico de sua prosa avulta aos olhos dos leitores (não são poucas as vezes em que o leitor saramaguiano se depara com verdadeiras ilhotas poéticas na sua prosa, corroborando a ideia de que os gêneros literários nunca se apresentam de maneira totalmente isolada). Em relação à obra poética de Saramago você também observa essa variabilidade, isto é, num tom da lírica para a prosa... Como você vê os três livros que compõem a poesia de José Saramago?

Horácio Costa: Quanto à primeira parte da pergunta, creio que já respondi. Por outro lado, não creio que deva resumir os capítulos do meu livro. Mas devo agregar que essa contaminação feliz da prosa de ficção pela matriz da poesia não é algo que suceda apenas em Saramago. Consideremos a transição de Joyce entre os frag-

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mentos de Giacomo Joyce e a escritura do Ulysses. Na dita alta modernidade, essa contaminação era um desiderato perseguido por muitos narradores-mestres. Por um lado, porque corresponde ao apagamento das diferenças genéricas preconizado pelos movimentos literários de há cem, cento e tantos anos; por outro, e novamente, porque na experiência da poesia encontravam algum segredo íntimo para acelerar a sua prosa, como diríamos hoje, para submetêla a um upgrade. O caso de Macedônio Fernández é revelador, com os seus livros La última novela mala e La Primera Novela Buena.

Pedro Fernandes: Em O ano de 1993, único dos três livros do gênero poético publicado no Brasil, Saramago apresenta poemas narrativos com fortes imagens metafóricas que se aproximam do forte percurso alegórico assumido em romances como Ensaio sobre a cegueira. Nestas peças, que dissolvem os limites entre poesia e prosa, há uma mescla de diferentes repertórios simbólicos e culturais. O que você tem a dizer acerca dessa lírica mestiça? E como você entende esse livro na produção literária de Saramago?

Horácio Costa: Chamei O ano de 1993 em meu estudo de experiência literária futurante-distópica. Não é propriamente um livro de poesia, porque apresenta características de texto experimental que não segue os caminhos do experimentalismo das vanguardas, do experimentalismo estético reconhecível. Mas há um viés redentorista no livro que sempre me incomodou. Os apelos ao sublime, também. Tem a ver com Barbarella e o romance 1984 de Orwell tanto quanto com a Bíblia e o Manifesto. Não me parece que o seu lugar deva ser ombro a ombro com Os Poemas Possíveis e Provavelmente Alegria.

Pedro Fernandes: Todos sabemos do forte caráter engajado ou comprometido da obra de José Saramago. Que o diga o romance Ensaio sobre a lucidez. Esse caráter é observado também na poe-

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sia? Se sim de que maneira esse caráter é apresentado ou trabalhado pelo poeta? Como você lê/avalia essa ideia do engajamento na literatura, sobretudo, na poesia?

Horácio Costa: Vide supra, quando falei do Novo Cancioneiro. O neo-realismo foi um movimento extremamente poderoso em Portugal. A origem do engajamento político de Saramago está no fato dele ser e de ter-se mantido comunista, mas quanto à vertente literária desse engajamento, também encontra-se no fato de ele ter 19 anos quando o Novo Cancioneiro começou a ser publicado e bem recebido pela crítica em Portugal. Rios de tinta foram escritos sobre o engajamento político da literatura produzida pelos neo-realistas. Os ensaios de Eduardo Lourenço sobre o tema são de rigueur; cito alguns em meu estudo.

Mas, ao fim e ao cabo, o que mais fica na poesia é o seu engajamento consigo própria. Era utópico pensar que a poesia podia representar uma guinada ideológica para o leitor, que o os desalienasse –a terminologia é de época- ou que os engajasse, como as vanguardas políticas preconizaram nos anos vinte, por exemplo na Rússia pós-revolução: a poesia, como propagandista de ideias extra-poéticas, não consegue sê-lo de fato, e acaba por propagandearse a si própria... ou então, quando se deixa permear sobremodo por essa intenção propagandária, abdica de seu estatuto mais propriamente poético. Há algumas exceções, mas a maior parte dos poetaspoetas, isto é, não panfletários, prefere tratar o tópico do engajamento político como um tema, mas não como o motor principal de sua escritura poética. E o que digo pode estender-se para muitos outros temas quando se tornam tópicos, pode estender-se, com as exceções de praxe, a outros assuntos absolutizantes: Deus, a Família ou a Pátria ou a Revolução, o Homem, etc. O Saramago de seus primeiros dois livros de poesia não confunde as coisas e se mantêm nos limites da dicção do neo-realismo, com as variantes que estudo,

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com as diferenças entre um livro e outro, mas enfim, basicamente nesse território, e não transforma os seus poemas em panfletos, assim como não o fará em seus romances.

Pedro Fernandes: Há críticos que consideram a produção poética do José Saramago de inferior qualidade. Alcir Pécora em texto publicado na Folha de São Paulo em relação ao O ano de 1993 assinala que este é um livro dos piores que já leu. Como você, enquanto crítico e poeta, avalia considerações do tipo?

Horácio Costa: De inferior qualidade em relação a que? Em relação a ele mesmo, creio que sim, com a ressalva de que penso que José Saramago jamais teria chegado a ser o grande narrador que era se não se tivesse imiscuído pelos terrenos exigentes da poesia e se permitido ensaiar, experimentar tanto, em poesia e em outros gêneros. E não sei se não se trata de puro exagero: um dos piores livros já lidos por um leitor contumaz? Há livros ditos de poesia bem piores, me parece, especialmente quando pensamos na pseudoliteratura filosofante e cheia de poeticalha que as editoras vomitam sobre os pobres leitores não-contumazes, por várias razões, inclusive políticas: pensemos em Gabriel Chalita, por exemplo.

Um grande autor não tem que ser bom sempre e não acertar sempre é parte fundamental de sua estatura como grande autor. Exigir que um grande autor seja modelar –infalível e daí distante-, é não querer contactar, como leitor e ainda mais como crítico, com o fenômeno da literatura; é querer só sentir prazer, gozo, jouissance, em resumo: é algo de consumo narcísico.

Se deus fosse perfeito, não teria criado o homem, um ser imperfeito e que nunca acerta sempre, mas que muitas vezes o faz e repetidamente, como era o caso de José Saramago.

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Obras de José Saramago Terra do pecado (romance), 1947 Claraboia (romance), 1953 – a ser publicado em 2011 Os poemas possíveis (poesia), 1966 Provavelmente alegria (poesia), 1970 Deste mundo e do outro (crônicas), 1971 A bagagem do viajante (crônicas), 1973 As opiniões que o DL teve (crônicas), 1974 O ano de 1993 (poesia), 1975 Os apontamentos (crônica), 1976 Manual de pintura e caligrafia (romance), 1977 Objecto quase (contos), 1978 A noite (teatro), 1979 A poética dos cinco sentidos – o ouvido (ensaio), 1979 Levantado do chão (romance), 1980 Que farei com este livro? (teatro), 1980 Viagem a Portugal (viagens), 1981 Memorial do convento (romance), 1982 O ano da morte de Ricardo Reis (romance), 1984 A jangada de pedra (romance), 1986 A segunda vida de Francisco de Assis (teatro), 1987 História do cerco de Lisboa (romance), 1989 O evangelho segundo Jesus Cristo (romance), 1991 Moby Dick em Lisboa (crônica), 1996 O conto da ilha desconhecida (conto), 1998 In nomine Dei (teatro), 1993 Cadernos de Lanzarote I (diário), 1994 Cadernos de Lanzarote II (diário), 1995 Ensaio sobre a cegueira (romance), 1995 Cadernos de Lanzarote III (diário), 1996 Cadernos de Lanzarote IV (diário), 1997 Todos os nomes (romance), 1997 Cadernos de Lanzarote V (diário), 1998 Folhas políticas (crônicas), 1999 Discursos de Estocolmo (discurso), 1999 A caverna (romance), 2000 O homem duplicado (romance), 2002 A maior flor do mundo (conto), 2002 Ensaio sobre a lucidez (romance), 2004 Don Giovanni ou o dissoluto absolvido (teatro), 2005 As intermitências da morte (romance), 2005 As pequenas memórias (romance), 2006 A viagem do elefante (romance), 2008 Caim (romance), 2009 O caderno (diário), 2009 O caderno II (diário), 2009 José Saramago nas suas palavras (notas), 2010 O último caderno (diário), 2011 O silêncio da água (conto), 2011 Alabardas! Alabardas! Espingardas! Espingardas! (romance inacabado), 2011

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7faces Caderno-revista de poesia

Edição especial Variações de um mesmo tom: Diálogos sobre a poesia de José Saramago Encarte Um ensaio itinerante para ler José Saramago, paisagens Este encarte foi editado, diagramado e organizado por Pedro Fernandes de Oliveira Neto e composta em Times New Roman 12 e 11, Arial Narrow 11, entrelinhas 1,5pts, para publicação eletrônica pelo Selo Letras in.verso e re.verso.

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Redação da 7faces

revistasetefaces@ymail.com Encarte – Um ensaio itinerante para ler José Saramago, paisagens pedro.letras@yahoo.com.br


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Não foi de heterônimos como Pessoa, que foi único em cada um dos vários, mas disse ser a soma de todas as suas personagens. Não alçou a qualidade de Super­Camões, como Pessoa ao encontrar Portugal para encontrar a língua, Mensagem, mas sucede e ladeia Camões, e sucede e ladeia Pessoa, como escritor, que se sentiu responsável pela sua língua, por pensar o destino do povo Português, lançando jangada de pedra ao mar, assumindo o posto de Ri­ cardo Reis, a vagar por Portugal, a procurar quê de povo, a encontrar quê de gente, ao enxergar todos cegos, e en­ tregar a uma mulher, a mulher do médico, olhos para vê o que não se via e coragem, coragem de um povo que le­ vantado do chão, cumpre o seu destino de ser filho, e filho, pai, de pai, avô, numa ciranda de povo, que se é conti­ nuidade e se é continuísmo, como foi continuidade e continuísmo de um avô analfabeto e criador de porcos, fiel ao seu ofício a cumprir destino, como certo oleiro que ver recusado pelo centro a matéria de trabalho de suas mãos, mãos que também, ao correr teclas, postaram um não reescrevendo a história da presença moura em Lisboa, pos­ tando imagens, certo de que, se pintura, há o momento em que não comporta mais pinceladas, mas se palavras, podem prolongar­se ao infinito, lição de manual, de pintura, de caligrafia, de viagem que pela geografia dos mitos, das crenças, da geografia, viagem do viajante que passeia aqui e acolá, a ermo, armado de humor, armado de ironia, por temas, e por espaços quando viajante às margens do Douro vê que a mistura das águas e o ir e vir dos peixes não responde a fronteiras, fronteiras que pode haver entre si e si mesmo, quando duplicado, cópia de si mesmo, no tempo que viu todas as reproduções desfazer o insubstituível, e que não calou caderno porque nele expôs pensa­ mentos acerca das pessoas e das coisas pelos anos, observador de Lanzarote, que antes de lá está e por razão de lá ir, contou de Cristo e o Evangelho, e na barca presenciou entre o Deus pai e o Cristo filho a conversa de todos os tempos enquanto Caim viajava tempos por sina e imposição deste mesmo Deus, pois este nome, José, de este tam­ bém outro nome, Saramago, que fez da escrita, da devoção à língua, do senso de ser português, e de ser português, ser Camões, ser Pessoa, ser Portugal, que cumpriu seu destino de achar o mundo em caravelas, procurou levar Por­ tugal a cumprir seu destino pela língua em palavras, fiou ser estes todos os nomes. Gustavo Leite Sobral (texto vencedor do Concurso Uma Página para Saramago)

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