Carlos Drummond de Andrade. Contornos

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A SUPOSTA EXISTÊNCIA Como é o lugar quando ninguém passa por ele? Existem as coisas sem ser vistas? O interior do apartamento desabitado, a pinça esquecida na gaveta, os eucaliptos à noite no caminho três vezes deserto, a formiga sob a terra no domingo, os mortos, um minuto depois de sepultados, nós, sozinhos no quarto sem espelho? Que fazem, que são as coisas não testadas como coisas, minerais não descobertos - e algum dia o serão? Estrela não pensada, palavra rascunhada no papel que nunca ninguém leu? Existe, existe o mundo apenas pelo olhar que o cria e lhe confere espacialidade? Concretitude das coisas: falácia de olho enganador, ouvido falso, mão que brinca de pegar o não


e pegando-o concede-lhe a ilusão de forma e, ilusão maior, a de sentido? Ou tudo vige planturosamente, à revelia de nossa judicial inquirição e esta apenas existe consentida pelos elementos inquiridos? Será tudo talvez hipermercado de possíveis e impossíveis possibilíssimos que geram minha fantasia de consciência enquanto exercito a mentira de passear mas passeado sou pelo passeio, que é o sumo real, a divertir-se com esta bruma-sonho de sentir-me e fruir peripécias de passagem? Eis se delineia espantosa batalha entre o ser inventado e o mundo inventor. Sou ficção rebelada contra a mente universa e tento construir-me de novo a cada instante, a cada cólica, na faina de traçar meu início só meu e distender um arco de vontade para cobrir todo o depósito de circunstantes coisas soberanas.


A guerra sem mercê, indefinida prossegue, feita de negação, armas de dúvida, táticas a se voltarem contra mim, teima interrogante de saber se existe o inimigo, se existimos ou somos todos uma hipótese de luta ao sol do dia curto em que lutamos.





PRESENÇA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE Horácio Costa

E como ficou chato ser moderno. Agora serei eterno ... Eternalidade eternite eternaltivamente eternuávamos eternissíssimo A cada instante se criam novas categorias de eterno. Carlos Drummond de Andrade, “Eterno”, Fazendeiro do ar

O seu legado para literatura brasileira, assim como para a literatura latino-americana em geral, é um dos mais importantes do século. Nascido em Itabira, cidade do interior do Estado de Minas Gerais, filho de uma família de fazendeiros, suas impressões da infância e do universo ainda intacto do campo brasileiro o marcaram para sempre. Poeta da permanência e da problematização da memória desse Brasil já desaparecido, Drummond também é o poeta da transformação profunda e radical que sofreu neste século o indivíduo e a sociedade brasileira. De Carlos Drummond de Andrade se pode dizer que é um dos


poetas que cumpre exemplarmente com duas das mais significativas funções de um “poeta maior” (categoria que, compreensivelmente, ele sempre se recusou aceitar): em primeiro lugar, atento e aberto, adotando uma perspectiva pessoal, identificada com as camadas mais profundas da psicologia do homem brasileiro, soube acompanhar e refletir a saga de uma coletividade absorta e perplexa ante seus próprios rostos vertiginosos, alcançando uma voz poética que se instalou no centro mesmo da palavra coletiva; em segundo lugar, soube fazê-lo graças ao manejo de um arsenal lírico e formal tão variado como inovador, alcançando um nível de excelência no plano geral de sua diversa produção em prosa e em poesia. Sua obra se apresenta como um ponto de união entre os distintos momentos da poesia brasileira moderna e como uma fonte de superação de muitos dos impasses que nela se produziram nesse período. Seu primeiro livro, Alguma poesia, de 1930 – o título introduz certa reticência ambiguamente irônica e modesta, ou ainda orgulhosa e irônica, que se manterá como uma das características fundamentais do estilo de Drummond –, apesar de estabelecer um acordo afinado com a irreverente frescura do primeiro momento do “modernismo” brasileiro (equivalente, em termos semânticos, como já se sabe, ao “modernism” anglo-estadunidense e ao período das “vanguardas” hispânicas), marca um ponto de


inflexão, de acesso à década politicamente polarizada e existencialmente angustiada que seguiu à dos roaring twenties. No antológico, reiterativo e mínimo “No meio do caminho”, poema-símbolo deste momento de transformação, publicado originalmente na Revista de Antropofagia antes de aparecer em Alguma poesia, já se pode encontrar uma intertextualidade dantesca, significativa certamente num poeta tão jovem, que revela sua habilidade para relacionar a dupla herança do “arquivo” da tradição poética ocidental com a dicção coloquial que foi implantada na linguagem da primeira geração modernista (entre outros, por Mario e Oswald de Andrade, a quem Drummond conheceu em plena “campanha” modernista em Minas Gerais em 1924, junto com Tarsila do Amaral e Blaise Cendrars). Nos anos 30, Drummond de Andrade trabalha com o ministro Gustavo Campanema num ambicioso projeto de modernização das artes brasileiras que trouxe para o Rio de Janeiro e São Paulo Le Corbusier, pai espiritual da renovação da arquitetura nacional e que anos depois cristalizará na construção de Brasília. Nesta década prepara dois livros de poesia, Sentimento do mundo e José, livros que abarcam os dois hemisférios temáticos mais importantes do universo drummondiano (a memória patriarcal e a vida do “tempo presente”, onde problematiza o lugar da figura do poeta, que se define ao não aceitar ser “o


poeta de mundo caduco”). A rosa do povo, de 1945, marca o apogeu de seu crescente compromisso político e social. Neste livro, poemas de tom maior, como “Carta a Stalingrado”, atestam a cerrada posição pública de Drummond contra o furacão fascista; outros, todavia, como “Procura da poesia”, revelam ao contrário sua aguda consciência do fenômeno poético como algo essencialmente cristalizado numa dimensão além de toda definição de ordem programática ou estilística, de qualquer das receitas ou modismos: um fenômeno eminentemente linguístico, quando o poeta se coloca, indefeso, ante seus instrumentos de trabalho reduzidos ao grau zero, as palavras que “úmidas e impregnadas de sono, / rolam num rio difícil e se transformam em desprezo”). De fato, o primeiro de “Procura da poesia” – “Não faças versos sobre acontecimentos” – dialoga com a até agora controvertida epígrafe de Paul Valéry – “Les évéments m’ennuient” – que Drummond coloca na entrada de Claro enigma, publicado em 1951. Neste livro, fruto da maturidade plena do poeta, uma respiração distinta, de corte clássico, o leva a recuperar formas até então ausentes de sua obra, como o soneto; também lhe permite desenvolver composições ambiciosas, como o poema “A máquina do mundo”, em que a visão dantesca – ou, talvez camoniana – da ordem cósmica entra em conflito com uma concepção do poeta como seer. A busca do


equilíbrio – que em alguns momentos do livro parece estar identificada com a sensível utilização de formas tradicionais – é perceptível, além disso, em poemas como “A mesa”, em que Drummond alcança um ponto de efusão lírica transparente, manejando heptassílabos que se adequam perfeitamente ao ritmo coloquial do narrado. Em Fazendeiro do ar (1954), Drummond trata com irônico desdém a herança de um modernismo já convertido em categoria histórica e diz preferir ser “eterno”; esta veia autoparódica anuncia o textopalimpsesto que, na produção drummondiana, de Lição de coisas (1962), passando por A falta que ama e Boitempo (1968), até As impurezas do branco (1973), lança vetores em distintas e muitas vezes contraditórias direções textuais. Se, por um lado, observamos a reiteração, ou talvez a repetição de recursos já presentes no primeiro Drummond, por outro, o poeta se abre ao diálogo com os incursões concreto-minimalistas de seus contemporâneos mais jovens, alcançando, por meio da redução e da elipse, uma nova dimensão para o papel da metáfora em sua escrita. Além disso, fiel ao processo de enjambement d’idées que sempre a caracterizou, intensifica a constante indagação metafísica ou ontológica em sua obra: o poema “Paisagem: como se faz” (de As impurezas do branco), as “Canções de alinhavo” (de Corpo, 1984), ou “A suposta existência” (de A paixão


medida, 1980), que aqui publicamos, testemunham bem esse processo. No último período literário da produção drummondiana os polos “lírico” e “antilírico” – entre os que, a partir de sedimentos modernistas, o poeta foi construindo uma oscilante estrutura de relações ao longo de sua carreira – nem sempre se equilibraram. Sem dúvidas, a atividade do prosador Drummond de Andrade – na qual podemos perceber o manejo das contrações e distensões das pulsões poética e prosaica que coincide com o acima mencionado –, menos conhecida que a do poeta, é o lugar de harmonização destas tendências: em Contos de aprendiz (1951), por debaixo da modéstia do título se esconde um já completo mestre da forma narrativa em prosa, de uma prosa que brilha prenhe de poesia, como bem aponta Severo Sarduy em A la sombra del jacarandá. Em Passeios na Ilha, de 1952, Drummond transforma materiais de diversas origens – desde acontecimentos puramente circunstanciais até observações crítico-literárias sobre a literatura passada e presente – num continuum textual em que primam a agudeza do espírito e a criatividade na forma de trabalhar a informação, um continuum que só encontra paralelo na produção em prosa de “poeta-Midas do modernismo brasileiro: o Murilo Mendes de Transístor. O Drummond-cronista (de A bolsa & a vida ou de Os caminhos de João Brandão –,


entre outros), estende o arco do coloquialismo em sua obra. A desaparição de Carlos Drummond de Andrade segue às de Manuel Bandeira (1968), de Cassiano Ricardo (1974) e Murilo Mendes (1975). Com ele, a literatura brasileira perde o último grande nome diretamente vinculado ao primeiro modernismo. Em sua obra a morte e o morrer conformam um núcleo importante que recorre constantemente, em íntima relação com o tema-chave da memória. Já numa das partes constitutivas de Claro enigma, “Os lábios cerrados”, o poeta sistematizava a exploração – ou a propiciação – de seu próprio fim; poemas como “Habilitação para a noite”, de Fazendeiro do ar ou “Vida depois da vida”, de As impurezas do branco, são exemplos de amplitude desse sistema. O verso final de “A vida passada a limpo”, do livro homônimo (1960) – soneto que descreve um momento epifânico (“todo branco, no tempo”), no qual o poeta “aceita” a natureza ao claro da lua, transformado em “lagoa iluminada” – nos mostra como Drummond se dispôs resolver a antinomia que separa morte e vida introduzindo um poderoso terceiro termo, ao dizer que “essa alvura de morte lembra amor”). No poema “Declaração em juízo”, de As impurezas do branco, em resposta às críticas que, justa ou injustamente, lhe faziam em relação ao



desvanecimento de sua voz poética, e consciente de que havia se tornado o último representante de sua excepcional geração, um Drummond equidistante da modéstia e da ironia pediu desculpas “por ser o sobrevivente”. Para os desejosos de encontrar uma data simbólica para tudo, para os apóstolos de um pós-modernismo imaginado segundo suas necessidades, sua morte encerra o ciclo do modernismo no Brasil; para os forjadores de frases de efeito, amantes da retórica vazia que, como as minhocas, sabem como reproduzir sua própria cola depois de vê-la extirpada (pela tesoura dos modernos), toda a literatura moderna brasileira corre o risco de tornar-se “o século de Carlos Drummond de Andrade”. Aqueles e estes evitam frontalmente a questão de examinar a contribuição de Drummond para a literatura brasileira e latino-americana. Em termos literários, Drummond compartilha com Fernando Pessoa e Guimarães Rosa – para mencionar apenas dois dos nomes paradigmáticos – um lugar central na história moderna da língua portuguesa. Aos olhos de seus leitores, a alta qualidade de sua presença como poeta no cenário das letras nacionais se viu reforçado pela firmeza de sua posição moral, que o fez renunciar, depois de haver sido vítima da censura, ao posto de codiretor do jornal Tribuna popular, órgão oficial do Partido Comunista do brasil, cargo que Drummond, que nunca foi membro do


partido, ocupou por três meses em 1945, durante o período de transição que seguiu à Ditadura Vargas; Drummond se manteve fiel a si mesmo quando trinta anos depois, em 1975, por motivos de consciência”, se negou a receber o Prêmio Nacional “Brasília”, conferido por mãos militares. Inclusive por essas razoes, além das exclusivamente literárias, a Drummond enquadra muito bem os epítetos de “clássico moderno” e de “mestre de coisas”, como designam José Guilherme Merquior e Haroldo de Campos. Em “Poema de sete faces”, que abre o livro Alguma poesia, Drummond esboçou um sintético autorretrato prospectivo ao dizer que “um anjo torto / desses que vivem na sombra” o havia mando ser “gauche na vida”. Embora tenha se convertido numa figura maior do universo intelectual brasileiro, o poeta jamais mudou seus hábitos gregários e manteve uma teimosa luta por seu anonimato, a qual, na medida que aumentava sua popularidade, se fazia cada vez mais inoperante. Sua guacherie mesma, definitivamente associada à sua personalidade pública, se converteu com o tempo no “selo” do poeta para seus leitores. Drummond viveu sensivelmente, viajou pouco, sua “aldeia” era o bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro. Amava as manhãs e caminhar. Antes de


morrer, pediu aos que estavam próximos que o levassem para próximo de si um rádio, e escutou, pela última vez, a sinfonia “O milagre”, de Haydn.


IMAGENS Capa: Carlos Drummond de Andrade na Avenida Atlântica, Copacabana, Rio de Janeiro. Foto: Rogério Reis, 1982. Internas: Poema “Os materiais da vida”, de Carlos Drummond de Andrade, publicado em O Estado de S. Paulo, São Paulo, 10/10/1959. Arquivo Decio de Almeida Prado/ Acervo IMS • O poeta Carlos Drummond de Andrade. Fotógrafo não identificado. TEXTOS “A suposta existência”, de Carlos Drummond de Andrade, do livro A paixão medida (1980) • “Presença de Carlos Drummond de Andrade” este texto é uma tradução de “Presencia de Carlos Drummond de Andrade”, editado em La vuelta de los días, março de 1988.




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