Aqueles anos felizes (Ricardo Piglia)

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AQUELES

ANOS FELIZES RI CARDO PIGLIA


Capa: Ricardo Piglia, 2000. Foto: Daniel Mordzinski Interior: manuscrito de diários de Ricardo Piglia Texto: publicado em Babelia. Tradução: Pedro Fernandes de Oliveira Neto.



Tenho, por causa de minha deformação como historiador, uma sensibilidade especial para as datas e a progressão ordenada do tempo. A grande incógnita, a pergunta que me acompanha estas semanas dedicadas a transcrever meus cadernos, a ditar meus diários e passálos, como se diz, a limpo, foi ver em que momento a vida pessoal se cruzou ou foi interceptada pela política, por exemplo, nestes sete anos a que estou dedicado agora, exclusivamente interessado em saber como eu havia vivido, entre 1968 e 1975, minha pobre vida de jovem aspirante a, digamos, escritor [...]. E agora, ao ler os diários desses sete anos, a pergunta que me surge, quase como uma ideia fixa que não deixa pensar noutra coisa, é, o que é pessoal, e o que é histórico na vida de um indivíduo qualquer.

* Do prefácio para Os diários de Emilio Renzi. Os anos felizes. (Trad. Livre para Los diários de Emilio Renzi. Los años felices. Barcelona: Anagrama, 2016)


Domingo 3 [de março] Poucos contatos, inclusive com a irrealidade (nestes dias). [...] “Porque pode atuar, atua. E o que não pode e sofre profundamente por não poder atuar, se escreve”. William Faulkner. Segunda-feira 25 [de março] Nasci em 24 de novembro de 1941 e procurei nos jornais as notícias desse dia. Procurei na Biblioteca Nacional tudo o que pude encontrar. A guerra ocupava todo o espaço informativo. Eram seis da manhã e, segundo meu pai, estava chovendo. Quinta-feira [19 de setembro] Relendo o diário de Pavese recupero a velha mania de autoconstrução da vida (como obra de arte) com seus ofícios (de viver, de escrever, de pensar), com suas técnicas e suas regras. [...] Penso que o melhor que escrevi nestes cadernos resulta da espontaneidade e do improviso (no sentido musical), nunca sei sobre o que vou escrever e às vezes essa incerteza se converte em estilo.


Domingo 5 [de janeiro] Tampouco gosto dos estilos afetados que circulam na narrativa de minha geração: todos escrevem com a voz de outro (sobretudo com a de Borges, Onetti e Cortázar); do meu lado, apesar de tudo, uma voz própria que não será necessariamente a minha, isto é, a que uso na vida. Escrever com a sinceridade de um sujeito que não conheço e que só aparece – ou se revela – quando escrevo. Chamo-o de H., como se diz agora habitualmente em Buenos Aires quando alguém não pode ser preciso sobre um tema. Quinta-feira 16 [de janeiro] Ontem à tarde veio Manuel Puig, irritado, confuso, buscando “como” cair bem e submeter seus livros a essa prova impossível de constatar. Sempre haverá alguém que não gostará do que ele escreve e isso lhe é uma obsessão. [...] Conta-me do plano de Jorge Álvarez de lançar Boquitas pintadas como um folhetim e seu interesse de escrever um romance policial sobre o mundo da arte e da crítica cultural, aos quais vê como assassinos que matam o artista sensível e a contracultura. Mais tarde me encontro com Héctor Schmucler, recém-chegado da França, com interesse de levar adiante uma revista (como: La Quinzaine); está deslumbrado por Cortázar, a quem visitou com frequência em Paris, e fascinado pelas novidades que circulam, basicamente a onda do estruturalismo (onda Barthes + a revista Tel Quel). “Só se perde o que realmente não se teve”, Borges. Usarei esta citação como epígrafe de meu próximo livro.


Sexta-feira [28 de março] O melhor é minha conversa com [Rodolfo] Walsh sobre Borges e meu posterior e inesperado encontro com o mesmo Borges ao descer do ônibus próximo de Retiro. Vejo-o passar e o chamo, ele para um momento e sorri para mim.


Quarta-feira 13 [de maio] Como sempre, me refugio nos livros, me livro dos problemas (este mês, o aluguel, o futuro econômico) e entro nos recintos fechados onde experimento os modos de minha própria loucura: ler das cinco da tarde até às duas da manhã, depois das oito da manhã até às duas da tarde, o mesmo livro impossível – o Finnegans Wake –, que retorno às cinco da tarde para seguir até às dez da noite com interrupções irritantes como respirar, tomar ar, mudar de posição, de tal maneira que havendo lido trinta páginas em dois dias, compreendendo uma média de trinta linhas por hora, há um momento em que tenho que sair para rua, percorrer livrarias, buscando outro volume por trás do qual possa esconder-me para matar a preguiça ou a perda de esperança. [...] Respiração artificial. Um romance de puro presente, porque esse é meu tempo natural e esse é o tempo deste diário, não recordar, não pensar, deixar vir o futuro. Essa é a lógica deste caderno onde anoto em função do momento presente sem narração. [...] Como antes com os contos e antes com os livros que havia lido, e antes com os músicos de jazz, e antes com os jogadores de futebol, e antes com as séries de historietas, faço listas. Listas de compras, listas de coisas por fazer, listas de amigos a quem devo visitar, listas de amigas a quem recorrer, listas de cidades que não conheço, listas de capítulos do romance que vou escrever. As listas sempre me tranquilizam, como se ao anotá-las me esquecesse do mundo e, em alguns casos, como se anotar fosse já fazer o que imagino ou prometo, satisfeito então, como se o romance de capítulos anotados já estivesse escrito.


Segunda-feira 29 [de junho] Morreu o Marechal (sexta-feira?), conseguiu terminar seu romance. Segundo David [Viñas], não havia nada. E quando eu morrer? Segunda-feira [3 de agosto] A leitura dos cadernos de cultura deixa ver uma coerência, esquemática, preparada para o consumo da cultura. Também eles sintetizam em três ou quatro itens os nomes do que chamam o “presente”, o atual, o que surge em meio à fugacidade da circulação cultural. Segunda-feira [31 de agosto] Eu escrevo estes cadernos porque confio que alguma vez terá sentido datilografá-los e publicá-los, porque terei justificado com minha obra a leitura destes apontamentos diários e pessoais. 7h30. Levanto-me. 8h. Em La Paz leio os jornais e escrevo neste caderno 9h. Trabalho no romance 14h. Almoço 16h. [Editora] Tiempo Contemporáneo. [A revista] Los libros. Lua, trabalhos 20h. Volto para casa, leituras diversas 23h. Janto em Claudio 24h. Vou dormir.


Segunda-feira[17 de janeiro] Tudo se desencadeia de imediato. Na sexta-feira, operação rastreio do Exército no edifício. Não entram em meu departamento. “Buscam um casal jovem” no quarto ou quinto andar. Uma semana depois, sextafeira, 14, aparecem seis tipos da Coordenação Federal, metralhadora em mãos, na entrada, acordam o porteiro, perguntam por mim e por um tal Bordaberry; inteirado disto começa o caos, pego todos os papéis, o departamento em desordem, faço três viagens, retiro algo de roupa, o romance, a máquina de escrever, os cadernos, deixo tudo na casa de Tristana, a amiga de Julia. Tenho que me mudar, a biblioteca, a roupa, os moveis. Mudo bagagens, tratando de não olhar os livros que abandono. Junto roupa, papéis, saio e entro várias vezes, procuro um táxi, tranquilo diante dos fatos consumados. Depois da night, a casa de Tristana, as conversas. Terça-feira 18 [de janeiro] Vejo os advogados, versões opostas sobre o futuro (mudar-me ou voltar?), as duas coincidem em que é preferível desaparecer até o fim do mês. Volto a trabalhar nos bares como quando recém cheguei à cidade. Desoladora minha biblioteca, por não poder seguir com meu romance. Quarta-feira 9 [de fevereiro] Julia começou também a separar-se de mim. Sustenta-se como pode em meio deste caos absurdo.


Quinta-feira 10 [de fevereiro] Bem, ontem à noite, enfim com Julia. Encontro com ela em Galerna, caminhamos até El Toboso, jantamos e nos despedimos como se não nos conhecêssemos. Ninguém esteve nunca tão só como o apaixonado que se despede para sempre da mulher com que viveu cinco anos.


Segunda-feira [1 de julho] Comecemos com a morte de Perón. E depois das versões, os relatos, as melhorias. Essa melancolia enquanto agonizava, ao menos enquanto nascia o relato de sua morte, do que me mantive alheio até depois das quatro da tarde, quando saí de casa e comecei a inquietar-me pelas filas em frente aos comércios (pensei: “Tenho azeite”, pensei: “Vem as filas, como no Chile”), pela livraria Galerna fechada. No bar me inteiro da morte do Rei Lear: assombro geral por meu desconhecimento da notícia que havia comovido todo o mundo. “Onde você estava?”, etecetera. Para piorar, sei por Saúl Sosnowsky, um despolitizado que vive nos Estados Unidos e a quem vejo para entregar-lhe um capítulo do meu ensaio sobre [Roberto] Arlt para sua revista Hispamérica. A cidade parada. Gente amontoada no Congresso, ao anoitecer, esperando para começar a fila e ver o morto. Visito David [Viñas], furioso pelo telegrama do PCR [siglas do Partido Comunista Revolucionário] com as condolências a Isabelita [Perón].


Quinta-feira 18 [de dezembro] Na reportagem n’El cronista, falei pela primeira vez neste jornal em público, digamos assim. Agora que o dei a conhecer, seria bom que começasse enfim a escrevê-lo melhor. Saio para comprar algo para comer; no mercado, clima de euforia. Levantou-se a Aeronáutica, o golpe militar está em marcha. Sensação de velhas catástrofes, primeiro pensamento. “Mudo-me para viver em Paris”. Sexta-feira 19 [de dezembro] A crise se estabiliza. Os aviadores tornam públicos seus programas fascistas. Videla mantém o Exército como árbitro da situação. Sentado no bar de Corrientes quase Rodríguez Peña, leio minhas próprias palavras, meu artigo sobre Brecht reproduzido na Colômbia. Dou um tempo para voltar para casa.





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