Czesław Miłosz

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CZESŁAW

MIŁOSZ



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MIŁOSZ





poemas



NÃO MAIS Preciso contar um dia como mudei Minha opinião sobre a poesia e por que Me considero hoje um dos muitos Mercadores e artesãos do Império do Japão Compondo versos sobre a floração da cerejeira, Sobre crisântemos e a lua cheia. Se eu pudesse descrever as cortesãs De Veneza, como incitam com uma vareta o [pavão no pátio E desfolhar do tecido sedoso, da cinta nacarina Os seios pesados, a marca Avermelhada no ventre onde o vestido se [abotoa, Ao menos assim como as viu o dono das [galeotas Arribadas àquela manhã carregando ouro; E se ao mesmo tempo pudesse encerrar seus [pobres ossos No cemitério, onde o mar oleoso lambe [o portão, Em palavras mais duráveis que o derradeiro [pente Que entre carcomas sob a lápide, só, espera [pela luz Não duvidaria. Da resistência da matéria O que se retém? Nada, quando muito o belo. Então devem nos bastar as flores da cerejeira E os crisântemos e a lua cheia. Montgeron, 1957


JANELA Olhei pela janela ao raiar do dia e vi uma jovem macieira, diáfana em meio à luz. Quando olhei de novo ao raiar do dia lá estava uma grande macieira, carregada de fruto. Passaram-se decerto muitos anos, mas não me lembro de nada do que aconteceu neste sonho. Berkeley, 1965

MIŁOSZ, Czesław. “Não mais”, “Janela”. In: SOUZA, Marcelo Paiva e Siewierski, Henryk (Orgs.). Não mais. Brasília: Editora UNB, 2003.


PARÁBOLA SOBRE A PAPOULA Fica a casinha no grão de papoula, para a lua de papoula latem os cachorros e nunca pensaram os cães de papoula que há um mundo maior trás os morros. A Terra não é mais que um grãozinho, outros grãozinhos – planetas e astros, e nem que fossem quase um milhãozinho, em cada cabe uma casinha com horto. E tudo está na cabeça de papoula, que no jardim com os passos balança e, vindo a noite, quando a lua rola ladram os cães, ora alto, ora manso


UM POBRE CRISTÃO OLHA PARA O GUETO As abelhas circundam o fígado vermelho As formigas circundam o osso negro Começa o rasgar, o pisotear das sedas, Começa o quebrar de vidro, madeira, cobre, níquel, prata, espumas De gesso, latão, cordas, trombetas, pencas, esferas, cristais – Crac! O fogo fosfórico das paredes amarelas Devora o pelo humano e animal. As abelhas circundam os favos dos pulmões As formigas circundam o osso branco, Rasga-se papel, borracha, pano, pele, linho Fibras, tecidos, celulose, cabelo, escama de serpente, fios Desaba no fogo o telhado, a parede e a brasa toma o fundamento Só existe a arenosa, pisoteada, com apenas uma árvore sem folhas, Terra Lentamente, cavando o túnel, move-se o guardião– toupeira Com uma pequena lanterna vermelha presa na testa. Toca os corpos sepultados, conta, desbrava o caminho adiante, Diferencia as cinzas humanas pelo halo iridescente, As cinzas de cada ser humano pela cor diferente do arco-íris. As abelhas circundam o rastro vermelho, As formigas circundam o lugar que foi do meu corpo. Temo, sim, temo muito o guardião – toupeira. Sua pálpebra túrgida como a de um patriarca, Que se sentava amiúde ao brilho das velas Lendo o grande livro da espécie.


O que lhe direi, eu, o Judeu do Novo Testamento Que espera há dois mil anos o retorno de Cristo? Talvez o corpo dilacerado me entregue à sua mirada E ele me contará entre os ajudantes da morte: Os Incircuncidados.

Tradução Piotr Kilanowski.


É CLARO É claro que não dizia o que realmente pensava, pois os mortais merecem respeito e os segredos da nossa miséria carnal não podem revelar-se na fala nem na escrita. Aos vacilantes, fracos e inseguros foi dada uma tarefa: erguerem-se dois centímetros acima da sua cabeça e dizerem a quem desespera: «eu também chorava assim a minha sina».

MIŁOSZ, Czesław. “É claro”. In: MIŁOSZ, Czesław, SZYMBORSKA, Wislawa. Alguns gostam de poesia. Tradução Elżbieta Milewska e Sérgio das Neves. Lisboa: Cavalo de Ferro Editores, 2004.


AMOR Amor significa aprenderes a olhar para ti próprio, Da mesma maneira que olhamos para coisas distantes, Para ti és apenas uma coisa entre muitas. E aquele que assim vê, cura o seu coração, Sem o saber, de vários males – Um pássaro e uma árvore dizem-lhe: Amigo. Depois ele quer usar-se e às coisas, De modo que permaneçam no brilho da maturidade. Não importa se ele sabe o que serve: Aquele que serve melhor nem sempre compreende.

MIŁOSZ, Czesław. “Amor”, In: BRAGA, Jorge de Sousa. Qual é a minha ou a tua língua? – Cem poemas de amor em outras línguas. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003.



fotos


Os arquivos aqui reproduzidos s達o do arquivo da Beinecke Rare Book and Manuscript Library da Yale University.


Com o irm達o Andrezj e a m達e Antosia (c.1917)



Com o irm茫o Andrezj e a av贸 Stanislawa Mitoswa (c.1919)



Em Washington, 1947



Em Paris 1951.



Certificado de refugiado (1957)



Em Paris, 1951





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