O cronista do vasto mundo

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o cronista do vasto mundo



o cronista do vasto mundo


“Sempre gostei de ver o sujeito às voltas com o fato, tendo de captá-lo e expô-lo no calor da hora. Transformar o fato em notícia, produzir essa notícia do modo mais objetivo, claro, marcante, só palavras essenciais. Ou interpretá-lo, analisá-lo de um ponto de vista que concilie a posição do jornal com o sentimento comum, construindo um pequeno edifício de razão que ajude o leitor a entender e concluir por si mesmo: não é um jogo intelectual fascinante? E renovado todo dia! Não há pausa. Não há dorzinha pessoal que possa impedi-lo. O fato não espera. Então você adquire o hábito de viver pelo fato, amigado com o fato. Você se sente infeliz se o fato escapou à sua percepção.”

Carlos Drummond de Andrade, Tempo vida poesia


Carlos Drummond de Andrade na praia de Copacabana em setembro de 1972. Acervo CDA/Cosac Naify/Divulgação



o inĂ­cio de tudo


Como comecei a escrever Aí por volta de 1910 não havia rádio nem televisão, e o cinema chegava ao interior do Brasil uma vez por semana, aos domingos. As notícias do mundo vinham pelo jornal, três dias depois de publicadas no Rio de Janeiro. Se chovia a potes, a mala do correio aparecia ensopada, uns sete dias mais tarde. Não dava para ler o papel transformado em mingau. Papai era assinante da "Gazeta de Notícias", e antes de aprender a ler eu me sentia fascinado pelas gravuras coloridas do suplemento de domingo. Tentava decifrar o mistério das letras em redor das figuras, e mamãe me ajudava nisso. Quando fui para a escola pública, já tinha a noção vaga de um universo de palavras que era preciso conquistar. Durante o curso, minhas professoras costumavam passar exercícios de redação. Cada um de nós tinha de escrever uma carta, narrar um passeio, coisas assim. Criei gosto por esse dever, que me permitia aplicar para determinado fim o conhecimento que ia adquirindo do poder de expressão contido nos sinais reunidos em palavras. Daí por diante as experiências foram-se acumulando, sem que eu percebesse que estava descobrindo a literatura. Alguns elogios da professora me animavam a continuar. Ninguém falava em conto ou poesia, mas a semente dessas coisas estava germinando. Meu irmão, estudante na Capital, mandava-me revistas e livros, e me habituei a viver entre eles. Depois, já rapaz, tive a sorte de conhecer outros rapazes que também gostavam de ler e escrever. Então, começou uma fase muito boa de troca de experiências e impressões. Na mesa do café-sentado (pois tomava-se café sentado nos bares, e podia-se conversar horas e horas sem incomodar nem ser incomodado) eu tirava do bolso o que escrevera durante o dia, e meus colegas criticavam. Eles também sacavam seus escritos, e eu tomava parte nos comentários. Tudo com naturalidade e franqueza. Aprendi muito com os amigos, e tenho pena dos jovens de hoje que não desfrutam desse tipo de amizade crítica.

ANDRADE, Carlos Drummond de. “Como comecei a escrever” In:O pequeno livro das grandes emoções. Brasília: UNESCO, 2009.


Como cronista procuro apenas amenizar um pouco o aspecto trรกgico, sinistro, do mundo em que vivemos

Carlos Drummond de Andrade, Jornal do Brasil. Drummond, 80 anos, 26 de outubro de 1982


Onda Uma onda veio, mansamente, espreguiçar-se na praia, numa carícia dolente... Parecia o corpo de uma mulher... Era imensamente triste. Foi rolando sobre a areia, rolando... Perto havia uma árvore onde folhas secas punham olheiras... A onda beijou-a longamente, [num beijo de gaze, de espumas.] Algo me leva a crer que isso seria no verso seguinte e eu copiei errado. Conferir. A árvore, então, derramou duas lágrimas verdes que a onda levou...

O poema “Onda” que depois reproduzido no jornal carioca Correio da manhã, foi a primeira publicação de Carlos Drummond de Andrade no gênero poesia. Foi publicado inicialmente, quando ainda tinha 15 anos no jornal editado pelo irmão, Maio, sob o pseudônimo de WIMPL. A relação com os jornais se amplifica na escola. No Aurora Collegial que era editado pela escola em que Carlos estudava, isto é, o Colégio Anchieta. O texto é uma ode em prosa dedicada ao mês de maio e com homenagem à Virgem Imaculada (foto, página seguinte) e publicado em abril de 1918.

Foto: Reprodução/Divulgação



Viagem a Sabará é o ensaio que Carlos Drummond escreve para O Jornal, em 1929, a pedido do então editor Rodrigo Mello Franco. O texto integrou um especial conduzido pelo jornal cuja ênfase era o estado de Minas Gerais.

“Viagem de Sabará”, texto de Drummond publicado em O Jornal. Rio de Janeiro, 1929. Foto: Lucia Loeb/Coleção Mário de Andrade/Instituto de Estudos Brasileiros-USP




Na tribuna


Quando o jornal serve de inspiração ao poeta. Não foi apenas o lugar por onde Drummond se admirou com o espetáculo da palavra, os jornais também foram o lugar para publicação de poemas e tema para eles (como “Poema do jornal”, de Alguma poesia). Já “Homem livre”, de Boitempo, é outro exemplo estampado disso. O poema é integralmente baseado num anúncio de recompensa colocado por um parente de Drummond, para quem achasse o escravo fugido Atanásio, publicado na edição de O Jequitinhonha de 03/01/1869 (foto da página a seguir)

Poema do jornal

O fato ainda não acabou de acontecer e já a mão nervosa do repórter o transforma em notícia. O marido está matando a mulher. A mulher ensanguentada grita. Ladrões arrombam o cofre. A polícia dissolve o meeting. A pena escreve. Vem da sala de linotipos a doce música mecânica.

ANDRADE, Carlos Drummond de. “Poema do jornal”. In: Alguma poesia. Poesia completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 2006.


O Jequitinhonha, nº. 21, 3 de janeiro de 1869

Do coronel Manoel Monteiro Chafim (ou Chassim) Drumond negociante e morador na cidade da Itabira província de Minas Geraes, desapareceu da cote (sic) ao dia 30 de abril de 1868 um escravo de nome Athanasio, o qual tem os seguintes sinais: idade 35 a 40 anos, crioulo, estatura regular, desdentado, bem barbado no queixo inferior, tem em cada mão sinal de amputação de um dedo, por ter nascido com seis, é oficial de sapateiro, faz lombios, e trabalha de seleiro, cozinha sofrivelmente, tem muito uso de andar com animais e ferra; é bastante prosa e intitula-se livre, costuma mudar o nome, consta que esteve como cozinheiro no Seminário da Diamantina depois de fugido, com o nome de Manoel Ferreira. Quem o prender e trouxer ao dito seu senhor nesta cidade receberá de gratificação a quantia de duzentos mil réis além das despesas feitas com a sua prisão, e se o recolher a alguma cadeia do Império e avisar ao anunciante será também gratificado.

Itabira, 28 de novembro de 1868


Homem livre

Atanásio nasceu com seis dedos em cada mão. Cortaram-lhe os excedentes. Cortassem mais dois, seria o mesmo admirável oficial de sapateiro, exímio seleiro. Lombilho que ele faz, quem mais faria? Tem prática de animais, grande ferreiro. Sendo tanta coisa, nasce escravo, o que não é bom para Atanásio e para ninguém. Então foge do Rio Doce. Vai parar, homem livre, no Seminário de Diamantina, onde é cozinheiro, ótimo sempre, esse Atanásio. Meu parente Manuel Chassim não se conforma. Bota anúncio no Jequitinhonha, explicadinho: Duzentos mil-réis a quem prender crioulo Atanásio. Mas quem vai prender homem de tantas qualidades?

ANDRADE, Carlos Drummond de. “Homem Livre”. In: Boitempo. Poesia completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 2006.

Foto da página anterior: Anúncio da fuga do escravo Atanásio no jornal O Jequitinhonha. Diamantina, 3 de janeiro de 1869 Arquivo Público Mineiro


Nem só de arte se faz um poeta. Drummond também utilizou do jornal para expor sua posição política. E isso dá, por exemplo, na Tribuna Popular, jornal de Luís Carlos Prestes em que o poeta integrou o conselho diretor.

Foto:Editorial do primeiro número do jornal Tribuna Popular. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional




No correio


Em 1954, Drummond começa a escrever para o Correio da Manhã uma coluna intitulada “Imagens do Rio”. Nesse jornal ele permanecerá até 1969, escrevendo três crônicas por semana. É no momento em que o escritor se fixa no gênero crônica, que depois da poesia, constitui parte significativa da obra drummondiana.

Foto: facsímile da primeira crônicas publicada no Correio da Manhã, “A pipa”, de 9 de janeiro de 1954. O texto chama atenção para o problema da falta de água no Rio de Janeiro. Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB



Foto: Jornal do Brasil


No jornal


Leilão do ar Nos últimos tempos, vem acontecendo leilões de navios e leilões de ilhas, não sei se de montanhas. O leiloeiro, diante de um público restrito, mas de alto poder econômico (não há por aí gente em condições de arrematar uma ilha ou um navio inteiro), faz se exatamente como se se tratasse de um aparelho de chá ou de um lote de miudezas. Só que é estranho ver uma ilha leiloada, com suas águas, plantas, bichos, minerais, caminhos, casas e outras benfeitirias. Quem dá mais? Dou-lhe uma, dou-lhe duas... De repente, ao entardecer, a ilha aparece no salão escuro, cercada de dívida; emerge da papelada do espólio, ocupa a rua, caminhamos por ela através dos lances do leilão, de gritos martelados.

Em outubro de 1969, Drummond começa a escrever para o Jornal do Brasil. Aí ficou até três anos antes da sua morte, em 1987. Em 2012, o jornal cumpriu a digitalização do acervo publicado do seu colaborador mais ilustre.

Com o navio sucede a mesma coisa. É um velho barco desmoralizado, mas como viajou! Se tardar um pouco o leilão, êle se reduzirá a sucata. Vai afundando... mas tudo que foi susto ou alegria de navegação vem a tona, e a sala se enche de gíria da marujada, cabeludas histórias de bordo, ventos, tempestades, tatuagens, o diabo sôlto no mar.Mesmo em ruínas, que nobre é o navio, inclusive os cargueiros! Agora o leilão é outro: banal na aparência: pequenos objetos, bôlsa de viagem, cristais, saboneteiras, latas, xícaras, taças de sorvete, poltronas. Muitas poltronas. Muitas poltronas, em que os presentes podem sentar-se, testando-lhes a comodidade. No entanto, êste é também um leilão raro, o primeiro no gênero, de que tenho notícia no país: o de uma empresa de aviação. Na loja da Avenida Graça Aranha, expõem-se os tristes trastes da panair do Brasil. Coisas que escaparam de acidentes aéreos, para vir sofrer o desastre em terra, com o esfacelamento da companhia, que serviu a tanta gente por tantos anos. Eu não ia arrematar nada, mas incorporei-me à multidão de licitantes. Pareceu-me ver um grande avião caído. Com os destroços varejados pelos curiosos. Uns calculavam com frieza o valor dos lotes. Outros olhavam, desinteressados. Algum raro pegava de uma peça. Apalpava-a, mirava-a longamente. Tôdas as poltronas estavam ocupadas. Pelo que dizia um cartaz, elas se adaptavam perfeitamente a um Volks, e serviam para compor um living: estão em moda as poltronas geminadas. Eram tôdas de avião, e só elas davam a ilusão de viagem. Mas a viagem era imóvel, paralítica. Não havia aeromoça para trazer o lanche e gratificar os passageiros com aquele sorriso circular que infunde coragem aos apavorados. Nenhum sinal de tripulação. Não se apertavam cintos, ninguém sentia nada. As coisas amontoadas, etiquetadas, vencidas, falavam do ar, mas num pretérito mais-que-perfeito, e ninguém as ouvia. Objetos acostumados a voar estendiam-se pelo chão, doulhe uma; aguardavam um destino de hotel barato ou de casa pequena burguesa, dou-lhe duas. De tapêtes voadores, as poltronas passavam a uma domesticidade sedentária e pobre: dou-lhe três.


Assim acabava aquilo que foi uma grande empresa nacional, cujo nome sonoro retinia por tôda parte. Os aviões já tinham passado a outros donos; as instalações serviam a outros fins; chegara a vez das poltronas e dos açucareiros, das latas de comida, copos e cobertores, da bugiganga que antes, integrada na máquina voadora, participava de suas propriedades mágicas, pois o avião continua a ser mágico, à medida que a viagem aérea se torna cada vez mais rotineira. E ninguém ali sentia nada de especial diante do corpo derrotado na Panair, de seus intestinos à mostra. Quase todos teriam usado suas linhas, comido seus jantares, lido seus jornais brasileiros em Paris, mas a hora era de liquidação, e não de saudades. E o leilão ficava mais lúgubre, quem dá mais? em meio à indiferença geral, que é marca registrada de leilões. Dou-lhe três. Em dado momento, senti que uma das miniaturas de avião, que iam ser igualmente apregoadas, manifestava sinais de inquietação. Positivamente, queria evadir-se, fugindo à sorte comum. Num esforço de que não revelarei a fórmula, encolhime todo para caber dentro do aparelho e, em silêncio, como fazem os aviões decaídos de sua glória, êle rompeu as paredes do edifício, e alçou vôo sobre o Rio de Janeiro levando-me consigo para onde os aviões se tornam estrêlas inacabáveis, sem remorso dos homens.

Fonte: Jornal do Brasil. Disponível em < http://www.jb.com.br/especialdrummond/noticias/2012/07/01/a-1a-cronica-no-jornal-do-brasil-leilao-do-ar-em-outubro-de1969/> Última consulta 04 de julho de 2012.

No Jornal do Brasil, Carlos Drummond de Andrade ficou 15 anos. Escrevia 3 vezes por semana para o jornal, totalizando uma média de mais de 2.300 textos publicados. Todo esse material é ainda, diferentemente da sua poesia, um território vasto para ser explorado pela crítica.

Foto: facsímile da primeira crônicas publicada no Jornal do Brasil, “Leilão do ar”, de 2 de outubro de 1969. Arquivo Carlos Drummond de Andrade – Jornal do Brasil.


Se eu fosse consultado Se me dessem a honra de ouvir-me sobre as reformas políticas, eu recomendaria uma ideia bem mais revolucionárias do que as da própria Revolução. E muito mais salutar: a eleição integral, em que todos os brasileiros, mas todos, sem exceção das crianças, hoje tão sabidas, escolhessem seus representantes e dirigente, sob a forma de voto mental absoluto, sem papagaiadas formalísticas. Os mandatos teriam a duração exemplar de 24 horas, o que eliminaria angústias e infartos, e poderiam ser, não digo cassados, pois julgo a expressão extremamente antipática, mas revogados, caso no fluir dos minutos o eleitor achasse que fizera má escolha. Em compensação, poderiam ser renovados na manhã seguinte e nas outras manhãs, sempre que o eleitor se mantivesse contente com os mandatários e não quisesse experimentar outros. Desta maneira teríamos a cada sol, ou a cada dia de chuva, governo e representação popular novos, que, se fossem ótimos, poderiam ser confirmados quando o galo cantasse outra vez (o galo ou a serraria do bairro), e, caso não dessem no couro, teriam feito o menor mal possível à mente do seu eleitor. Já sei que impugnariam o meu projeto, apontando-lhe mil inconvenientes, entre os quais o de provocar a anarquia governamental e legislativa, pois não haveria um só presidente, e sim talvez milhões, dada a tendência de muito eleitor a votar em si mesmo, o que se repetiria para a eleição para governadores, senadores, deputados, prefeitos e vereadores. Podendo até darse o caso de um mesmo indivíduo eleger-se simultaneamente para todas essas funções. Como governar, como elaborar leis desta maneira? Bem, eu já previa esta objeção principal, como tantas outras, e afirmo que a explanação da ideia fará com que ela rutile em seu justo e convincente esplendor. Os órgãos políticos assim constituídos não trariam a menor perturbação à vida do país. Pelo contrário, só poderiam ofertar-lhe benefícios, pela soma de boas influências de cada eleito, no ânimo de seu respectivo eleitor. A democracia funcionando dentro de nós, com eficácia, e não supostamente do lado de fora, sujeita a esbarrões e desvios. Nisso consiste a beleza do meu sistema. Eu, por exemplo, me daria o prazer, ou o privilégio, de ser governado em 1° de janeiro por mestre Alceu Amoroso Lima. Para renovação da alegria, meu presidente no dia 2 seria Maria Clara Machado (Que diabo, então mulher inteligente não pode assumir o posto?) Depois seria a vez de César Lates, Vinícius de Moraes, Paulo Duarte, Prudente de Morais, neto, essa folha-demalva que se chama Henriqueta Lisboa, Aliomar Baleeiro, Luis da Camara Cascudo, Fayga Ostrower, Pedro Nava, Francisco Mignone, Enrico Bianco, Eliseth Cardoso, Orígenes Lessa, Fernanda Montenegro ... Tudo gente boa, de respeito. E de imaginação. Estes, e outros assim, os meus presidentes ao longo do ano. Meus vizinhos escolheriam os deles.

No Jornal do Brasil Carlos Drummond acompanhou os diversos momentos da política nacional, como quando é promulgado o AI-5. Antes, já em abril de 1977, quando o governo Geisel edita o chamado “Pacote de Abril” que retirava o direito dos eleitores ao pleito de 1978 e colocava o poder decisório na mão dos senadores biônicos, Drummmond escreveu a crônica “Se eu fosse consultado”.


Ninguém brigando por motivo de ambição. Em santa paz, cada qual seria governado, orientado, instigado pela figura de sua dileção. Por serem de jurisdição limitada ao âmbito das pessoas que os elegessem, não colidiriam entre si tantos presidentes, situados na extensão infinita ( e mínima) de nossas preferências pessoais. Todos nós, eleitores, nos sentiríamos impelidos, na esfera individual, a fazer o melhor possível, sob esse comando abstrato. E vivendo e trabalhando cada um de nós ao influxo de tal regência moral, este seria um país que não precisaria criar calos nos pé e na alma para ir pra frente. Bem, insistirão ainda os opositores: E quem governaria de fato o Brasil, quem faria leis para serem realmente executadas? Ora, pergunta vã. Se na prática tais poderes podem ser concentrados numa só pessoa, minha proposta consiste apenas em estender esta faculdade, no plano ideal, que também conta, a todos os integrantes da comunidade. Sem bulha nem ameaça à segurança nacional, e com plena consciência de todo mundo.

Fonte: Disponível em: http://www.jb.com.br/especial-drummond/noticias/2012/07/02/cronica-no-jornal-do-brasil-em-abril-de-1977-se-eu-fosse-consultado-2/ Último acesso em 06/07/2012.


Escreveu sobre personalidades conhecidas, como Mané Garrincha, na crônica “Mané e o sonho”, publicada no Jornal do Brasil, edição de 22 de janeiro de 1983, três dias após a morte do jogador, ou Clarice Lispector, como na crônica “Visão de Clarice”, publicada no Jornal do Brasil, edição de 10 de dezembro de 1977; sobre Cartola, em 27 de novembro de 1980. Ou ainda de sobre personalidades por conhecer, como é o caso da crônica “Cora Coralina, do Goiás”, que apresentou e projetou o nome da poeta para o Brasil.


A necessidade brasileira de esquecer os problemas agudos do país, difíceis de encarar, ou pelo menos de suavizá-los com uma cota de despreocupação e alegria, fez com que o futebol se tornasse a felicidade do povo. Pobres e ricos param de pensar para se encantar com ele. E os grandes jogadores convertem-se numa espécie de irmãos da gente, que detestamos ou amamos na medida em que nos frustram ou nos proporcionam o prazer de um espetáculo de 90 minutos, prolongado indefinidamente nas conversas e mesmo na solidão da lembrança. Mané Garrincha foi um desses ídolos providenciais com que o acaso veio ao encontro das massas populares e até dos figurões responsáveis periódicos pela sorte do Brasil, ofertandolhes o jogador que contrariava todos os princípios sacramentais do jogo, e que no entanto alcançava os mais deliciosos resultados. Não seria mesmo uma indicação de que o país, despreparado para o destino glorioso que ambicionamos, também conseguiria vencer suas limitações e deficiências e chegar ao ponto de grandeza que nos daria individualmente o maior orgulho, pela extinção de antigos complexos nacionais? Interrogação que certamente não aflorava ao nível da consciência, mas que podia muito bem instalar-se no subterrâneo do espírito de cada patrício inquieto e insatisfeito consigo mesmo, e mais ainda com o geral da vida. Garrincha, em sua irresponsabilidade amável, poderia, quem sabe?, fornecer-nos a chave de um segredo de que era possuidor e que ele mesmo não decifrava, inocente que era da origem do poder mágico de seus músculos e pés. Divertido, espontâneo, inconseqüente, com uma inocência que não excluía espertezas instintivas de Macunaíma – nenhum modelo seria mais adequado do que esse, para seduzir um povo que, olhando em redor, não encontrava os sérios heróis, os santos miraculosos de que necessita no dia-a-dia. A identificação da sociedade com ele fazia-se naturalmente. Garrincha não pedia nada a seus admiradores; não lhes exigia sacrifícios ou esforços mentais para admirá-lo e segui-lo, pois de resto não queria que ninguém o seguisse. Carregava nas costas um peso alegre, dispensando-nos de fazer o mesmo. Sua ambição ou projeto de vida (se é que, em matéria de Garrincha, se pode falar em projeto) consistia no papo de botequim, nos prazeres da cama, de que resultasse o prazer de novos filhos, no descompromisso, afinal, com os valores burgueses da vida. Não sou dos que acusam dirigentes do esporte, clubes, autoridades civis e torcedores em geral, de ingratidão para com Garrincha. Na própria essência do futebol profissional se instalam a ingratidão e a injustiça. O jogador só vale enquanto joga, e se jogar o fino. Não lhe perdoam a hora sem inspiração, a traiçoeira indecisão de um segundo, a influência de problemas pessoais sobre o comportamento na partida. É pago para deslumbrar a arquibancada e a cadeira importante, para nos desanuviar a alma, para nos consolar dos nossos malogros, para encobrir as amarguras da Nação. Ele julga que entrou em campo a fim de defender o seu sustento, mas seu negócio principal será defender milhões de angustiados presentes e ausentes contra seus fantasmas particulares ou coletivos. Garrincha foi um entre muitos desses infelizes, dos quais só se salva um ou outro predestinado, de estrela na testa, como Pelé.


A simpatia nacional envolveu Mané em todos os lances de sua vida, por mais desajustada que fosse, e isso já é alguma coisa que nos livra de ter remorso pelo seu final triste. A criança grande que ele não deixou de ser foi vitimada pelo germe de autodestruição que trazia consigo: faltavam-lhe defesas psicológicas que acudissem ao apelo de amigos e fãs. Garrincha, o encantador, era folha ao vento. Resta a maravilhosa lembrança de suas incríveis habilidades, que farão sempre sorrir a quem as recordar. Basta ver um filme dos jogos que ele disputou: sente-se logo como o corpo humano pode ser instrumento das mais graciosas criações no espaço, rápidas como o relâmpago e duradouras na memória. Quem viu Garrincha atuar não pode levar a sério teorias científicas que prevêem a parábola inevitável de uma bola e asseguram a vitória – que não acontece. Se há um deus que regula o futebol, esse deus é sobretudo irônico e farsante, e Garrincha foi um de seus delegados incumbidos de zombar de tudo e de todos, nos estádios. Mas como é também um deus cruel, tirou do estonteante Garrincha a faculdade de perceber sua condição de agente divino. Foi um pobre e pequeno mortal que ajudou um país inteiro a sublimar suas tristezas. O pior é que as tristezas voltam, e não há outro Garrincha disponível. Precisa-se de um novo, que nos alimente o sonho.

Carlos Drummond de Andrade. Caricatura de Glen Batoca.


O método de composição das crônicas que Clarice Lispector escrevia para o Jornal do Brasil foi denominado pela própria escritora como “costurar para dentro”; os textos do gênero nasciam de frases soltas que lhe vinham durante todo o dia. Com a mesma técnica, Carlos Drummond de Andrade redigiu a crônica de despedida “Visões de Clarice”. As imagens da página anterior com a crônica “Mané e o sonho” e desta página com a crônica “Visão de Clarice” e das páginas seguintes, “Cora Coralina, de Goiás” e “Cartola, no moinho do mundo” são do Arquivo Carlos Drummond de Andrade – Jornal do Brasil, disponibilizado na internet.



Carlos Drummond de Andrade, 1923. Desenho feito com recortes por Beatriz Sherman. Reprodução/Divulgação


O texto em homenageará Cartola é publicado três dias antes dele morrer e o próprio sambista o lerá no hospital. O texto retoma um olhar sobre a cultura musical negra no Brasil que o próprio Drummond deu início ao escrever a crônica “Ogum, nosso pai” no Minas Gerais em fevereiro de 1932.




Drummond assina capa de edição do Jornal do Brasil. Em Outubro de 1982, o diário publicou um caderno em homenagem aos 80 anos do poeta. Foto: Jornal do Brasil


No dia 29 de setembro de 1984, Drummond escrevia sua última crônica para o Jornal do Brasil, “Ciao”. A despedida não era apenas do jornal onde trabalhou desde 1969, mas da vida de cronista. No Correio da manhã ficara de 1954 até quando vai para o Jornal do Brasil.

Imagem: Arquivo Carlos Drummond de Andrade – Jornal do Brasil.




Foto: Jornal do Brasil






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