Primeira crônica de Gabriel García Márquez

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PUNTO Y APARTE 21 de maio de 1948, página 4, El Universal de Cartagena

Os habitantes da cidade havíamos acostumados à garganta metálica que anunciava o toque de recolher. O relógio da Boca do Poente, empinado outra vez sobre a cidade, com sua limpa, com sua branqueada convalescência, havia perdido sua categoria de coisa familiar, seu inconfundível lugar de animal doméstico. Nas últimas noites já não iam nossos olhares a lhe perguntar pelo regresso apaixonado daquela voz que nos deixou soando no ouvido como um pássaro eterno; ou pela esquina do tempo onde cortamos o fio tenso da aventura, e que tratávamos de impedir, de deter com um gesto último e desesperado aquela marcha lenta, angustiosa, que ia precipitando as horas contra uma fronteira conhecida que era, por sua vez, a fronteira tremenda onde se dobrava nossa liberdade. Diariamente, as doze, ouvíamos rua à fora a clarinada cortante que se adiantava o novo dia como outro grande galo, equivocado e absurdo, que havia perdido a noção de seu tempo. Caía então sobre a cidade amuralhada um silêncio grande, pesado, inexpressivo. Um longo silêncio duro, concreto, que ia penetrando em cada vértebra, em cada osso do organismo humano, consumindo suas células vitais, minando sua levantada anatomia. Tinha sido aquele bom silêncio elemento das coisas menores, descomplicado; esse silêncio natural e espontâneo, carregado de segredos que passeia pelas anônimas varandas. Mas este era diferente. Parecido um pouco com esse silêncio profundo, imperturbável que antecede as grandes catástrofes. Fundidos nele só ouvíamos o ruído rebelde, impotente, de nossa respiração, como se ali fora na baía, estivesse ainda Francis Drake, com seus navios piratas.


A madrugada – em seu sentido poético – é uma hora quase lendária para nossa geração. Havíamos escutado nossas avós falar que nos diziam não sei que coisas fantásticas daquele esquecido pedaço de tempo. Seis horas construídas com uma arquitetura diferente, talhadas na mesma substância das histórias. Falavam-nos da quente névoa que cobria os gerânios, luminosos sob a bancada por onde subia o amor até ao sonho dos rapazes. Diziam-nos que antes, quando a madrugada era verdade, se ouvia no pátio o rumor que deixava o açúcar quando subia às laranjas. E o grilo, o grilo fixo, invariável, que desafinava seus violinos para que coubesse em seu ar a rosa musical da serenata. Nada disso encontramos no desolado patrimônio de nossos mais velhos. Nosso tempo o recebemos desprovidos desses elementos que faziam da vida uma jornada poética. Entregaram-nos um mundo mecânico, artificial, em que a técnica inaugura uma nova política da vida. O toque de recolher é – nesta ordem de coisas – o símbolo de uma decadência. Há uma grande distância histórica entre esta clarinada proibitiva e a voz amável do sereno colono. Este de agora é irmão do que ouviram os ingleses depois do primeiro bombardeio de Londres. Igual ao de Varsóvia. O mesmo que levantou sua trincheira de horror ante os olhos assombrados das crianças alemãs que trocaram seus brinquedos por metralhadoras. Com igual angústia o ouviram todos os ouvidos da Europa; com esta mesma sensação desconcertante de que algo está se derrubando sobre nossas costas. Com este mundo materializado onde os peixes coloridos têm que abrir água aos submarinos, com esta civilização de pólvora e clarins, como se pode pedir que sejamos homens de boa vontade? Desde ontem, milagrosamente, não ouvimos o toque de recolher. Foi suspenso precisamente quando havia se incorporado aos costumes da cidade. Muitos sentiam nostalgia por essa desgrenhada e obrigada serenata. Outros voltarão – voltaremos? – às visitas, recuperaremos nossa agradável disciplina para esperar a madrugada cheirosa à bosque, à terra úmida, que virá como uma nova Bela Adormecida limpa e moderna. Ou talvez, seguros de que já nada nos impedirá ficar acordado até tarde, iremos dormir calmamente – estranhos animais contraditórios – antes que os relógios dobrem a esquina da meia-noite.


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