João Cabral de Melo Neto - Dizeres

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JOテグ CABRAL DE MELO NETO dizeres



Eu me anulo me suicido, percorro longas dist창ncias inalteradas, te evito te executo a cada momento e em cada esquina



JOテグ CABRAL DE MELO NETO dizeres



SAUDAÇÃO A JOÃO CABRAL DE MELO NETO

Alexandre O’Neill.

João Cabral de Melo Neto, Você não se pode imitar, mas incita a ver mais de perto, com mais atenção e vagar, o que está como que em aberto, ainda por vistoriar, o que vive entre pedra e terra e o que é entre muro e cal, o que tem ‘vocação de bagaço’ e o que resiste no osso ou no ‘aço do osso’, mais essencial. Tacteamos matéria pobre com sua mão que nada encobre e ouvimos assoviar versos (sem pássaro) de cobre. De prosaico há-de ser chamado pelos do ‘estilo doutor’, cabeleireiros da palavra, pirotécnicos do estupor, que dão tudo por uma ária de alambicado tenor, que encaixilham a dourado morceaux choisis de orador, mas de prosaico não foi chamado


o nosso Cesário Verde? O lugar-comum se repete aqui ou do outro lado... * Porém adoptemos prosaico num sentido que o bacharel escapará, é matemático. Prosaico mas não aquele que em verso é incapaz de verso por estar sempre a pôr em verso, uma sorte de tradutor para poesia e às vezes até um guia do político amador. Exemplo: Pablo Neruda. Prosaico, mas sem literatura, sem o discursivo, sem a mistura de panfleto, notícia, ladainha. Prosaico: o não enfático, o que não mente a si mesmo, o que não escreve a esmo, o que não quer ser simpático, o que é a pala seco, o que não toma por outro mais fácil trajecto quando está diante do pouco, nem que seja um insecto. Já se deixa ver que prosaico, assim, mal definido, não é uma atitude que se arvore ou um laivo,


uma tinta de virtude: é um modo de ser, mesmo antes do verso, mesmo fora do verso, mesmo sem dizer. Será neste sentido, prosaico Melo Neto, que o poema “O Rio” cita Berceo: “Queiro que compongamos io e tú uma prosa”? Será no mesmo sentido de Pessoa-Alberto Caeiro (outro prosaico, mas desiludido...): “...escrevo a prosa dos meus versos e fico contente”? * Quanto a mim, ainda o bonito me põe nervoso, o meu canito ainda tem plumas – e lindas! – e o meu verso deita-se muito, não sobre a terra, mas em sumaúmas, já com bastante falta de ar... Ó Poeta, não é motivo para não o saudar!

27 de agosto de 1959



4poemas o poeta contabiliza seus versos


NO CENTENÁRIO DE MONDRIAN 1 ou 2 Quando a alma já se dói do muito corpo a corpo com o em-volta confuso, sempre de mais, amorfo,

que então tem de arear ao mais limpo, ao perfil asséptico e preciso do extremo do polir,

se dói do lutar contra o que é inerte e a luta, coisas que lhe resistem e estão vivas, se mudas;

ou senão despolir até o texto da estopa ou até o grão grosseiro da matéria de escolha;

para chegar ao pouco em que umas poucas coisas revelem-se, compactas, recortadas e todas,

pois quando a alma já arde da afta ou da azia que dá a lucidez brasa, a atenção carne-viva,

e chegar entre as poucas à coisa-coisa e ao miolo dessa coisa, onde fica seu esqueleto ou caroço;

quando essa alma já tem por sobre e sob a pele queimaduras do sol que teve incender-sem,

e começa a ter cãibras pelo esforço de dentro de manter esse sol que lhe mantém o incêndio,

então, só esse objecto de que foste capaz apaga as equimoses que a carne da alma traz,

centrada na ideia-fixa de chegar ao que quer para o quê que ela faz seja como quer ser:

e apaga na alma a luz, ácida, do sol de dentro: mostrando-lhe o impossível que é atingir teu extremo.


2 ou 1

Quando a alma se dispersa em todas as mil coisas do enredado e prolixo do mundo à sua volta,

ou quando a alma borracha tem os músculos lassos e é já incapaz de molas para atirar-se ao faço:

ou quando se dissolve nas modorras da música, no invertebrado vago, sem ossos, de água em fuga,

então, só esse objecto de que foste capaz, de que excluíste até o nada, por de mais,

ou quando se empantana num alcalino de mais que adorme o ácido vivo que rói porém que faz,

e onde só conservaste o léxico conciso de teus perfis quadrados a fio, e também fios,


pois que, por bem cortados, ficam cortantes ainda e herdam a agudeza dos fios que os confinam, então, só esse objecto de cores em voz alta, cores em linha recta, despidas, cores brasa, só teu objecto claro, de clara construção, desse construir claro, feito a partir do não, objecto em que ensinaste a moral pela vista, deixando o pulso manso dar mais tensão à vida, só esse objecto pode, com sua explosão fria, incitar a alma murcha, de indiferença ou acídia, e lançar ao fazer a alma de mãos caídas, e ao fazer-se, fazendo coisas que a desafiam.


ŠTiago Manuel. O sertanejo falando


VOZES DE PERNAMBUCO 1. Voz sem saliva da cigarra, do papel seco que se amassa, de quando se dobra o jornal: assim canta o canavial, ao vento que nas folhas de navalha a navalha soa, todo o dia e a noite toda, que folheia e nele se esfola. 2. O coqueiral tem voz outra: não de lâmina, mas redonda, é em curvas sua reza longa, decerto aprendida com as ondas, cujo sotaque é sua mesma fala, mesma dicção aberta e larga, do mar vizinho que o convive na noite alisea do Recife.


©Tiago Manuel. Duelo à pernambucana


PORQUE MATARAM O “CABELEIRA” Quando me prendêro no canaviá cada pé-de-cana era um oficá. (Popular pernambucano) Os canaviais do Engenho Novo se limitavam com os do Poço (Não entendendo o canavial, “Cabeleira” aí cai, afinal). Tudo era Tiúma, a bem varzeada, largo lago de cana clara, a que o Tapacurá aportava a de Taboca, Muribara, Martinica, Cruz, Bela Rosa, Engenho Velho, Califórnia. Um dia, da Chã de Capoeira, onde tinha por fortaleza a mata do Engenho São João, que fazia medo (hoje não) e onde vivia, trás muralhas de sombras (e mal-assombradas), um dia, para ir ao Recife (o que fazer nunca me disse)


desceu da Chã para as várzeas de cana, de sol devassadas, caminhando os canaviais, onde um fantasma é incapaz, onde a rasa planta de cana nem pode esconder um capanga. Mas só atingiu o Engenho Novo, de muita cana e pouco povo, onde nem mesmo o esconderijo da multidão, senão do amigo. Fora da sombra e do sombrio da mata – São João que o vestiu, ei-lo nu, nas várzeas de cana que nem vestem quem as amanha. Caça nua, entre canaviais, foi caçado como as preás, caça humilde, caça menor, quem nem investe o caçador.


o nada que é O canavial tem a extensão que nenhum metro mede, não. Tem o escancarado de mar que está como a desafiar que os números ou seus afins possa prendê-los em seus sins. Ante um canavial a medida é uma ideia logo esquecida, porque embora todo povoado, povoa-o o cheio anonimato que dá esse efeito singular: de um nada prenhe, como o mar.


Na página seguinte um manuscrito de João Cabral de Melo Neto em que o poeta faz uma curiosíssima estatística intitulada Números de versos. Aí poeta contabiliza os versos presentes em cada um de seus livros desde os modestos 295 da Pedra do Sono até os generosos 1.548 de Quaderna, passando pelos 1.233 do famoso Morte e Vida Severina. No total, em 16 livros, João Cabral conta 13.298 versos.




HĂĄ vinte anos nĂŁo digo a palavra que sempre espero de mim. Ficarei indefinidamente contemplando meu retrato eu morto.



Créditos “Saudação a João Cabral de Melo Neto”, poema de Alexandre O’Neill publicado na Revista Colóquio/Letras, n157/158, de julho de 2000. “No centenário de Mondrian”, poema de João Cabral de Melo Neto publicado na Revista Colóquio/Letras, n.7, de maio de 1972. “Vozes de Pernambuco”, poema de João Cabral de Melo Neto publicado na Revista Colóquio/Letras, n 53, de janeiro de 1980. “Porque mataram o ‘Cabeleira’” e “O nada que é”, poemas de João Cabral de Melo Neto publicados na Revista Colóquio/Letras, n.67, de maio de 1982. As ilustrações foram publicadas na Revista Colóquio/Letras, n.67, de maio de 1982. O manuscrito de João Cabral de Melo Neto foi publicado no Blog Questões Manuscritas, de Pedro Corrêa do Lago. A imagem da capa é de Oscar Cabral. E a que fecha o catálogo do Arquivo do Jornal Zero Hora.

Blog Letras in.verso e re.verso <http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/>




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