Da poesia de Saramago: alguns poemas possíveis, muitos desassossegos Ana Clara Magalhães de Medeiros*
Esta proposta relaciona a produção poética de José Saramago, irrompida da condição de desassossego, expressa em duas obras a priori bastante diversas em termos de forma, temário, construção e recepção: Os poemas possíveis (1966) e O ano da morte de Ricardo Reis (1984). Irrefutavelmente, os dois livros separam-se por aspectos já bastante ressalvados pela crítica. O primeiro, escrito ainda nos anos 1960 e em versos (usualmente decassílabos), atrela-se a um autor “comum”, de pendor neoclássico, responsivo às gerações poéticas anteriores (modernistas), mais notável pela continuidade que pela ruptura (como há mais de uma década apontou Fernando J. B. Martinho). O segundo, redigido em prosa verborrágica, já adere ao gênero literário e ao ritmo narrativo desassossegado que consagrou o escritor nos anos 1980 (condecorado com o Nobel em 1998). Não buscamos, aqui, evidenciar como a prosa saramaguiana se revela mais poética ou denota maior maturidade que a sua poesia – como muitas vezes se viu defender. Antes, interessa-nos apontar índices éticoestéticos que são desencadeadores do fazer poético, seja no livro de poemas, seja no texto de 1984. Observando a coincidência de algumas imagens axiológicas nas duas publicações — notadamente: palavra, morte, gesto, muro, sombra e grito —, colocamos em diálogo o eu-lírico de uma obra e o narrador/os personagens da outra, evidenciando marcas de responsividade que legam ao público leitor centelhas poéticas convergentes. Neste jogo, avulta um “estado de desassossego” que se mostra inerente à escrita do autor, capaz de desencadear a poesia possível, esteja ela registrada em versos ou em prosa-poética. Palavras-chave: Saramago. Poesia. Os poemas possíveis. O
ano da morte de Ricardo Reis.
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