Caderno-revista 7faces 11ª edição

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7faces caderno-revista de poesia

Natal – RN, Ano 6. Edição 11. Jan.-Jul. 2015 ISSN 2177 0794






Obra do homenageado Poemas concebidos sem pecado (1937) Face imóvel (1942) Poesias (1947) Compêndio para uso dos pássaros (1960) Gramática expositiva do chão (1966) Matéria de poesia (1970) Arranjos para assobio (1980) Livro de pré-coisas (1985) O guardador de águas (1989) Concerto a céu aberto para solos de ave (1993) O livro das ignorãças (1993) Livro sobre nada (1996) Retrato do artista quando coisa (1998) Ensaios fotográficos (2000) Exercícios de ser criança (2000) O fazedor de amanhecer (2001) Tratado geral das grandezas do ínfimo (2001) Águas (2001) Para encontrar o azul eu uso pássaros (2003) Cantigas para um passarinho à toa (2003) Poemas rupestres (2004) Memórias inventadas I (2005) Memórias inventadas II (2006) Memórias inventadas III (2007) Menino do mato (2010) Escritos em verbal de ave (2011) Portas de Pedro Viana (2013)


7faces caderno-revista de poesia

Natal – RN



Poeta ĂŠ uma pessoa que reverdece nele mesmo Manoel de Barros




© David de las Heras

sumário


Apresentação Manoel polimorfo Por Cesar Kiraly

15

A vanguarda primitiva de Manoel de Barros Por Vicente Franz Cecim

28

LEITURAS DE POESIA: CADERNO 1 Ondjaki

41

Jørge Pereira

47

Izabela Orlandi

51

Juliana Hollanda

57

ENTREMEIO Uma poética do embuste: entre a prosa e poesia Por Maria Heloísa Martins Dias

64

LEITURAS DE POESIA: CADERNO 2 Valter Hugo Mãe

93

Fernanda Fatureto

103

Sebastião Ribeiro

109

Lucas Perito

115

MANOEL DE BARROS, TUDO ISSO SÃO FRAGMENTOS DE TEMPO O poeta visto por Martha Barros • homenagens de Mia Couto, Marcelino Freire, José Eduardo Agualusa, José Castello • papéis avulsos e inéditos da Biblioteca Selvagem de Douglas Diegues

125

LEITURAS DE POESIA: CADERNO 3 Samuel Pimenta

181


Abilio Maiworm-Weiand

191

Mauricio Goldani Lima

199

Sandro Teixeira

203

Ricardo JosĂŠ PĂŠrez Segura

209

Bruna Pianto

217


© David de las Heras

apresentação

MANOEL POLIMORFO

A maturidade nos leva a certo esquecimento de nós mesmos, essa não é a sua virtude. A título de sermos mais sérios, mais responsáveis, precisaríamos deixar coisas para trás. A imaturidade da maturidade é que nesse processo muito mais do que é necessário, ou desejável, é abandonado. Como saber? As expectativas devem ser deixadas, as ideias prontas, a ansiedade, as ilusões etc. Todavia, quase sempre, mesmo que por acidente, é cauterizada a capacidade de ver. Assim, um momento, para lá de feliz, dá-se quando é visto em nós essa capacidade de ver outrora esquecida. Esta é uma ocasião improvável, porque não se pode simplesmente ouvir: – Eu vejo, está aí, eu vejo! Porque quando é assim, as resistências são ativadas e não somos capazes de ouvir. É preciso ser surpreendido. Na verdade, parece que pressupõe uma dupla distração. Como assim? O outro diz sem a intenção de dizer, no momento certo em que se está apto a ouvir. Um presente, uma atitude, algo que dê a evidência de que está lá o esquecido, porque a pessoa certa viu.

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Trata-se, sim, de uma dinâmica perigosa, porque pode ser visto o que, na verdade, já está morto, daí o autoengano nos faria agitar um cadáver. Ninguém é mais disponível a se enganar sobre o que preservamos do que alguém que nos é importante, partindo do princípio de que essa condição é oferecida a quem está há muito tempo na nossa vida. Também pode ser visto, quem sabe, o que lá nunca esteve, é prática comum às pessoas que nos amam, enganaremse a nosso respeito. Donde o resultado é apenas a sensação de tristeza pelo que poderia ter sido, se tudo fosse diferente. Vamos contar: Um, podemos ser lembrados de uma capacidade de ver que está morta. Ou Dois, sê-lo de uma habilidade morta e nos autoenganarmos que está viva. Ainda, Três, de uma potencialidade que nunca tivemos. Pois bem, todo esse risco por apenas um, e, digase de passagem, improvável, desenlace feliz, qual seja, sermos lembrados, sob surpresa, da visão que já tivemos, tendo ela existência, mais ainda, tendo ela vida. Esta difícil confluência, para não dizer impossível, aparentemente, apesar dos pesares, vale o risco. A triste realidade é que não há destino melhor do que buscar alguém que nos faça lembrar que um dia já vimos, mesmo sem qualquer garantia de que, oras, de que um dia vimos. Esta capacidade de ver a qual nos referimos está à disposição de qualquer um, mesmo que nem todo mundo chegue lá. Digamos, apenas a potencialidade de ver é inata, mas ver é uma outra história. Se se queria um destino trágico, ei-lo! Há bastante felicidade e tristeza nisso, distribuídas, sob véu de ignorância, em rigorosa aleatoriedade. É costume se pensar que quando algo é visto em nós, na verdade, é vista a criança que fomos, contudo, não nos parece que seja necessário que o esquecido esteja na infância. Por que não poderíamos ser dotados de um estranho platonismo sem essências? Segundo este se veria em nós o que ainda seremos, que, por isso mesmo, esquecemos, afinal, quem se lembra do que ainda não foi? Mas tudo isso sem destino: olvidamos do que, por pura chance, vamos ser. Esqueceríamos de uma chance que teríamos. Ainda assim, mesmo que guardássemos essa invenção no bolso, seria comum tomarmos a infância como idílica. Não importa quantas sejam as crianças, as que são, são especiais, mas perdem sempre para a que fomos. A suposta especialidade da infância é tamanha que é comum dotá-la de capacidades, como, por exemplo, a de ver melhor as imagens. Isso se

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daria pelo fato da criança tomar a imagem de modo direto, concreto, sem, ou com poucos recursos, que dissipem a densidade da imagem a que se é exposto. A criança veria a imagem de forma ingênua, pura, e isso a permitiria não tergiversar dividindo o peso da imagem com as representações. Assim, o lobo visto numa página de papel é tão terrível quanto um verdadeiro, até muito mais, digamos assim. O porquê disso? É que a criança, supostamente, não faria a distinção entre o lobo como representação e o outro. Daí, com o tempo, seríamos seduzidos pelas figuras de linguagem e nos tornaríamos incapazes de ver as imagens mesmas, entregues que estaríamos às simulações. Nesse contexto, ser visto, então, seria quando alguém notasse em nós esse perscrutador direto das coisas, que, supostamente, realizou-se na infância. Pode ser, todavia, que tal percepção tome a criança de forma idealizada e atrapalhe a perceber quando e como tomamos uma imagem com tudo o que ela tem para dar. Se isso é verdade, não é bem que as crianças sejam mais vulneráveis às imagens, por mais divertidas que elas sejam em seus comentários sobre o que veem, e o olhar agudo seja o infantil, trata-se apenas que elas têm menos elementos para errar. Parece-nos que mesmo na inocência, pode-se ser inexoravelmente cego. A criança não vê mais, ela erra menos. Por essa razão, conforme os elementos se tornam mais complexos, os sentidos figurados acrescidos, ora, no mais das vezes, ela começa a errar. Apenas com a possibilidade de ver o figurado é que começamos a distinguir quem vê de quem não. O erro consiste, uma vez que percebe a diferença entre o concreto e o figurado, tomá-los como pertencentes a gêneros diferentes, e não como duas espécies de um mesmo gênero concreto. Os dois lobos podem ser terríveis, só que de jeitos diferentes. A criança erra menos ao se proteger debaixo da mesa diante da iminência de uma chuva de canivetes, mas também não acerta de todo. Apenas quando o olho se torna mais complexo é que nos é dada a chance de acertar. A chuva de canivetes pode ser um recurso para dar notícia de uma chuva torrencial, todavia também quer dizer a queda de objetos pontiagudos do céu. Assim, um adulto que se escondesse debaixo da mesa para escapar à chuva de canivetes pode até ser que erre, mas erra mesmo quem acha que só pode ser uma chuva muito forte. O acerto mesmo está numa genuína preocupação.


Š David de las Heras


Freud dizia que a criança é um perverso polimorfo. A perversão polimorfa seria uma posição de partida. Uma vez que a cessação de tal característica se daria pela predominância do prazer na região genital. A polimorfia seria o passeio do prazer pelo corpo, ao passo que a perversão, que dela se distancia, é a concentração do prazer alheia à genitalidade. Na criança, salvo pelo desenvolvimento relativamente previsível de tais posições, não se poderia dizer onde está o prazer, ou mesmo que está em uma localidade só. No adulto normal, se sabe que está na genitália, no perverso se sabe que está num lugar só, ainda que não se possa dizer qual é sem alguma investigação. Digamos, então, que o que permite o acerto da criança é essa deambulação perversa, e como ela pouco tem além de perversão, as chances de errar são muito pequenas. A maturidade, por assim dizer, normal, raramente acerta, posto que a genitalidade é tão explícita e tão atrelada ao ato sexual, ou à excreção, que pouca chance oferece às belas figurações concretas, aquelas pelas quais nos envaidecemos, quando somos reconhecidos por sermos capazes de ver. As analogias com falo, fezes e invaginações não são muito problemáticas. A normalidade vê, justamente por ser normalidade, o que não tem problema, logo não há feito nela e ter essa capacidade percebida é incapaz de nos causar orgulho ou felicidade. O perverso, por outro lado, é como um relógio quebrado que acerta as horas duas vezes ao dia, ao se desviar do falo e das invaginações, que, pela obviedade, espantam o sentido, consegue, acidentalmente que seja, ver. Se o normal nunca vê, o perverso vê por acidente. Donde o perverso tem com o que se alegrar, quando algo é visto nele. Mas, tanto não é uma capacidade de ver, posto o caráter acidental, quanto não é algo soterrado, que porventura foi descoberto em funcionamento oscilante, uma vez que o perverso vive por uma estranha estratificação. A chave é a polimorfia. A capacidade de ver não está na imaturidade. E sim na polimorfia. A criança tem pouco para atrapalhar a sua polimorfia, daí acertar muito mais. A maturidade faz com que uma infindável quantidade de entulho nos atrapalhe, donde saber reduzir se torna vital para ver. O entulho é tanto que mesmo apesar da polimorfia, esquecemo-nos que sabíamos ver. Logo, se alguém vê a polimorfia em nós, não há como não se alegrar. O polimorfo que éramos sendo visto, produzindo pretexto para um reencontro com o polimorfo que sempre fomos.


A polimorfia é o princípio de deslocamento que torna a figuração uma espécie da concretude. A perversão é a dinâmica anômala de estratificação. Ou seja, o perverso não é nada sem a polimorfia, porque sem ela existe a indução para que o concreto se concentre nos órgãos sexuais e na figuração. A polimorfia é o que impede essas duas formas de cansaço, o da concentração do sentido na genitália ou em formas que parecem alguma coisa. Isso quer dizer que a polimorfia encontra um par mais resistente no perverso do que na normalidade. Assim, quando a perversão recebe elogios, por ser pela versão, ou por ser pelo verso, sabemos então que ela merece ser admirada pelo movimento que fez, mas deve ser recriminada por soltar a mão da polimorfia. A perversão só parece grande coisa – um mundo onde todos fossem perversos da mesma maneira, o uso da figuração como boicote à concretude apenas seria outro – se tomamos a variabilidade do corpo, todavia o mais que a perversão é a imprevisibilidade. O próprio Manoel, se lido muito rápido, poderia ser tomado como praticante do endosso de uma especialidade não modulada da infância. N’O Guardador de Águas, por exemplo, diz que a polimorfia seria percebida numa linguagem inaugural que os poetas aprenderiam quando retornassem à criança que foram. Seria ingênuo se fosse só isso. Logo depois diz: “Às rãs que foram / Às pedras que foram”*. Reforçando o que dizemos: a questão não é a infância, ela é especial pela falta de entulho, e nem bem a perversão, apesar de seus acertos garantidos, a questão é a metamorfose do corpo, sua transfiguração, sua possível falta de resistência à experiência. É usual no Manoel o recurso às raízes. Elas são tudo e estão por detrás do que há. Logo não são nada e se confundem com as coisas mesmas. A normalidade não contradiz esse esquema. As árvores estão lá paradas e o movimento que podem realizar se dá por baixo, por suas raízes. Donde existe um limite para a caminhada de uma palmeira, a distância com relação ao tronco, uma vez que as raízes seriam as pernas. A perversão da raiz seria inverter a relação de subalternidade com a copa da árvore. Seria fazer a copa surgir debaixo da terra, ou tomar uma árvore vizinha, tornar-se flutuante, algo assim; ou seja, a versão seria ‘dar um passo’. Esse seria um acerto, mesmo que eventual, seria o tempo ajudando aos ponteiros, num pacto com o que neles está quebrado, para significar a intempestividade. Não intendemos nos interromper na perversão, queremos a polimorfia. A raiz, para ser uma força, precisa ser capaz de caminhar. Não estar

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presa por alguma coisa, desde sempre. Ela precisa ser capaz de criar pernas, tal como o peixe se torna salamandra quando faz brotar pulmões, como as sementes que atravessam intestinos de tartarugas para se tornarem as espécies certas. Não seria necessário dar um exemplo, encontrar um ente natural para a polimorfia, mas se ele existe, mal não faz em narrá-lo. A Socratea Exorrhiza é menos perversa do que é polimorfa. Ela é uma palmeira que pode medir até 25 metros de altura e é originária da floresta tropical da América Central até a bacia do rio Amazonas. Ela possui raízes que em polimorfia a permitem trocar de lugar. Socratea porque não distingue pensar e caminhar. Se há sombra, ela procura o sol. Se não gosta de onde está, procura outro lugar melhor. Se algo a derruba, alguma outra árvore sobre ela tomba, ainda que magoada, levanta-se. Se se olha uma floresta repleta de tais palmeiras, há uma marcha em curso, um balançar orgulhoso de cabeleiras, mesmo que não se perceba. A polimorfia é o movimento incessante do aparentemente imóvel

* Os versos estão em BARROS, Manuel de. O guardador de águas. Rio de Janeiro: Record, 1998, p.64. Cesar Kiraly é professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da UFF. Atua como curador da Galeria de Arte do IBEU. Autor de vários livros, dentre eles, Variações: sobre um tema de Anselm Kiefer.

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Manoel de Barros (1916-2014)

Š Marcelo Buainain


© David de las Heras

o homenageado

Manoel de Barros (19 de dezembro de 1916 – 13 de novembro de 2014). Autor de vasta obra poética com títulos fundamentais para a literatura brasileira contemporânea, o autor foi lido, a certa altura, por Carlos Drummond de Andrade como o maior poeta vivo do Brasil. Poucos poetas brasileiros terão alcançado entre os leitores a singularidade que ele alcançou, ainda que seja acusado de permanência no mesmo, sobretudo, na ocasião em que se esperou dele a tomada de outro impulso no seu pequeno universo de miudezas e não tomou. Há na construção de sua obra uma coisa cara aos poetas de hoje e cara para outros nomes de seu tempo. Há poetas que são movidos por uma compulsão desgarrada pela criação, o que não é o caso de Manoel de Barros, homem sempre afeito ao trabalho de maturação e reflexão sobre o verso. Nesse sentido, sua poesia é produto do zelo com a palavra e mantém uma relação com o tempo diferenciada do tempo corrido da contemporaneidade: é a poesia ligada a terra, e, como tantas vezes classificou, atenta para o insignificante, a simplicidade, e outros materiais que o mundo da técnica desprezou de seu horizonte



AUTORRETRATO FALADO Venho de um Cuiabá garimpo e de ruelas entortadas. Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da Marinha, onde nasci Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios. Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar entre pedras e lagartos. Fazer o desprezível ser prezado é coisa que me apraz. Já publiquei 10 livros de poesia; ao publicá-los me sinto como que desonrado e fujo para o Pantanal onde sou abençoada a garças. Me procurei a vida inteira e não me achei – pelo que fui salvo. Descobri que todos os caminhos levam a ignorância. Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de gado. Os bois me recriam. Agora eu sou tão ocaso! Estou na categoria de sofrer do moral, porque só faço coisas inúteis. No meu morrer tem uma dor de árvore. De O livro das ignorãças, a partir de Biblioteca Manoel de Barros p.44-45


O POETA Vão dizer que não existo propriamente dito. Que sou um ente de sílabas. Vão dizer que eu tenho vocação pra ninguém. Meu pai costumava me alertar: Quem acha bonito e pode passar a vida a ouvir o som das palavras Ou é ninguém ou zoró. Eu teria treze anos. De tarde fui olhar a Cordilheira dos Andes que se perdia nos longes da Bolívia E veio uma iluminura em mim. Foi a primeira iluminura. Daí botei meu primeiro verso: Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem. Mostrei a obra pra minha mãe. A mãe falou: Agora você vai ter que assumir as suas irresponsabilidades. Eu assumi: entrei no mundo das imagens. De Ensaios fotográficos, a partir de Biblioteca Manoel de Barros p.43


POEMA A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei. Meu fado é o de não saber quase tudo. Sobre o nada eu tenho profundidades. Não tenho conexões com a realidade. Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro. Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas). Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil. Fiquei emocionado e chorei. Sou fraco para elogios. De Tratado geral das grandezas do ínfimo, a partir de Biblioteca Manoel de Barros, p.19



Por Vicente Franz Cecim


Tem mais presença em mim o que me falta Manoel de Barros

Me meti pelo meio de uma conversa de Manoel de Barros e das coisas que nela ele falou e trago algumas delas muito interessantes para vocês. E para que se veja cintilantemente que um poeta dos raros & reais como Manoel jamais é duas pessoas – uma quando fala & vive e outra quando, em transe, gera seus poemas – ponho nesta página, além do que ele diz, também, alguns dos poemas. Ai, se, depois de tudo, você ainda continuar vendo dois homens, só pode ser porque você tem dois olhos discordantes, que veem cada um só o que querem – porque esse Manoel de Barros é mesmo um só, integralmente. Mas nem por isso é um homem linear, insosso, previsível. Uno, Manoel é daqueles, poucos, que se entrega todo à grande Dança entre criatura & criador que vai do Visível ao Invisível e tudo preenche. Foi justamente sob o signo dessa dança cósmica que coloquei o meu Silencioso como o Paraíso, publicado em 1995, pondo em uma das entradas, ou capa, a frase de Angelus Silesius A divindade agrada o jogo de criar e na outra entrada, ou capa, A criatura é o seu gosto de brincar. E assim o livro ficou com duas entradas mas nenhuma saída. E mais de um leitor já se perdeu dentro dele para sempre – aqueles que me aparecem em sonhos acenando desesperadamente por socorro. Mas isso já seria um outro livro de Andara. E estamos aqui é para falar da travessia de Manoel de Barros. Não se espere nada com começo meio e fim – porque, sempre rumorejante & remoto, Manoel de Barros saltita todo tempo entre a primeira idade e a idade avançada, como um entrevistado em giros numa montanha russa.

De Guimarães Rosa, que conheceu há muitos anos, ele nos revela: – Outra vez me contou: Precisei botar o nosso idioma a meu jeito afim que eu me fosse nele. Botei minhas particularidades. Usei de insolências verbais, sintáticas e semânticas, me encaixei na linguagem. Fiz meu estilo. Eu achava que o escritor havia que estar pregado na existência de sua palavra.

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E você, Manoel? Me perguntou. Respondi: eu andei procurando retirar das palavras suas banalidades. Não gostava de palavra acostumada. E hoje gosto mais de brincar com as palavras do que de pensar com elas. Tenho preguiça de ser sério. Conheci o Rosa na primeira viagem que ele fazia para o Pantanal. Fui ao encontro de um mito. Porque para mim ele era um mito. Porém no instante que o conheci ele se tornou um ser amável e bom de conversa. Conversamos sobre nada e passarinhos. Foi uma conversa instrutiva! Sobre a Infância, declara o quanto lhe deve, fazendo alusão ao filósofo Sócrates e seu célebre só sei que nada sei. Para Manoel o que ele tem a dizer sobre o menino que foi é: - tudo o que aprendera até meus noventa anos era nada; meus conhecimentos eram sensoriais. O que aprendi em livros depois não acrescentou sabedoria, acrescentou informações. O que sei e o que uso para a poesia vem de minhas percepções infantis. A um editor que me sugeriu que escrevesse um livro de memórias eu respondi que só tinha memória infantil. O editor me sugeriu que fizesse memória infantil, da juventude e outra da velhice. Estou escrevendo agora minhas memórias infantis da velhice. De Morte, Manoel diz gostar da ideia de ter duas vidas: uma para ensaiar e outra para representar. Sempre lúdico e irreverente, ele se entusiasma com a possibilidade: – Até proponho uma solução científica. Seja esta: O Tempo só anda de ida. A gente nasceu, cresce, envelhece e morre. Pra não morrer É só amarrar o Tempo no Poste! E respondendo mais: dia que a gente estiver com tédio de viver é só desamarrar o Tempo do Poste. E sobre a Angústia, Manoel? – Para mim, viver nunca foi angustiante. Tirando o nunca até que venho bem até aqui. Sou como o vaqueiro Santiago. Santiago, no galpão desafiou que não cairia de um cavalo famanaz de brabo que havia na fazenda. Todo mundo zombou do Santiago que estaria a contar vantagem. Então arriaram o cavalo Famanaz e Santiago amontou de espora e chicote. O cavalo saiu disparado e a corcovear de lado e pra frente. Ao passar pelo galpão os peões viram escrito à espora na paleta do animal esta frase: Até aqui Santiago veio bem. Pois é: até aqui...

E sobre a Fé, Manoel? Ante o mistério das coisas, como você se situa? – Sou um homem de fé. Me acho incompleto e por isso preciso do mistério. Pra mim a razão é acessório. Preciso acreditar que estou nas mãos de Deus. Sem fé eu me sinto um símio.

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“Aprendi que o artista não vê apenas. Ele tem visões. A visão vem acompanhada de loucuras, de coisinhas à toa, de fantasias, de peraltagens. Eu vejo pouco. Uso mais ter visões. Nas visões vêm as imagens, todas as transfigurações. O poeta humaniza as coisas, o tempo, o vento. As coisas, como estão no mundo, de tanto vê-las nos dão tédio. Temos que arrumar novos comportamentos para as coisas. E a visão nos socorre desse mesmal.” MANOEL DE BARROS Sendo um homem de fé, o que tem a dizer sobre Cristo? – Algum tempo sonhei meu socialismo. Seria baseado nas palavras de Cristo – Amar o próximo como a nós mesmos. Logo enxerguei que o sonho era utópico. Porque o ser humano nasce com ambições diferentes. Ambição de poder. Ambição de dinheiro. Como então amar ao próximo como a ele mesmo? A palavra de Cristo é genial e por isso utópica. A ambição destrói qualquer amor ao próximo. A inveja e o ódio também. E quanto a Deus? – Eu não sou agnóstico. Eu creio em Deus mesmo. E não precisei ler muito para descrer; eu aprendi alguma coisa lendo. Mas onde eu aprendi mais foi na ignorância. A inocência da natureza humana ou vegetal ou mineral me ensinou mais. Quem não conhece a inocência da natureza não se conhece. Não há filosofia nem metafísica nisso. O que sei, na verdade, vem das percepções infantis. Que não deixa de ser o ensino pela ignorância. Manoel de Barros também tem escritos livros decididamente infantis, para serem lidos mesmo por crianças e jovens. Mas nem nessa bifurcação ele se afasta de si mesmo – onde termina o homem de noventa anos e a criança, como saber?


Nele, o mundo adulto se mistura ao mundo infantil, a linguagem é quase a mesma. Enfim, ele, o avô Manoel, convive com Manoel o Neto nos mesmos termos em que se dá o encontro, em Angelus Silesius, entre o criador e o jogo de criar e a criatura e o gosto de brincar. Falando sobre porque alguns acham graça na sua poesia – o que, por nós mesmos, logo veremos mais adiante – o poeta conta: – Aprendi com meu filho de cinco anos que a linguagem das crianças funciona melhor para poesia. Meu filhou falou um dia: – Eu conheço o sabiá pela cor do canto dele. Mas o canto não tem cor! Aí veio Aristóteles e lembrou: É impossível verossímil. Pois não tem disso a poesia? Sobre a relação entre viver & escrever, Manoel vê nisso um percurso que pode muito bem ser rastreado ao longo da história da Literatura. Ele diz: – O poema passou a ser um objeto verbal. Antes ele andava romântico. Recebia inspirações celestes. E até falava em mensagens poéticas. Depois de Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, poesia passou a ser feito de palavras e não de sentimentos. Poesia é fenômeno de linguagem e não de ideias. A gente logo vê que admissão e preservação da dimensão infantil não é, em Manoel, e longe disso, uma simplificação do mundo e da arte – embora o poeta não estabeleça fronteiras rigorosas entre jogar o jogo da criação & brincar o jogo da diversão. O poeta e a criança participam de uma dimensão comum: são videntes, como insistia Rimbaud que o poeta devesse ser. Manoel diz: – Aprendi que o artista não vê apenas. Ele tem visões. A visão vem acompanhada de loucuras, de coisinhas à toa, de fantasias, de peraltagens. Eu vejo pouco. Uso mais ter visões. Nas visões vêm as imagens, todas as transfigurações. O poeta humaniza as coisas, o tempo, o vento. As coisas, como estão no mundo, de tanto vê-las nos dão tédio. Temos que arrumar novos comportamentos para as coisas. E a visão nos socorre desse mesmal. Agora, o que anda fazendo Manoel? Com o tempo amarrado no Poste, ele está escrevendo a sua terceira parte das duas Memórias Inventadas. E que mais, Manoel? Atingindo os seus noventa anos, Manoel, que já morou com índios anda decididamente voltado para o lado primitivo da Via. Ele, no seu aniversário, até anunciou uma nova vertente em seu viver-escrever, que chamou de Vanguarda Primitiva. Onde vejo vê vir à tona os dois temas, ou dimensões básicas, que unificam toda a sua vida, e que me inclusive a chamar de: a Originária Infância Ancestral das Coisas. Nos falta um pouco disso, ó antiquíssimo menino Manoel. – Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens. Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre chegar ao criançamento das palavras. O

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conceito de Vanguarda Primitiva há de ser virtude da minha fascinação pelo primitivo. Essa fascinação me levou a conhecer melhor os índios. Gosto muito também de ler as narrativas dos antropólogos. Em seu Livro sobre nada, Manoel de barros nos fez uma revelação de adulto, esta: – A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos. E no mesmo livro, esta confissão de criança: – O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras.

A tal Vanguarda Primitiva do poeta Manoel de Barros nasceu, segundo ele conta, de uma invenção sua com o jornalista Bosco Martins e veio à tona quando o poeta fez noventa e sete anos em 2013. Manoel mesmo conta como tudo aconteceu: É uma vanguarda, mas é primitiva, que renova. Ler a palavra, a poesia, renova a gente. Se você entrar em contato com os primitivos, eles são nossa origem. Então, o original vem das palavras, do contato que você tem com o primitivismo, que pra mim é sempre fascinante. Inclusive andei e morei por lá, era uma questão só de fascinação. Não tinha intenção de empregar na minha poesia, não percebia o quanto iria ajudar na minha poesia. Depois dessa viagem que eu fiz pela Bolívia, Equador, Peru, que tive um choque cultural e comecei a mergulhar bem nessa questão. Quando fui morar nos Estados Unidos, chego lá e como a conhecer Picasso, escutar Bach, Beethoven, vou conhecer pessoas que eram artistas de verdade. Era jovem ainda, devia ter meus 27, 28 anos e coisa contemporânea e erudita casou um choque entre o erudito e o primitivo dentro de mim. Eu passava a tarde inteira numa igreja do Século XIII, que foi transportada de avião pedra por pedra de uma cidadezinha da Itália e que foi construída perto de um parque. A Itália tinha dinheiro e fazia coisas grandiosas. Dentro da igreja tinha bancos e, o dia inteirinho até às 10 horas da noite, tinha algum padre tocando Bach, Beethoven, alguma coisa da música barroca e eu me empolgava, por que era uma coisa que alimentava muito a minha sensibilidade. Mas a Fonte, a nascente mesmo da coisa que poderia ter vindo à Vida como pedra, pássaro ou estrela, mas veio sob a forma humana que nós e que é Manoel – embora jorrando por essas margens pelas quais ele passou através dos anos enquanto os anos passavam por ele –, foi, é, e continua sendo o Pantanal onde nasceu e vive, essa geografia em que brotou, nosso vizinho, por secreto desígnio, exatamente aqui, quanto poderia ter sido em qualquer outro ponto da imensidão do Universo. – Pantanal é o lugar da minha infância. Recebi as primeiras percepções do mundo no Pantanal. Meu olhar viu primeiro as coisas no Pantanal. Minhas ouças ouviram primeiro os ruídos do mato. Meu olfato sentiu primeiro as emanações do campo. E assim com os outros sentidos.

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O que eu tenho de preciso são as primeiras emanações que Aristóteles chamaria de nossos primeiros conhecimentos. No entanto, no grande devaneio de Natureza vivida & Vivência poética que é a sua vida diária, Manoel sempre se descreveu como um homem de rotinas: Acordo as 5 horas, tomo um copinho de guaraná em pó, caminho 25 minutos, tomo café com leite, subo para o meu escritório de ser inútil. Desço meio-dia, tomo dois uísques, almoço e sesteio. O resto é pra ouvir música. E ver o dia morrer. Mas ninguém se engane: dentro da pedra de rotinas, que faz de conta que é, Manoel de Barros, o pássaro andarilho não cessou de explorar as possibilidades de toda a sua leveza. Ele define assim esse recolhimento em que discretamente Manoel, andarilho, é homem-ave, voa: – Andarilho é um ser que honra o silêncio. Essa é a qualidade de escol. Ele não sabe se chegou. Não sabe pra onde vai. E gosta de rio, de árvore e de passarinho. Andarilho é um ser errático – igual à poesia. Entre a pedra em sossego ouvindo música e a ave dando seu passeio matinal, Manoel refletiu sobre a ação do Tempo sobre o homem e o poeta: – No meu caso, o tempo estragou mais o meu corpo. Não posso mais amar total. Não posso mais correr, dar salto mortal, ver longe, nem ouvir longe. Na minha imaginação criadora o tempo não se meteu. Sobre os outros homens, cada um tem sua carga. A gente envelhece mesmo. Desde os cinco anos eu já era velho, porque uso óculos. Desde os cinco anos descobriram e me levaram ao médico e receitaram óculos. Pra longe. Mas isso nunca atrapalhou a poesia. Pra perto eu tiro os óculos. Eu escrevo sem óculos na minha velha Olivetti. Manoel já declarou sua disposição de humanizar todas as coisas. Como fazer isso, Manoel? – É um dialeto infantil. Eu acho que eu passei a vida inteira brincando, por que todo mundo ri da minha poesia. Riem quando compreendem. Comecei a ler meus versos, são todos assim, quanto à razão, inclusive se você for raciocinar em cima do verso, pra procurar o sentido, num acha a ideia, porque a linguagem apaga a ideia, a metáfora destrói qualquer ideia. As ideias depois se quiserem inventam. Cria uma outra ficção a partir do poema, da frase. É a humanização que eu faço das coisas. A humanização de todas as coisas, do tempo, por exemplo, aquela linguagem que eu fiz nesse livro aí: “manhã de pernas abertas para o sol, e o sol a fecunda”. Quer dizer, é humanização do tempo. A manhã como se fosse uma mulher. Tem um texto aí, que se chama pintura. Eu pinto a lápis a história, uma metáfora. Você repara que meus versos todos são humanização da coisa e ou coisificação do homem. Tem um livro meu que chama Retrato do artista enquanto coisa, esse livro é pensado assim. Lembra o livro do Joyce, Retrato do artista quando jovem, só que eu botei enquanto coisa. Vimos aos poucos, ao encontro de um homem, dos raros, que disse nunca se sentir infeliz: – É a questão do nascimento, da criação. Eu acho que isso influi muito na vida. Eu sempre tive uma vida muito tranquila, porque fui criado no

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Pantanal com minha mãe, meu pai, meus irmãos, sem conflitos, com muito carinho, sem fome, sem notícia de que havia gente passando fome. Tudo isso conta para que minha poesia tenha substância.

No poeta que é, Manoel de Barros é também como que uma lição viva de como se construir, nutrir e se tornar um território humano em paz consigo mesmo – um bom lugar em que ele se vive em si, como que no seu próprio colo – enquanto por fora o mundo tropeça em seus desenganos, rosna ao redor e morte a si mesmo. O segredo é seu permanente retorno à Infância: – Sabe, é aquilo que conversamos. O meu conhecimento vem da infância. É a percepção do ser quando nasce. O primeiro olhar, o primeiro gesto, o primeiro tocar, o cheiro, enfim. Todo esse primeiro conhecimento é o mais importante do ser humano. Pois é o que vem pelos sentidos. Então, esse conhecimento que vem da infância é exatamente aquele que ainda não perdi. Porque os outros sentidos fomos adquirindo porque era quase uma obrigação. Era como um calço. Porque tem os repentistas que são analfabetos e sabem fazer uma obra de arte, mesmo que não estudaram? Não é verdade? Fazem a poesia deles sem nenhuma preocupação estética. Todos têm que ler Homero? Poesias têm que ter palavras, uma feira de ideias.

“Poeta é uma pessoa que luta com palavras. Se eu pudesse reinventaria outro sinônimo para Poeta. Poeta seria o mesmo que parvo. É um sujeito que em vez de mexer com borboletas, pedras, caracóis, mexeria com as coisas úteis” MANOEL DE BARROS

Falando em palavras, Manoel de Barros cita: – Carlos Drummond de Andrade escreveu que lutar com palavras é uma luta vã. E em seguida, Manoel desce pelo tema como quem escorrega por uma ladeira: – Poeta é uma pessoa que luta com palavras. Se eu pudesse reinventaria outro sinônimo para Poeta.


Poeta seria o mesmo que parvo. É um sujeito que em vez de mexer com borboletas, pedras, caracóis, mexeria com as coisas úteis. E quando tem que aplicar a si mesmo as palavras, acrescentando cores e fatos para fazer um autorretrato, responde: – Palavra, parvos, cores: o azul; fatos: passei a vida tentando escrever em língua de brincar. Minhas palavras são de meu tamanho; eu sou miúdo e tenho o olhar pra baixo. Vejo melhor o cisco. Minhas palavras aprenderam a gostar do cisco, isto é, da palavra cisco. E das coisas jogadas fora, no cisco. Pra ser mais correto: as coisas que moram em terreno baldio. Pergunte ao Manoel quais são as três coisas mais importantes da vida, ele responde: – As três coisas mais importantes para mim são duas: o amor e a poesia. E a Poesia permanecerá, a Terra tem futuro Manoel? – Não sei. Acho que os cientistas estão furando tanto o planeta que não sei nada sobre o futuro. Sou um homem de fé e acredito na terra para sempre. Se a terra permanecer e os seres humanos não voltarem ao chipanzé, que Darwin diz que tomará – se isso não acontecer a poesia permanecerá. Mas, não sei. Nesse momento, é inevitável que Manoel recorde Sócrates, e ele diz: – Você sabe que a frase de Sócrates procede. Nós chegamos no fim da vida e não sabemos o sentido da vida. Mas como até esse socrático – Só sei que nada sei parece se dissolver na Presença de um Saber mais essencial, que se basta a si mesmo em seu – Só sei que de mim em mim sei, eis de volta o Pantanal onde foi semeada e aí se dá em permanente florescência a criança Manoel de barros: – O parecer sempre é resultado de percepções, como se estivesse sentindo o mundo pela primeira vez. Isso é provado por Aristóteles que dizia que o conhecimento que conta é aquele vem pelas percepções da infância, quando você está conhecendo o mundo e é esse que me alimenta até hoje. É verdade que eu estudei, tenho conhecimento fora disso, tenho conhecimento de linguística, estudei tudo. Isso aí só importa para sua técnica. Por que tem aquele poeta que diz que cultura é o caminho que o homem percorre sem conhecer. E o Sócrates fez esse caminho pela vida dele e no final concluiu que tudo que ele sabia é que nada sabia.

E a totalidade? Deus – É, nós não sabemos nada mesmo. Podemos discutir coisas aqui outra ali, mas o sentido da vida é incompreensível. Nós somos incompletos, nos sentimos incompletos. Só podemos ser completados pelo mistério. Na verdade não tem sentido nenhum mesmo, nós podemos dar sentidos. Essa incompletude nós só podemos completar com o mistério.

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O Mistério, Manoel? – É a coisa mais real. Sou um homem de fé, porque sou incompleto mesmo, eu preciso me completar através de uma fé. É uma escapatória. Tenho um irmão que é agnóstico, que não acredita em nada. Agora eu não, eu sou assim. Tenho necessidade. Preciso desse amparo. Grande parte da humanidade tem, os fundamentalistas, os árabes, todos têm crenças, pra se completar. Eu acredito em Deus e conto isso pra todo mundo. Não tenho vergonha não, eu tenho é muito orgulho. Eu acho que a religião completa a gente, é o meu sexto sentido. Nossa fé é o sexto sentido. E a relação entre Poeta & Deus? – É o criador. A natureza foi criada a partir de Deus. O poeta é uma pessoa que mexe com a criação. Bem, mas vivendo nestes tempos de tantas fúrias, neste ponto em que chegamos em nosso século, como fica a esperança no futuro? – Eu me considero um songo no assunto. Um songo? E o que é um songo, Manoel? A essa pergunta final, do fundo da sua Vanguarda Primitiva o Poeta responde como sabe, como um homem falando com árvores – com o Poema abaixo que é novamente um elogio à Inocência: Um songo Aquele homem falava com as árvores e com as águas ao jeito que namorasse. Todos os dias ele arrumava as tardes para os lírios dormirem. Usava um velho regador para molhar todas as manhãs os rios e as árvores da beira. Dizia que era abençoado pelas rãs e pelos pássaros. A gente acreditava por alto. Assistira certa vez um caracol vegetar-se na pedra. Mas não levou susto. Porque estudara antes sobre os fósseis linguísticos e nesses estudos encontrou muitas vezes caracóis vegetados em pedras. Era muito encontrável isso naquele tempo. Até pedra criava rabo! A natureza era inocente. P.S.: Escrever em Absurdez faz causa para poesia Eu falo e escrevo Absurdez. Me sinto emancipado.

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© David de las Heras

LEITURAS DE POESIA caderno 1



Ondjaki Rio de Janeiro – RJ Autor de obras como Bom dia, camaradas (Companhia das Letras, 2014), Os transparentes (Companhia das Letras, 2013 – Prêmio José Saramago), e AvóDezanove e o segredo soviético (romance, Companhia das Letras, 2009 – Prêmio FNLIJ 2009 e Prêmio Jabuti 2010), Ondjaki nasceu em Luanda (1977) e é um dos mais versáteis autores da literatura em língua portuguesa na contemporaneidade.



Silêncio no voo dos mosquitos palavras apontadas para clarice Lispector como se adormecidamente. para saber silêncios o mosquito voa acontrário soprando para frente. assim toda locomoção perde segredo como se antecipadamente. para domar zumbidos o mosquito faz andamentos na pluma do ar: sons enveludados – repletos de aminúsculo. mas!, o segredo: mais que asa para deslocamentos o mosquito usa alma. borbulha – é um ressultacto de fornicação. comichão – é um sémen denunciando solidões. como se amosquitadamente. ... para voar com(o) mosquito somente use um voolêncio.

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Para pisar um chão com estrelas imitando-me ao morcego intimidei o dia a ser mais vertical. assim o céu ganhou pés a terra experimentou alturas. apressas, pedi: uma noite se antecipasse. transfigurando conceitos o palco do mundo vincava-se de novas encenações. estrelas chegaram. lua teve dúvidas para posicionar-se. encaminhando andei sobre o céu sob meus pés. assim revelei-me: nunca é impossível pisar um chão de estrelas. ... logo-logo: um grilo atirou-se a sorrisos.

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Passarinho concupiscio o cuco para acontar-me batidas. rios na madeira para aquecimento de ouvidos. [tuc tuc tuc tuc] cócegas na árvore para aquecidos ouvimentos. um cuco: dócil martelo. um tranquilizador de florestas. ele, o soba dos ecos, hipnotizador dos silêncios...

© David de las Heras



Jørge Pereira Recife – PE Jørge Pereira, recifense, biomédico, pesquisador do CNPq, escritor, racional, intuitivo, passível de ser compreendido, mas não decifrado. Apaixonado pela arte humana e pela vida. Publicou poemas e contos em revistas de literatura lusófona e em língua hispânica e italiana.



Camenas Fê-lo contudo o Amor em golpe perfeito Em ferir o peito aberto em medo Qual fizera Narciso em águas de espelhos Onde não tivera as ninfas a sua sorte Ao ver o amado desejo em sua morte Nos ventos que te trazem alegrias Não traz Zéfiro a beleza de teus dias Envolto na sede súbita de amar Perco-me no medo de saber Que alma sem teu sopro não viverá

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Dafne e Apolo Pelas mãos da dignidade mortífera Na fala de Apolo envaidecida Cupido tratou de feri-la Numa mão para trazer-lhe Amor Em outra para levá-lo em partida Em pontas de ouro e chumbo Transpassando duas almas divididas Na vontade de Dafne repelida Por Apolo não rude Apaixonado filho de Júpiter Nem seu canto nem sua lira Curaram sua enfermidade em voos de castidade Arrebatados por Peneu insolente Que em árvore transformara o coração ardente E beijou-lhe o deus descontente Tal qual a lira da Aurora em melodia Para feitos de Cupido em sua agonia Transformou-a em sua mais pura poesia

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Izabela Orlandi Vitória – ES Nascida em Vitória, Espírito Santo, em 1991, estudante de psicologia na Universidade Federal do Espírito Santo e autora dos livros de poesia O que esperar de uma flor amarela? (Patuá, 2013) e Vão dos bichos (Patuá, 2015).



I Francisco me comprou um algodão doce e me ensinou que desaparecer é impossível

II analista não parcela a nossa dívida assinamos a tv a cabo pedimos pizza pré-assada esquecemos de 1999 quando só tínhamos o azul da chuva e do seu esperma na minha calcinha de algodão

III acabaram os anos em que Francisco me ensinava a chorar

IV mês passado engolimos o sangue quente vomitamos os ossos do cachorro nas costas frias do mundo rezamos deitados na ponte dos suicidas comungamos o corpo vivo das putas e agradecemos

V cantamos no coral dos surdos

VI francisco francisco francisco deita aqui já são cinco da manhã e acabou o cigarro

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Š Mozneko

VII ĂŠ o tempo de queimar a face do vermelho mais vivo, Francisco para ter sangue esperma lĂĄgrimas mar gelado circulando nas veias gastas e acordarmos todos os dias


teus incestos, Virginia teu breve pacto com a vida as tuas passagens em meu tempo de rocha. Virginia, transmuta-te lama pelo corpo que anseia queima tua face no líquido marrom espesso bebe, Virginia, do cálice em que me ofereço viva à tua língua sentes a fome, Virginia? os ossos finos da minha mão sobre a fonte que te eterniza

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Juliana Hollanda Rio de Janeiro – RJ Juliana Hollanda nasceu no Rio de Janeiro em 1978 e atua na poesia desde 2005 (CEP 20.000, Ponte de Versos e etc). Além de fazer parte do trio de poetas "Madame Kaos" (com Beatriz Provasi e Marcela Gianini), também compõe a dupla "Ju & Juju" (com Justo D'Avila). Possui três livros publicados: Acordei num Iceberg (Ibis Libris, 2008), Entre sem bater (2010) e Vertentes (2012), os dois últimos, independentes, editados por Tavinho Paes para a coleção Heart.Action. Atualmente trabalha em “Juju in the Box” (a ser lançado em 2015), também em parceria com Tavinho Paes.



Sobre pipoca e formigas na cadeira (II) pessoas riem a velha com Alzheimer está longe pessoas gargalham a velha com Alzheimer faz xixi no meio da sala pessoas acham engraçado a velha com Alzheimer foge de casa deve ser realmente engraçado um adulto voltar a ser criança ter que ser ensinado a usar o vaso sanitário deve ser mesmo uma comédia para quem não têm uma velha com Alzheimer eu tive uma velha com Alzheimer eu amo essa velha a minha velha com Alzheimer não sabia qual era meu nome nem o da minha mãe minha velha com Alzheimer era a minha vó e eu sinto muita falta de sua caixa de Pandora

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Sobre utensílios domésticos e existencialismo (I) não sou um aspirador de pó desses que vai sugando tudo pelo caminho botões fios de cabelo poeira pedaços de brinquedo tarraxas de brinco até o rabo dos cachorros talvez eu seja um para-raios que sai captando (qual antena) a eletricidade da tempestade... posso ser uma antena que capta o sinal de rádios piratas televisões na clandestinidade até imagens em tempo real de soldados torturando jornalistas no Afeganistão posso ser muitas coisas mas não sou um aspirador de pó tenho alergia à pó espirro espirro espirro até quando um fiapo de lã do casaco me faz cócegas no nariz não saio sugando toda a sujeira do ambiente nem sou de assustar os gatos com barulho não sirvo para limpar cortinas carpetes sofás quinas de quarto de sala cozinhas banheiros eu posso ser a roda de um carro que sai por aí esburacando o asfalto ou o laço de fita cor-de-rosa o mais bem feito numa caixa de presentes eis o meu último convite: me abra!

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Sobre imensidão e terremotos (IV) veneno deve deixar gosto amargo na boca como as ausências que escapam dos lábios que nunca encostaram os meus [é amargo este gosto] fim de filme sem final gosto ruim de morte com saliva amargo esse gosto da busca pelo novo amargo o gosto de uma boca inexplorada - que se deixa explorar como podem ser doces outros sabores em lábios azuis de "jazz” que eu talvez encontre amanhã (ou hoje?) quando entardecer

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Š Mozneko


Balzaquiana muitos objetos passaram pelas minhas mãos tanto que se perdeu tudo que já quebrou tudo o que eu quis que já não quis tudo que se partiu e até o que restou. cadernos blocos post-its cartões postais cartas amareladas fotografias… guardados por 30 anos gavetas caixas caixotes lembranças entranhas frestas estrados espaços onde estão preservados: queridos e distantes os que me fazem rir os que me fazem chorar os que penteiam meus cabelos os que limpam minha maquiagem e os que gostam dela borrada os que respeitam minhas escolhas certas erradas os que me deixam doer a maior parte de mim são os cacos de vidro

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UMA POETICA DO EMBUSTE: ENTRE A PROSA E A POESIA ´

POR MARIA HELOISA MARTINS DIAS



Há muitas possibilidades de abordagem da obra de Manoel de Barros, uma abertura (e aventura) contida já em sua própria poesia, a qual continua a atrair os leitores. Opto por um caminho talvez não muito ou quase nada explorado, salvo erro. Trata-se daquilo que poderíamos chamar de uma poética do embuste, expressão que nada tem de pejorativo, antes, assinala um traço singular do projeto literário do poeta – a oscilação entre prosa e poesia. Vamos nos deter num de seus livros mais intrigantes, cuja “perturbação” começa pelo título – Livro sobre nada. Anunciado assim, poderia parecer ao leitor desavisado que o autor estaria menosprezando sua obra, como se fosse feita de matéria desinteressante e inútil, negando já de saída a validade de sua poesia. Porém, como leitores acostumados às armadilhas do fazer literário e de toda criação artística, sabemos que esse “nada” enunciado é uma jogada retórica que acaba fazendo despontar o contrário. Afinal, todo livro é sobre alguma coisa, mesmo que essa coisa se mostre banal, sem importância, como “coisas rasteiras” ou “imprestáveis”, no dizer do poeta. Ora, já aqui começa o embuste, próprio da arte, forçando-nos a abandonar posições cômodas e conhecidas para olharmos com outros olhos essa falsa aparência. Um ensinamento que nem todos seguem, mas seria extremamente produtivo em termos críticos, sobretudo quando se trata de poesia. Nesse livro de 1996, Manoel de Barros oferece-nos quatro partes (“Arte de infantilizar formigas”, “Desejar ser”, “O livro sobre nada” e “Os Outros: o melhor de mim sou Eles”), que traçam um panorama familiar, constelado em torno de figuras e situações vividas pelo poeta, portanto, temos uma espécie de “autobiografia”, não assumida como

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tal, pois camuflada pelo distanciamento crítico do sujeito lírico e pelas estratégias de sua linguagem. Porém, as referências enunciadas nos versos parecem desfazer o nada do título: o pai, a mãe, o avô, o mano, os amigos vizinhos como “Catre-Velho”, “Mário-pega-sapo”, “BolaSete”, o Doutor. Figuras ficcionalizadas pelo poético, mas portadoras de uma história rememorada pelo poeta que joga com sua identidade como se brincasse com dados: Eles e Eu são peças móveis de um cenário todo mesclado (“Os Outros: o melhor de mim sou Eles”). Outro embuste criado pelo poeta, simulando não colocar em primeiro plano o Eu biográfico e sim uma identidade polimórfica que a poesia encena em seu fazer. Enfim, o “nada” prometido no título é apenas uma forma de despistar o leitor, instigado a descobrir o que se oculta sob essa negação.

No “Pretexto” que antecede os textos, Manoel de Barros justifica seu propósito de escrever um livro sobre nada, entendido como “coisa nenhuma por escrito”, apenas “fazer brinquedos com palavras” (2000, p.7), investindo no estilo e não em conteúdos metafísicos ou existenciais. De fato, o espírito lúdico está presente nas poesias, mas é por meio dele que o nada se oferece à passagem para o poético (expressão que tomo de empréstimo de Benedito Nunes, contida no título de seu livro Passagem para o poético: poesia e filosofia em Heidegger), tornando-se material “útil”, ao contrário do que pretenderia o poeta. Essa noção de que a criação poética deve aproveitar o reles e imprestável como objetos do fazer está presente, por exemplo, no poema 9 da primeira parte do livro: o avô apregoava urinóis enferrujados, oferecendo-os como produto: “Serve para o desuso pessoal de cada um. / Já pertenceu a Dona Angida dos Cocais, senhora de nobrementes. / É barato e inútil. / Quem se abastece?” (p.27). Tendência que parece herdeira das vanguardas artísticas da segunda metade do século XX, como a arte pop (Duchamp que o diga com o seu famoso urinol, refiro-me A fonte, de 1917, que tanta discussão provocou e provoca até hoje), com a diferença de que para o poeta mato-grossense não é o ideário do movimento artístico que conta e sim sua maneira pessoal de lidar com a matéria impura, retirada de um outro cenário: suas origens naturais. Entretanto, analisemos mais de perto o que propusemos no início. O embuste, originado de várias estratégias, como vimos, interessa-nos

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agora no que se refere à oscilação entre prosa e poesia. Há várias razões na obra de Barros que justificam a aproximação entre os dois gêneros e discutiremos a seguir. Podemos começar pelas reflexões do Autor colocadas como notas de rodapé e em destaque gráfico. A maioria, de caráter explicativo, funciona como uma complementaridade do discurso poético, como se a poesia não desse conta totalmente do que o poeta tem para dizer. Assim, por exemplo, no poema 6 (ainda na primeira parte do livro), a nota vem explicar a fala da mãe “Meus filhos, o dia já envelheceu” (p.21). Diz o poeta, em rodapé: “Aí a nossa mãe deu identidade pessoal ao dia. Ela deu ser ao dia. E ele envelheceu como um homem envelhece. Talvez fosse a maneira que a mãe encontrou para aumentar as pessoas daquele lugar que era lacuna de gente”. Nesse caso, o comentário do poeta parece atender a uma intenção didática, digamos, explicitando a figura de linguagem criada em sua poesia. Em outra nota, a propósito do “idioleto manoelês archaico”, Barros diz: “Falar em archaico: aprecio uma desviação ortográfica para o archaico. Estâmago por estômago. Celeusma por celeuma (…) Ouvir estâmago produz uma ressonância atávica dentro de mim. Coisa que sonha de retravés.” (p.43). Aqui, a explicação tem um cunho linguístico e salienta o gosto do poeta pelas raízes ou fontes populares da linguagem, o que o aproxima de outro escritor brasileiro também ligado a matrizes arcaicas da cultura, Guimarães Rosa. Na última parte do livro de Barros, “Os Outros: o melhor de mim sou Eles”, há várias notas, nem todas em rodapé. A maior delas antecede o poema “As lições de R.Q.” e vem explicitar quem é R.Q. e como o poeta o conheceu. É um trecho longo, com detalhes da história que envolve esse personagem em que predomina o tom narrativo. Acontece que na própria linguagem explicativa despontam traços poéticos: “Era um artista iluminado e um ser obscuro” (p.74). O poeta compara-o a Picasso, Braque e Klee, por distintas razões que valem uma aula de pintura, assim como as lições do Rômulo Quiroga, o pintor que encantou Barros. Enfim, a prosa que margeia a poesia, e esta em diálogo com aquela solicita uma leitura que circule pelos dois espaços, de que resultará uma iluminação dupla para a projeção da obra de Manoel de Barros. Já o texto referente a Arthur Bispo do Rosário, intitulado “A.B. do R.”, está em prosa, mas essa disposição não esconde a feição poética: “Sua obra era ardente de restos: estandartes podres, lençóis encardidos, botões cariados, objetos mumificados,

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fardões da Academia, Miss Brasil, suspensórios de doutores – coisas apropriadas ao abandono. (…) Esse Arthur Bispo do Rosário acreditava em nada e em Deus” (p.83). A última nota do livro é uma reflexão de Barros sobre a fisiologia dos andarilhos, em que o poeta ensaia (no duplo sentido, como discurso e como hipótese) uma espécie de filosofia desse ser errante em contato com a terra. Novamente notamos no texto em prosa a infiltração da poesia: “Antes de se unir às vergônteas como as parasitas. Antes de revestir uma pedra à maneira do limo. Antes mesmo de ser apropriado por relentos como os lagartos” (p.84). E na poesia “O andarilho”, que segue essa nota, podemos ler uma narrativa oculta entre as palavras: “Eu já disse quem sou Ele. / Meu desnome é Andaleço. / Andando devagar eu atraso o final do dia. / Caminho por beiras de rios conchosos” (p.85). Como podemos ver, prosa e poesia se dão as mãos para seguirem como andarilhas pelo espaço da página. Outros procedimentos revelam a aproximação entre os dois gêneros. Um deles é o “Diário de Bugrinha (excertos)”, que finaliza a primeira parte do livro. Constituído de frases datadas de modo livre, sem rigor, num período de dois anos (1925 e 1926), esse singular diário é um exercício criativo do poeta, abrangendo uma variedade de notações: fatos, definições, falas de personagens, indagações, descrições, desejos, tudo passa pela avidez perceptiva do olhar poético encarnado na personagem Bugrinha: “Eu queria crescer pra passarinho...” ou então “O frio se encolheu nos passarinhos. Ó noite congelada de jacintos! Eu estou transida de pétalas” (p.30). Outro exemplo é o poema 10, na segunda parte do livro, que se assemelha a um ensaio, ou seja, os versos vão se formulando como comprovações de uma tese defendida pelo poeta: a de que as coisas ínfimas são as mais importantes, traço característico da poética de Manoel de Barros. Nessa espécie de elogio ao insignificante, as afirmações se fazem como exemplos para a defesa do banal em detrimento dos altos valores: Mosca dependurada na beira de um ralo – Acho mais importante do que uma joia pendente. (...) As coisas que não têm dimensões são muito importantes.


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Palavra pOEtica tem que chegar ao grau de brinquedo para ser Seria Manoel de barros


Assim, o pássaro tu-you-you é mais importante por seus pronomes do que por seu tamanho de crescer. (p.55). Essa presença de frases com caráter reflexivo retorna na terceira parte do livro, toda constituída do que poderíamos chamar de aforismos. São frases curtas, tendendo ao conceitual, nas quais o poeta busca definir a literatura, o modo como lida com as palavras, a verdade, o estilo, o saber, o artista. Muitas de suas afirmações sintetizam o que ele realiza na poesia, servindo, assim, como uma espécie de profissão de fé: “Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção” (p.68) ou “O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo” (p.68). Ou ainda: “Não gosto de palavra acostumada” (p.71) e “Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria” (p.71). Lidos ao lado das poesias, ou melhor, convivendo com estas, esses fragmentos em prosa iluminam os versos, na medida em que servem como uma orientação para a sua leitura. Por outro lado, tais aforismos se voltam, em grande parte, à tentativa de definição do poeta como ser humano, como sujeito entre as coisas do mundo, o que o leva ao exercício de uma “terapia” por meio de suas reflexões. Desse modo, uma afirmação como “Sou muito preparado de conflitos” (p.67), além de apontar para a condição fundamental de todo artista diante da criação, revela o ser problemático cuja lucidez excessiva e sensível não o exime de perceber as contradições da existência: “Por pudor sou impuro” (p.71). Ou seja, por meio da “terapia literária”, aquilo que o poeta defende como a desarrumação da linguagem é capaz de “express[ar] nossos mais fundos desejos” (p.70). Como podemos ver, é difícil desenredarmos os fios entretecidos em Livro sobre nada, pois o poético é fruto de uma matéria que rompe com os limites entre prosa e poesia, reflexão e encantamento. O embuste na poética de Barros decorre, também, do apagamento das fronteiras entre o mostrar e o contar, ou seja, entre a natureza presentativa da linguagem (o poético) e o tom narrativo (o prosaico), pois ambos convivem nas poesias. A narratividade se patenteia em trechos como “Um dia apareceu por lá um doutor formado: cheio de / suspensórios e ademanes” (p.13); “Apenas de mês em mês aparecia uma carreta de mascate (...)” (p.17); “A gente brincava com a terra (...)” (p.13). Há uma tendência do poeta para rememorar ações e fatos, narrados no passado: “Bem antes, em 1922, na Vila do

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Livramento, onde nascera, meu avô apregoava urinois enferrujados” (p.27). Entretanto, essa presença do factual é perturbada pela infiltração repentina do poético que corta o teor narrativo em armação, conforme podemos notar nestes versos do poema 4 (primeira parte do livro): “Nossa mãe comprava arnica e bolachinhas. / Dona Maria, mulher do Lara, comprava brincos e / extrato Micravel. / Meu avô abastecia o abandono” (p.17). Neste último verso, a focalização do avô afasta-se totalmente das ações para se revestir de um teor abstrato, contrastando com o prosaico narrado antes, de que resulta uma intensificação do estado solitário da personagem. Ao contrário das duas personagens, o avô se alimenta do não-fazer. No poema 7 (da primeira parte) há outro exemplo emblemático dessa quebra de tonalidade discursiva: “Meu irmão veio correndo mostrar um brinquedo que / inventara com palavras. Era assim: / Besouros não trepam no abstrato” (p.23). Se, nas duas primeiras frases o narrativo focaliza uma situação concreta, complementada pelo modalizador “era assim”, com caráter explicativo, o terceiro verso, mais verso que frase (como as duas anteriores) irrompe para trazer o inusitado. Colocada em destaque gráfico, a observação desfaz por completo o factual para colocar em evidência uma constatação poética marcada pelo insólito. O efeito da fala do irmão é surpreender, graças à construção engenhosa da linguagem para se referir à relação sexual entre os insetos. Investido de poder criativo, imaginativo, o menino revela em sua linguagem ser herdeiro do poeta. Neste caso, convém lembrarmos o que diz Giorgio Agamben sobre essa questão. Em Profanações, o autor tece comentários sobre a necessidade de “inventar uma língua secreta própria” (2007, p.25), comum entre as crianças, como resposta à sua relação mágica com a realidade percebida por eles de modo especial. O prazer parece estar mais na própria invenção do que propriamente no nome inventado, o que constitui a essência da magia, pois “ser mago significa criar conhecer e evocar esse arquinome”. Na verdade, a fala do menino, na poesia de Barros, devolve ao uso comum dos homens o que estaria em outra esfera, a do sagrado, libertando a palavra de tabus semânticos e assumindo a vida como jogo. É o que Agamben define como profanação: “profanar é assumir a vida como jogo, jogo que nos tira da esfera do sagrado, sendo uma espécie de inversão do mesmo” (p.13).

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~ gosto de palavra acostumada NAo Manoel de barros


Em meio ao relato de cenas familiares, surgem caracterizações de personagens revestidas de intensa poeticidade, como neste verso: “Catre-Velho ensinava: A voz de um cantador tem que / chegar a traste para ter grandezas... // Ele tinha uma voz de harpas destroçadas” (2000, p.25). A expressão “harpas destroçadas”, referindo-se à quebra da harmonia, sonoridade, leveza e encantamento contidos na harpa, destaca o rompimento do lirismo; ora, destroçar o lirismo ou a ingenuidade melódica é o que o poeta deseja com sua poética de espanto e sobressaltos. Desse modo, o cantador Catre-Velho atua como metáfora do poeta, aquele que faz o lírico virar outra coisa. Digamos que a perspectiva ou foco narrativo presente nas poesias de Livro sobre nada é o de uma criança ou do ser encantado com o mundo, reportando-nos à figura do convalescente descrito por Baudelaire em seu ensaio “O pintor da vida moderna”, contido em Sobre a modernidade (1997). Após sua recuperação, ao voltar a caminhar pelas ruas da cidade em sua reinstalação no mundo, o convalescente passa a ver tudo como se fosse a primeira vez, encantado com o que a realidade lhe oferece, num estado de “perplexidade mesclada de deleite”: “O convalescente goza, no mais alto grau, como a criança, da faculdade de se interessar intensamente pelas coisas, mesmo por aquelas que aparentemente se mostram as mais triviais” (1997, p.18-19). Esse estado, que Baudelaire atribui tanto à criança quanto ao convalescente e ao homem das multidões, é característico do artista, um apaixonado curioso e dotado de tal enebriamento pela realidade que o torna capaz de operar transformações nas coisas percebidas. Entretanto, tal foco é permeado pela consciência do adulto no trato com a linguagem, na medida em que esta produz efeitos inesperados em sua construção. Notemos uma passagem como: O pai desbrincou de nós: Só o obscuro nos cintila. (2000, p.15). A referência ao pai surge pela via da recordação infantil, mas o neologismo “desbrincou” é uma criação do poeta que, no entanto, comunga da brincadeira da criança, embora realizada em outra esfera – a da escrita poética. Quanto ao sentido dos versos, cabe a nós recuperarmos o que está implícito nessa fala paterna: não é possível permanecer eternamente na leveza ou ingenuidade lúdica, pois a obscuridade também nos ensina e traz revelações – eis o que seria a

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mensagem transmitida pelo pai, mas ao poeta cumpre abreviar a linguagem, graças ao caráter sintético do discurso poético. Afinal, estamos diante daquilo que Ezra Pound define como a “grande literatura”: “Grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível” (1989, p.40). Para Pound, que nos reporta ao étimo “Dichten = condensare”, a condensação é o grande trunfo da poesia, sendo esta “a mais conhecida forma de expressão verbal” (p.40). De fato, ao lermos os versos de Manoel de Barros acima transcritos, a forma abreviada contém sentidos que extrapolam os limites do discurso, mas é exatamente na contenção que residem a força e o encanto do dizer. Outro poema em que a perspectiva infantil dirige a recordação de cenas é o 2 (segunda parte): Prefiro as linhas tortas, como Deus. Em menino eu sonhava de ter uma perna mais curta (Só pra poder andar torto). Eu via o velho farmacêutico de tarde, a subir a ladeira do beco, torto e deserto... toc ploc toc ploc. Ele era um destaque. Se eu tivesse uma perna mais curta, todo mundo haveria de olhar para mim: lá vai o menino torto subindo a ladeira do beco toc ploc toc ploc. Eu seria um destaque. A própria sagração do Eu. (2000, p.39) Tal como o ser gauche de Carlos Drummond de Andrade, o poeta Manoel de Barros opta pelo lado marginal, desviado, quanto a seu posicionamento no mundo. Assim, “as linhas tortas” corresponderiam a esse gauchismo drummondiano, mas o seu modo de retratar tal tendência difere do modo do poeta mineiro. É que em Barros a ótica para expressar o torto se faz pelo viés da criança (“Eu via o velho farmacêutico de tarde ...”). Notemos, também, as onomatopeias (toc ploc) repetidas nos versos de modo a presentificar de maneira concreta a percepção da realidade. Já em Drummond, as sete faces de seu poema vão se revelando tingidas pela consciência que reconhece a distância ou não rima entre o sujeito lírico e o mundo, diferindo da brincadeira ou desejo megalomaníaco da criança, em Barros, de ser um “destaque” ou a “sagração do Eu”. Ao contrário, o Carlos gauche, no “Poema de sete faces”, esconde-se atrás dos óculos e do bigode. Em um poeta, lirismo mais consciência infeliz, em outro, lirismo mais ludicidade.

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Entretanto, paralelamente à ótica infantil vão despontando também nas poesias afirmações carregadas de abstração e movidas por uma inquietação filosófica, algumas vezes, de natureza metafísica. Assim, o verso “Era um prego sozinho e indiscutível” refere-se a uma obra vista pelo poeta na XXIII Bienal de Artes Plásticas de São Paulo, em 1994, em que o objeto o leva a “medit[ar] um pouco sobre o prego. / O que restou por decidir foi: se o objeto enferrujado / seria mesmo do Século XIII ou do XII?” (2000, p.59). Notemos como o insignificante se cola ao questionamento sério, apesar de o prego ser “indiscutível” e “sozinho”, portanto, não demandando nada além de sua existência concreta e enferrujada. Outro exemplo são estes versos, do poema 14: “(Represente que o homem é um poço escuro. / Aqui de cima não se vê nada. / Mas quando se chega ao fundo do poço já se pode ver / o nada.)” (p.63), revelam um espírito não conformado às certezas evidentes ou habituais e sim motivado a querer “ver” o outro lado das coisas. Aqui, os parênteses servem como imagem figurativizada do poço, possibilitando ao poeta criar o interessante paradoxo que coloca em jogo superfície x profundidade, ver e não ver, apontando para o árduo exercício da existência. O poema “Mário revisitado”, da última parte do livro, merece uma análise mais atenta, por isso, vale a pena transcrevê-lo. Mário pega-sapo, de noite, abria em casa todos os sapos que pegava durante o dia em banhados, nos barrancos, nos monturos, nos porões, nos terrenos baldios, debaixo de caixas dágua. Abria um por um de canivete os sapos para ler nas entranhas deles o seu futuro (do Mário). Eu pensava que aquele Mário-pega-sapo fosse um descendente dos arúspices (sacerdotes romanos que adivinhavam o futuro remexendo no altar as entranhas de seus inimigos). Em todos os velórios da cidade Mário se compungia como se fosse o dono do defunto. Seria uma transferência? Tentei descobrir na alma de Mário alguma coisa mais profunda do que não saber nada sobre as coisas profundas. Consegui não descobrir. (p.77)

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~ Invento e FALSO TUDO QUE NAO MANOEL DE BARROS


O poema se inicia por meio da referência a uma personagem do mundo familiar do poeta (Mário-pega-sapo), como outros de Manoel de Barros, o que nos remete àquela espécie de “autobiografia” simulada, de que falamos no início, na qual o jogo entre Eu e Outros se dá como uma maneira de movimentar a identidade, torná-la maleável às experiências modeladoras do sujeito. Se o ponto de partida é uma brincadeira infantil – abrir sapos com canivetes para ver suas entranhas – os versos vão revelando outras intenções, não tão superficiais ou lúdicas como a inicial. Há algo como uma “causa secreta”1 que o poeta faz vir à tona do poema, aos poucos. O primeiro passo nessa revisita do poeta ao Mário é aludir ao desejo deste de ler o futuro por meio das entranhas, o que o leva a citar os “arúspices”. Notemos como o poeta joga habilmente com os parênteses para obter efeitos distintos. Num primeiro momento (v.6), os parênteses explicitam uma possível leitura equivocada: o futuro é do Mário e não dos sapos, o que resulta numa certa comicidade. A seguir, nos versos 8, 9, 10, há outro propósito no uso do sinal gráfico: informar, à maneira enciclopédica, o que são “arúspices”. Aqui, destaca-se o eruditismo do poeta, conhecedor de fontes e nada ingênuo para focalizar essa aparente brincadeira de seu personagem Mário: remexer nas entranhas é um ato dos sacerdotes romanos usado como estratégia para lidar com os inimigos. Em outro momento do poema, versos 11, 12 e 13, o poeta constata e se indaga sobre a atração que a morte exerce em Mário e seu sentimento de compaixão pelos mortos. Mas, nos fica a dúvida: a “transferência” de que fala o poeta corresponderia ao desejo de Mário de se vingar dos inimigos (como os arúspices) ou a uma verdadeira compunção a ponto de ser definido como “dono dos defuntos”? E esta última expressão, um tanto ambígua, que sentido teria: Mário seria familiar e amigo dos mortos ou, pelo inverso, “dono” ou senhor com autoridade para fazer com eles o que quiser? Não sabemos, porque o poema não define, e essa indefinição é importantíssima para a leitura. É essa abertura de possibilidades que torna a obra literária sempre atual. Nos versos finais, o sentido se torna ainda mais perturbador, devido ao excesso de negações que nos obrigam a reler os versos para recuperarmos sua mensagem: Mário continua como incógnita para o poeta, o qual não conseguiu descobrir como é o interior dessa personagem, atraída pela dissecação de sapos.

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Ora, essa postura analítica do poeta na focalização dos seres humanos, levando-o a inquietações acerca dos comportamentos, acentua o teor reflexivo infiltrado na linguagem poética de Manoel de Barros. Nos outros poemas da última parte de Livro sobre nada desponta ainda mais o jogo entre identidades, pois o poeta se refere a personagens diversas, falando de Outros mas neles fazendo despontar o Eu. Ao citar poetas e artistas conhecidos como Rômulo Quiroga, Picasso, Paul Klee, Chagal, Douglas Diegues, Arthur Bispo do Rosário, Manoel de Barros cria uma intertextualidade que coexiste com o familiar ou prosaico, representado por figuras como Mário-pega-sapo, Antônio Ninguém, Bola-Sete, Andaleço. Colocar num mesmo espaço tais referências é favorecer um congraçamento entre esses criadores, abolindo hierarquias e possibilitando que o poético-artístico se cruze com o banal. Tal entrecruzar de planos pode também provocar outro efeito: o poeta acaba por ficcionalizar de tal modo os dados com que opera que, afinal, não ficamos sabendo exatamente se o que lemos é parte da realidade ou invenção tornada verdade graças à força da linguagem que a re-constrói. Em “As lições de R.Q.”, também da última parte do livro, o conceito de aprendizagem de que nos fala o poeta é fruto da leitura e incorporação de outras poéticas, conforme os versos vão revelando. É interessante notarmos os conceitos sobre arte que vão emergindo dos versos, válidos tanto para a pintura quanto para a poesia. Desse modo, a fuga do linear e do automatismo – “A expressão reta não sonha.” / “Não use o traço acostumado.”, a necessidade do sofrimento para a criação – “Só a alma atormentada pode trazer para a voz um / formato de pássaro.”, a ultrapassagens de limites para a criação radical – “É preciso transver o mundo.”, a não semelhança com o real – “Deus deu a forma. Os artistas desformam.”, o afastamento das convenções – “Tirar da natureza as naturalidades” (p.75). Enfim, para o poeta Barros, “desformar” é sua palavra de ordem no ato da criação poética: Até já inventei mulher de 7 peitos para fazer vaginação comigo. (p.75) Se Chagal faz “noiva camponesa voar”, se existe “cavalo verde” (versos 14-15), por que não poderia existir mulher de sete peitos? Estamos diante daquela noção oriunda das vanguardas artísticas modernistas, isto é, o estranhamento ou impacto desestabilizador de nossas

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expectativas. Nos dois versos acima, o surpreendente não é apenas a deformidade feminina, mas a criação do neologismo “vaginação” que, ao apontar para o ato erótico, também carrega outras conotações como imaginação, por exemplo, graças à semelhança entre os signos. O poema “Elegia de Seo Antônio Ninguém” apresenta uma singularidade que nos inquieta. Embora se intitule “elegia”, gênero de poesia caracterizado em sua origem por ser uma composição lírica monódica, em tom triste, melancólico e lamentoso, o texto de Barros adquire feição totalmente moderna, desfigurando o molde original. Primeiro, porque a voz poética é a primeira pessoa, ou seja, um sujeito a falar sobre si mesmo, autodefinindo-se, o que constitui um desvio da forma discursiva clássica, na qual o discurso era referente ou dirigido a alguém; segundo, porque a linguagem se despe de sublimidade e pureza, acentuando o baixo e o escatológico, aproximando-se da categoria denominada “imitativo baixo” pelo crítico Northop Frye (cf. uma das categorias apontadas por ele em sua famosa obra Anatomia da crítica, dedicada à teorização dos gêneros literários, arquétipos e mitos); terceiro, porque a identidade que emerge da elegia é ambígua, levando-nos a identificar Antônio Ninguém, ora a uma terceira pessoa apresentada ao poeta pelo “grande poeta brasiguaio Douglas Diegues” (2000, p.78), ora ao próprio poeta, graças à semelhança de alguns traços psicológicos. Enfim, a “elegia” criada por Barros é um falar pelo avesso, deslocando o paradigma poético por meio de sua desleitura ou revisita crítica: Sou um sujeito desacontecido rolando borra abaixo como bosta de cobra. (p.79) A fala pretensamente elegíaca vai-se tingindo de elementos negativos, disfóricos, característicos do ser arruinado, próximo da morte, o que parece resgatar a forma original da elegia, como observamos nos versos 9 a 15: Ando cheio de lodo pelas juntas como os velhos navios naufragados. Não sirvo mais pra pessoa. Sou uma ruína concupiscente. Crescem ortigas sobre meus ombros. Nascem goteiras por todo canto. Entram morcegos aranhas gafanhotos na minha alma. (p.79)

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Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos Manoel de Barros


Entretanto, essa tonalidade lamentosa e taciturna própria da elegia (“Tudo é noite no meu canto.”, v.5), é quebrada pela irrupção verbal do vulgar, como no 6º verso “(Tinha a voz encostada no escuro. Falava putamente.)”. Os versos finais do poema (corresponderiam a um alter-ego do poeta?) evidenciam a singularidade desse canto elegíaco que parece não exaltar ninguém, ao contrário, é um canto que esvazia o sujeito de traços identificadores, reconhecíveis: “Tenho abandonos por dentro e por fora. / Meu desnome é Antônio Ninguém. / Eu pareço com nada parecido.” (p.79). Tal definição perturbadora nos remete a outra, também inquietante: “Sou um sujeito remoto. / Aromas de jacintos me infinitam. / E estes ermos me somam.” (p.85). Aqui, é o “Andaleço” que se autodefine, nome do andarilho que não difere muito do Antônio Ninguém. Ambos, seres cuja ontologia insólita se recorta isenta de convenções e princípios preestabelecidos. Seres para quem o “estudamento de tomos” não é necessário porque a poesia percorre outras trilhas e ciências. Seres que se desleem.

Como vimos, Livro sobre nada é uma obra em que o nada deve ser lido pelo avesso ou deslido, assim como as personagens das poesias. Na verdade, a poética de Manoel de Barros opera de modo a criar embustes a cada passo: no jogo entre prosa e poesia, nas referências familiares, na mescla entre o elevado e o baixo, na definição da identidade da voz poética, na interpenetração do sério com o cômico. Isto não é pouco, e sim o bastante para que suas poesias sejam sempre revisitadas para descobrirmos o que há por trás desse aparente nada sugerido pelo título. Notas Aproveito para remeter o leitor ao conto “A causa secreta” de Machado de Assis (Várias Histórias, 1896), em que o personagem Fortunato suplicia um rato, cena acompanhada pelo amigo Garcia, que fica estarrecido com a fisionomia de prazer no rosto do amigo enquanto corta as patas do animal e o queima, matando-o aos poucos. Para Machado, a alma humana é um poço de mistérios, nunca se sabe o que move secretamente o homem. 1

Referências AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. 8 ed., Rio de Janeiro: Record, 2000. BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. São Paulo: Paz e Terra, 1997. FRYE, Northop. Anatomia da crítica. São Paulo: Cultrix, 1973. NUNES, Benedito. Passagem para o poético: poesia e filosofia em Heidegger. São Paulo: Ática, 1986.

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Š Van Gogh. Verdes campos de trigo. 1889


Manhã-passarinho

Uma casa terena de sol raiz no mato formiga preta minha estrela de asa aparada pedras verdejantes voz pelada de peixe dia de estar riachoso manhã-passarinho inclinada no rosto esticada até no lábio-lagartixa mosquito de hospício verruma para água arame de estender música sabão em zona erógena faca enterrada no tronco meu amor! esses barrancos ventados... e o porco celestial


Rolinhas casimiras Rolas pisam a manhã Lagartixas pastam o sobrado Um leque de peixe abana o rio Meninos atrás de gralhas contraem piolhos de cerrado Um lagarto de pernas areientas medra na beira de um livro Adeus rolinhas casimiras! O poeta descerra cardumes de nuvens A estrada se abre como um pertence Vermelhas trevas O veneno ingerido pela mosca deixa a curta raiz de sua existência exposta às vermelhas trevas Silêncio rubro Crista de silêncio rubro, o galo com frisos gelados de adaga no bico madruga as veredas batidas Modos ávidos Os modos ávidos de um caracol subir a uma parede com nódoas de idade e chuvas é como viajar à nascente dos insetos Visto tátil O visto tátil do canto é como a aranha que urde sua doce alfombra nas orvalhadas vaginas das violetas Os caramujos-flores Os caramujos-flores são um ramo de caramujos que


só saem de noite para passear De preferência procuram paredes sujas onde pregam e se pastam Não sabemos ao certo, aliás, se pastam eles essas paredes ou se são por elas pastados Provavelmente se compensem Paredes e caramujos se entendem por devaneios Difícil imaginar uma devoração mútua Antes diria que usam de uma transubstanciação: paredes emprestam seu musgo aos caramujos-flores e os caramujos-flores às paredes sua gosma Assim desabrocham como os bestegos Linha avelã A linha avelã de um pêssego e o lado núbil de um canto são como a aurora gotejante de uma semente líquida Imarcescível puta A imarcescível puta preta que me arrastou na adolescência me ensaruou de sua concha De Arranjos para assobio a partir de Biblioteca Manoel de Barros, p.26-29


ELEGIA DE SEO ANTÔNIO NINGUÉM* Sou um sujeito desacontecido Rolando borra abaixo como bosta de cobra. Fui relatado no capítulo da borra. Em aba de chapéu velho só nasce flor taciturna. Tudo é noite no meu canto. (Tinha a voz encostada no escuro. Falava putamente.) Estou sem eternidades. Não tenho mais cupidez. Ando cheio de lodo pelas juntas como os velhos navios naufragados. Não sirvo mais pra pessoa. Sou uma ruína concupiscente. Crescem ortigas sobre meus ombros. Nascem goteiras por todo canto. Entram morcegos aranhas gafanhotos na minha alma. Nos lepramentos dos rebocos dormem baratas torvas. * Conheci o Antônio Ninguém através do grande poeta brasiguaio Douglas Diegues. De Livro sobre nada, a partir de Biblioteca Manoel de Barros, p.53



© Van Gogh. Homem velho com a cabeça em suas mãos. 1890


© David de las Heras

LEITURAS DE POESIA caderno 2



Valter Hugo Mãe Vila do Conde – Portugal Nasceu em Saurimo, Angola, no ano de 1971. Licenciou-se em Direito e é pós-graduado em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea. Publicou os romances o nosso reino, o remorso de Baltazar serapião (Prêmio José Saramago em 2007), o apocalipse dos trabalhadores, a máquina de fazer espanhóis (Prêmio Portugal Telecom 2012), O filho de mil homens e A desumanização. Sua poesia encontra-se reunida no volume contabilidade.



o homem que já não sou não me olhes agora que estou mais velho e não correspondo em nada ao homem que amaste. procura encarar a tristeza sem me incluíres. seria demasiado cruel que me usasses para a dor. para ti quis trazer as coisas mais belas e em tudo o que fiz pus o cuidado meticuloso de quem ama. não me obrigues a cortar os pulsos quando fores num minuto ao jardim com o cão esta noite, sem notares, sustive a respiração e quase morri. não deste por nada. julgaste que voltei a ressonar e até terás esboçado um sorriso. e se eu pudesse morrer enquanto sorris, pergunto deixo para depois, ou talvez desista. mas não pode ser se tu me olhares em busca de tudo o que já não existe. não pode ser. levo a faca maior para debaixo do meu travesseiro. juro-te que me mato se continuares assim

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Š Mozneko


poema da sapiência nós chilreámos em redor dos canários calados. pressupúnhamos que algum som que imitássemos melhor lhes fizesse sentido e os provocasse à reacção. mas nada. eles ficaram calados como homens sábios a meditar

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Š Mozneko


poema das árvores e da aprendizagem tudo o que as árvores fazem é pensar. ficam generosas à espera de chegar a uma conclusão. e se morrem, não é absoluto que tenham tido resposta. deram sombra, pássaro, fruto e vento, mas podem partir quietas, como quem tomba para dentro de si mesmo, com felicidade pelo que já passou e nenhuma mágoa, só a aceitação sábia do tempo

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nos primeiros dias choveu desmesuradamente. depois, as nuvens habituaram-se à minha presença o sol aluiu e eu abreviei a alma observoando, ensaiado para os pesadelos que tenho de propósito agora, este é o cemitério dos meus dias, aqui os sepulto um a um pormenorizadamente sei que o vocabulário de deus é perfeito e só acedo a uma frase em círculo fechado onde o deus que existe é dom de um vocabulário meu tudo fica ao caminho do dia, pétala macia acesa pelo espaço inteiro, corpo brando o meu entornado ou subitamente parado no vento que, aos poucos, levanto até à cabeça e frio tão bem consigo ver vejo nítido o fim da vida a boca é uma fenda capaz de se revoltar e das coisas ao longo da claridade fala o galo ao chamar o dia. o firmamento pesado, uma linha


capaz de rebentar fica comigo, pai, surtidos pelos lugares enquanto o céu senta o cu nas nossas cabeças és um homem sagrado, como de braços abertos todos os homens são uma cruz, e na remoção das almas valesse a forma ou se deus se vendesse, quem o poderia comprar tenho amigos como bocas como já deus me morde, assim tivesse vindo enxertar o meu corpo fará a remoção da minha alma tal desencantasse uma serpente inclina-te sobre mim como às labaredas de uma fogueira não me esqueças nunca e quando eu morra também devora-me antes que as flores me façam cheirar bem

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Fernanda Fatureto Uberaba – Minas Gerais Fernanda Fatureto (1982) é autora do livro de poemas Intimidade Inconfessável (Editora Patuá, 2014). Formou-se em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero (SP). Possui poemas publicados pelo Jornal RelevO, Diversos Afins, Mallarmargens e integra com dois textos a antologia virtual Essas Águas (Org. Vagner Muniz).



Š Mozneko


Resistir. Palavra que contém em si a imagem da água. Elasticidade feito cordão: de ponta a ponta esgueirando-se – como esgrima – na luta pela vida. Resistir. Sobrepujar a força feito líquido espesso. Que ultrapassa fronteiras ao tatear a pedra: contorna obstáculos e não a fere. Resistir. À pedra. Ao aço. À esgrima. A água – elemento sutil – ultrapassa todos. Não fere: dilui-se. Volta Nascente.

7faces – Fernanda Fatureto │ 101


Š Mozneko


Talvez com o mal, pese a vingança. Posteriormente verás que ela é fel. Talvez com o mal, pese o rancor. Posteriormente verás que ele é pedra. Talvez com o mal pese a injustiça de anos acumulados sobre ombros frágeis.

Os anos passam e dali nasce o amor, o poema, o sutil alvorecer dos dias.

Talvez com o mal nasça o dó, a pena de quem reconhece nos outros a falha, o erro, a amargura. A pena. A pedra. O amor: o poema como esperança dos que resistem.

7faces – Fernanda Fatureto │ 101


Sebastião Ribeiro São Luís – Maranhão Nasceu 1988. É autor de & (Scortecci, 2015); tem poemas publicados na Antologia do Concorso Internazionale de Poesia Castello di Duino (Ibiskos Editrice Risolo, 2010), Antologia Acorde (Scortecci, 2011), com Igor-Pablo e Wesley Costa; e nas revistas Macondo, Samizdat e Substânsia.



Civilidades Conforme a teologia do jogo de azar devo adorar tuas teorias me vigiar a prática ao passo que carrego a esmola planejada e a bondade adoecida Recomendável que meus iguais me terminem o discurso digam como devo pensar meu corpo Sonhos – só os que formatam a inevitável queda dos dedos e o saldo bancário desta noite Me é permitida certa verdade [tola] também um sorriso cretino que nos salve do cinto preso ao pescoço e da falta de paredes brancas Ao fim desse registro espera-se um timbre materno nos livrando de nós mesmos ainda que não justifique a insana escolha pela vida paracetamol e diclofenaco Da lei que nos permite dançar ainda alcanço meu dever em cair cansado em desuso sendo amado pelo aroma detergente de pinho me inundando o coração

7faces – Sebastião Ribeiro │ 101


A beleza Em cada plano o sabor gasto do naco de tempo aqui encruado no beco das mãos há espaços de cada plano aqui rascunhado se perde no corpo pirofantástico objeto frágil que deflora & fotografa o belo um rato pisado multiplica-se nos fatos que calo réus que preservo enquanto minidoors musgam os muros em cada plano desejos de espelho nortes que considero o pretérito imperfeito: fui o ipê aceso que adormece sob o novo shopping da cidade


Ciranda Estar aqui o que me há revolvo goles sobre o calor da terra viva semear o que se exige mas a resposta me fará mais oco ainda? Dizem que amo que vivo meus dedos pontualmente verdadeiros por vezes alucinado gostos de toda cor se enfurecem no corpo deixado as 4 yugas dançam no quintal cercado do que sei à distância idiota finjo não sabê-las me permito descobrir: o desejo não é busca e sim, espera

7faces – Sebastião Ribeiro │ 113



Lucas Perito São Paulo – São Paulo Nasceu em São Paulo em 1985. É graduado em Comunicação em Multimeios pela PUC-SP. Trabalhou na editora Empresa das Artes, escrevendo livros ligados a história e fotografia, fazendo os textos de acompanhamento para o livro fotográfico Caminhos da Mantiqueira (2011) de Galileu Garcia Junior. Tem alguns poemas publicados na Revista Zunái, Diversos Afins e na Revista Benfazeja.



Fratura Autoral Perscruto esse estado de coisas minhas Em idéias que fenecem E entre verdes palavras Curva-se a lira. Pois – outro sim eu sou – Sob existências mais belas, padeço E que de resto Se faça silêncio.

7faces – Lucas Perito │ 117


Relógio D´Água É sob este signo que caminhas pedra. Ao mar jogada, desmancha-se no sol Que greta esse ventre de borracha. Ouvem-se os cascos que batem De encontro ao mármore Num movimento incessante dos olhos. Caldas passam e atravessam frinchas Onde corvos bicam a face que pontuam. Move-se um vasto borbulhar Onde seu outro lado Tinge-se de vermelho-mar. Peixes devoram a espádua Desse barco sem leme nem mastro. Vagas levam o pouco que ainda resta Ossos não definidos de uma carcaça que cessa. Finda. Um extrato de praia, Que diminuta, É pisada Por outros homens de areia.


Š Mozneko


Tântalo “Poetry is the supreme fiction, madame.” Wallace Stevens Há um negro em meu ouvido Que suspira a morte do ser. Caule que se verga Quando adentra a vereda Onde batem os frutos que pendem; Confundem-se os caminhos Do talo, onde por fim Rumoreja alvo lençol No tálamo de sol. Como natural desonra Banha-se no Letes, Não fértil, branca mortalha.

7faces – Lucas Perito │ 120


Š Mozneko


A Caminho de Axël “Que ele possa continuar a vencer Tiamat e abreviar seus dias”

Bem escuro no fundo da noite sem fim Começo narrando Às margens do tempo Um navio por casa E uma tartaruga ao lado Entre altas marés E aves submersas Este é o lugar dos relógios quebrados Dos homens de areia Da fome dos náufragos Dos livros de cabeceira Do acúmulo das coisas Enterradas em um deserto. Edificam-se os passos perdidos, Incertos, caminho ao largo da ilha Assumo a proa Junto as palavras, faço o elo “Detenham-me, sou tão belo”! Era julho, Não participou das alegrias de férias Liderou uma turba de mortos Sobre o azul do abismo Mas o corpo não despertou Do fundo da noite sem fim.

7faces – Lucas Perito │ 122


Prometeu ou Como Formei uma Biblioteca Estes são terríveis tempos para poetas Carrego comigo todo o fogo que roubei dos deuses; Roubei águia ou sol, As luas que nascem no Uruguai e morrem na França, A luxúria de onze mil varas, E só como prazer, San Juan de La Cruz. Como ideal, roubei Innisfree e “Manet vu par” moi-même – Beaux Arts Éditions, Paris, 2011. Também roubei coisas sem valor de culto: Uma bola, Um elástico, Até uma peça de quebra cabeça. (uma pesquisa) Roubei coisas reais; Não eram para mim. Um livro de Orixás e um bloco, Com Poe e um Corvo-Clichê na capa, Para o Alfredo Escrever o seu eclipse.

7faces – Lucas Perito │ 123



Š Leonor Weissmann



MANOEL,


tudo isso s達o fragmentos de tempo


A maior riqueza do homem é a sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitam como sou – eu não aceito. Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. Perdoai. Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas. MANOEL DE BARROS









A poesia é para Manoel de Barros uma forma de exaltar o obscuro, o ínfimo, o desprezado. O poeta não olha o céu, mas o chão. O lodo dos charcos, as pedras, os muros em ruínas, os objetos de uso remoto que dão corpo à lama, criam pasto e musgo. As pequenas criaturas que se movem debaixo de nossos pés. Enfim, todo um universo em estado inaugural para a poesia. JOSÉ EDUARDO AGUALUSA




O poema de Mia Couto que é apresentado na página seguinte é inédito. Foi escrito a pedido de Nara Rúbia Ribeiro por ocasião do último aniversário do poeta Manoel de Barros e divulgado na página dedicada ao escritor moçambicano no Facebook administrada por Nara.


UM ABRAÇO PARA MANOEL Dizem que entre nós há oceanos e terras com peso de distância. Talvez. Quem sabe de certezas não é o poeta. O mundo que é nosso é sempre tão pequeno e tão infindo que só cabe em olhar de menino. Contra essa distância tu me deste uma sabedora desgeografia e engravidando palavra africana tornei-me tão vizinho que ganhei intimidades com a barriga do teu chão brasileiro. E é sempre o mesmo chão, a mesma poeira nos versos, a mesma peneira separando os grãos, a mesma infância nos devolvendo a palavra a mesma palavra devolvendo a infância. E assim, sem lonjura, na mesma água riscaremos a palavra que incendeia a nuvem. MIA COUTO 19.12.2013





POEMINHA PARA MANOEL DE BARROS o lugar das lesmas manoel o lugar dos musgos o lugar dos cupins manoel o lugar do lodo o lugar dos ciscos manoel o lugar dos caramujos o lugar das pedras manoel o lugar dos fossos seu lugar de descanso manoel lá no chão do céu MARCELINO FREIRE







O destino do poeta Manoel de Barros, sina que ele mesmo ajuda a tramar e da qual tira bom proveito, é ser confundido com seus versos. Lemos os poemas de Manoel e, pouco a pouco, nos convencemos de que ele é um homem que não é. Mas, tomado pelo que não é, ele pode, enfim, realizar o sonho que constitui a poesia: ser apenas verbo. “Não saio de dentro de mim nem para pescar”, ele escreveu no Livro sobre nada. No mesmo livro, porém, também está escrito: “Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.” A qual dos dois poetas seguir? Ao Manoel que jamais sai de si, sempre concentrado no que é, ou àquele que, além de estar ausente, desmanchando o mundo na borra das palavras, escreve sobre coisa alguma? A melhor solução, no caso de Manoel de Barros, é não excluir nenhum dos dois. Melhor solução, mas também a mais difícil, como costuma sempre ser. JOSÉ CASTELLO


Manoel de Barros visto pela filha Martha Barros (depoimento) e pelo neto Lucas de Barros (fotografias).


Conheci mais profundamente a poesia de meu pai, quando organizei seu material de periódicos. Foi um período de descoberta da grande obra do poeta. Mais tarde, quando ele me chamou para ser sua ilustradora e comecei uma série de trabalhos com o nome de Iluminuras – precisei entrar ainda mais fundo em sua obra e me apaixonei, me tornando uma admiradora sua.



Ele de fato foi um poeta em tempo integral e isso faz toda diferença. Tinha um ritual de trabalho como o de qualquer outro profissional, com horårio e local para trabalhar. Mas, mesmo quando não estava trabalhando, ele era um poeta, se expressava como poeta nas conversas mais coloquiais, pensava como poeta.



É difícil falar sobre suas influências. Posso afirmar que era um grande admirador dos clássicos e teve o Padre António Vieira como fundamental em sua formação. Considero Clarice Lispector e Guimarães Rosa como os escritores que tiveram maior influência em sua obra. O que podemos evidenciar em muitas de suas poesias. Quanto a mim, não foram poucos os poemas dele que me marcaram profundamente e, dos livros, Ensaios fotográficos e Arranjos para assobio estão entre os meus prediletos.



Seu processo de criação sempre foi lento e cuidadoso, escrevendo inúmeras vezes o mesmo poema, até chegar ao ponto que ele chamava de "ao dente".



INÉDITOS

Da Biblioteca Selvagem de Douglas Diegues • Os dois poetas, Manoel de Barros e Douglas, trocaram correspondências com ideias, poemas, leituras. O carinho do poeta brasileiro por Douglas está expresso na dedicatória de alguns poemas (um deles apresentado nesta edição). Os arquivos agora apresentados revelam mais detalhes desse diálogo.



Era uma vez la primavera de 1992 quando yo habia traduzido um par de poemas del Livro das Ignorãças al espanhol para uma revista paraguaia e enfiei tudo num envelope e mandei a Manoel de Barros. Dias después, Manoel de Barros me devolve um envelope pardo com seus comentários por escrito bajo cada um de los textos traduzidos. Naquela época, habíamos inventado com a Benie en la redación de la revista teju'i (lagartixa em guarani) la expressión "manoelês arcaico" para batizar la matemática del delírio de la lengua que el poeta inventa dentro de la lengua em que se diz. Manoel de Barros achou legal la expressión "manoelês arcaico" y la incorporou em algum de seus escritos publicados em livro. El intercâmbio con el poeta, que escrevia coisas tipo "tudo que nossa civilização rejeita, pisa e mija em cima", sempre foi vivificante. Parte desse intercâmbio selvagem es lo que compartilho alegremente aqui con los lectores de Manoel de Barros y con los lectores que ainda se interessam por poesia en los países del futuro. DOUGLAS DIEGUES

















© David de las Heras

LEITURAS DE POESIA caderno 3



Samuel Pimenta Santarém – Portugal Samuel Pimenta nasceu em 1990, em Alcanhões, Santarém. Licenciou-se em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa. Publicou Geo Metria (Livros de Ontem, Lisboa, 2014, livro que teve publicação primeiro no Brasil pela Editora Literarte, Rio de Janeiro, em 2013), O relógio (Livros de Ontem, Lisboa, 2013) e O Escolhido (Planeta Editora, Lisboa, 2009). Tem poemas publicados em várias antologias e várias premiações (VI Prêmio Literário Valdeck Almeida de Jesus, Brasil, 2010; Prémio Jovens Criadores em 2012; Comenda Luís Vaz de Camões, atribuída pela "Literarte – Associação Internacional de Escritores e Artistas", no Brasil, 2010 e o Prêmio Liberdade de Expressão 2014, atribuído pela Associação de Escritores de Angra dos Reis, Brasil).



Xangô salva mamã Xangô cortou a trança de mamã com seu machado e mamã não mais viu o lume a pedra nos dedos e a água do barro na bacia. Há nas mãos de mamã o açúcar dos figos e o gentil sussurro de haba.

7faces – Samuel Pimenta │ 117


Naufrágio Por toda a noite o corvo cantou. Toda a noite o uivo do mar e toda a noite o medo dos homens. Por toda a noite o corvo cantou. As pedras, o sal, a morte. Os navios que jamais irão nascer no horizonte. Por toda a noite o corvo cantou. O naufrágio estende-se na praia. Não corre leite nem mel na areia. Apenas os corpos, as águas tristes, os peixes. Por toda a noite o corvo cantou. Ainda há corvos que cantam para guiar os mortos.


A morte da laranja Uma laranja é uma esfera que eu corto em dois pedaços. Antes de cortar a laranja ao meio ela já morria no ramo da árvore.

7faces – Samuel Pimenta │ 185


Khora Que alimento nos sacia e nos nutre a altivez? O fruto da รกrvore o ouro ou a virtude? Cultivem-se os campos com o cereal dos mestres. No dia da colheita ceifaremos um novo homem.


Gineceu Dentro de quatro arestas se fecham as mulheres. Dentro de quatro arestas aguardam servis emudecidas. Os vasos, os cálices e as ânforas não são barro másculo e viril. Esperam que lhes nasça um falo para que tenham lugar entre os homens?

7faces – Samuel Pimenta │ 187


Š Mozneko


Sílex Mão e pedra. Força do gesto que bate bate e rompe a forma. O gume rudimentar da lasca que parte e sangra, do sílex que quebra e nasce, novo, para cortar o rude golpe.

7faces – Samuel Pimenta │ 189



Abilio Maiworm-Weiand Petrópolis – Rio de Janeiro Carioca de nascimento e formação, começou a escrever poesia em 1988; entre as premiações que já ganhou pelo seu trabalho está o Concurso de Poesia de Visconde do Rio Branco, Minas Gerais (1994) e o XIII Salão Universitário de Expressão e Criatividade da Universidade Federal de Viçosa – SUEC (1997); tem interesse pela fotografia e do gênero teve três imagens selecionadas na edição do SUEC em 1999.



Ausência Os seixos desprendem-se do penedo Como as palavras livram-se dos atos. Meus atos na balbúrdia do mundo Feito o silêncio das letras sem fatos. E o coração trepida mudo Enquanto a memória finda em medo. Porquanto prossegue a angústia Da raiz que ainda não subverto.

7faces – Abilio Maiworm-Weiand │ 193


Š Abilio Maiworm-Weiand



(Des)caminhos As formigas agitam-se no concreto Não há mais árvores mais solos desnudos Não há mais teto. Os sangues gélidos de asfalto esquiavam-se ao zunir cálido do inverno O alimento é sintético A água dilui o ácido que precipita Sentimentos silentes oscilam sem rumo sem espaço no instante. E as crianças indagam ao poeta: – Cadê a poesia? – Na bola, no pique, na boneca... Mas não há mais árvores mais solos desnudos Só vazios repletos vasos quebrados e mudos.

7faces – Abilio Maiworm-Weiand │ 196


Penumbra Cavo páginas em noites densas Por trás de tensos signos. Lapido pedras e afino a pena Busco-me na fonte sem desígnio. Cavo ao largo e não desnudo Atinjo o deserto e o silêncio em cena. Precipito-me num abismo oculto Dos signos que não findam tudo.

7faces – Abilio Maiworm-Weiand │ 197



Mauricio Goldani Novo Hamburgo – Rio Grande do Sul Mauricio Goldani Lima, 27, Novo Hamburgo é poeta, professor e músico. Possui publicações em revistas e antologias nacionais e regionais, impressas e online. No momento trabalha para o lançamento de seu primeiro livro de poesia.



O frio na barriga mudou-se para o coração

7faces – Mauricio Goldani │ 201


a dor era aguda o problema, grave teu silêncio

7faces – Mauricio Goldani │ 202


Sandro Teixeira São José dos Pinhais – Paraná Nascido em Curitiba, Paraná, é graduado em Letras e Filosofia e aluno do Doutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná.



Náusea O tempo pobre E o poeta também. Fundem-se? O poeta se sente sujo, mãos sujas, Corpo sujo, e uma mente com entulhos, que se multiplicam, se renovam – neons anunciando qualquer imbecilidade. Como não se sentir sujo? Os homens levam jornais, refrigerantes e computadores para casa. Levam ainda prospectos, sonhos impossíveis e ilusões que alimentam e controlam suas vidas. Os homens levam muito, sempre, pras suas vidas. Estão menos livres, acreditam nos jornais. Lá fora, ruas vazias. O poeta procura movimento, um coração, O relógio sujo ou quem sabe uma flor, mesmo desprezada. Lá fora, ruas vazias O poeta se despoja do que sabe E com desespero fura o asfalto. Ali uma flor vai nascer.

7faces – Sandro Teixeira │ 205


Š Mozneko


XIII Rei? Não sei de onde eu falo. Viagem resposta: porto e partida desviados de mim. Ilha sim, aqui e talvez, por todo o passo, por toda a vida. De onde eu falo? Tente adivinhar. Desta ponte desprezada, desarticulada, despenhadeiro. A real distância é a disparidade do poder. A tua violência disfarçada e a minha, nada sofisticada, São uma e mesma miséria. Eu falo do agora, do peso sobre o dia disfarçado de claridade, dessa rua engasgada com a mesmíssima angústia de todos os cantos, do agora do poder que enegrece o meu azul, o meu ar e rouba lucidez de todos nós. Você não vê o turvo? Não vê. Aqui, na pornografia das tuas crianças, na conspiração que fulmina qualquer compaixão legítima. Só se olha para aquilo que fura o peito ou desrespeita os sorrisos? Não vê. É o turvo que nos põe de joelhos. Viajo na imobilidade. Moeda corrente do agora: percorrer espaços. Viajo na imobilidade, no agora. Rei sem memória Rei? Não rei

7faces – Sandro Teixeira │ 207



Ricardo José Pérez Segura Misiones – Argentina Formado em Administração na Universidade Panamericana; depois passou a dedicar-se à literatura. Participou da Escuela de Escritores de la SOGEM e atualmente estuda Literatura Dramática e Teatro na Universidade Nacional de Misiones. Participou de diversas antologias de poesia, conto e ensaio como Sueños de tinta (2006), Poesía y aparte (2007), Amor al terror (2008) e Palabras sin piel (2008). Também tem colaborado em revistas como IndieRocks, Picnic, Swagger, Haus, Istmo, Revuelta, Efecto Pigmalión, Residente e Suite 101.



El cielo teñido de noche El cielo teñido de noche No hace más ruido Al de las sirenas Que duermen Quijotes Al pie de los molinos El viento ya no sopla Y las hélices de papel Esperan Sin estrellas Las siluetas se hicieron sombras Y el mundo se colmo de nada Me encontré con el corazón oprimido Y las ideas en fuga Sin palabras ni miradas Quedé desnudo frente a mí Sin reconocerme… Y me abracé

7faces – Ricardo José Pérez Segura │ 211


Š Mozneko


El pájaro canta El pájaro canta Triste alegre Viaja v o l a n d o Aun a g o t a d o Busca Se asusta Y aprende Todo es nuevo Es VIDA Desde el sOl Hasta las flores Todo vale Casi todo Incluso la muerte Menos la jaula Aunque de oro la vistan

7faces – Ricardo José Pérez Segura │ 213


Š Mozneko


Pequeño rosal sin flores Pequeño rosal sin flores A la sombra de carpelos tornasoles En la transparencia jubilosa El sol te mira y seduce Pero las nubes impunes Recorren el cielo Entre tu anhelo y tu suspiro Tantas lluvias y relámpagos pasan Sin que el polen de la vida Anide vestigios en tu vientre Abrillantas las hojas Afilas tus espinas Multiplicas las extensiones De tus largos encantos Y las mariposas revolotean En otros rincones del jardín La esperanza cansa Y en el día gris, estremece El punto exacto de tu existencia Lanzas un grito de angustia Más allá del verde espacio Y en la calma del deleite Brota el primer botón de tu presencia Pequeño, deforme y asqueroso Tuyo, el primero Y sientes un gorgoteo dentro-tierra La flor abre su esplendor En un segundo detenido Con el rojo más rojo de siempre Y no se detiene Con la mayor lentitud constante


Abre sus capas para descubrir Otros mantos imperfectos En una acción infinita Que rompe tus entrañas En minúsculos movimientos Es el día más soleado El primer pétalo no aguanta Y en una danza dolorosa Cae hacia la tierra colmada De abono y savia eterna

7faces – Ricardo José Pérez Segura │ 216


Bruna Piantino Belo Horizonte – Minas Gerais É autora dos livros de poesia Breus, Bastão e Biscuit, e do livro infanto-juvenil O siri e a sombrinha. Participou como convidada nas antologias de autores de língua portuguesa O achamento de Portugal e Portuguesia. Realizadora dos vídeos 448 e Ming Jai. Produtora do longa-metragem Trésor e dos curtas-metragens Cocamado, Que Coso, Bastão. Atriz na vídeoperformance Radio Pirata. Roteirista de Meredith, Acroama e Moths. Criadora da plataforma virtual Cine cafez_all, com exibição itinerante de filmes selecionados.



a progressão dona Rosa senhora robusta na casa dos 50 com aparência de lenhadora bruta que extrai facilmente os dentes do leão-marinho semimorto en la playa Calavera veio no fim da tarde –presságio– montada num quadriciclo vermelho avisar da chegada da tormenta elétrica e antes que evaporasse na paisagem luzes estroboscópicas executavam os 6 movimentos das 6 suítes de J.S. Bach patos selvagens, albatrozes corujas, cães e gaviões vinham pedir abrigo o golfinho que nadava à margem desaparecera leste e oeste cruzados pela malha metálica dos raios grande violência anunciada no eco dos trovões gotas de chuva colidiam como projéteis no telhado da casa ao longe onde eram absvorvidas as descargas o mar beirava o infinito dispensadas as candelas do candelabro os olhos fixados nas correntes agitadas que ansiavam os favores da lua cheia

7faces – Bruna Piantino │ 220


era sabido que o mar estava próximo que as ondas que escalavam as rochas davam de frente para a casa que a água começava a entrar pelas frestas fazendo da pele de vidro uma cascata intermitente era árdua a tarefa de manter acesa a lareira com apenas pinha, isqueiro e tocos de madeira lá fora, noite negra fez-se esposa da chuva e amante do vento o fogo com suas labaredas de medusas constrói a memória da casa a memória das paredes lá fora, noite densa protagonista do marulho das vagas enquanto coriscos seguidos por seus rosnados cessam no arco-circunferência do cælum esgotado consoante casas brancas quadradas alvoreciam feito carvão em brasa a estrela de Ishtar esvanecia o fresnel do farol adormecia um marujo desayunava um bando de lobos gritava ao batel que o mar rasgava


Š Mozneko


o tempo do conflito paquiderme à sombra da acácia recém-abatido posa para câmera . .. alguns modos de se matar um elefante . 1|6 pela mira de Ernest Hemingway’s .577 nitro express double barreled on Safari in Africa in 1953 . 2|6 10 homens esqueléticos arremessam lanças arrancadas pela tromba até que o sangue se esvaia . 3|6 50 homens a cavalo falando árabe abatem a granadas 89 elefantes 33 em período lácteo, 15 filhotes . 4|6 1 helicóptero aparelhos de visão noturna silenciadores da caça furtiva os elefantes nunca esquecem . 5|6 mina antitanque, mina AT pressão mínima 150 kg no disparo autorizada pelo tratado de Ottawa utilizada no Zimbabwe, séc. XXI .


6|6 cianureto em poços d’água mortes indiretas no micro-hábitat efeito de até quarta geração . .. . .. troféu . black market, white material two thousand dollars per kg . .. verificação . visualização de banda de Hunter-Schreger presença de grãos e padrões linhas retas e entrecruzadas ângulos em formato V superiores a 90° pouca variação de tonalidade . .. antropologismo . xadrez | selo japonês | bola de bilhar | tecla de piano | escultura sacra | joia rara . .. toneladas de refugo . festa no céu inter alia de hienas | abutres | moscas | larvas | minhocas | lesmas | vermes | escaravelhos | pequenos insetos | fungos | bactérias | microrganismos

7faces – Bruna Piantino │ 224





EU NÃO VOU PERTURBAR A PAZ De tarde um homem tem esperanças. Está sozinho, possui um banco. De tarde um homem sorri. Se eu me sentasse a seu lado Saberia de seus mistérios Ouviria até sua respiração leve. Se eu me sentasse a seu lado Descobriria o sinistro Ou doce alento de vida Que move suas pernas e braços. Mas, ah! eu não vou perturbar a paz que ele depôs na praça, quieto

De Face Imóvel, a partir de Biblioteca Manoel de Barros, p.7

As ilustrações para os poemas de Manoel de Barros são de Pedro Lucena



OS GIRASSÓIS DE VAN GOGH Hoje eu vi Soldados cantando por estradas de sangue Frescura de manhãs em olhos de crianças Mulheres mastigando as esperanças mortas Hoje eu vi homens ao crepúsculo Recebendo o amor no peito. Hoje eu vi homens recebendo a guerra Recebendo o pranto como balas no peito. E, como a dor me abaixasse a cabeça, Eu vi os girassóis ardentes de Van Gogh.

De Face Imóvel, a partir de Biblioteca Manoel de Barros, p.10


VIAGEM Rude vento noturno arrebatou-me Para longe da terra, nu e impuro. Perdi as mãos e em meio ao oceano escuro Em desespero o vento abandonou-me. Perdido, rosto de água e solidão, Adornei-me de mar e de desertos. Meu paletó de azuis rasgões abertos Esconde amanhecer e maldição... Um deserto menino me acompanha Na viagem (que flores deste caos!) E em rosa o sol me veste e me inaugura. Dou às praias de Deus: a alma ferida, As mãos envenenadas de ternuras E um buquê de carnes corrompidas.

De Poesias, a partir de Biblioteca Manoel de Barros, p.36


LÍNGUAS Contenho vocação pra não saber línguas cultas. Sou capaz de entender as abelhas do que alemão. Eu domino os instintos primitivos. A única língua que estudei com força foi a portuguesa. Estudei-a com força para poder errá-la ao dente. A língua dos índios Guatós é múrmura: é como se ao dentro de suas palavras corresse um rio entre pedras. A língua dos Guaranis é gárrula: para eles é muito mais importante o rumor das palavras do que o sentido que elas tenham. Usam trinados até na dor. Na língua dos Guanás há sempre uma sombra do charco em que vivem. Mas é língua matinal. Há nos seus termos réstias de um sol infantil. Entendo ainda o idioma inconversável das pedras. É aquele idioma que melhor abrange o silêncio das palavras. Sei também a linguagem dos pássaros – é só cantar.

De Ensaios fotográficos, a partir de Biblioteca Manoel de Barros, p.15-16



DESPALAVRA Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino da despalavra. Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades humanas. Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades de pássaros. Daqui vem que todas as pedras podem ter qualidades de sapo. Daqui vem que todos os poetas podem ter qualidades de árvore. Daqui vem que os poetas podem arborizar os pássaros. Daqui vem que todos os poetas podem humanizar as águas. Daqui vem que os poetas devem aumentar o mundo com as suas metáforas. Que os poetas podem ser pré-coisas, pré-vermes, podem ser pré-musgos. Daqui vem que os poetas podem compreender o mundo sem conceitos. Que os poetas podem refazer o mundo por imagens, por eflúvios, por afeto.

De Ensaios fotográficos, a partir de Biblioteca Manoel de Barros, p.21


PALAVRAS Palavra dentro da qual estou a milhões de anos é árvore. Pedra também. Eu tenho precedências para pedra. Pássaro também. Não posso ver nenhuma dessas palavras que não leve um susto. Andarilho também. Não posso ver a palavra andarilho que eu não tenha vontade de dormir debaixo de uma árvore. Que eu não tenha vontade de olhar com espanto, de novo, aquele homem do saco a passar como um rei de andrajos nos arruados de minha aldeia. E tem mais uma: as andorinhas, pelo que sei, consideram os andarilhos como árvore.

De Poesia completa, p.477


A LÍNGUA MÃE Não sinto o mesmo gosto nas palavras: oiseau e pássaro. Embora elas tenham o mesmo sentido. Será pelo gosto que vem de mãe? de língua mãe? Seria porque eu não tenha amor pela língua de Flaubert? Mas eu tenho. (Faço este registro porque tenho a estupefação de não sentir com a mesma riqueza as palavras oiseau e pássaro) Penso que seja porque a palavra pássaro em mim repercute a infância E oiseau não repercute. Penso que a palavra pássaro carrega até hoje nela o menino que ia de tarde pra debaixo das árvores a ouvir os pássaros. Nas folhas daquelas árvores não tinha oiseaux Só tinha pássaros. É o que me ocorre sobre língua mãe.

De O fazedor de amanhecer a partir de Poesia Completa, p.476



VENTO Se a gente jogar uma pedra no vento Ele nem olha para trás. Se a gente atacar o vento com enxada Ele nem sai sangue da bunda. Ele não dói nada. Vento não tem tripa. Se a gente enfiar uma faca no vento Ele nem faz ui. A gente estudo no Colégio que vento é o ar em movimento. E que o ar em movimento é vento. Eu quis uma vez implantar uma costela no vento. A costela não parava nem. Hoje eu tasquei uma pedra no organismo do vento. Depois me ensinaram que vento não tem organismo. Fiquei estudado.

De Poemas rupestres a partir de Biblioteca Manoel de Barros, p.26




Inédito (acrescentado a Menino do mato / Escritos em verbal de ave) A TURMA A gente foi criado no ermo igual ser pedra. Nossa voz tinha nível de fonte. A gente passeava nas origens. Bernardo conversava pedrinhas com as rãs de tarde. Sebastião fez um martelo de pregar água na parede. A gente não sabia botar comportamento nas palavras. Para nós obedecer a desordem das falas infantis gerava mais poesia do que obedecer as regras gramaticais. Bernardo fez um ferro de engomar gelo. Eu gostava das águas indormidas. A gente queria encontrar a raiz das palavras. Vimos um afeto de aves no olhar de Bernardo. Logo vimos um sapo com olhar de árvore! Ele queria mudar a Natureza? Vimos depois um lagarto de olhos garços beijar as pernas da Manhã! Ele queria mudar a Natureza? Mas o que nós queríamos é que a nossa palavra poemasse.



OS CONVIDADOS

Vicente Franz Cecim Nasceu e vive na Amazônia, Brasil, em Belém, Pará. É o autor do ciclo de ficções reunidos sob título Viagem a Andara oO livro invisível (Grande Prêmio da Crítica da Associação Paulista de Críticos de Arte/Apca).

Maria Heloísa Martins Dias Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (1992) e pósdoutorado pela Universidade Nova de Lisboa (2002); é graduada em Letras Vernáculas (1976) e mestra em Letras (Literatura Portuguesa) (1986) pela mesma instituição. Atualmente é Livre Docente (MS-5) da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Portuguesa e Teoria Literária.



7faces caderno-revista de poesia www.revistasetefaces.com O caderno-revista de poesia 7faces é uma produção semestral independente com interesse na publicação de poesia. Editores Pedro Fernandes Cesar Kiraly Organização desta edição Pedro Fernandes e Cesar Kiraly Conselho editorial Eduardo Viveiros de Castro Ésio Macedo Ribeiro Maria Filomena Molder Nuno Júdice Convidados para esta edição Vicente Franz Cecim; Maria Heloísa Martins Dias Colaboradores (por ordem de apresentação) Ondjaki Lucas Perito Jørge Pereira Samuel Pimenta Izabela Orlandi Abilio Maiworm-Weiand Juliana Hollanda Sandro Teixeira Valter Hugo Mãe Mauricio Goldani Fernanda Fatureto Ricardo José Pérez Segura Sebastião Ribeiro Bruna Pianto

Agradecimentos A todos que enviaram material para a ideia e em especial ao Vicente Franz Cecim e à Maria Heloísa Martins que se dispuseram a escrever sobre a obra de Manoel de Barros; à Martha Barros que, em nenhum momento hesitou de nos atender; ao Lucas de Barros pelas fotografias.

Contato Pelo correio eletrônico dos editores, pedro.letras@yahoo.com.br, ckiraly@id.uff.br ou através do correio eletrônico da redação revistasetefaces@ymail.com © David de las Heras

7faces. Caderno-revista de poesia. Natal – RN. Ano 6. Edição n. 11. Jan.-Jul. 2015. ISSN 2177-0794

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Capa e imagens principais (inclusive a desta página): David de las Heras

Artista e ilustrador nascido em Barcelona. Estudou artes plásticas na Universidade do País Basco e especializou-se em pintura. Fez estúdio em Bilbao, onde iniciou parte de suas primeiras exposições de arte individuais e coletivas. Atualmente tem trabalhos expostos em vários lugares da Europa, como Portugal, Alemanha, Espanha, Barcelona, sempre com diferentes formas de expressão artística.

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Para participar da ideia, deve o poeta consultar o espaço www.revistasetefaces.com, para ler as regulagens e enviar o material; ou solicitar aos editores através dos contatos pedro.letras@yahoo.com.br e ckiraly@id.uff.br o envio das regulagens.




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