Revista 7faces 13

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Capa © Billy and Hells Imagem interior © Lilly Pulitzer

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Obra da homenageada Cenas de abril (1979) Correspondência completa (1979) Luvas de pelica (1980) A teus pés (1982) Literatura não é documento (1980) Inéditos e dispersos: poesia/prosa (1985) Escritos do Rio (1993, artigos jornalísticos e comunicações) Crítica e tradução (1999, que reúne os dois livros anteriores, mais Literatura não é documento) Correspondência incompleta (1999, em colaboração com Heloisa Buarque de Holanda) Crítica e tradução (1999) Antigos e soltos: poemas e prosas da pasta rosa (2008) Poética (edição completa de sua obra, 2013)

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Natal – RN 7faces • 7


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Na página anterior: datiloscrito para Álbum de retalhos, livro idealizado por Ana Cristina Cesar e nunca publicado. Este foi incluído em Cenas de abril. Acervo Ana Cristina Cesar / IMS

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sumário Apresentação Sobrevida pela palavra 13 Por Pedro Fernandes À maneira de 28 Por Bárbara Belloc POETAS DE HOJE Jørge Pereira 45 Fernanda Pacheco 49 Ricardo Abdala 55 João Paulo S. Liossi 61 Nivaldete Ferreira 69 Cristiane Grando 75 Jeovane de Oliveira Cazer 81 Laís Araruna de Aquino 86 ENTREMEIO 92 As paredes da cela: Ana Cristina Cesar Por Cesar Kiraly Ana C. de Paris 109 Ensaio fotográfico por João Almino

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Ana Cristina Cesar: contexto e texto 134 Por Armando Freitas Filho POETAS DE HOJE Lau Siqueira 145 Carlos Barata 152 Karin Krog 159 Luís Otávio Hott 165 Douglas Siqueira 170 Salvador Scarpelli 177 Anna Barton 183 Fernanda Fatureto 189 Lúcio Carvalho 195 Leandro Rodrigues 204 Laís Ferreira Oliveira 209 Ana C. Obra a obra 215

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© Terry Frost. Lizard Black

apresentação

SOBREVIDA PELA PALAVRA A vida são instantes. E os instantes são vãos. Só a palavra é sobrevida. Mesmo se esquecida, fatalidade da qual talvez o único ileso seja o tempo; silenciada, destino dado àqueles para quem a palavra é mero exercício pragmático ou quem é calado pelo poder. A palavra é ainda nossa única eternidade. Foi, na impossibilidade de precisar o eterno, a cápsula que trouxe vivos quem nunca conhecemos. E revelará para o futuro quem fomos. A eternidade é um reverberar contínuo de palavras. Não à toa, a palavra foi tornada objeto de culto. Quem é deus, se não uma palavra? E a existência, se não o que se nomeia? A palavra é o princípio, o meio e o fim. A compreensão da palavra como criadora do visível, finito, e do invisível, infinito, é a raiz da poesia. Há no poeta a contínua tarefa de refundação do mundo. Ora pela distensão da palavra em uso, ora pela renovação da língua pela palavra nova. No primeiro caso é, mesmo que recriação, criação, uma vez não ser o ato recriativo uma ressurreição. A ressurreição não é o nascimento do mesmo. Tudo só vive uma vez. Exceto a palavra, que se renasce e alcança os opostos noutras vidas.

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Assim, quando acusam o poeta de sua poesia se refugiar no trivial é, por vezes, contra a possibilidade criativa – e o logo o ser da poesia – que se colocam. Porque não é a trivialidade aquilo que permanece no poema mas sua expansão. O que se expressa. E isso precisou que o poeta alcançasse outra compreensão sobre a efemeridade a fim de percebê-la como possibilidade poética. Ao mesmo tempo, esta não é uma percepção fortuita. Nem totalmente nova – coisa do acaso. Nem gratuita, levada em causa pelo império do trivial e do efêmero, expandido da aurora da modernidade ao contemporâneo. É a reafirmação do que sempre se percebeu enquanto força, pulso da natureza. Que o material da poesia é a existência. Se assim, a poesia está em toda parte. E o poeta é o demiurgo. Por exemplo, o ponto no qual se insere Ana Cristina Cesar, o dos poetas que lidam com o uso coloquial da linguagem e se apropriam na sua obra de palavras corriqueiras, dos seus usos pragmáticos, do seu cotidiano – afirmativa que, se se adéqua ao estatuto do efêmero aqui em destaque, se distancia o suficiente, no limite de ser chamado de contradição, se lembrarmos que esses poemas podem, agora distantes desses usos e do cotidiano da linguagem, constituir o sentido sempiterno esperado da poesia. Historicamente é inegável o distanciamento do presente tomado como feitura do poema. Mas, o caso percebido então, é que, tomado pelo poema, qualquer efemeridade é logo tornada distância. O trabalho de preocupação pela desvinculação do datado – daquilo que o próprio Carlos Drummond de Andrade, um dos nomes pertencentes daquele eixo central do modernismo e situado entre os revolucionários do gesto poético na literatura brasileira, isto é, base para o que tem sido trabalhado pelos poetas de depois – não é uma tarefa atribuída ao leitor mas ao poeta; convencionalmente, são raros os leitores presos à necessidade de vincular o conteúdo do poema a determinado contexto. E essa proximidade é só ilusão para o poeta. Para o leitor, pura miragem. Aos leitores mais acurados nunca lhe restará outra alternativa se não a de, no trato de deslindamento 7faces • 14


do poema, oferecer a mais diversa sorte de possibilidades de leitura a fim de demonstrar o trabalho de significação construído, direta ou indiretamente, pelo poeta. Isso significa dizer que, a depender da maneira como se verifica o contexto pela obra poética, retomá-lo não é atribuir-lhe uma força atrasada e sem valia para o leitor contemporâneo, tampouco atualizá-la, mas tratá-la como um enriquecimento no processo de leitura do poema. O poema é rio de linguagem e arrasta sedimentos do tempo. Em passagem, esses sedimentos são o mesmo-outros. Ler poesia vestida de efemeridades é encontrar a pele deixada pela palavra no passado e como se recria depois. Um mover-se sempre em distensão. A efemeridade que une Ana C. aos poetas de seu tempo e depois dele assume-se como uma frente de significação diversa: se manifesta ora na estrutura e forma do poema, quando encontramos a força epifânica do verso curto, a estrofe breve ou poema-pílula e a linguagem quase sempre despida do trabalho de garimpo, a anotação do que lhe vem num instante de epifania; ora no tema, nas situações evocadas que se referem ao dia comum, do que vê e vivencia o eu-poeta; ou na maneira como o poema é apreciado pelo leitor. Isto é, não estamos ante qualquer força que lhe implique uma necessária reflexão porque o efêmero, o epifânico, é revelação e não inspiração. O poema é instante. É por isso que o renascimento, por assim dizer, da sua obra encontra terreno muito fértil na atualidade. Porque, do tempo dela para o nosso, o efêmero é cada vez um modus vivendi; já não é a da atitude de reflexão contemplativa. Estamos definitivamente na era dos insight – naquilo que, se para o bem ou para mal ainda não sabemos, tem se assumido na poesia com grande força expressiva, ainda que o poema-trocadilho e o poema-piada, por exemplo, signos da aurora desse tempo, sejam uma alternativa cada vez mais previsível e logo um fenômeno cansado, que serviu a um tempo mas agora talvez devêssemos usar essa força para galgar outras expressões poéticas; de toda maneira, as novas gerações têm em poéticas como a de Ana o impulso para se reinventarem. Herdeiros na poesia são aqueles capazes de subverter o que seus antepassados disseram e fizeram. O trabalho de poetas como 7faces • 15


Ana C. foi sempre o de desconstruir descontraidamente a sisudez da poesia e de quem faz o verso. Isso responde perfeitamente as acusações de que a poesia de poetas como Ana Cristina sobrevivem mais ao culto do poeta torturado, atormentado e suicida. A poesia dessa poeta encontra fôlego dentro e fora de seu tempo. É catapulta para o futuro. Prevalece a sobrevida da palavra que, por sua vez, é a sobrevida do poeta. Não o contrário como os detratores costumam pensar.

Pedro Fernandes editor

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Ana Cristina Cesar (1952-1983)

© Rogério Carneiro

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© Terry Frost. Lizard Black

a homenageada

Para compreender o lugar privilegiado que Ana Cristina Cesar ocupa na história recente da literatura brasileira é necessário ter em conta seus dados biográficos. No caso desta poeta singular, que foi testemunha da passagem 1968-1969 na Europa (quando ainda era adolescente e estudava na Richmond School for Girls, em Londres), foi estudante universitária durante os anos de chumbo da ditadura militar brasileira (participou da célebre Marcha dos 100 mil no Rio de Janeiro) e morreu cedo às portas da abertura democrática e de um renascimento cultural que foi estabelecendo-se timidamente no país no transcurso de década de 1980, vida e obra se fundem de um modo excepcionalmente forte e são quase indissociáveis, não por razões explicitamente políticas (ainda que possa sublinhar um certo compromisso feminista em sua obra, mesmo sofisticado e não panfletário), mas pela natureza mesma de sua escrita e suas circunstâncias. Ana C. – abreviatura pela qual chegou a ser conhecida – se transformou num nome emblemático dentro de uma geração, de uma época (os últimos anos da década de 1970 e a década de 1980, isto é, o tempo da abertura, a descoberta e a aparição dos movimentos pósvanguardistas), de um lugar (a zona sul carioca e seus equivalentes paulistanos, o núcleo da burguesa representada) e assim, por conseguinte, da poesia brasileira contemporânea.

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Ana Cristina Cruz Cesar nasceu em 2 de junho de 1952, sob o signo de Gêmeos, no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, numa família de classe média, culta e presbiteriana. Seu pai foi o sociólogo e jornalista Waldo Aranha Lenz Cesar, também conhecido por sua destacada militância ecumênica, e sua mãe a professora de literatura Maria Luiza Cesar. Teve dois irmãos: Flávio e Filipe. Cursou seus estudos no Instituto Metodista Bennett, onde sua mãe dava aulas, e desde criança sua vivacidade intelectual e seu talento foram incentivados pelo grupo familiar (aos seis anos, quando ainda não sabia ler nem escrever, Ana C. ditava poemas para sua mãe, o que demonstra sua intensa e precoce atividade literária). Enquanto cursava seus estudos primários e secundários no Instituto Bennett fundou e editou o Jornal Juventude Infantil, e mais tarde fez o mesmo com o periódico Comunidade, da igreja presbiteriana. Durante o ano que residiu em Londres, graças a um programa de intercâmbio, entrou em contato com a obra de escritores como Emily Dickinson, Sylvia Plath e Katherine Mansfield, que a fascinaram e logo traduziu. Em 1975 terminou a Faculdade de Letras na Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), e logo depois prosseguiu os estudos para um mestrado em Comunicação, cuja trabalho defendeu em 1979 na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Também obteve, em 1980 e com uma bolsa da Rotary Foundation, um Master of Arts em Teoria e Prática da Tradução Literária na Universidade de Essex, Inglaterra. Durante sua estadia na Europa viajou por França, Itália, Espanha, Grécia e Holanda. Depois de uma vasta e precoce atividade como poeta e tradutora em jornais e revistas alternativos do Rio de Janeiro, sua poesia obteve um reconhecimento contundente com a publicação, em 1976, da antologia 26 poetas de hoje, organizada por Heloisa Buarque de Holanda, que foi a plataforma de lançamento da chamada “poesia marginal” ou 7faces • 19


“geração mimeógrafo”. Em edições independentes, Ana C. publicou Cenas de abril (1979), Correspondência completa (1979), e Luvas de pelica (1980, imprenso na Inglaterra). Sua dissertação de mestrado, Literatura não é documento, que versa sobre a presença da literatura brasileira no cinema nacional, foi publicada pelo Ministério da Educação e Cultural (MEC/Funarte) em 1980, e em 1982 a Editora Brasiliense, editora comercial paulista mediana publicou A teus pés numa edição de bolso que incluía poemas inéditos e seus três livros anteriores, e que rapidamente se transformou num referente para as novas gerações (em 1992 já ia na oitava edição). Desde sua trágica morte – Ana C. se suicidou saltando ela janela do apartamento de seus pais em Copacabana no dia 29 de outubro de 1983 –, sua importância como poeta, somada ao mito criado em torno de sua imagem não há feito mais que aumentar. A partir de 1998 seu acervo pessoal ficou aos cuidados do Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, que promove exposições, cursos e edições cada vez mais luxuosos da poeta e sobre ela. Postumamente, Armando Freitas Filho organizou os livros Inéditos e dispersos (1985, prosa e poesia), Escritos do Rio (1993, artigos jornalísticos e comunicações), Crítica e tradução (1999, que reúne os dois livros anteriores, mais Literatura não é documento), além de Correspondência incompleta (1999, em colaboração com Heloisa Buarque de Holanda). Em 2008, Viviana Bosi organizou Antigos e soltos (poemas e prosa da pasta rosa). Os principais jornais do país comunicaram a morte de Ana Cristina Cesar defendendo-a como “uma das maiores autoras de poesia da geração de 80”. Num artigo publicado na Folha de São Paulo em 31 de outubro de 1983 intitulado “Ana Cristina, o salto da poesia para a morte”, Heloisa Buarque de Holanda, de quem Ana C. havia sido aluna e amiga, a caracterizou como “a escritora brasileira mais importante dos últimos tempos”. Armando Freitas Filho, seu amigo de sempre, disse haver falado com ela por telefone uma meia 7faces • 20


hora antes de sua morte. Ana havia lhe confessado que estava se sentindo “mal” e que queria que o médico lhe receitasse algo que a fizesse chorar. Também mencionou sua falta interesse por continuar vivendo. Armando tentou animá-la, mas ela se mostrou irredutível. Como se encontrava sob tratamento médico e com a acompanhamento terapêutico dia e noite, Armando pensou que superaria a crise. Desde seu retorno de Londres em 1981, Ana Cristina – uma menina de poucas palavras mas de expressão luminosa e sorridente, que havia sido contratada pela Rede Globo para fazer pesquisas e escrever roteiros para novelas – havia sofrido várias crises depressivas e se sentia cada vez mais fora de lugar. Nesse mesmo mês já havia tentado se matar jogando-se no mar. Não deixou mensagens nem cartas de despedida. Somente poemas. Décadas depois de sua morte, ocorrida quando tinha só 31 anos, a escrita e a vida de Ana C. continuam presentes, ativas e em plena expansão através de seus ecos na poesia dos jovens; em antologias, traduções e adaptações de sua obra para documentários e o teatro; em publicações de inéditos, desejos, rascunhos e notas, e em numerosos e ricos estudos dedicados à sua produção literária. São muitos os elementos que confluem para a enorme repercussão e institucionalização da obra de Ana C. Entre eles, a criação de um tipo de hagiografia em torno à sua figura, uma sacralização certamente acrítica que é produto do impacto causado por sua morte trágica e prematura, a fotobiografia publicada postumamente (que a mostra como uma jovem, bela e loira poeta suicida), e as dificuldades que apresenta sua leitura e que frequentemente transformam aqueles sinais de inadequação e sensualidade num simples mito romântico e uma história de martírio. Mas os leitores de Ana C. não se deixam seduzir pelo drama pessoal e sim pela palavra ambígua, pelo ar de misteriosa intimidade, pelos segredos apenas revelados e pelas confissões pontuadas pela dissimulação. Autora de um intrigante e complexo discurso poético (que a distingue e a distancia dos outros expoentes 7faces • 21


da poesia marginal), Ana C. parece inventar uma intimidade que se naturaliza e se urde nos limites entre confissão e literatura, e num jogo de deslocamentos, máscaras e disfarces (sintomaticamente, o título original de A teus pés era Meio de transporte). O sujeito poético de seus poemas jamais se mostra, só se deixa entrever nos interstícios, em zonas e estratégias de passagem, no espaço entre (no qual ela também, poderíamos supor, se sentia enredada) num lugar em constante tradução (atividade a que Ana C. se dedicou de forma constante e apaixonada como tradutora e ensaísta), se pensamos, poeticamente, que a tradução é vislumbre, vestígio ou memória de um texto (um lugar) perdido.

* Para uma nota biobibliográfica de Ana C. Renato Rezende

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que desliza Onde seus olhos estão as lupas desistem. O túnel corre, interminável pouso negro sem quebra de estações. Os passageiros nada adivinham. Deixam correr Não ficam negros Deslizam na borracha carinho discreto pelo cansaço que apenas se recosta contra a transparente escuridão.

De A teus pés [1982], em Poética, p.112

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rompimento Nas instâncias do momento zero Um sopro por entre as telhas sai Sombra, cobra, obra, nada quero Para o olho imerso um rasgo vai Esta nesga súbita que eu vi Este segredo que nunca está Este terremoto que entreouvi São alento e fôlego do ar Ressurge. pedra do abismo dor Reabre o séquito de fagulha Silêncio névoa neva em mim Vai-se o inútil salmo, o inútil amor Em cada começo o fio e a agulha Em cada som um nome só: fim inconfissões - 28.10.68

De Inéditos e dispersos [1985], em Poética, p.150.

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bar central Na falta do leite que me deixa à míngua bem a cerveja do Raul, materno. Escrevo até arder a boca, depois saio, espio os cachorros distraídos no passeio, sinto horrores variados. À noite escapo pelas letras dos anúncios, faço propagandas de calcinhas, me deito com o funcionário dos correios. De madrugada ven o último garçom com a razão da sede nos músculos; estranho o ritmo dos versos, minha pança chora, chora, ainda não saí. O garçom não serve mais pra minha fome; me deito é fora, enroscada nos três gargalos da esquina.

De Antigos e Soltos: poemas e prosas da pasta rosa [2008], em Poética, p. 368

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Ana Cristina Cesar, Brasília, c. janeiro de 1977. Foto de Clara Alvim. Acervo Ana Cristina Cesar / IMS.

à maneira de por Bárbara Belloc

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Ana Cristina Cesar, Ana Cristina, Ana C. Poeta-estrela de sua geração, de vida breve, intensa, veloz e frutífera, e larga força gravitacional na vida dos outros e em sua língua, na poesia, na tradução, nos modos de composição e nas estratégias de combinação e sobreposição de informação; literatura, oralidade, escrita, releitura, testemunho, experiência, educação sentimental1. Com nome de asteroide (por que não?) e com a energia de um planeta novo. Ou mesmo: Ana C. como um big bang, o princípio gerador de um estilo / universo de escrita omnívoro e onipresente – que é o diário íntimo, que é a correspondência, que é a poesia e que é a investigação teórica, quando cada coisa é em si e em relação com os demais? –, cujo reflexo ou efeito na leitura funciona como um passe mágico, do tipo agora vem isto; agora já não vem. Ana Cristina Cesar, a princesa oculta por trás de uns enormes óculos escuros, a autora de textos que convertem seus leitores em magos. Raro caso de erudita iniciada numa sociedade e numa época anti-intelectuais, e assim também animal em perigo, buscando refúgio e encontrando-o numa tarefa contínua, rigorosa e livre, por seguir suas próprias regras. Lírica inflexível e irremediavelmente contemporânea, talvez tenham sido as qualidades de intimista e de apaixonada as que permitiram concentrar-se em seu trabalho e vivê-lo ousadamente, com arrebato e autoconsciência crítica, com avidez e distanciamento, o que não exclui, ironicamente, ter optado muitas vezes por disfarçar-se com luvas de pelica (suas Luvas de pelica, de 1980), ficando várias vezes fora do duelo pessoal, um arcaísmo ultrapassado (“Sou uma mulher do século XIX disfarçada em século XX)2 e, talvez também, um gesto caprichoso que momentaneamente tenha aliviado a dor intraduzível, o mal-estar da (estar na) cultura, e livrara-se de um golpe a mão nua com o equívoco de que dar volta à 7faces • 30


página implica esperar mais do mesmo. Porque em seu idioma pessoal outra página é outro dia é outra Ana C., como uma rosa é uma rosa etc. Talvez por essas características particulares atípicas e por ser sua poesia o mais divulgado de sua produção tanto no Brasil como no exterior, o recurso mais comum da crítica acadêmica, repetido como um estribilho desde a década de 1980 até hoje, consiste em incluí-la no grupo da “poesia marginal” ou “geração mimeógrafo” dos anos setenta – denominação atribuída aos que faziam circular seus textos em edições do autor, embora não partilhem uma estética grupal tampouco uma pertença de geração, como se vê no contraste, por exemplo, entre Paulo Leminski e Francisco Alvim –, com o argumento de um modo em comum de publicação e distribuição dos textos e o uso, nos poemas, de coloquialismos e um estilo de organização objetiva e à sua maneira solidária com o programa informal do tropicalismo (escrito com minúscula, se se o entende como uma estratégia de produção e disseminação sendo posta a ponto de acordo com o contexto); isso basta para situar sua obra, entre outras obras, nos expedientes principais das Letras. Mas a situação importa3. No Brasil desses tempos, sob uma prolongada ditadura militar e as férreas restrições do Ato Institucional n. 5 (o nefasto AI-5, que durante uma década deu poderes totalitários à presidência e suspendeu, sob pena de detenção imediata, garantias constitucionais como as de organizar-se de maneira independente e manifestar-se em público, além de institucionalizar a tortura), a única opção da arte era radicalizar-se, explorar e expandir as fronteiras da linguagem própria de cada área, oxigenar-se, hibridizar-se, redefinir os campos de ação, renovar os modos de relação com a comunidade e, por fim, assumir-se como um vírus capaz de injetar vida na sociedade para, à maneira de uma catarse, criar um espaço fora da camisa de força e das máscaras4. Inventar uma realidade distinta. Para começar tudo de novo. 7faces • 31


O gênio Rogério Duarte, ideólogo e mais ativo artista do Tropicalismo insurgente em nossos dias (escrito com maiúscula se se considera, como ele, “um programa de guerra cultural” ainda vigente e atuante), declarou que o movimento era em suas origens “um desejo amoroso de modernidade para o Brasil. Era todo um ponto de vista que estava, e continua reprimido [...] Era a própria inteligência brasileira se manifestando, num momento de consciência, de lucidez e de paixão por esse país. [...] Mas essa linguagem não foi compartilhada, ou nem mesmo compreendida. Nós não fomos compreendidos pela intelligentzia. Nós fomos aceites pela massa através dos festivais [de música]. Foi aí que o movimento explodiu. Porque falávamos a linguagem da massa. [...] Foi o preço que o tropicalismo pagou por ter que ser traduzido para uma linguagem de massa e ter sido vulgarizado”5. Os ideais, as manifestações e as derivações daquele combate com várias frentes propostas desde o campo da cultura – um caso único da América Latina – podem encontrar-se nos testemunhos de seus atores (desde as memórias Verdade tropical, de Caetano Veloso, publicada em 1997; Tropicália revisitada, de Gilberto Gil, de 2007; e Hélio Oiticica. Qual é o parangolé e outros ensaios, de Waly Salomão, de 2003, até os textos do momento, como os da revista Bondinho, reeditados em 2008, os apontamentos e diálogos reunidos em 2003 sob o título “Primeiros manifestos tropicalistas”, de Torquato Neto, a já citada antologia Tropicália, em edição ampliada de 2012 ou escritos do mesmo Duarte), sem entrar em conflito nem obstar suas flagrantes diferenças. Por sorte, a meta histórica de uma proposta contracultural e intrinsicamente democrática como aquela não pode traçar a silhueta de um labirinto, e nele, o perfil de cada artista, sua própria luz e sua própria sombra. Mas vale uma vez mais um poema, neste caso de Duarte, para representar o mapa subjetivo e social em questão: Sou um marginal porque descobri 7faces • 32


Que a margem fica dentro do rio E que a Lagoa Rodrigo de Freitas Está cheia de peixes mortos No mapa de Guanabara é que leio a minha sorte azul na zona sul morte na zona norte6 Zoon politikón Assim, foi nessas águas carregadas de perigos e possibilidades, nas ondas extáticas e poucos sublimes desse Brasil e dessa cidade Rio de Janeiro7 – com uma estadia de três anos na Universidade de Essex, na Inglaterra, para especializar-se num trabalho no qual se destacaria: a teoria e a prática da tradução – que Ana Cristina Cesar, a jovem culta e de indomável instinto (entre os vinte e os trinta anos de idade) aprendeu a navegar precisamente e na contracorrente, muito além da aceitação geral e o consenso entre os pares que puderam gerar suas – sempre muito pessoais – tentativas. (Zoon poietikón = animal em perigo, expulso da República). Poucos anos antes de fazer circular seus poemas em edições autopublicadas (Cenas de abril, de 1979, é seu primeiro livro) e dar a conhecer, por fora das esporádicas colaborações em revistas literárias e periódicos, seus trabalhos de pesquisa (seu primeiro texto publicado neste terreno foi “Literatura não é documento”, de 1980), isto é, antes de começar a ganhar um “nome de autora”, sua estreia no papel impresso confirmou instantaneamente o que Ana C. era antes tudo: uma poeta original. Uma escritora diferente. Recorda Heloisa Buarque: Conheci Ana por indicação de minha amiga Clara Alvim, sua professora de Letras na PUC, no período em que eu mapeava os novos poetas AI5. Quando fomos apresentadas, num da7faces • 33


Capa de Literatura não é documento (1980). O livro foi resultado da dissertação de mestrado em comunicação de Ana Cristina Cesar, orientada por Heloisa Buarque de Holanda. Acervo Ana Cristina Cesar / IMS

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queles eventos históricos de oposição ao regime militar, no Teatro Casa Grande, Ana enrubesceu e fugiu. Foi Clara que me trouxe cópias de seus poemas. Li os textos com admiração e certa surpresa. Não era exatamente o que eu estava habituada a receber nessa pesquisa sobre os novos poetas. Seu texto trazia um diferencial interessante. Ana entrou nos 26 poetas hoje, praticamente à sua revelia e fez um sucesso imediato8. A flecha havia sido lançada e à vista de todos mostrava-se a carta roubada (o tiro branco) de Ana C., seu “método documental”, sinônimo de sua teoria e prática da literatura: Como terei orgulho do ridículo de passar bilhetes pela porta. Esta mesma porta hoje fecho com cuidado; altivo. Como não repetirei, a teus pés, que o profissional esconde no índice onomástico os ladrões de quem roubei versos de amor com que te cerco. Te cerco tanto que é impossível fazer blitz e flagrar a ladroagem.9 Quotation marks? Agora, por que importa associar o nome e as credenciais literárias de Ana Cristina Cesar à poesia, sua poesia, como se esta fosse a senha para o acesso ao núcleo de sua escrita (e a sua interpretação)? Por que advertimos sobre os talentos de poeta desta autora e tradutora? Pela simples razão de seu método, que nela é manifestação do instinto. E porque ler qualquer página de Ana C. implica jogar o jogo da personificação, a multiplicação de vozes e a ventriloquia (jogos de poeta, álibi de fingidor?) para assim recriar os vínculos de afinidade espontânea entre textos e autores diversos dentro da fictícia intimidade do próprio escrito. Muito mais que intertextualidade. Ou um método documental do impossível: “quando você escreve, tem sempre uma história que não pode ser contada, entende, que 7faces • 35


é basicamente história, a história da nossa intimidade, a nossa história pessoal. Essa história, ela não consegue ser contada. Se você conseguir contar a tua história pessoal e virar literatura, não é mais a tua história pessoal, já mudou. Então, eu acho que isso, digamos, é uma questão que me preocupa. E nisso eu até chamaria assim uma parte de A teus pés [seu livro de poemas mais conhecido, de 1982] que é até meio teórica, que repensa sobre literatura... Vocês podem fazer o levantamento um pouco disso. A literatura é muito pensada. O que é a literatura, o que é poesia, o que não é? O que é isso de literatura? Que texto maluco é esse, que conta e, ao mesmo tempo, não conta, que tem um assunto e, na verdade, não tem um assunto e é diferente do nosso discurso usual, que é diferente da correspondência, que é diferente do diário?”10. Dialética Pelo prazer sensual e intelectual do texto de Ana Cristina, o autor é poeta e “o poeta é um fingidor”11 que, sem dúvidas, chama à ação. “É claro que, como todo escritor, tenho a tentação de usar termos suculentos; conheço adjetivos esplendorosos, carnudos substantivos e verbos tão esguios que atravessam agudos o ar em vias de ação, já que palavra é ação, concordais?”12 E aqui sua política: potencializar a ação que é a palavra ante uma linguagem “suculenta” e talvez intencionalmente performática, autoconsciente e gozosa do artifício que encarna, de suas técnicas, provando em cada detalhe os limites da forma ou deixando-se ser decididamente informal, em transe improvisado. O que se torna explícito quando reler os outros, traduzi-los, apropriar-se de suas palavras, fazer anotações técnicas, dar justificações e marcos de referência, expor ideias novas, debater e planejar perguntas e hipóteses resulta numa exploração (uma explosão) da escrita que ainda cumprindo com as convenções do gênero as excede experimentalmente. Como quem faz experimentos consigo 7faces • 36


próprio. Nos textos mesmos. Na passagem da década de 1970 aos (adjetivem como queiram) anos oitenta e até hoje: Então: É daqui que eu tiro versos, desta festa – com arbítrio silencioso e origem que não confessor – como quem apaga seus pecados de seda, seus três monumentos pátrios, e passa o ponto e as luvas.13 Correspondência in/completa Os ensaios, resenhas e conferências publicadas em Crítica e tradução compreendem o período de 1975 a 1983, um intervalo chave – e lamentavelmente breve – na produção de sua autora, marcado também pelas utopias e as revoluções políticas mundiais como nunca antes, e certamente nem depois, se manifestaram. Os temas tratados abarcam fenômenos culturais (“Malditos marginais hereges”, “Literatura marginal e o comportamento desviante”, “O poeta fora da República” ou “O escritor e o mercado”), a literatura feita por mulheres (“Literatura e mulher: essa palavra de luxo”, “Rinoceronte, depois de Eva e Adão”, “Depoimento de Ana Cristina Cesar no curso ‘Literatura de Mulheres no Brasil’”), questões de leitura camufladas em resenhas críticas (“Quatro posições para ler”, “Nove bocas da nova musa”, “O poeta é um fingidor” e “O rosto, o corpo, a voz”), usos políticos e historiográficos de certas personagens literárias (“O bobo e o poder em Poe e Herculano”), a teoria e a técnica da tradução da poesia moderna (“Traduzindo o poema curto”, “Cinco e meio”, e “Bastidores da tradução”), os avatares da “Elegia”, de John Donne em sua passagem, via tradução para o português, o idioma dos poetas concretos e da música, na canção de

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Ana Cristina Cesar. Londres, c.1970. Acervo Ana Cristina Cesar / IMS

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Caetano Veloso (“Pensamentos sublimes sobre o ato de traduzir”, um texto que implica descobertas enormes e é uma feliz mostra da compatibilidade entre escrita vanguardista, pensamento poético e crítica cultural). A originalidade de Ana Cristina Cesar se coloca à prova neste teatro, e é eloquente graças à sua aguda inteligência, sua sensibilidade, sua inspiração e sua audácia, página após página. Seja no relato das exigências e descobertas na tradução dos poemas de Emily Dickinson para a língua portuguesa (“Cinco e meio” poderia ser o texto de abertura num curso de tradução literária), na crítica das tendências que começavam a impor-se no mercado editorial ou na pesquisa sobre como se lê a intimidade e o feminino na literatura; questões colocadas, longe de serem fechadas sobre si e sugerem os nós de uma rede extensa, todavia aberta a novas perspectivas e pesquisas. Os temas seguem a ordem do dia. E à maneira de Ana C., a poeta, a autora, não ignora que cada palavra acertada deve ser tomada literalmente como um ponto de partida. Não se surpreenda então o leitor com o amplo percurso que atina os escritos de Ana, o arco-íris que desenham, sua feliz e intransigente anarquia. Os assuntos, as intenções e os modi operandi dos artigos reunidos em Crítica e tradução são sinais no espaço-tempo, indicadores de rumo e vale todas voltas, deixar-se levar para onde quiserem nos levar. Falar em línguas. Usar disfarces. Tatuagens. Seguir rastros. Continuar lendo e escrevendo. Seu fiel amigo e também antologista de sua obra, o querido poeta Armando Freitas Filho, nota que: Na essência, sua escrita sempre se articulou em movimento, em pleno trânsito, ao ar livre de sua vida e da cidade, em cadernos diversos e provisórios, onde a anotação "quente", em cima dos fatos, aparece nas diferentes caligrafias de que era capaz, que refletem a rapidez e a mutação do clima, da sensação.14 7faces • 39


Um exercício do pensamento e uma prática de escrita que merecem ser retomadas, ativas.

Notas * Tradução de Pedro Fernandes de O. Neto. Uma versão em espanhol deste texto serviu para a antologia El método documental (Matinal Nomadismos, Buenos Aires, 2013). A tradução em português é inédita. 1

Em sua apresentação de uma antologia poética da escritora, o poeta tradutor e pesquisador Marcos Siscar escreveu que “não podemos deixar de constatar que o nome ‘Ana Cristina Cesar’ (ou simplesmente ‘Ana C.’)... designa não só a vida breve de uma poeta, mas também um corpus de obras poéticas e ensaísticas publicadas em edições cada vez mais luxuosas; designa, igualmente, um arquivo mantido pelo Instituto Moreira Salles e uma fortuna crítica das mais atuantes no Brasil e no exterior. Isto é, que, além de ser o nome de uma poeta, ‘Ana C.’ é hoje um dos nomes da poesia no Brasil, abrindo um debate que vai mais além da questão específica de sua escrita” (Ana Cristina Cesar por Marcos Siscar. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2011, coleção Ciranda da Poesia). 2

Poema sem título, datado de entre 1979-1982 e publicado postumamente em Inéditos e dispersos, organizado por Armando Freitas Filho (São Paulo: Editora Brasiliense, 1985). 3

Heloisa Buarque de Holanda, a grande crítica, teórica e artífice de boa parte dos destinos mais recentes da poesia brasileira, além de amiga pessoal e mentora de Ana Cristina Cesar, escreveu que “entre os poetas marginais ela se comportava como uma musa, um pouco distante, como devem ser as musas. Namorou alguns desses poetas, tornou-se amiga dos outros. Era a única poeta mulher entre eles. Sua própria performance como poeta, distanciava-se bastante da performance marginal. Sua poesia era muito trabalhada, com referências literárias nacionais e estrangeiras explícitas, um texto denso, carregado de subtextos e camadas de sentido. Pouco tinha a ver com a dicção improvisada, rápida e rasteira da poética marginal”. (Escolhas. Uma autobiografia intelectual. Recife; Rio de Janeiro: Língua Geral; Carpe Diem, 2009).

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Para um resumo das políticas da arte do momento recomendamos a leitura da “Nota editorial” do ensaísta Frederico Coelho em Tropicália (Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008). 5

“Rogério Duarte se textifica” em Tropicaos (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2003). 6

“Marginálium”. Este fragmento contém várias alusões à situação política urbana da época: “Que a margem está no próprio rio” faz referência ao limite “oficial” e à suas margens (o marginal) dentro do Rio de Janeiro; “a Lagoa Rodrigo de Freitas cheia de peixes mortos” representa o coração “parado” da cidade, “azul na zona sul” sugere a vida cômoda e tranquila dos bairros ricos, e “morte na zona norte” indica o explícito (nas áreas menos privilegiadas). 7

Federico Coelho diz acertadamente que “para entender um evento múltiplo como o tropicalismo vale a pena pensá-lo não como um movimento cultural, tal como a historiografia insiste apresentá-lo, mas como uma militância cultural. [...] Se o entendemos como uma militância, podemos reconhecer que o tropicalismo foi, de fato, muito mais uma reunião criativa de contradições que uma confluência plácida de consensos”. Destacamos o especial caráter desse fenômeno político-cultural porque a atuação de Ana C. Cesar desde meados de 1970 não poderia ser justamente entendida sem levar em conta a reorganização do campo cultural brasileiro a partir dos temas e as abordagens inovadoras propostas em 1967-1968. 8

26 poetas de hoje foi a antologia que reuniu pela primeira vez os poetas independentes do momento; foi organizada, prefaciada por Heloisa Buarque de Holanda e publicada em 1976 pela editora Aeroplano, do Rio de Janeiro. 9

Poema sem título, datado de entre 1982-1983 e publicado postumamente em Inéditos e dispersos. 10

Citado de “Depoimento de Ana Cristina Cesar no curso ‘Literatura de mulheres no Brasil’” 11

Título de um dos artigos publicados em Crítica e tradução e leitmotiv pessoal tomado de empréstimo do célebre poema de Fernando Pessoa. 12

Parágrafo de A hora da estrela, de Clarice Lispector, parafraseado no artigo “Literatura e mulher: essa palavra de luxo”, que está em Crítica e tradução.

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Fragmento de “Sete chaves”, poema de A teus pés (São Paulo: Editora Brasiliense, 1982). 14

De “Tentativa de pegar Ana à unha” em Em memória de Ana Cristina Cesar (junho 1952 – outubro 1983) (Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, outubro de 2003).

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poetas de hoje

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Jørge Pereira Recife – Pernambuco Biomédico e escritor; colaborou com revistas de literatura lusófonas como a Subversa, 7faces, Usina, Flaubert e Fluxo. Publicou contos e poemas em coletâneas de autores ibero-americanos no México, Colômbia e Espanha, e colaborou com curadoria artística para o Escrever nas Margens em Portugal e com o Espacio Cultural Violeta, no Chile.

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Desejos Preferiria a dor da carne A sequidĂŁo da alma O sonho sem ternura O Amor sem sentimentos Preferiria a pele ardente Bocas amargas O devorar do fĂ­gado O castigo de Prometeu Preferiria a sangria Duras penas Ser algoz de mim A ver a mulher da minha vida Deitar-se com o homem Que eu sempre sonhei

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Chuva Deus está chorando Neste instante Porém todos dizem que chove Que apenas está chovendo Deus derruba uma lágrima Somente uma lágrima Para todos os poemas Que não podemos escrever Quando estamos felizes

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Fernanda Pacheco Osasco – São Paulo É poeta e professora de História da rede pública estadual. Publicou em 2014 seu primeiro livro, A culpa é do Chet Baker, pela editora Patuá.

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03:51 minha tela é o escuro dos olhos fechados à beira do estige miles davis sopra bitches brew danço a euforia remediada o tormento mastiga cada canto dos meus dedos as arestas deste espaço se curvam tenho espasmos pela pressão do silêncio – morte do horizonte declarada! a dor é elevada sólida dura firme como é quente a sombra onde derreto o que você está dizendo? tenho a boca na palma da mão musa antiga sem um olho acaricia fatias finas do meu esqueleto o medo está vazando logo acaba o trilho é vazio aqui e muito bagunçado um escândalo o som alterna com o susto te incomoda? meus olhos ceiam teu corpo subvertido.

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Euforia 16 hiena ao meu lado esquerdo aterroriza o escuro tenho bordas e ainda pingo até o ruído ERETO acordeão recolhe cada pontada em brasa do sangue acabaram de desenrolar o novelo que perturba meu cérebro minha palavra preferida sempre foi GUILHOTINA para dilatar o ensejo sem retorno an irish circus on finnegans Wake pulo em todas as poças antes do mangue dos teus cabelos faço os elefantes ficarem quietos com sua voz de comer choro em frames e os costuro no vento que antecede a vida erro quando significo o erro porque não soy matéria e a morte nem é morte atravesso minha cabeça com a lâmina do SILÊNCIO visão se faz em ângulo de noventa graus contra meu peito sou cor grossa golpeando cada pó desse tormento você quer mesmo lapidar o que penso quando calo a boca? erínias confortam cada parasita que me penetra augusta é uma lagarta QUENTE e mansa diagnosticada com esquizofrenia cadê meu remédio contra combustão de fantasias? olha lá a dentadura da mulher que caiu no trilho do trem vocês me mostram a vida em cenas com a manivela enferrujada transposição do absurdo visualvital contra o absolutismo do lirismo falido já! círculos enfileirados transando a altura do horizonte em marcha inversão das vogais dentro do rodízio das suas falas malas abolição de todos os signos fardados de acalento aponta esse poema pra lá pe loam ordede us! ainda não sequei e já me penduraram na caverna da memória extinta pingo cada vez que pincelam a misericórdia em nome do quê mesmo? é um tesão ter fé no não? te excita o gozo monumento de muros humanos?

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Crua no quintal dos meus sonhos acaricio aquela cruz fincada em mim e nela se pendura a musa puta que te faz rasgar a crosta da pele absurda demente por princípio delirante por base é o amor líquido que escorre até o fundo sou teu poço, fosso, poro solitário do corpo contorno da escuridão no meio da rua onde me apago me afasto sou sua curva em rotação rítmica me ajoelho no calvário pra te provocar ira desabo depois do rasgo dos cortes graves bem no centro do seu colo ACELERADO habitat natural do tempo abstraído versículo&textículo do meu eu convertido.

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Ricardo Abdala Uberlândia – Minas Gerais É natural de Itumbiara, Goiás. Engenheiro mecânico de formação, exerce e dedica a maior parte de seu tempo na produção de uma fábrica; violonista, compositor; participou de algumas coletâneas poéticas e de crônicas, também de exposições e noites literárias como autor convidado, recitando seus poemas. É autor do livro de prosa e poemas Flores amarelas miúdas.

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Fogo, amor e fábrica ] Grávidas caminham sobre um chão viscosamente manchado do néctar que do pulso das máquinas escorrem... E um diluente estéril, próprio para injeção, enterra em fogo, seus abismos de calores profundos, explorados numa linha presa só na exatidão. Um cheiro de álcool mistura ao gosto etéreo do sangue na boca mal amanhecida, a certeza de que tudo na vida é menos complexo do que o amor (que é a coisa mais simples que existe)... Fogo transforma O amor some A fábrica faz, Fogo consome, Amor sem fábrica, Fome Amor, fogo e fábrica são as asas e a prisão de um homem. [

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Praça da Biblioteca Municipal no Tabajaras Voou uma casca de ovo e o menino que saiu dali a engoliu de novo! Nove horas da manhã, um tudo me diz que afinava seus ouvidos à espera de uma infinita fila inteira da terceira mais tênue das oito primaveras. Ilusão...! Quem não saberia dizer que era você esse tempo todo... Verdades...? Não era ovo, não havia primavera, nunca ninguém cantou a espera. Não há caminho, Manhã... Ninguém engoliu. E tudo sempre foi tão menos palpável que o infinito. Olhei pra você e vi a estrela da loucura cravada bem lá no meio da sua testa. Aí então, nos abraçamos e levitamos livremente Pra muito além das praças... Fomos fazer rodinhas com a língua no mamilo infernal do sol. (éramos quase como libélulas).

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Linda Já que não buscou a sua toca, as suas roupas frouxas, seus óculos espertos, seu casaco, a sua seda, aquelas suas frases irreparavelmente sujas... Estou pensando em ir vestido de você pro carnaval

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João Paulo S. Liossi São José do Rio Preto – São Paulo É músico e poeta. Em 2014 foi vencedor do Prêmio Paulo Leminski, concurso de poesia realizado pela Universidade Estadual de São Paulo de São José do Rio Preto, e em 2015 deu luz a um fanzine de haicais, além de ter publicado em algumas revistas literárias, como Raimundo e Mallarmargens. Escreve o seu primeiro livro, ainda sem editora.

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canção da palavra e o que faz o homem sem a coisa [o homem queria mais que a coisa que as coisas são hoje] já que as coisas deixam de ser coisas logo quando começamos a percebê-las o que faz o homem sem a palavra para dizer essa coisa que a todo momento escapa da coisa e morre sem ar?

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aqui o descongelamento não é automático enquanto mudo durmo eu sei que o poema [o poema tirado da tomada antes do sono] amolece no cio da madrugada enquanto eu durmo mudo o poema perde aos poucos seus parcos pedaços suas pedras de plasma seus metros e metros de mágoas espalhadas pelo chão da minha casa

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erosĂŁo ver do poema a face como psique quis antes que ele se esfumace em vulto e nuvem de giz

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buraco negro/ eu nesta cama em posição fetal enquanto você atravessa a porta e eu ainda te peço volta e você diz sim que volta amanhã que volta para buscar teu casaco de pó teus livros não lidos tua caneca negra de flores oníricas de formas estranhas desmanchando mágicas e eu martelando meus olhos eu comprimindo uma estrela até ouvir um estalo até caber nos meus olhos até caber nos meus lábios um grão de estrela um poema uma bomba até você me olhar e sumir até você me olhar e sumir em mim e você atravessa a porta enquanto eu nesta cama em posição fecal rumino a informação de que nenhuma informação do universo pode desaparecer

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sentimental o que fica depois do último átimo: cisco seco do cigarro, luz lameada sobre o lenço onde teu batom batia, átomo fantasma falhando no vazio, tua voz vagando viva no silêncio desse quarto

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livro livro aberto sob a brasa do teu rosto rosa e chama minha cara acinzentada pela fumaça das ruas livro velho amarelado por palavras ou silêncio entre cacos de cabelo ressequido pelo sol letra aberta sob o sono do teu olho pendurado entre as pernas fatigadas da calçada da vigília letra aberta branca e leite que anula letra e livro permaneço pele e página sob a sombra dos teus dias

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Nivaldete Ferreira Natal – Rio Grande do Norte Nasceu em Nova Palmeira, Paraíba e vive em Natal desde 1972. Graduou-se em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, instituição na qual foi professora até 2013, quando requereu aposentadoria. Fez mestrado e doutorado na interface educação/literatura. Publicou os livros Sertania (1979) e Trapézio e outros movimentos (1994, poesia); Entre o carrossel e a lei (2007, teatro) e Memórias de Bárbara Cabarrús (2008, romance). Também produziu para criança (literatura e música).

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a chave do corpo a chave do corpo não é o sexo por mais que abra um corpo a outro. um corpo requer muitas chaves. assim falou o chaveiro enquanto fazia mais uma chave para o meu corpo.

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Ciclo de Saros Pelo Ciclo de Saros sabe-se a repetição Dos eclipses. Também as palavras entram em zona de umbra, Repetidas vezes fazem um cone de sombra Atrás de si. Talvez exista assim uma astronomia do sentido. amor amor é água que se bebe sempre pela primeira vez, não importa quantas

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Havia O dia estava aberto às coisas que falam. Havia um vestido louco fugindo do varal E um cachorro lutava contra uma flor caída. Havia um lodo azul nas pistas, Pedaços de céu que os homens estragaram. Havia lobos magros olhando as praças E um carnaval sem ninguém Que todos tinham ido comer lótus em terras outras E havia um sertão/um desertão Estourado de acnes/cactos E ninguém sabia que embaixo havia Pedras de valor. Havia meninos trabalhando em lugares ermos E homens mentindo ao redor de grande mesa. Havia.

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Cristiane Grando Cerquilho – São Paulo Escritora, tradutora, conta com 14 livros de poesia publicados em seis línguas. Laureada UNESCOAschberg de Literatura 2002. Doutora em Literatura pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorado em Tradução Literária pela Universidade de Campinas (UNICAMP). Docente na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Diretora-fundadora do Jardim das Artes e do Centro Cultural Brasil-República Dominicana, extensão cultural da Embaixada do Brasil em São Domingos.

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amor amor amor lágrimas azuis vão e vêm ao me lembrar de ti longínquo amanhecer

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os peixes I peixes voam pela casa sempre tenho mĂłveis de madeira para aquecer no dia a dia os olhos II os peixes voadores abriram a boca gritaram por causa dos trovĂľes da chuva densa branca gritaram de medo

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amanhecendo com Braulio Tavares e Manoel de Barros nada um susto em cada linha eu te protejo atĂŠ de vocĂŞ mesmo ameninando-me

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Jeovane de Oliveira Cazer Brasília – Distrito Federal Formado em Letras-Tradução pela Universidade de Brasília. Tem contos publicados no site LiteraturaBr, na revista Flaubert e poema publicado no blog do jornal de Literatura Contemporânea Plástico Bolha. Mantém um blog, Recuo, com seus poemas, contos, crônicas e outros escritos.

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WiFi anda em círculos concêntricos esteira rolante sem fim corre sobre fina camada de gelo horas e horas e horas e horas e horas aqui a grande aventura humana tácitos amantes xamãs cientistas magos do século o tempo estio o espaço curvo o auto instantâneo em paus de selfie e corpos fritando em ondas WiFi eis o progresso humano...

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Seringas de ampola Decantar com palavras o que só as moças de luvas de vinil com seringas de ampola poderão introjetar no dia a dia através da prestidigitação destas linhas lograr o significado, o drone, o vaticínio, o dígito binário.

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Radioatividade Paixão, substância radioativa; transmuta-se ao longo do tempo, emitindo fluorescência e transpassando corpos opacos à luz natural. Como isótopo 14, que decai em muitos anos, ou isótopo 234, desintegrando-se em segundos, alcançará a estabilidade dos estados: poderá ser o amor; ou vazará em um acidente nuclear, infeccionando os usuários e matando – aos poucos. Eventualmente, será descartado como lixo atômico; a área afetada isolada, em uma Chernobyl fantasma, assombrada pelo perigo mortal de sua radiação contaminada.

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Laís Araruna de Aquino Recife – Pernambuco Formada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É advogada e poeta.

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A um bruxo, com amor Tu dizes amanhã é nunca faz preciso viver como não deixar-se ao sol se sol apanhar a chuva se chuva andar ao vento – sempre que a matéria tua é passar Tu dizes e eu penso na redenção do amanhã como se pudesse saltar sobre o nada de depois de tudo em um eterno presente como se o amanhã um oriente que é preciso alcançar Mas tu dizes amanhã é nunca e no nada em que meditas te cabe nadar – profundamente que isto o torna pleno de águas, sopro e vento enlace de tua voz com o tempo Tu dizes dizes e dizes e tua voz é como duas águas em minha vida e o nada, essa falta de chuva sol e vento enterro no tempo e a mim – deixo ficar ao sol, se sol sob a chuva, se chuva e ao vento – sempre que a minha matéria eu, corpo nas águas – é passar

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Juventude Teus amigos – alguns – mudaram de cidade Os teus irmãos já não moram Com teus pais Foram para o norte, o sudeste Para as Índias, talvez Mas tu, fiel, ficaste Com o teu cachorro Tens tempo para o trabalho Para à tardinha à janela olhar detidamente As gentes que passam Para a poesia – os livros Que nunca leste Não precisas da economia do verbo Sempre podes falar sobre o tempo (Como são úmidos e quentes os dias do ano) Ou sobre o maldito governo Deste país miserável Com alguém no elevador Nas filas do mercado – vai tudo muito caro E quando o dia for muito belo Para as conversas pequenas e fáceis Restam-te os solilóquios Ou o sonho da espera Ainda tens muitos anos à frente E a esperança, essa imprudente Te acompanha, oh jovem Podes por um minuto Em tudo acreditar Para desacreditar logo depois Frustração após frustração Teus olhos têm um brilho inextinguível Tudo está bem 7faces • 88


Mesmo as coisas fora de lugar És jovem Podes o recurso extremo Dorme mais um pouco

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Amor fati mas quando na escada você parou e disse que fazer dezessete anos e um amor para o resto da vida (suspiro profundo...) a vida parou o instante desse suspiro depois bateu novamente então eu sorri como quem sabe inútil tentar impedir ao rio seu fluir ao oceano e descemos sabendo que desceríamos a escada e a vida juntos

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Uma (falsa) certeza o sol nasce a leste e a oeste o dia vai morrendo perto do equador as estações do ano são verão inverno verão... um dia na aula de ciências o professor disse daqui a um bilhão de anos o sol explodirá e a terra deixará de existir pensei onde ficaríamos nós e os nossos animais plantas geografia foi meu primeiro absurdo hoje o mundo é apenas uma possibilidade sob o sol dos mais recentes acontecimentos

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entremeio

As paredes da cela: Por Cesar Kiraly

Š Anish Kapoor

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Ana Cristina Cesar

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1. Há sempre limites históricos para se apreciar uma poeta. Tudo é ruim acerca das limitações históricas. O que são elas? São restrições à elaboração consciente de uma experiência. Ainda mais, concernem à incapacidade de por em palavras o aprendido com a leitura do poema. Por que deveríamos nos ressentir disso? Ora, porque se nos rendêssemos a essa condição, o melhor que conseguiríamos seria um bom lugar na datação, espécie de truísmo programado. A alternativa seria intentar o universal? Nada disso, porque nada mais endereçada do que esse tipo de disposição. A vontade de universal é somente uma das maneiras da forma local. Um tipo de estilo. As incapacidades de elaboração estão no universal como no local. 2. Se admitimos que a incapacidade de elaboração, de colocação em palavras, apenas é o nome de algo que não se pode apreciar, seria o caso de minimizar o que perseguimos e apenas tomar essa possibilidade como um charme transgressivo? Digamos que não, admitamos que se pode bem apreciar um poema, tê-lo notado em profundas dimensões, principalmente, quando se escuta falar sobre ele. Não é o caso de beneficiar irreflexivamente a leitura silenciosa, porque mesmo esse leitor prudente, se como todo mundo, melhor apreciador do que enunciador, perceberá o descompasso entre o que consegue atingir se pronunciando e o sentido que consegue ter. Perceber o sentido já é difícil, digamos, mas fazer sentido, mesmo a partir de outro, literariamente posto, é ainda mais. Não é possível fazer sentido sem perceber o sentido, mas mostrar o sentido, no literário posto, não só demanda particular delicadeza do gosto, como significa paciência para costurar o percebido com o sentido do material lido. 3. A obra da Ana Cristina Cesar tem sofrido com tais rigores intrínsecos à leitura de poesia. Está claro que sua recepção é, no sentido negativo, toda ela local. A leitura dos poemas nos evoca especificidades de apreciação que a escrita sobre eles soa sempre muito ingênua. Mesmo que reconheçamos a 7faces • 94


intangibilidade da obra relevante, aceitando que esse é o caso da Cesar, a timidez das leituras que se lhe oferecem é brutalmente maltrato. Não é o caso de constranger ninguém, enquanto que no mais das vezes, como dissemos, a culpa é da história. Dessa forma, a história é especialmente aprofundadora das dificuldades enunciativas sobre os poemas da Cesar. 4. Esse estado de coisas gerou algumas vantagens mórbidas para a obra da Cesar. A primeira é a proximidade com Armado Freitas Filho. A poesia da Cesar não poderia ter mais sorte, porque seu espólio foi cuidado por alguém com extremo amor pela poeta, mais ainda, porque os sentimentos pareciam ser recíprocos. Os livros de espólio são cuidadosamente estruturados por ele e se percebe a consciência interna das vilosidades da alma da autora. Mas Freitas Filho é poeta, e por mais que talvez sem ele não tivéssemos Cesar, separar os dois é desafio hoje impossível de ser vencido. A segunda morbidade prerrogativa é que a Cesar é oriunda de classe social privilegiada profundamente arraigada na região sul da cidade do Rio de Janeiro. Ela não foi para essa parte do país para tentar a sorte, como tantos escritores buscando conveniência ou proscênio. Ela é esse amalgamado cultural. Se ali não estivesse, provavelmente perderíamos o seu gênio. É o fato de que ela é uma moça atraente, bem-educada, implicada em universidade de alto poder aquisitivo, que faz com que sua condição seja imediatamente concentradora de atenção. Qual o problema disso? É difícil encontrar no globo terrestre alguma outra forma de sociabilidade que concentre tanta imoralidade. A confluência da desigualdade econômica, controle da pobreza, assassinatos de pessoas em situação vulnerável, valores orientados para o hedonismo e alienação com relação a tudo que não seja consumo, especulação imobiliária e hipocrisia política torna essa pequena faixa de terra fabricadora de população doente. Além do fato de que os preocupados e os não preocupados vivem exatamente da mesma forma. A tolerância a tal ambiente quase sempre se dá por alguma forma de recompensa transgressiva. A Cesar é essa parte do mundo, dentre outras muitas coisas, mas é importante

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que se perceba esse vínculo, porque sua poesia agoniza esse contexto. 5. Um tanto pelos motivos aventados, a obra poética da Cesar é lida quase sempre de modo celebratório. Para o tipo de poesia que ela escreve, de falsa hospitalidade, os efeitos de tal ânimo é devastador. A escrita sobre poesia só se justifica se for para apertar a poeta, contribuir para que a significação em torno da poesia cresça, metamorfoseie-se, para se compor com o poema, de modo a enunciar desde a sua escritura. O pecado, quase impossível de não se cometer no caso da Cesar, é tomar os seus vestígios como obra de arte. Trata-se de fenômeno cada vez mais intenso e que ultrapassa a mera curiosidade sobre a obra de alguém. Cesar, pelos determinismos que sua poesia terá que aprender a se livrar, é capturada por essa tendência. Ela deixou variada sorte de resíduos de seu trabalho: recortes, anotações, cadernos variados etc. que podem contribuir para se entender como sua imaginação funciona. Em virtude do baixo valor visual dos vestígios, se forem tomados como obras de arte, porque sua obra ainda é demasiado vinculada ao mundo que a restringiu, o efeito é o de tornar Cesar uma poeta superficial, de interesses previsíveis, de falsos dilemas etc. Fazê-lo é uma imensa injustiça, porque esses resíduos são partes daquilo que a poeta se livra, nunca pensados para receberem a relevância que lhes vêm sendo atribuída, além de não terem qualquer pretensão artística. Saber controlar a curiosidade acerca do espólio da poeta é fundamental para salvá-la dos vícios, dos quais ela tenta se livrar em sua poesia e aos quais estamos ainda tão presos. A Cesar precisa ser mais lida e menos vista. O acesso ao sentido da feminilidade em sua obra não pode se esquivar dessas questões. 6. Dificilmente, em se lendo a Cesar, percebe-se a poeta feminina que é caracterizada pela exposição tendenciosa das fotografias em que ela aparece. Ela é uma mulher bonita, mas sua poesia, quase reativamente, nada tem que ver com isso. Ela também não é uma poeta solar. Parece que a via para afastá-la da menoridade interpretativa é fornecida por ela mesma: o suicídio. O suicídio é um ato repleto de penumbras. Algo nele é 7faces • 96


explícito: concerne a um livramento. Ainda que compreendido como sintoma necessário de uma doença. Não queremos nos referir às consequências ou ao sofrimento que pode causar ao entorno, mas apenas ao fato suspensivo. Há diferença entre a forma criticada de se aproximar da Cesar e o uso que fazemos do suicídio. Podemos dizer que ela mesma sugere o modo pelo qual pode começar a ser lida antianatomicamente. O suicídio, para lêla, funciona como um purgativo – ele serve para expelir o superficial ao mesmo tempo em que elimina a si próprio. 7. O purgante é uma metáfora desagradável para tratar de uma dinâmica intelectual que pode ser bonita. Trata-se de realizar movimento que extingue a si próprio. A poesia realizaria o movimento suspensivo de extinguir a si própria. Na verdade, no caso da Cesar, tão somente aos adornos sem sentido de um mundo frívolo. Ela a pratica para fazer pelo poema parte do mundo sumir. Isso para que o poema suicide a si próprio em termos líricos. E leve consigo a tralha. A forma mais explícita pela qual a Cesar o pratica é aderindo hesitantemente à poesia. Há sempre uma vontade de romance. Há sempre um tom de que um romance se avizinha, em alguns momentos de modo declarado, em outros, pela prosa poética intercalada entre os versos, mas a constante é o tom milenarista de que um romance aportará, no fim dos tempos. 8. A presença da rotina acontece dentro da prática a qual nos referimos. Não são anúncios da cotidianidade, nem mesmo a celebração do comum, mas a ambientação de uma imagem supressiva, que traga a si própria. Trata-se do anúncio de que o melhor virá depois, quando nada mais estiver. Como na frase referência à estação de rádio: “Antena Um em off: don’t walk away.” Para depois tirar as botas, tomar dez comprimidos, dançar até de manhã. Todas essas ações descritas – para depois dizer que elas não são nada, que servem para esperá-lo chegar e mesmo isso não importa, mas “[...] arranca[r] assunto do fundo do [...] peito de mulher aranha, tecendo teia telefônica, SOS. solto que não pe[de].”1 As botas podem ter sido esquecidas, ou

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Ana Cristina Cesar em viagem ao Nordeste para auxiliar o grupo de pesquisa socioeconômica e religiosa do Centro de Estudos, Pesquisa e Planejamento (Cenpla), organização não governamental fundada por seu pai, Waldo Cesar, Pernambuco, 1972. Fotógrafo não identificado. Acervo Ana Cristina Cesar / IMS

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lançadas ou perdidas etc. O problema, todavia, é que morrer é espanto, não é desaparecimento. 9. O suicídio costuma ser tomado como uma fraqueza diante dos acontecimentos, uma forma de esquiva, ora, isso não faz sentido. O suicídio concentra a atividade suspensiva e isso pode ser percebido na incomum valorização dos eventos cotidianos, mesmo os móbiles, uma doçura imensa ou atenção redobrada às pequenas coisas. Porque a suspensão é certa, a vida se torna opção, uma que concentra as variações plenas de sentido nelas mesmas. O artifício de passar dos versos à prosa, pode ser interpretado como a oscilação ao romance vindouro, tão presente, mas também pode ser a percepção fina do detalhe, dentro do qual há eventos de verso e outros de prosa e essa transição pode ser o caso em questões próximas, abrigadas, em momentos diferentes, de um mesmo poema. É o que se repete à página 311 dos Inéditos e Dispersos. Ainda em verso anuncia que não se precisa correr do que se vive, pois o espaço arde e viver é perigoso. Não tristemente perigoso, mas parte da escolha perigoso. A impossibilidade de causar a própria morte é que se torna encarceramento. O binário é simples. A vida implica risco, a saída é explícita. Encarceramento é ser obrigado. A rotina deprimente, de uma tal triste figura, é não saber de nada, exceto que não vai morrer, seu lamento são os rastros possíveis, pintar as paredes da cela, ouvir os ruídos etc. O delírio do encarcerado é interpretar o sentido de tudo o que escapa, do entorno. Tudo isso em tom de testemunho, lutoso. “Se olho fixamente para um objeto qualquer durante algum tempo, esse objeto não se move. Pelo contrário fica exatamente na mesma posição de antes.” Isso na transição à prosa poética. A imobilidade completa atingida por não se poder sair, de perceber que na clausura se está condenado a tudo interromper pela atenção. Está-se à mercê do que escapa à vista, o mundo inteiro, mas diante dos olhos nada se move. A morte não colocará um fim ao fastio. 10. As cidades aparecem rapidamente. A Cesar está sempre acabando de chegar e imediatamente compara os estados acumulados em virtude de visitas anteriores. Diríamos que a 7faces • 100


superficialidade se resolve pelo acúmulo dos espécimes vistos topograficamente. Os nomes surgidos nos poemas também se deslocam muito pelo mundo, parecendo-nos tão somente frívolos, sem coleção. Assim, a leitura que faz de Ferlinghetti traz uma Nova Iorque inteira, como também a Paris para onde Mary parte, mas nada de aprofundamento para as cidades, a primeira é corporal, mesmo a especificidade das estações é explicitamente afastada, ela é o cheiro de quem suspeita que não tem cheiro, que não deve ser um bom cheiro, são os corpos dos amantes que se embolam na neve, a segunda aparece como marcador temporal, de retomada da fala que se entope2. O Humaitá, bairro do Rio de Janeiro, apresenta-se enquanto as ficções evocadas quando por ele se passa, não necessariamente os seus detalhes: “[...] e em mim de volta / tentando decifrar saudades, [...].”3 11. A Cesar direciona o suicídio também contra o que a fustiga. Esse movimento tem que ver com o suicídio, mas não se confunde com ele. Trata-se de envolver a experiência agressiva com as condições que levam ao suicídio, de modo que ela se suicide. Esta dinâmica pode ser chamada de suicidária. O suicidário é uma forma destrutiva de proceder que se justifica pela malignidade do oponente. A dúvida acerca da utilidade de movimento tão tergiversante seria sanada pelo fato da reação. A experiência diretamente fustigada revida. E por reatividade pode adquirir vitalidade imprevista. O envolvimento suicidário – seu aspecto indireto, seu movimento incidental – impede esse retorno. A destruição chega ao ente sem que esse perceba. Essa é a condição do manejo suicidário. “Por que essa falta de concentração? / Se você me ama, porque não se concentra?”4 Pode-se perceber a forma casual como a falta de concentração aventada serve para retirar o oxigênio sem que a falta se dê conta. Não para matá-la, mas para fazê-la buscar a própria morte. O suicidário é uma forma de tortura da qual o suicida possui consciência interna. “É para você que escrevo, hipócrita.” O endereçamento é sucedido pelo ambiente instituído para o hipócrita viver. “Pratos limpos atirados para o ar. Circo instantâneo, pano rápido mas exato descendo sobre a sua 7faces • 101


cabeleira de um só golpe de carícia, e o teu espanto!”5 Ora, o espanto é adquirido justamente pela casualidade dos gestos que se revelam no fim, diretos, endereçados. Pois, o incidental não é não saber o que se quer, porém sacrificar o impulso inicial de correr para ele, isso tudo para atingi-lo de modo mais profundo, a partir do abrandamento da resistência, o truque é não ser esperado. “Digamos que um dia você percebesse que seu único grande amor era uma falácia, um arrepio sem razão. Digamos que você percebesse que 40% de álcool apenas te garantiam emoção concentrada como sopa Knorr, arriscando o telefonema internacional que dá margens a suores contrariando o I Ching que manda que eu me cale, ou diga pouco, ou pelo menos respeite esse silêncio.”6 Então, o que seria? Ora, não seria nada ainda. A questão não é tão somente precipitar algo, mas produzir a suspeita, na forma de consciência delicada, de que o oxigênio começa a faltar no ambiente, que talvez as paredes tenham se movido, que o quarto está um pouco menor, que há mais um centímetro d’água no barco. Mas e daí? É isso, não é nada, mas não é mais a mesma coisa. “Eu penso / a face fraca do poema / a metade da página / partida / mas calo a face dura / flor apagada no sonho / Eu penso / a dor visível do poema / a luz própria / dividida / mas calo a superfície negra / pânico iminente do nada”7. O suicidário opera por tal sabedoria prática da aproximação. Para isso, não são suprimidas as fissuras, os desgastes, mas o desaparecimento enquanto monolítico bloco, aquilo que a Cesar chama de face dura ou a superfície negra. Brandi-las seria inútil e despertaria apenas a lida da impropriedade com que vivemos os nossos dias. A trama suicidária dobra a página em quatro, aceita a tipografia antiga encontrada sobre a folha e passa a se escrever / se desenvolver nos espaços indicados, na dor visível, nos rastros passíveis de interpelação, como à febres apagadas. O resultado é o assombro, o poema ocupa todos os espaços vazios, de modo imprevisto, com estranha disposição, não há nada, nesses momentos não tão difíceis, que tenha sobrado sem envolvimento. O poema se encerra pela percepção de que o melhor seria não ter nascido, de que nascer é importante só por

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isso. O poema ocupa os espaços de relevos leves e deixa como opção mais lógica, a ser tomada pela coisa envolvida, o suicídio. 12. Um dos objetos passíveis de envolvimento suicidário é o corpo. Na verdade, muito embora ideias, preconceitos, práticas etc. possam ser cercadas, acaba que o corpo é quase sempre destacado. Isso porque a percepção do corpo, mesmo do próprio corpo, é afetável privilegiadamente, para não dizer composta, por tensa relação pública. A intimidade do corpo é quase uma praça. O reconhecimento se dá pelos outros e o mais singular detalhe é capaz de despertar simpatia. Apenas o antianatômico inicia alguma real privacidade. Ele pode ser atingido sob experiências radicais – porém essa não é a vontade da Cesar, cujo compromisso é com a brandura insistente do suicidário e com o suicídio –, mas também em pequenas fraturas da imagem, como num cigarro distraidamente fumado. A improvável, não obstante bem disseminada, habilidade de mexer e rolar o cigarro pelo beiço mole, fixaria a imagem, ainda mais quando se associa às vilosidades possíveis do lábio rachado, esfolado etc. Então, a privacidade do cigarro no lábio manchado é rapidamente interrompida pelos ciúmes que se pode sentir da estreita relação entre a boca e o filtro8. Daí se faz íntima e pública. “Gosto particular da tua boca. Último trem subindo ao / céu. / Aguço o ouvido. / Os aparelhos que só fazem som ocupam o lugar / clandestino da felicidade. / Preciso me atar ao velame com as próprias mãos. / Sirgar.”9 O corpo pode se fragmentar como na minuta de férias nos Antigos e Soltos ou se expandir como no bar central do mesmo conjunto. No primeiro a mão se quebra, a memória é manietada e por causa da fratura é impossível lançar uma simples e leve flauta ao mar, que se torna pesada, enquanto que o próprio aspecto relacional do poema passa a repousar numa palma10. Mais ainda, a Cesar usa recurso que atravessa um número considerável de seus poemas que é a metamorfose de corpo em matéria inanimada, ou de animar a matéria dissolvendo o corpo nela. Se por um lado, mão de gesso é metáfora das mãos fraturadas, elas mesmas metáforas da incapacidade, a guinada de Poeta, Pessoa, pessoa, a corpo, seria trivial se não estivesse ligada à percepção do corpo como 7faces • 103


7faces • 104 Ana Cristina Cesar em Paris. Foto: João Almino. Acervo pessoal do escritor.


máquina de escrever e da própria poesia como existência tipográfica, que a leva, em outros momentos, principalmente de conflito com a autoridade, a dizer preferir pensar o livro como objeto, resolvê-lo no âmbito gráfico, para só depois, de maneira secundária, enchê-lo de poemas11. Se o corpo e o livro se tornam extensíveis um ao outro, ora, não só o livro assume, por assim dizer, um tom carnal, quanto o corpo se torna rasgável, fungível etc. Arrumar os livros na prateleira assume peso suicidário, pois os volumes trocados de lugar podem ter sido vítimas de desterro. O mais relevante é que na reposição acabam por aparecer espaços vazios. “Não tenho te dito nada. / Ligo para os outros.” A procura de pessoas pode ser a procura por outros livros. “Cedo ou tarde reencontro – o ponto / de partida”12. O mesmo se percebe, como dissemos, no movimento expansivo do no bar central. “Escrevo até arder a boca, depois / [...] À noite escapo pelas letras dos / anúncios, faço propaganda de calcinhas, / me deito com o funcionário / dos correios. / [...] estranho o ritmo dos versos, / minha pança chora, chora, / ainda não saí.”13 Não só o corpo é mutilado, como nos anúncios de calcinha, ou na expectativa masculina acerca do desejo feminino, como a ardência ultrapassa os versos, no fim – e é divertido como o suicidário é contra o fim, ao passo que o suicida escolhe o fim, em mescla de manejo da liberdade e da necessidade – é a festiva pança do verso e do corpo que se ondula com o movimento soluçante do choro. Trata-se, então, de depositar no corpo e na folha, enquanto instâncias disponíveis à marcas e à tipografias, a plasticidade necessária para abraçar aquilo a que se escolhe para sofrer a pressão suicidária. A vida branca, a cama branca e folha branca se equivalem, como mudos convites à operação suicidária14. 13. O último movimento que queremos mostrar na poesia da Cesar concerne à passagem (especialização) do corpo ao olho. Acreditamos que é o caso de indicar que o olho realiza, de modo concentrado, o que a homologia entre o corpo e a tipografia representa de forma difusa. Se pode percebê-lo desde Cenas de Abril de 1979. “Olho muito tempo o corpo de um poema / até perder de vista o que não seja corpo / e sentir separado dentre 7faces • 105


os dentes / um filete de sangue / nas gengivas”15. O gosto de ferro percebido, entre os dentes, faz da ponta da língua um olho, um operador para a demarcação daquilo que será rodeado pelo suicidário. O verso realiza o cerco e produz a redução do espaço. Como ele sabe quando agir? Então: quando sente o gosto de sangue. Mas seria assim tão aleatória a escolha empreendida pelo corpo feito em olho? Porque a Cesar faz corpo e tipografia andarem juntos, existe previsão para que as marcas deixadas pela experiência no corpo sejam tipos a se organizarem em “forma sem norma”16. Isso significa admissão da dor no corpo, bem como a dor nas coisas, no verso, por assim dizer. Se os tipos são todos iguais, qual a serventia do olho? Ele serve para frustrar tal falsa aparência. Os tipos não são todos iguais, há também o rasgo. Pode ser que o suicidário oprima o tipo, por antecipá-lo, errado ou não, como sendo um rasgo. Ele quer cercar o rasgo com a necessidade do suicídio. “Sombra, cobra, obra, nada quero / Para o olho imerso um rasgo vai / [...] Este terremoto que entreouvi / [...] pedra do abismo dor / Reabre o séquito da fagulha / Silêncio névoa neva em mim”17. Isso também na indulgência. Na desistência de contornar com o suicidário uma parte do próprio corpo, por tê-la reconhecida como rasgo, pelo olho alheio. “Onde seus olhos estão / as lupas desistem.”18 Como desabilitar o capricho, a vaidade, ainda mais quando o percebido é um rasgo? Não haveria uma natural fraqueza diante da fissura eleita pelo olho do outro? Parece haver disposição de fidalguia. Se o suicidário me escolhe, por que não lhe dar a preferência? A disposição suicidária trocaria “olhos por olhos / [...] teu gosto, tua cor, teu som, teu meu”19. Qual seria a diferença entre o olho fisiológico e o olho tornado operador por gesto suicidário, para a cercania suicidária do rasgo? O fisiológico simplesmente olha pela janela. O suicidário se inicia por se fazer o único olho vertido pela janela. Não pode descansar, posto se tornar o olho para o dia inteiro. Daí descansa e tenta fechar a janela, donde descobre que essa não fecha, insiste, até que dela se dissocia. A janela cai e o olho suicidário permanece olhando por ela. Olha para a janela “que não era, nem existia como janela”. O suicidário resta “[...] olhando pelo buraco”20.

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Notas 1

Cesar, A. C. "Inéditos e dispersos" [1985]. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 268. 2

Ibid. p. 244. “Hoje que Mary está indo para Paris retomo o caderno terapêutico depois de ter dito que a minha cura era "falar tudo", que me desse e viesse, e assim, angustiada com a partida que me cala ou um flanco de mim, escrevo como quem fala tudo […]. Angústia é fala entupida.” 3

Cesar, A. C. "Antigos e soltos: poemas e prosas da pasta rosa" [2008]. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 373. 4

Cesar, A. C. "Inéditos e dispersos" [1985]. Poética. São Paulo: Companhia das Letras: 2013, p. 264. 5

Ibid. p. 245.

6

Cesar, A. C. "Luvas de pelica" [1980]. Poética. São Paulo: Companhia das Letras: 2013, p. 67. 7

Cesar, A. C. "Inéditos e dispersos" [1985]. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 199. 8

Ibid. p. 144. “Tenho ciúmes deste cigarro que você fuma / Tão distraidamente.” 9

Ibid. p. 305

10

Cesar, A. C. "Antigos e soltos: poemas e prosas da pasta rosa" [2008]. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 330. “Fraturo as mãos. […] Máquina de escrever é peça irônica entre bagagens. […] Entre um Pessoa e outro me aconselha estilo enxuto. […] Sem mãos piora essa pessoa. […] Manietada a memória não escapa das três extremidades. Nem mãos tenho para atirar a flauta seca ao mar. No gesso estéril aqueço mitologias: o casal se encolhe exato e cabe na palma branca e dura que me atrela. […] Não sei o que vai sair dessas mãos de gesso. […]” 11

Cesar, A. C.. "Correspondência completa" [1979]. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 49. “Passei a tarde toda na gráfica. O coronel implicou outra vez com as ideias mirabolantes da programação. Mas isso é que é bom. Escrever é a parte que chateia […] Vou fazer um curso secreto de artes gráficas. Inventar o livro antes do texto. Inventar o texto para caber no livro. O livro é anterior. O prazer é anterior, boboca.”

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12

Cesar, A. C. "Inéditos e dispersos" [1985]. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 304. 13

Ibid. p. 368.

14

Ibid. p. 161.

15

Cesar, A. C. "Cenas de abril" [1979]. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, p. 19. 16

Cesar, A. C. "Inéditos e dispersos" [1985]. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 149. 17

Ibid. p. 150.

18

Cesar, A. C. "A teus pés" [1982]. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 112. 19

Cesar, A. C. "Inéditos e dispersos" [1985]. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 166. 20

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Ibid. p. 162.


Ensaio fotográfico inédito por João Almino 7faces • 109


Nasci para a vida De morte vivi Mas tudo se acaba Silêncio. Morri. “Quartetos”, 1967, de inéditos e dispersos

As fotografias aqui reproduzidas são do acervo pessoal de João Almino.

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“Havia conhecido Ana Cristina Cesar há poucos meses em Paris. Numa festinha em casa, com poucos amigos, fiz primeiro algumas fotos em preto e branco da Ana. Depois, fiz novas fotos, estas a cores, fotos amareladas pela luz da noite sem uso de flash nas Leicas R4 e M6 (algumas transformadas em preto e branco depois). Foram dias intensos e agradáveis, com papos sobre literatura e filosofia (Katherine Mansfield, Henri Michaux, Barthes, Foucault).

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“Num dos últimos dias de sua estada em Paris, Ana cortou o cabelo, visivelmente contente com o resultado. Sugeri então que fizéssemos uma sessão de fotos, ali mesmo em casa. O macacão foi substituído por vestidos. 7faces • 114


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“Quando Ana foi a Paris, em abril de 1980, ficou hospedada comigo e com Bia Wouk, com quem eu vivia há vários meses e viria a me casar ainda naquele ano. Morávamos em Montparnasse, na rua Notre Dame des Champs. Por ali caminhamos, frequentamos Le Select, jantamos em La Coupole... Ainda em Paris acompanhei-a à Place Vendôme onde a Bia tirou fotos que inspiraram outro de seus quadros, de três patos numa vitrine da Kenzo, que Ana transformou num poema”. (João Almino, El País)

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O encontro com João Almino e Bia Wouk rende mais que fotografias e passeios por Paris. Bia seria a autora da capa de Luvas de pelica, terceiro livro de Ana Cristina Cesar, publicado em 1981 pelo selo da coleção Capricho.

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carta de paris I Eu penso em você, minha filha. Aqui lágrimas fracas, dores mínimas, chuvas outonais apenas esboçando a majestade de um choro de viúva, águas mentirosas fecundando campos de melancolia. tudo isso de repente iluminou minha memória quando cruzei a ponte sobre o Sena. A velha Paris já terminou. As cidades mudam mas meu coração está perdido, e é apenas em delírio que vejo campos de batalha, museus abandonados, barricadas, avenida ocupada por bandeiras, muros com a palavra, palavras de ordem desgarradas; apenas em delírio vejo Anai’s de capa negra bebendo com Henry no café, Jean à la garçonne cruzando com Jean-Paul nos Elysées, Gene dançando à meia-luz com Leslie fazendo de francesa, e Charles que flana e desespera e volta para casa com frio manhã e pensa na Força de trabalho que desperta, na fuga da gaiola, na sede o deserto, na dor que toma conta, lama dura, pó, poeira, calor inesperado na cidade, garganta ressecada, talvez bichos que falam, ou exilados com sede que num instante esqueceram e escapam do mito estranho e fatal da terra amada, onde há tempestades, e olham de viés

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o céu gelado, e passam sem reproches, ainda sem poderem dizer que voltar é impreciso, desejo inacabado, ficar, deixar, cruzar a ponte sobre o rio. II Paris muda! mas minha melancolia não se move. Beaubourg, Forum des Halles, metrô profundo, ponte impossível sobre o rio, tudo vira alegoria: minha paixão pesa como pedra. Diante da catedral fazia a dor de sempre me alimenta. Penso no meu Charles, com seus gestos loucos e nos profissionais do não retorno, que desejam Paris sublime para sempre, sem trégua, e penso em você, minha filha viúva para sempre, prostituta, travesti, bagagem do disk jockey que te acorda no meio da manhã, e não paga adiantado, e desperta teus sonhos de noiva protegida, e penso em você, amante sedutora, mãe de todos nós perdidos em Paris, atravessando pontes, espalhando o medo de voltar para as luzes trêmulas dos trópicos, o fim dos sonhos deste exílio, as aves que aqui gorjeiam, e penso enfim, do nevoeiro, em alguém que perdeu o jogo para sempre, e para sempre procura as tetas da Dor que amamenta a nossa fome e embala a orfandade esquecida nesta ilha, neste parque onde me perco e me exilo na memória; e penso em Paris que enfim me rende, na bandeira branca desfraldada, navegantes esquecidos numa balsa, cativos, vencidos, afogados... e em outros mais ainda!

De Inéditos e dispersos [1985], em Poética, p. 194-95

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10.1.82 Hoje que Mary está indo para Paris retomo o caderno terapêutico depois de ter dito que a minha cura era "falar tudo", que me desse e viesse, e assim, angustiada com a partida que me cala ou um flanco de mim, escrevo como quem fala tudo, querendo dizer que hoje, com o Patinho, senti que meu compromisso primeiro era com a mãe, com as mulheres, com o colo delas, e só secundariamente com ele, com um apelo da realidade muda. Quero que uma mulher me acompanhe (ou ao menos o Armando, que fala tudo e preenche o vazio). Há coisas demais para fazer, não quero ir para minha casa, onde me sinto independente demais (é como um excesso). Volto para a casa da mamãe, e tenho de suportar a angústia de ter que me emudecer até a Mary voltar. Angústia é fala entupida. De Inéditos e dispersos [1985], em Poética, p. 244-95

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Ana Cristina Cesar em Bariloche, Argentina, fevereiro de 1977. Acervo Ana Cristina Cesar / IMS

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ANA CRISTINA CESAR

CONTEXTO E TEXTO Por Armando Freitas Filho

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Identidade e diferença A poesia marginal acabou sendo um movimento sem manifesto, mas com muitas manifestações. No início dos anos 1970, um poeta aqui outro ali começaram a aparecer, nos bares, nas portas dos teatros, muito pouco nas livrarias, com publicações mimeografadas, daí seu codinome: geração mimeógrafo. Em vez de livros, folhetos, que também poderiam ser panfletos, pois eram passados de mão em mão mais até do que vendidos, e sua repercussão se dava mais de boca em boca do que por escrito. Dois "marginais" purosangue, de primeira hora, eram Charles e Chacal. Viriam a se formar em Comunicação e não em Letras, como Antonio Carlos de Brito, mais tarde Cacaso, e Ana Cristina Cesar, depois Ana Cristina C. Antes que me esqueça, Francisco Alvim, o decano do grupo, diplomata de carreira, era mais conhecido no meio literário como Chico Alvim, embora, salvo engano, nunca tenha assinado livro com esse nome. Por que marginais? Se todos eram instruídos, com formação universitária? A denominação é exata e nem um pouco forçada: se referia aos livros que faziam, fora do circuito das grandes editoras, do formato das edições convencionais e, por isso mesmo, de baixo custo. Essa produção independente, se antes podia parecer destituída de valor ou mérito, passou a ser justo o contrário: tornou-se marca de qualidade e de identificação diferenciada, paga pelo próprio bolso e vendida sem intermediários. Era o gesto, a atitude libertária e até de protesto, que os distinguia do estabelecido, do esperado pela sociedade, chumbada pela censura dos Atos Constitucionais do Regime Militar que nos restringia e governava, desencorajando a ousadia e a novidade.

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Depois dessas considerações gerais, do entorno social, vamos voltar à literatura pura e simples, como se fosse possível pureza e simplicidade nessa matéria sujeita, por natureza, a todas as impurezas e complexidades. A combinação, a troca de influências dessas duas origens universitárias distintas comunicação e letras deu uma boa liga: contracultura e cultura se temperaram e criaram uma dicção pop, eletrificada, como já acontecia na música popular brasileira, e que viria libertar a poesia da rigidez (tinha deixado de ser rigor há muito tempo) das vanguardas com seus manifestos que, desde meados dos anos 1950, vigoravam com seus "decretos". A ordem unida era trocada pela passeata. A poesia ia à praia, às festas, jogava bola, suava. Se nas vanguardas todos os seus aficionados, mais ou menos, pertenciam à mesma geração, com os marginais a banda da faixa etária era mais larga: poeta nascido nos anos 1930 transava, numa boa, com quem tinha vindo à luz nos anos 1950.

Os poetas Luis Olavo Fontes, Francisco Alvim, Ledusha e Ana Cristina Cesar no coquetel de lançamento de seus livros pela coleção Capricho da Livraria Xanam, Copacabana, Rio de Janeiro, 1981. Acervo pessoal Luis Olavo Fontes.

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Os marginais eram avessos à teoria, principalmente os "roqueiros": Charles, Chacal & Cia. Tinham permeado os "literatos" com seus acordes e até propiciado que eles mudassem seus nomes para outros mais joviais e ficcionais, como ficou visto nas linhas anteriores. Cacaso, em contrapartida, tinha ambição teórica e de liderança, que mesmo disfarçada ou manhosa se exercia através de militância incansável, falada e escrita; principalmente depois da visibilidade e legitimidade acadêmica que a antologia 26 poetas hoje, organizada por Heloisa Buarque de Holanda, deu a todos. Com ímpeto ordenador, teorizou que, no fundo, se fazia um "poemão", onde a autoria era recalcada para dar lugar a um poema único que todos iam compondo sem compromisso de continuidade lógica e conhecimento temático estritos. Interessante, mas esse conceito só funcionava virtualmente, ou na cabeça do crítico. Os poetas marginais, ao contrário do que, às vezes, demonstravam, eram muito ciosos de suas identidades e diferenças. Se Cacaso, em vez de "poemão", tivesse falado em "poética", teria, a meu ver, acertado no alvo real. Porque o que aquela turma tinha em comum era uma poética que, entre outras coisas, trazia a vida de cada um, de cada leitor, para a poesia de todos. Nenhuma metapoesia ou poemas-cabeça. Era uma poética, cabeça, tronco e membros, isso sim, e se me fosse dado escolher um órgão só nesse corpo para representá-la, escolheria uma víscera: o coração. Ana Cristina se desenvolveu nesse ambiente e soube como ninguém realizar essa fusão de poesia e vida, de "ficção e confissão", para usarmos o título de Antonio Candido no seu famoso estudo sobre Graciliano Ramos. Não negava a identidade com seus companheiros, mas, naturalmente, chamava a atenção pela diferença e originalidade. Diferença e originalidade que estavam além do controle de sua inteligência emocionada e emocionante, um dom que, devido a sua constituição intrínseca, é inexplicável. Nesse momento, me vem uma lembrança que nunca evoquei, por escrito. A de um gesto, de um tique maquinal, que surgia, 7faces • 138


Charles Peixoto, Ana Cristina. Cesar, Cacaso e Armando Freitas Filho no Jรณquei. Clube Brasileiro, Rio de Janeiro, 1982. Acervo Ana Cristina Cesar / IMS

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muitas vezes, quando ela ouvia alguém numa mesa qualquer: sua mão segurava uma caneta invisível que ia simulando escrever em cima de um papel inexistente. Passados tantos anos de sua morte, essa imagem é emblemática e inesquecível; sua beleza consola a saudade, e é o cromo perfeito para a poesia não só dela, mas geral: se escrevemos com a imaginação, os instrumentos e os suportes deste ofício podem ser, momentaneamente, dispensáveis. Tentativa de pegar Ana à unha Ana Cristina se matou no dia 29 de outubro de 1983, com 31 anos. Sua morte foi precoce, e também precoce foi o começo da sua vida de poeta. Antes de saber ler, ditava para a mãe os poemas que ia fazendo, sem assumir para esse fim nenhuma atitude compenetrada, muito pelo contrário: no sofá da sala, pulando de um lado para o outro, sem tempo a perder, ela ia compondo seus primeiros versos, fazendo pausas que indicavam ser o momento de mudar de linha. Não custa mencionar aqui que essa sua maneira infantil de escrever modificou-se somente na aparência. Na essência, sua escrita sempre se articulou em movimento, em pleno trânsito, ao ar livre de sua vida e da cidade, em cadernos diversos e provisórios, onde a anotação "quente", em cima dos fatos, aparece nas diferentes caligrafias de que era capaz, que refletem a rapidez e a mutação do clima, da sensação. Esta variação gráfica ganha também muitas cores, devido ao uso de um arco-íris de canetas que a ajudavam a dar ênfase, com espírito lúdico, a trechos que pediam, segundo seu modo de ver e sentir, esse tratamento. Alguns de seus manuscritos beiram o desenho ou o arabesco meticuloso, verdadeiras iluminuras que pedem, além de leitura, contemplação. A busca de claridade e nitidez não evitou as zonas de nuvem e sombra que ocorrem na "meteorologia" dos seus poemas. Tenho para mim que elas são inevitáveis e obrigatórias. 7faces • 140


Inevitáveis, pela juventude da autora, em pleno desenvolvimento, sem ter ainda um conhecimento suficiente do seu ofício. Obrigatória porque é natural a toda poesia de valor certa obscuridade. Nesse caso, talvez mais do que em qualquer outro, discernir o que é inevitável do que é obrigatório é tarefa difícil, ainda mais que a conjugação não planejada das duas condições é bem provável. Ou o mais provável seria, por inclinação pessoal, por puro cálculo, e, sem paradoxo, por respeito ao acaso, manter o sombreado, a temperatura instável, o sol hesitante? A escrita tem por base as características estruturais de dois tipos de texto: a do diário íntimo animado pelo pensamento e a da carta colada à fala, sendo que essas atribuições podem ser permutáveis ou misturadas. Por essa razão a mancha gráfica das suas composições, em geral, oscila entre o poema e a prosa. A textura obtida através dessas dosagens e recortes é notável, pois incorpora numa mesma peça o andamento do monólogo e do diálogo, que se mesclam, especulando-se, e especulando o leitor, o que acaba dando vez a uma voz que se expressa através de cortes súbitos, mudanças de rumo e pontuação, interferências cultas e triviais, como as da escuta do dia a dia, pescada em conversas transeuntes e telefônicas. Ao contrário de poetas como João Cabral, que são temáticos, Ana é problemática: em vez de partir de uma situação, ela começa por uma sensação. Por isso, o jogo tem que ser rápido, não nas palavras, mas no sentimento e na sua conjugação, para sacar não apenas o que passa, mas o que se passa, e que pode se perder se não for logo registrado. Isto não quer dizer que esta técnica utiliza somente o recurso instantâneo da apreensão: se fosse assim não seria arte duradoura, mas acasos mais ou menos bemsucedidos. O trabalho posterior e exigente é que vai unir o reflexo à reflexão, através de uma fusão muito particular e inconfundível. Em outras palavras: vai pegar o pássaro sem interromper seu voo. 7faces • 141


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poetas de hoje

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Lau Siqueira Jaguarão – Rio Grande do Sul Nasceu em Jaguarão em 1957. É autor de seis livros de poemas; são títulos como O comício das veias, O guardador de sorrisos, Sem meias palavras. Tem poemas publicados em diversos sites, periódicos e antologias dentrokmnj e fora do Brasil. Para esta edição do caderno-revista 7faces o poeta envia poemas do seu livro mais recente, Livro arbítrio, pulicado pela editora Casa Verde, de Porto Alegre, em 2015.

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Filosofree dialogar com o vento mesmo sem ar eu tento

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Resistência o que me sustenta sobre a carne e osso é não ter aprendido a desistir viver é voar até sumir

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Coragem

viver ĂŠ voar alĂŠm do ninho no sopro do abismo no olho do redemoinho

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Poetica daimortalidade eternas mesmo são as nuvens essas dissonâncias do infinito eternas e mutantes com suas dobras de estupidez e coragem mas a vida é aqui e agora e é frágil como uma caipora tão frágil que uma única morte não basta todavia eis aqui um poema besta (e hoje nem é sexta)

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Biruta o vento chegou invisível e apressado correu pela planície espalhou o pasto fez voar as folhas movimentou as pétalas carregou cigarras e abelhas tremulou o rio transformou tudo em calmaria e nunca mais voltou

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Carlos Barata Caraúbas – Rio Grande do Norte Nasceu em Belém, Pará; atualmente vive em Caraúbas, onde leciona na Universidade Federal Rural do Semi-Árido. É licenciado em Letras/Inglês (2007), Mestre em Estudos da Linguagem (2010), Especialista em Educação e Linguagem (2011) e Doutor em Estudos da Linguagem (2016) pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

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Heracliana salomômica Não há rio novo abaixo do sol É sempre um novo sol a passar por sobre a água

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Legatto Como línguas de ouro em flautas de prata É o beijo dado a seu tempo

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Salvação Individual Perdoe-me Por ter oferecido a minha alma – Gratuitamente – E, assim, Desvalorizasse um Império, Filigranado com sangue E, o que é assaz pior: Ter permitido que tu Apoiasses a ideia.

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Uma flor que não tem nome a Pedro Fernandes

Reprodutora de si mesma, Branca, A flor se amalgama à noite, Para desabrochar à alvorada. A flor não tem nome, só sabe de si: Branca, De quatro pétalas evanescentes. Anteia manifesta em Aroma dos aromas, Surgida feminina Entre seivas masculinas. Adentram em séquito a árida câmara Deuses portadores de brônzeos círios, Maestros de estranhas alquimias. Mansos mantras orientais Evocam a flor cósmica inexistente, Entrançando constelações Com lava morna e emoliente. Correntes suaves e digitais En cantos agrestes fluem. O Sertão se evapora. Lá fora, no chão de mica, Passeia inteira Cibele, Que se fecha, como invólucro, vedando a câmara. Hermético, o ar se aquece E um sereno salgado e intermitente Banha o leito daquela sem nome.

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As sílabas se agitam, Ecoando ébanos e baobás. Vozes xamânicas e densas. Um pé otomano e outro himalaico Pilam o barro de milhares e milhares De peles humanas. Como da uva o vinho, Nas veias da flor já corre Sua primeira seiva, ainda adormecida. Há um minuto de pausa, De contemplação, de adoração. As chamas coribantes exultam, Quando uma mão mortal puxa a outra mortal mão. Maneiro torna-se o ar com os fumos báquicos – Mosto preparado com pomos no Éden colhidos. A primeira flor ameaça respirar. Sobre a flor sem nome As costas ungidas Recebem os braços molhados. De um adufe ao outro Um circuito De ininterruptas semínimas. Depois, Só duas mãos, dois tornozelos, quatro olhos, e, no meio deles, uma palavra De amor diáfano. As pétalas prontas estão e Realçam o bronze esmaltado, Que se contrai e se escoa, Como quicksilver.

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O alfenim de suor salgado Em reflexo sinuoso, Na prata viva funde-se. O muezin conclama à adoração Do glorioso inefável. Mortais e imortais transferem-se à flor. Gotas aderentes da substância De todas as substâncias.

Dos olhos agridoces, dos lábios benfazejos, Do ventre desejante, das pernas carinhosas, Dos poros, dos poros, Dos poros dos poros. O universo inteiro, no calor de um abraço De uma noite inteira Transforma-se numa flor que não tem nome. Desabrochada pela manhã Reprodutora de si mesma, agora e olfativa. Branca, desafia a morte No branco papel da poesia.

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Karin Krogh Cotia – São Paulo Farmacêutica com doutorado em Biologia Celular e Molecular pela Universidade de São Paulo (USP). Contadora de Histórias e mediadora de leitura, voluntária em diversos projetos de incentivo à leitura no estado de São Paulo. Publicou o livro infantil, Dondila e Jurema (Giostri). Autora do artigo sobre Literatura Infantil Brasileira Contemporânea para a revista Karavan, Suécia, 2014. Vencedora do concurso Contos Diminutos das Editoras Biruta e Gaivota, com o conto “O mundo de Tolstói” em 2015 e escreveu os livros Mãe é mãe e Meu pai é um palhaço (Editora Bamboozinho) no prelo.

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Borda-me Meu corpo é cânhamo virgem à espera do bordado Teu corpo é agulha a espera da linha Meu corpo sofre a delícia da primeira bainha aberta Teu corpo alinhava em vermelho o branco do meu Meu corpo se contorce a cada entrada de seu ponto atrás Teu corpo em pontos de laçada Meu corpo se ajusta aos menores entremeios Teu corpo (em grand finale) decide o ponto nó E nossos corpos se enlaçam no êxtase do ponto cruz.

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Borda infinita Decido mancar para perceber os passos Lavo os seios (no tanque) após a última mamada Solto as mãos do corrimão Olho para baixo no terceiro degrau da escada de madeira recostada na parede Prendo o fôlego (5 segundos) na piscina de borda infinita Deixo-me cair (sem roupas) no chão da cozinha Abro meu primeiro maço de cigarros Chego minhas mãos próximas ao fogo da lareira Passo os dedos de leve a borda quebrada da taça de cristal restos de Chardonnay Durmo do lado esquerdo a cama Sonho com ganchos

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Infante Aconteceu bem antes da Luciferase, quando o vagalume acendia sua bunda e iluminava a infância; aconteceu bem antes do arranjo A,C,T,G em dupla hélice, quando eu havia puxado os olhos do meu pai; aconteceu bem antes do Rivotril, quando o coração acelerado era paixão escancarada; aconteceu bem antes da bateria de Lithium, quando eu corria pelas ladeiras de Diamantina; aconteceu bem antes do Protex, quando lavava as feridas com água e sal; aconteceu bem antes do Prozac, quando permitia sentir a mornura das lágrimas no pescoço.

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Tertúlia de fios chuva de paina ouço cello de Yo Yo Ma as janelas! (acabei de limpar a sala) ouço tertúlia de algodão serão 100, 200 fios, algodão egípcio? ouço tertúlia de nuvens serão carneiros, vacas, veleiros ao mar? ouço tertúlia de cabelos brancos serão castanhos, vermelhos, lilás rinsagem? chuva de paina corro escancaro as janelas e me alongo como único fio de seda a se desenrolar do casulo.

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Luís Otávio Hott Belo Horizonte – Minas Gerais Nascido em Manhuaçu, interior de Minas Gerais, é formado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de Minas (PUC-Minas) e Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pré-selecionado ao Prêmio Sesc de Literatura pelo romance Terra Gasta (2015).

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O rio O menino não devia ter mais do que uns seis ou sete anos de idade, Mas naquela tarde de sol a pino, ele se sentia como se fosse um homem, E não tem sentimento como esse para um menino de seis ou sete anos. “A mãe vai ficar satisfeita”, ele pensou, enquanto ia sozinho para o rio. Tinham dito que era perigoso, mas pai estava fora, mãe fazendo a janta E o calor era tanto, que o menino tinha de ir ao rio. Além do mais, O menino naquela tarde se sentia como se fosse um homem, E não tem sentimento mais perigoso que esse para um menino. Ele cavou a minhoca, armou a isca, e fincou a vara. O rio era espesso, grosso e escuro, fitou de longe. Não tinha como saber o que tinha por debaixo daquela água. Mas o menino não tinha medo do rio, e o calor era tanto Que o menino pensou que não tinha problema em molhar as pernas. E com as pernas molhadas resolveu lavar também a cabeça. Segurando num tronco, o menino andava nas pontas dos dedos. O rio não tinha fundo nem fim, e o menino começou a ficar com medo. O tronco lhe escapava das mãos, ele não se sentia mais como um homem, Se sentia como um menino se afogando no rio. O rio puxava e ele lutava para não se entregar. E quando escutou a mãe gritar “Janta”, sabia que era tarde demais, Desejou nunca ter se sentido como um homem naquela tarde de sol a pino. Mais tarde, quando tiraram o corpo do rio, ele era apenas um menino, Não havia nenhum traço do homem que ele tinha sido, E como naquela tarde ele não tinha sido o único menino que tinha morrido, Cada um voltou aos seus assuntos sem muito lamento, a não ser pela mãe do menino.

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Os homens quebrados A vida é muito longa Para quem atravessa, A nado este mar de lama. Ou será um rio, Cheio de pedras e detritos. Mas existe uma raça de homens Distinta da nossa. Homens que temo Encontrar em meus sonhos, Porque eles não têm sonhos, Os homens quebrados. Esta é a terra morta, De mares secos e rios salgados, De olhos que não brilham, De homens desvalidos. É assim que acaba o mundo, Não com um estrondo, Mas com o estalo De um galho partido.

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Pescando numa noite quente Pescando numa noite quente num rio escuro, O caminho da água se bifurca criando outro rio. As duas margens de repente viram quatro. Pouco importa qual caminho eu escolha, Peixes existem dos dois lados. O curso d’água de um rio não se difere, Mesmo quando foi partido Ele permanece sendo o mesmo. Quanto à mim, cada decisão traça um caminho, Cada bifurcação escolhe um destino, Mas o tempo como o rio é um só, E não importa afinal qual caminho eu escolha.

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Douglas Siqueira São Paulo – São Paulo É bacharel em Comunicação Social com habilitação em Midialogia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É idealizador e escritor da página (autor ensandecido) e, além de escrever poemas, atua na área de Produção Audiovisual como professor e realizador.

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Criador de todo movimento necessário uma dança leve com o acaso do grito preso indignado uma canção de seis minutos afiados de cada instante transitivo e raro o eterno em movimento capturado dos devires em mim em ato um absurdo e surreal quadro a quadro entre Pina Dylan -Bresson Buñuel estou eu potente e perdido ansioso por riscar o infinito no espaço em branco deste papel

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Lamento os sons dessa avenida de ondas dispersas e aflitas têm um pouco de canto de mar se eu fechasse meus olhos equalizasse esse chorus poderia, imerso, imaginar mas tem o reflexo do céu imóvel, cinza e escuro nesse asfalto frio e duro impossível de mergulhar logo, todo o meu lamento tão afeito a se afogar procura outro tipo de morte e continua a lamentar

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Abismo o abismo entre dois seres descontínuos faz-se espaço infinito de dor

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Ao longe aqui onde o espaço é trânsito e o tempo é espera todo mundo pertence ao longe

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Outro a escuridão ressoa encolhe o meu silêncio ruído rouco deste corpo baixo e oco espaço finito onde gasto torto e afoito o esforço fluido de ser sempre outro

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Multiverso agora no instante já te sinto brinco com descaso: é o destino acaso és parte escura do meu infinito (não houve tempo suficiente para que, por tua luz eu fosse atingido) enquanto isso és esse mistério que persigo me move me mantém

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Salvador Scarpelli Campinas – São Paulo Começou a escrever poesia quando estava no primeiro ano da faculdade. Edita o zine ExperimetAlgo com poemas, colagens, desenhos, que é distribuído por bares, semáforo e saraus.

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Me espelholhando já faz tempo que não nos entendemos, eleu, euele. Duas de um, cruzados em paralelos distintos se olhando frente a frente sem a compreensão de quem somosão.

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como a carne de jesus! e bebo seu sangue! antropofagia depois saio da escola de domingo e vou a um motel qualquer na D. Pedro e encontro o caralho alongado de Jesus, meu amante, em minha boca (bola gato – sobre desce sobe desce), começamos a festa melecada, que se arrasta por horas, e terminamos com um anal fundo sentindo sua pureza dentro do meu cu sua esporada tinha gosto de hóstia podre

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Ginsberg ao poeta bicha judeu comunista peludo ao poeta apaixonado pela libertação do espírito através versos nus W. W. Jr. ao chupador de caralhos grossos deitado sobre peitos cabeludos de machos suados dançando num canto de universos enquanto o jazz percorre em linhas curvas alucinógenas cruzando seus pelos do rabo até sua barba grande e labiríntica de mundos ocultos ao poeta nossas bebidas derrama mos na terra viva de onde viera a morte faz a vidamorte vida Yeats Uma Visão fumaças de nossos baseados subindo pelos ares destampando seu vulto flores brotam de nossos peitos quando as colocamos em nossos botões para você a lua cheia traz o uivo dos derrotados histéricos loucos ao poeta avô de todos nós humanos o movimento espiritual move a magia do entorpecimento mental olhos do cachorro solitário bebendo água de sede enquanto estrelas nascem nossos corpos ao poeta do livre do sopro sem camiseta presa dentro da calça primeira ideia, melhor ideia passageiro da vida como todos explorando em cada rachadura dessas paredes sujas de morte pós nós bomba em nós a existência 7faces • 181


dando ao mundo a paz minha tentativa de celebração ao poeta que está muito bem segundo seu psicanalista eremita urbano dedicado à poesia minha tentativa de saudá-lo ao poeta nômade indo de supermercado de imagem a supermercado de imagem seguindo Whitman sendo-o majestosamente si cru Carlo Marx Alvah Goldbook falando sozinho enquanto cobrava América pelos dois dólares vinte e sete centavos 17 de janeiro de 1956 ao velho Pai Olho de Peixe nós o brindamos nesse 3 de junho 15. 89.

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Anna Barton Porto Alegre – Rio Grande do Sul Nasceu outra, cresceu uma, escreve ELA PRÓPRIA. Das Terras das Videiras Dionísicas migrou para o Porto dos Casais. Escreve há priscas Eras, na tentativa de achar o fio da meada. Anos 80 de nascimento, leva no peito o século 17. E vive, e transpira, a fritar pneus e gastar nanquim em 2016, diluindo o coração nas distâncias.

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Homenagem à Oswald Somente nós, as fêmeas Sabemos o que é a Antropofagia Engolimos a carne tenra Em sua mais tensa agonia Suspiramos o prazer do desapego E da contração carnívora Canibais As fêmeas A natureza febril O quente que é frio Os seios amargos As férias das dores O repouso da troca Ninho suspeito e cheio de espinhos Maria, a Imaculada Antropófaga Rogai por Nós Para que jamais tenhamos de economizar o gozo Esta Moeda dolente derramada "ad libitum", pecaminosa. Invaginada, inspirada e decomposta É isso, a Antropofagia em prática Pratique-a, duas a três vezes por semana Coma as próprias entranhas Absorção das tonsilas Amensais da razão A Lógica vai te Perdoar

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O trato do Trator Minha Terra necessita... Ser vincada, revirada, aerada, desconstruĂ­da e afundada Pelas garras do teu arado Me fere, mas me alimenta Me dĂłi, mas me tece Me crava, mas me apetece Me desaba, mas me enleva Pega um punhado de mim com as palmas E me devolve a mim mesma

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A floreira da minha varanda É bizarra Ela renega a vida caduca E o dissabor dos desencontros Ela fica insistindo Em permanecer florida Linda, imanente Na beirada branca De meu insano "interesse pela vida" Na quase queda do meu parapeito Ali, exuberantes como a Lua Cheia As flores teimosas reinam E, frágeis, ingênuas e infantis, Iluminam per se Tudo o que ao elas se voltar, Na sua expectativa. Embora ninguém as perceba, São amarelo-ouro, são ocre, são âmbar São cetim, são átrio e ventrículo São amargas de tão belas! São Cheias de fragrâncias; De Esperança; De ontens desejados; De amanhãs desejados; E eu não consigo eliminá-las Embora eu tenha tentado Por anos a fio... Pisoteá-las, esquartejá-las Desnorteá-las, enganá-las Fazê-las senescer Eliminá-las das minhas vistas Eu não fui feliz nessa empreitada... Nem a geada, ou o vento, ou a interrupção, Transparentes e desatentos, Porque imprevisíveis, Nem estes!!! Alteraram uma única pétala, uma sépala sequer delas...

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As minhas flores são repletas duma Coisa Uma coisa que assusta Uma coisa que não se limita Uma coisa que afugenta Que cala Transbordam, indecentemente E sem a vergonha idiota das banalidades, Essa Coisa. Elas ofendem Demais E permanecem E permanecem E permanecem Não reprimas, pois, a Besta das Paixões.

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Fernanda Fatureto Uberaba – Minas Gerais É poeta e jornalista. Bacharel em jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero. Publicou seu primeiro livro de poesia, Intimidade Inconfessável (Editora Patuá), em 2014. Possui poemas em diversas revistas literárias do país como Germina, Mallarmargens; RelevO e Diversos Afins.

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1. Salta a noite escura, vertigem de linhas remotas sobre planícies erguidas pelo desparato de um deus invisível – acaso; não mais que urgente para que se cale o grito da esperança: somos todos mortais.

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2. Da história instrumental dos que são feridos por alguma injustiça remota, qualquer que seja a retórica, os inocentes serão julgados pelo marco de um parágrafo escrito em tinta preta sobre um papel perverso que destila o ódio em suaves prestações.

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3. À espera de um dilúvio que cure o ressentimento do mundo ou mesmo ressalte o caráter transitório da ideologia: Pátria partida e nenhum elo que a una novamente. O escárnio de um cuspe nos representa mais do que cem anos de escravidão.

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4. Frágeis são os que sonham acordados que a voz salva o medo enquanto o corpo tateia o asfalto: Não há nada de novo sob o sol. Ciclo contínuo de repetições a confirmar o Absurdo enquanto fábula de um possível carnaval.

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Lúcio Carvalho Porto Alegre – Rio Grande do Sul Nasceu em Bagé em 1971. Autor de Inclusão em pauta (Porto Alegre: Ed. do Autor/KDP, 2015), A aposta (Porto Alegre: Ed. Movimento, 2015), do blog Em Meia Palavra e editor da revista Inclusive – Inclusão e Cidadania. Escreve ficção, poesia, crítica literária e artigos jornalísticos para diversas publicações. Os poemas aqui apresentados integram o inédito livro Poesia.

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Mar adentro os sons sobrepõem-se e, no lugar da chuva, o musgo pelo qual deslizo à água fria um som de violinos em arpejo faz tudo parecer imenso eu trago remédios modos de não fazer tão errado o que nem pode mais ser feito há um som intrépido que nasce como um rangido e nos dentes ao espelho é interrompido mas muito mais que o mar a rua é estreita e antiga e as casinhas de azulejos fraturados evito eu também estou quebrado como essa asa de anjo caído que levo oculto em meu nome escurecido tenho também esperanças quem não as têm? mas de que eu as convença elas dependem a chuva não tarda a cair o calor me abrasa por dentro estou salgado como mar adentro

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deslizo os pés pelo musgo vacilo a vida não se pesa em quilos e o arpejo termina sem mais nem menos só mesmo a música para me deixar pequeno

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Despejos qual fosse em mim mas já sem paciência para dizer especulo sobre o que me trarão o tempo carregando os seus baldes e a água que, sem a solenidade da chuva, faz seus despejos ao chão deveria cair mais deveria cair toda e ainda que amanhã o dia possa voltar a nascer torto ou crie um novo inquérito para novas esperanças tento entender como pode às vezes resultar em nada o esforço espetacular da madrugada deveria nascer neutra deveria nascer outra

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Por exemplo sei coisas que de nada valem perder-me de mim mesmo, por exemplo ou perdoar-me já tendo esquecido sei que esquecerei tão logo possa o que já devia ter aprendido para então começar de novo sem sequer ter insistido como se jamais partira como se o que dissesse não requeresse sentido como devesse assentar meu nome num documento molhado, vencido sei que para tudo o que preciso devo valer-me da memória do que aprendi nos outros e do que de mim ficou por lá perdido

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Semelhança o granito todo na pedra o sal na água do mar o azul no espaço vago do céu ___________________ a estrada que percorrer ___________________ a árvore onde dormir ___________________ a pluma da ave no chão ___________________ (ó céus) o tempo avança ao destino o destino escolhe sementes, mas não o silêncio em que elas germinam ___________________ sei como fazem os brotos ___________________ e por onde gretam as raízes ___________________ e o que a natureza entrega ___________________ (a sós) não tenho sempre que entender nunca quero que ninguém saiba nem tenho razões de explicar-me ___________________ as mãos pendem sem força ___________________ as marcas no corpo, as rugas no rosto ___________________ às vezes até que nos parecemos ___________________ (deus)

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Carbono-14 dentro dos prismas a luz tem respostas exigentes e dentro dos músculos há elásticos contentes dentro do céu vermelho um gosto aquilino e no vento a certeza de ir permanente enfiados em seu diligente tiquetaque os relógios são máquinas infernais enquanto dentro das células a vida se escreve em carbono ali um sedimento encalha no outro e vão-se, à deriva há quem queira controlá-los com mapas e destinos e quem pense entendê-los por versos ou música mas essa é uma ilusão como a do vinho dentro da boca e enquanto não é possível entender o cosmos só resta falar baixinho dentro dos prismas a luz abandona a si mesma e para dormir ela despe-se finalmente, no escuro

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os relógios podem então decantar suas impurezas invisíveis e o céu mudará outra vez de cor pelo afago de mãos intangíveis dentro das células o calor e o amor são incríveis

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Leandro Rodrigues Osasco – São Paulo Nasceu em 06 de janeiro de 1976 em Osasco. Formado em Letras e Pós-Graduado em Literatura Contemporânea. É Professor de Literatura Brasileira. Também é autor do blog poético Náusea concreta e um dos autores da Revista Zona da palavra. Possui alguns poemas em diversos sites e revistas literárias como Zunái, Germina, Mallamargens, Cult, Antônio Miranda Portal de Poesia Iberoamericana, Musa Rara, Portal Vermelho, Banquete Poético, SérieAlfa (Espanha), Revista Alagunas entre outros.

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Enlaces (la explicación del golpe) I O Cristo libertário de Orozco Arrebentando sua cruz a machadadas Como Bashô observando o rio II Entre as cercanias do vento outros nadadores mortos atravessam o canal chegam à praia e se acorrentam no sol. III Ilusionistas desafiam arranha-céus e somem entre as trincas do concreto restaurado. IV Na noite extensa todos se entendem menos os poetas V menos as putas VI menos os pugilistas VII 7º round.

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4 cenas do cão andaluz I por que um cão sangrento atravessa-nos à noite e reduz a lua com seu brilho no esgoto numa parca brancura disforme moldada ou uivo do mal agouro encarcerado / sombra desfragmentada num osso de nossa própria (in) existência as vísceras repugnantes à mostra para consumo da matilha e suas fartas mandíbulas. II O ventre exaurido do parir eterno constante: palavras, palavras, versos desarticulados / disformes e tão orgânicos. III costumeiramente rasgados no cordão arrancado com navalha fria, afiada bem trabalhada. IV no rescaldo de tudo o cão – o grito se deita – carne viva restos da pelagem moldura mórbida estática da sala de jantar imponente com seus móveis discretamente apoiados em calços vermelhos e nas sombras tortas desfocadas de todos aqueles animais mortos da família – empalhados o sangue que ainda respinga pisado. 7faces • 206


Lindas matrioscas frias de neve frias matrioscas de neve com poemas dentro de Maikóvski, Pushkin, Lermontov... infinitas sombras guardadas “Lá nas minas da Sibéria” “o homem que outrora fui” “Além do Cáucaso e seus altos montes” Amplas cordilheiras desmontadas bálsamos da noite escura grito solto entre os espelhos estilhaçados por golpes precisos “O mar se vai O mar de sono se esvai”

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Adágio de cacaso O vento. A morte. A injustiça. O olhar tenso esticado. Este coração de 2016 falseia já nem bate / rebate – ator doado – fatiado mil partes C O N S U M I D A S sobre os trilhos move-se re move-se des go ver na do

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Laís Ferreira Oliveira Belo Horizonte – Minas Gerais Nasceu em 1992, em Belo Horizonte. É mestranda em Comunicação na Universidade Federal Fluminense, com ênfase em estudos do cinema e audiovisual. É bacharela em Comunicação Social, pela Universidade Federal de Minas Gerais. Em 2015, publicou o seu primeiro livro de poemas, Caderno de Bolsa, pela Chiado Editora. Em 2014, foi finalista do Concurso Nacional Novos Poetas, da Vivara Editora, com o poema “O Beco número 2”. Em 2008, obteve menção honrosa com a crônica “Frutinhos e tiras de chitão” no concurso “Brasileiros em Prosa & Verso” da editora Alba. Obteve o quinto lugar com o poema “Outeiros” nesse concurso. É crítica de cinema na revista Moventes.

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Trapiche Chove pouco e ainda é cedo. As plantas todas crescem nas janelas dos homens frágeis. Mesmos cansados, oferecem abrigo e afeto à desordem dos jardins secos e sujos em que as imagens possíveis são apenas de sombra e medo. O homem que viaja carrega mapas cujos limites são riscos não traçados à beira da pele. Talvez por isso invada mares e beba voraz toda água e sal esquecendo-se que a sede mata-se doce por ser urgente. Onda amor ando ansiando as ilhas secretas do corpo onde se encontram os rios que correram entre o barro das casas antigas e pobres onde é possível descansar na beira onde se afogam homens que não se consomem, mas desaguam serenos ao sol.

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Rua Diamantina No bar da esquina, há um caça-níqueis e um anúncio de venda de carvão. Incrível a fortuna construída na sorte e poder retirar o calor dessas pedras. Em frente a ele, uma mulher deitada no chão estende a mão e aguarda um remendo de esperança ou troca. Nesta rua, tenho o mundo menor e mais assertivo que todos os países em que naveguei, plantei e colhi pó. Agora que tenho nome, quase nasço mas não posso mais berrar bem alto e atingir o mundo onde apenas passeio. Onde há verão e muita luz, o homem ultrapassa a humanidade da não-mulher. Onde há chuva, alguém apenas espera e estende um pedaço de plástico e crê em milagres que matem a sede da terra ainda que saiba da garganta apenas o nó onde não lhe alcança o infinito do rio.

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Ana C.

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Ana Cristina Cesar no lançamento de A teus pés, na livraria Timbre, Gávea, Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1982. Acervo Ana Cristina Cesar / IMS.

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“Cenas de abril teve tiragem pequena e sofisticada, com direito a escolha de três cores para as capas: creme, gelo e azul. Eram sóbrias, clássicas: o nome da autora por extenso ao alto, o título logo em seguida, e depois, como ilustração, lá embaixo, algo atraía o olhar, quebrava a seriedade, introduzindo sutilmente surpresa ou inquietude: a vinheta de uma formação botânica que lembrava o aparelho genital feminino. Essa junção de pudor e provocação era uma das marcas de seu estilo, de ser e de escrever”. Armando Freitas Filho, introdução à Poética, p.8-9

Na página seguinte: uma das três capas para Cenas de abril (1979). Seguem-se datiloscrito com anotações de Ana Cristina. O fragmento 1 do poema foi publicado em Cenas de abril. Imagens Acervo Ana Cristina Cesar / IMS

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“No livro seguinte, Correspondência completa, a poeta se abreviou ou se mascarou como Ana C., “singular e anônima” como tão bem definiu Silviano Santiago, em ensaio seminal sobre sua poesia. Uma tentativa talvez, de criar ao menos um vínculo, por mais epidérmico que fosse, com alguns dos seus companheiros de geração que costumavam assinar a autoria com apelidos sem pompa nem circunstância. O livreto minúsculo, em formato e duração, de 1979, é composto de uma só carta, de Júlia para alguém que não é nomeado, tendo como ‘personagens confessos’, tirados da vida real, Mary e Gil, e traz como indicação bibliográfica ‘2ª edição”. Armando Freitas Filho, introdução à Poética, p.9

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Capa e colofão de Correspondência completa.

Na página seguinte: Datiloscrito com fragmento da carta que compõe Correspondência completa.

Acervo Ana Cristina Cesar / IMS.

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“Luvas de pelica são inglesas, de 1980. O livro é assinado por Ana Cristina C. A capa reproduz um desenho de Bia Wouk de uma figura feminina que o tempo esmaeceu, na reprodução e fora dela. É a impressão que dá, devido ao sentimento de perda, melancolia e desnorteio que encontramos na narrativa. Neste volume, o antigo desejo de escrever um romance, que chegou a ser esboçado n’O Livro (uma das seções de Antigos e soltos) dá seu primeiro passo através de um texto híbrido, flutuante, mal saído do rascunho, que conjuga com perfeição o poema, a prosa, o diário, a carta, a anotação para ser usada ou não, pitadas de ensaio, num verdadeiro mélange adultere de tout, como dizia Corbière”. Armando Freitas Filho, introdução à Poética, p.10

Na página seguinte: capa de Luvas de pelica, publicado pelo selo da coleção Capricho. Acervo Ana Cristina Cesar/IMS

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“Ana Cristina Cesar, por extenso novamente, na sua estreia em editora, voltou como autora assumida à sua assinatura oficial, sem dissimulação. Eliminou a abreviatura, tirou a máscara dos óculos escuros, recuperando sua identidade como poeta sem disfarces, e publicou A teus pés, em 1982. O volume se inicia com uma coletânea inédita que dá título ao livro e reúne os anteriores revistos. O aspecto ‘caseiro’ das edições independentes é suprimido: a “Equipe do coração” no colofão de Cenas de abril e a “2ª edição” de Correspondência completa desaparecem. No primeiro caso, fica a ficha técnica pura e simples, sem “coração”, e no segundo, some o registro bibliográfico falso da edição princeps, que poderia continuar por ser verdadeira, então. Há ainda um índice onomástico dos autores abduzidos por ela, sem nenhuma consideração: era uma pista, mais do que uma confissão ou dedicatórias. Quem os localizasse no tecido do texto, muito bem, quem passasse batido poderia ler sem essa chave ou senha, com o mesmo proveito”. Armando Freitas Filho, introdução à Poética, p.11-12

Na página seguinte: capa da primeira edição de A teus pés publicada pela Editora Brasiliense na coleção Cantadas Literárias. Acervo Ana Cristina Cesar / IMS.

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“Depois disso, tudo foi póstumo sem a sua mão ordenadora. Inéditos e dispersos, arrancado de quatro caixas de papelão deixadas aqui em casa por seus pais atendendo à ordem expressa dela e Antigos e soltos, descoberto a posteriori e organizado com esmero e sabedoria por Viviana Bosi”. Armando Freitas Filho, introdução à Poética, p.13

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Manuscrito de texto publicado em Inéditos e dispersos. Poesia/prosa (Brasiliense, 1985, org. Armando Freitas Filho). Na página seguinte: Datiloscrito de “Soneto” publicado em Inéditos e dispersos. Poesia/prosa (Brasiliense, 1985, org. Armando Freitas Filho). Acervo Ana Cristina Cesar / IMS.

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Nas páginas anteriores: Manuscritos do poema “Protuberância” e “Chove”. Os poemas foram publicados em Inéditos e dispersos. Poesia/prosa (Brasiliense, 1985, org. Armando Freitas Filho).

Nas páginas seguintes: Datiloscritos de dois poemas inéditos de Ana Cristina Cesar. O primeiro escrito em setembro de 1974 e o segundo em agosto de 1958, um dos primeiros de quando ainda criança. “Uma poesia de criança, composição com cinco estrofes, saiu no boletim escolar direcionado aos professores da educação infantil do Colégio Bennett, onde Ana estudava. Antes do domínio da escrita, ela já ditava versos que eram transcritos pelos pais. Acervo Ana Cristina Cesar / IMS.

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Ana Cristina Cesar em Pedra Sonora, Resende, Rio de Janeiro, 1967. Foto: Waldo Cesar. Acervo Ana Cristina Cesar / IMS.

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7faces www.revistasetefaces.com A Revista 7faces é uma produção semestral independente com interesse na publicação de poesia. Editores Pedro Fernandes e Cesar Kiraly Organização desta edição Pedro Fernandes e Cesar Kiraly Conselho editorial Eduardo Viveiros de Castro Ésio Macedo Ribeiro Maria Filomena Molder Nuno Júdice

Colaboradores (por ordem de apresentação) Jørge Pereira Carlos Barata Fernanda Pacheco Luís Otávio Hott Ricardo Abdala Douglas Siqueira João Paulo S. Liossi Salvador Scarpelli Nivaldete Ferreira Marina dos Reis Cristiane Grando Fernanda Fatureto Jeovane de Oliveira Cazer Lúcio Carvalho Laís Araruna de Aquino Leandro Rodrigues Lau Siqueira Laís Ferreira Oliveira Karin Krogh Agradecimentos A todos que enviaram material para a ideia.

Contato Pelo correio eletrônico dos editores, pedro.letras@yahoo.com.br, ckiraly@id.uff.br ou através do correio eletrônico da redação revistasetefaces@ymail.com Revista 7faces. Natal – RN. Ano 7. Edição n. 13. Jan.-Jun. 2016. ISSN 2177-0794

Licença Creative Commons.

Estes desenhos que costuram esta edição da Revista 7faces são de Ana Cristina Cesar; desenhos feitos em caderno durante a estadia da poeta em Portsmouth, cidade na qual planejava escrever sua dissertação de mestrado para a Universidade de Essex – datam de junho / julho de 1980. Arquivo Ana Cristina Cesar / IMS.

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Os editores deste caderno-revista isentos de toda e qualquer informação que tenha sido prestada de maneira equivocada por parte dos autores aqui publicados, conforme declaração enviada por cada um dos autores e no sistema 7faces.

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