Esquinas #54 web

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REVISTA-LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA FACULDADE CÁSPER LÍBERO #54 - 2º SEMESTRE DE 2013

O NOVO AR

DAS RUAS Transcendendo a ideia de lugar de passagem, o espaço público reforça sua condição de palco do cotidiano



EDITORIAL

Revista-laboratório do curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero

Fundação Cásper Líbero Presidente Paulo Camarda Superintendente Geral Sérgio Felipe dos Santos Faculdade Cásper Líbero Diretora Tereza Cristina Vitali Vice-Diretor Welington Andrade Coordenador de Jornalismo Carlos Costa

a vocação

das ruas

Professor responsável Heitor Ferraz Mello Monitoria Editora Patrícia Homsi Assistente editorial Isabela Moreira Editora de Arte e Fotografia Luíza Fazio Diagramação Luíza Fazio, Nathalie Provoste, Pedro João de Camargo, Rafaela Malvezi e Thaís Helena Reis Revisão Gabriela Boccaccio, Isabela Moreira, Leandro Saioneti e Patrícia Homsi Participaram desta edição Alessandra Petraglia, Amanda Saviano, Ana Beatriz Rosa, Ana Clara Muner, Ana Ferraz, Ana Laura Pádua, Ana Paula Canhedo, Ana Vazzola, André Baldini, André Silva, Andressa Lelli, Angela Boldrini, Bárbara Blum, Beatriz Atihe, Beatriz Coppi, Beatriz Magalhães, Beatriz Malheiros, Bianca Chaer, Bruna Cavalini, Bruna Meneguetti, Brunna Amaral, Camila Gregori, Camilla Sanches, Chames Oliveira, Dâmaris Dellova, Daniel Lopes, Daniela Rial, Davi Sant’Ana, Débora Stevaux, Eduardo Marques, Erick Noin, Fernanda Figueiredo, Francielen Mariotto, Gabriela Boccaccio, Gabriela Monteiro, Giovana Castro, Giulia Bressani, Gustavo Jazra, Heloisa Aun, Heloisa D’Angelo, Isabela Yu, Isabella Faria, Isabella Marinelli, Isadora Couto, Jennifer Detlinger, Joana Borges, Joanna Cataldo, Jordana Langella, Juan Gutierres, Júlia Barbon, Júlia Müller, Juliana Milan, Juliana Moyses, Juliana Ortega, Juliana Pasta, Karolina Ciccarelli, Ketlyn de Araújo, Laísa Dall’Agnol, Lanna Dogo, Letícia Dias, Lígia Neves, Luanna Martins, Luíza Fazio, Maria Clara Moreira, Mariana Agati, Mariana Canhisares, Mariana Dib, Mariana Guimarães, Mariana Marinho, Mariana Oliveira, Mariana Zancanaro, Mariane Monteiro, Marina Gabai, Michelle Kaloussieh, Monique Alves, Natália Freitas, Natália Guadagnucci, Natália Scalzaretto, Nathália Giordano, Nathalia Ruiz, Nathalie Provoste, Pâmela Vespoli, Paola Perroti, Paula Forster, Paula Volpi, Pedro Goldgrub, Pedro João de Camargo, Rafael Rojas, Rafaela Malvezi, Raphaele Palaro, Renato Leite Ribeiro, Rúbia Sousa, Sarah Mota Resende, Sean Farinha, Stephanie Ricci, Thaís Helena Reis, Thalita Facciolo, Thiago Navarro, Tiago Mota, Vinícius De Vita, Vinicius Pessoa, Vitória Vaccari

HEITOR FERRAZ MELLO

São Paulo sempre sugere pautas para uma revista laboratório como Esquinas. E mais uma vez, a cidade – um laboratório também para o futuro jornalista – é o cenário das reportagens reunidas nesta edição. Mais do que a cidade, suas ruas, suas rugas, suas ranhuras, suas raízes, sua gente, ralando no dia a dia das calçadas. Não negamos a nossa inspiração: o velho e sempre bom João do Rio e seu precioso livro A alma encantadora das ruas. As “jornadas de junho”, como ficaram conhecidas as manifestações populares recentes, mostraram a força das ruas – a retomada desse espaço essencial na vida das cidades. Hoje, pequenos grupos em São Paulo – inspirados por esses movimentos – já se reúnem tentando garantir a sobrevivência de espaços urbanos minimamente agradáveis, reformando praças, brigando contra obras monstruosas, novos prédios de luxo, que chegam com todo seu lixo arquitetônico, barrando a paisagem, matando as poucas áreas verdes da Pauliceia. É ainda um gesto tímido, pequeno, mas que pode crescer. E sabemos que é possível ser um grande centro sem políticas predatórias e sem abrir mão de alguma qualidade de vida. Como diz Paulo Mendes da Rocha, um dos mais importantes arquitetos contem-

porâneos, em entrevista exclusiva para esta edição, “a especulação inventa algo que não é cidade, que acaba destruindo-a como espaço público. É o tal condomínio fechado, onde não há transporte público, o que obriga o uso do automóvel. A rua é sua, você pode viver ou morrer nela, mas no condomínio fechado o guardinha não permite isso. A cidade, por si, bem feita ou mal feita, é para todos”. Este número procura retratar a vida das ruas – com suas transformações, suas vocações específicas, seus moradores e transeuntes, e também, claro, com seus problemas, que não são poucos. Para abordar matéria tão vasta, a revista optou, sempre que possível, pela reportagem humana, para as quais as pessoas e sua relação com o espaço são mais importantes do que tabelas e números. Esta também é a última edição feita pela jornalista Patrícia Homsi, que acaba de se formar. No seu lugar entrará Gabriela Boccaccio, que está começando o terceiro ano de jornalismo. Nos últimos meses, as duas formaram uma ótima parceria, ao lado de Isabela Moreira, que também está deixando a revista. Sentiremos falta do humor de Patrícia, sempre fino e atilado, no melhor estilo da tradição judaica, e do rigor de Isabela no trabalho conjunto de organização e edição dos textos.

Imagem de capa: Petrus Lee

Núcleo Editorial de Revistas Avenida Paulista, 900 – 5º andar 01310-940 – São Paulo – SP Tel.: (11) 3170-5874 E-mail: revistaesquinas@gmail.com www.casperlibero.edu.br

Na Esquinas #54, deixamos que o rastro das histórias urbanas nos mostrasse o caminho das reportagens. Nas páginas a seguir, o leitor confere as diversas realidades guiadas pela descoberta da rua como personagem.

PETRUS LEE

Agradecimentos André Silva, Gabriela Sá Pessoa, Mariana Marinho, Nathalie Provoste, Pedro João de Camargo, Petrus Lee, Tiago Mota e aos professores Carlos Costa e Welington Andrade

ESQUINAS – 2º SEMESTRE 2013

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SUMÁRIO

06

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06 O povo no asfalto

24 O ambiente que me veste

08 Lutas concretas

27 Aos nossos pés

10 Bastidores do subterrâneo

30 A cidade ideal

A retomada e a reivindicação da população pelo direto à cidade

A urbanista Ermínia Maricato fala sobre a escolha dos cenários das manifestações deste ano e do significado por trás disso

A influência dos fatores urbanos na vestimenta da população

Como são feitos o planejamento, a avaliação e a manutenção das calçadas paulistanas atualmente

Canos de esgoto, tubulações de abastecimento de água e túneis do metrô compõem o horizonte rua abaixo

Em entrevista à Esquinas, o arquiteto Paulo Mendes da Rocha fala sobre a relação entre o planejamento das ruas e a cidadania

15 No rastro de São Paulo

34 Raízes no concreto

18 Pão, Palco, Pátio, Lar

44 CORTINAS ABERTAS

Os resquícios de outras épocas se encontram espalhados - e, por vezes, abandonados - por toda a cidade

A rotina de diferentes personagens que trabalham ao ar livre

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No horizonte cinza, iniciativas em prol da preservação do meio ambiente se destacam na capital

Os desafios pelos quais passam as companhias de teatro de rua


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36 48 Se essa rua fosse viva

Em asfalto personificado, a rua gera novas faces a cada esquina

54 ARRUAÇA

As principais motivações dos grupos e movimentos que praticam a depredação do patrimônio público

57 IMOBILIDADe

48 SEÇÕES 03 EDITORIAL 36 FOTORREPORTAGEM 64 ALI NA ESQUINA 66 QUADRINHOS 70 CRÔNICA

São Paulo sofre com o trânsito caótico, o transporte caro e a falta de opções para a locomoção

60 Quem tem medo da rua?

Disfunções mentais como síndrome do pânico e depressão se intensificam ou se manifestam devido a fatores urbanos

62 Rango na calçada

A comida de rua está nas pautas de vereadores e de chefs renomados

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MANIFESTAÇÕES

O povo no

ASFALTO A apropriação das ruas nos protestos de junho não representa só a reivindicação de causas, mas a retomada do direito à cidade REPORTAGEM ANGELA BOLDRINI, NATÁLIA FREITAS, STEPHANIE RICCI (1o ano de Jornalismo) e JULIANA PASTA (2o ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO BÁRBARA BLUM (1o ano de Jornalismo), GABRIELA BOCCACCIO e MONIQUE ALVES (2o ano de Jornalismo) IMAGEM RAPHAELE PALARO (1o ano de Jornalismo)

“Se nosso mundo urbano foi imaginado e feito, então ele pode ser reimaginado e refeito.” A frase faz parte do texto que o britânico David Harvey, geógrafo e professor de antropologia na Universidade da Cidade de Nova York, escreveu para a revista Urbânia, em 2008. No entanto, ela se encaixa perfeitamente no contexto das manifestações que ocorreram em todo o Brasil no ano de 2013. O professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), Lincoln Secco, chamou de “as jornadas de junho” o período em que as ruas das principais cidades do País se tornaram protagonistas de levantes, servindo como abrigo aos manifestantes e como pontos estratégicos para a polícia. A partir das “jornadas”, levantou-se a questão do “direito à cidade”. A população ocupa o espaço público como forma de legitimar seus direitos, demonstrar descontentamento ou mesmo participar de eventos que a própria cidade lhe oferece, como a Virada Cultural, organizada pela prefeitura paulistana. No entanto, na prática, as manifestações parecem ambíguas: ao mesmo tempo em que interferem e impedem a circulação de pessoas pela ocupação das ruas, seu estopim foi justamente a deficiência da mobilidade urbana. Como afirma o próprio Movimento

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Passe Livre de São Paulo (MPL-SP), “a cidade é usada como arma para sua própria retomada: sabendo que o bloqueio de um mero cruzamento compromete toda a circulação, a população lança contra si mesma o sistema de transportes caótico das metrópoles. Nesse processo, as pessoas assumem coletivamente as rédeas da organização de seu cotidiano”.

DIREITOS E PARADOXOS Para Márcia Hirata, pesquisadora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), “o ideal da cidade é que você usufrua dos meios urbanos. Se você não tem acesso aos deslocamentos propostos pela mobilidade, imediatamente perde o direito à metrópole”. É nesse contexto que entram os famosos “vinte centavos”: o aumento da tarifa do transporte público de R$3 para R$3,20 foi o ponto de partida para as manifestações em São Paulo e para o início de acalorados debates. De um lado, os motoristas e passantes furiosos com as complicações causadas pelos protestos, e do outro, os manifestantes que reivindicavam o espaço da rua para chamar atenção às suas demandas. Dono da página Manifestante dá Depressão, no Facebook, o historiador André Nicacio afirma que houve uma grande re-

percussão Brasil afora porque “a mobilidade urbana faz parte do cotidiano de todo mundo. Qualquer mudança feita possui um impacto muito claro nas vidas de todos”. Ao bloquear pontos cruciais para o funcionamento da cidade, usando o espaço público como alvo e meio dos protestos, a ocupação cria um paradoxo: se os manifestantes têm o direito de utilizar as ruas como forma de combate, ao resto da população também cabe a possibilidade de circular livremente pela malha urbana. “O objetivo das manifestações é gerar transtornos. Elas acontecem na rua justamente para terem maior visibilidade. São democráticas para os que querem se manifestar, mas acabam causando muitas dificuldades para aqueles que estão circulando”, diz Nabil Bonduki, professor da FAU-USP e vereador pelo Partido dos Trabalhadores (PTSP). Já para André, “vale tudo”. “O direito à manifestação está acima de tudo isso, não há democracia sem ele”, afirma o historiador. Explica-se assim a escolha da avenida Paulista, em São Paulo, para ser o palco de quase todos os levantes ocorridos na capital. “Toda a cidade tem o seu lugar de manifestações. Antigamente era a Praça da Sé, mas ela perdeu a centralidade”, afirma o político.


Segundo o historiador André Nicacio, não há democracia sem manifestações

Esta opinião é compartilhada pela urbanista Ermínia Maricato (leia a entrevista na página 8). Segundo a também urbanista Márcia Hirata, a escolha é óbvia, uma vez que, além de ser um ícone da capital paulista, a via é um ponto estratégico, ligada à Consolação e à zona oeste – onde ficam o Largo da Batata e as avenidas Faria Lima e Berrini. Do outro lado da questão, estão aqueles que foram às ruas protestar contra o aumento da passagem dos transportes públicos, e que também acreditam que o direito de ir e vir que está sendo infringido não é o dos motoristas. “Para a maior parte da população explorada nos ônibus, o dinheiro para a condução não é suficiente para pagar mais do que as viagens entre a casa, na periferia, e o trabalho, no centro: a circulação do trabalhador é limitada, portanto, à sua condição de mercadoria, de força de trabalho”, afirma o MPL-SP em seu manifesto publicado na coletânea Cidades Rebeldes, lançada em julho pela Boitempo Editorial. Segundo uma análise feita pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) sobre o tempo de deslocamento dos trabalhadores brasileiros no trajeto entre casa e trabalho entre os anos de 1992 e 2009, na “média das nove maiores regiões metropo-

litanas mais o Distrito Federal, o segmento mais pobre dos trabalhadores gasta em média 20% mais tempo no trânsito do que o segmento mais rico”.

FRAGMENTOS AUTÔNOMOS Essa discrepância, bem como a própria ocupação das ruas se deve, em boa parte, ao planejamento urbano das metrópoles. Em A liberdade da cidade, David Harvey afirma que “vivemos, na maioria, em cidades divididas, fragmentadas e tendentes ao conflito. A maneira pela qual vemos nosso mundo e pela qual definimos suas possibilidades quase sempre está associada ao lado da cerca onde nos encontramos”. Márcia explica que a cidade fragmentada: “é uma forma condominial da ocupação do espaço urbano. São pequenos prédios verticais, isolados nos lotes com condomínio-clube, que possuem tudo lá dentro. O melhor exemplo disso é o Shopping Cidade Jardim. Se analisarmos, só é possível chegar lá de carro. O indivíduo não tem contato com a rua, não olha para a cara de ninguém”. Harvey compara esse tipo de habitação às comunidades marginalizadas e ilegais, que vivem sem saneamento, eletricidade, pavimentação ou água encanada. Criam-se, em

ambos os casos, fragmentos autônomos, “as pessoas não se reconhecem mais como sendo moradoras de um mesmo espaço. Elas se reconhecem entre si mesmas, mas há um sentimento de estranheza”, explica Márcia Hirata. “Os lugares são todos iguais e, consequentemente, as pessoas acabam ficando parecidas. Falamos do gueto de modo pejorativo, mas ele está na Vila Olímpia e no Shopping Cidade Jardim.” A presença de condomínios-clube também gera outro problema: a desertificação das ruas. Vazias, elas acabam se tornando locais de crime e, para fugir da violência, os cidadãos passam a frequentá-la menos, preferindo os espaços fechados, como os shoppings. As ruas “são o maior símbolo de que existe algo que pertence a todos, porque não tem proprietário, não tem dono. Não há uma autoridade identificável”, explica André Nicacio. Segundo o historiador, essa noção de direito de apropriação do cidadão “depende de uma cultura política e do modo como cada um encara sua cidadania, sua inserção no mundo, sua relação com os poderes estabelecidos”. Nesse caso, afirma que o aprendizado das manifestações de 2013 é essencial para que o povo possa, de fato, tomar o asfalto para si.

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DEBATE

LUTAS CONCRETAS Das grandes avenidas pensadas por Prestes Maia até a simbologia por trás da Paulista, Ermínia Maricato explica a urbanização de São Paulo e seus reflexos nas manifestações

gabriela boccaccio

REPORTAGEM Bárbara blum (1º ano de Jornalismo), Gabriela boccaccio e Monique alves (2º ano de Jornalismo)

Urbanista e professora titular aposentada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), Ermínia Maricato não restringiu sua experiência às salas de aula. Tendo atuado na Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano do Município de São Paulo de 1989 a 2002, durante o governo de Luíza Erundina, e no Ministério das Cidades, onde foi secretária-executiva, entre 2002 e 2005, Ermínia contribuiu recentemente com uma valiosa análise sobre a retomada das ruas na coletânea Cidades Rebeldes, com o texto É a Questão Urbana, Estúpido. Na arborizada casa da urbanista, situada no bairro da Vila Madalena e cercada por plantas cuidadosamente tratadas, Ermínia recebeu a reportagem da Esquinas para discutir a importância de um planejamento urbano voltado aos cidadãos, e não à melhor circulação de automóveis ou ao investimento do capital privado. Qual é a importância da rua nas manifestações? Para trabalhar a questão da rua é necessário distinguir o que é espaço público e o que é espaço privado. Então, o que mais chama atenção nas manifestações é o fato de que elas ocorreram na rua, no espaço público. O fator mais importante é a localização desse espaço. Numa sociedade onde o consumo é essencial, o espaço público perde a importância, porque ele é ocupado por uma mercadoria: os automóveis. Cada vez o pedestre tem menos espaço. A retomada da rua pelas manifestações é uma reafirmação do caráter público desse espaço.

Para Ermínia, a cidade deve ser voltada aos pedestres, não aos automóveis

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A avenida Paulista foi uma das principais referências para as manifestações. Como se explica isso? Cinquenta anos atrás os manifestantes não iriam escolher a avenida Paulista, mas a Praça da Sé. Mais do que uma rua, era uma praça. Agora, as manifestações estão se dando na avenida Paulista. A que não ocorre lá, não pode ser noticiada por não ser entendida como a manifestação da cidade, ou da sociedade. A questão da localização é


MARIANA OLIVEIRA

fundamental. Você tem um deslocamento do que seria o centro simbólico de São Paulo, do “centro velho”, que é a Praça da Sé, o Anhangabaú, para a avenida Paulista. Isso acontece porque o centro é sempre onde a elite se posiciona. A questão de você entender a cidade como um lugar onde a luta de classes está instalada é fundamental. A Praça da Sé, assim como o Anhangabaú, foram lugares centrais em alguns momentos da história. Eles tinham uma carga simbólica. A centralidade da cidade, a simbologia, se desloca. Em São Paulo, ela migrou para a avenida Paulista e está se deslocando novamente, desta vez para a Faria Lima. É uma centralidade baseada nas classes sociais. A avenida Paulista foi criada como moradia da elite do café, então ela já possui uma história de apropriação da classe dominante. Depois foi modificada e passou a ser a “avenida da paulistanidade”. Houve recentemente um protesto na Paulista do Movimento de Atingidos por Barragem (MAB). Eles são organizados e já protestavam antes de junho, às vezes ocupavam canteiro de obra nas barragens. Ninguém nunca tinha visto, até que eles foram para a avenida Paulista. Para se manifestar, tem que ser lá, senão ninguém vê. A cidade de São Paulo foi pensada com uma determinada lógica urbanística? Durante o período Prestes Maia [prefeito de São Paulo de 1938 a 1945], foram inauguradas grandes avenidas inspiradas no urbanismo americano. São Paulo teve esse período em que o bonde foi derrotado e o transporte sobre rodas foi implementado. Nenhuma cidade desse tamanho consegue se sustentar em transporte sobre rodas, muito menos sobre transporte individual. O transporte coletivo não é prioridade e nunca foi. A cidade foi planejada com as avenidas de fundo de vales [com desnível para escoamento de água]. Até hoje temos crimes nessa prática de tamponar os fundos de vale, tapar os córregos, trazer a possibilidade da enchente com a impermeabilização das calhas e favorecer os carros. Nós estamos em uma socie-

dade em que a questão social, ou seja, a questão do que é coletivo, não é importante. A explosão da cidade de São Paulo por causa da mobilidade teve a ver com tudo isso. Você coloca automóveis dentro da cidade e investe em túneis e viadutos, obras nas quais o carro possa andar. A percepção dos manifestantes de junho sobre a rua mudou depois dos acontecimentos? As manifestações fazem parte da história da luta dos trabalhadores. Quanto ao uso da rua, não sei dizer se vai mudar. Também não é por isso, por exemplo, que vão fazer mais praças. Para isso, temos de chegar num momento de sair das reivindicações básicas para pedir um ambiente melhor. Primeiramente temos que conseguir circular dentro da cidade. Mas, sem dúvida, nunca vi nada funcionar como funcionaram as manifestações. Plano, programa, lei, conhecimento técnico, tudo isso temos sobrando no Brasil. Falta praticar a cidade para a maioria, não para a minoria, para o pedestre e não para o automóvel. O Movimento Passe Livre (MPL) já tem oito anos de militância, mas por que, de repente, colou? Porque está insuportável para todo mundo. A imobilidade atinge a todos, menos aos que andam de helicóptero [risos]. O que influencia o jovem: a classe a qual pertence ou o meio onde vive? Dependendo da sua situação de classe, você tem determinada consciência. Pode haver contradição com a sua própria classe. É importante entender que não fazemos a história como queremos, e sim nas condições que encontramos. Você não faz do mundo o que quiser. Partimos sempre do que nos foi entregue como herança social, material e aí podemos ter contradições e querer mudar. É como se os mortos estivessem constantemente cobrando um preço. Você não é dono do seu destino, é um produto social. Não como indivíduo, mas como ser social, formatado pela sua condição numa sociedade de classes.

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Rua abaixo

Bastidores

do subterrâneo Em uma metrópole, nada pode parar de funcionar, nem mesmo abaixo do asfalto, onde estão escondidos serviços imprescindíveis como os de transporte e saneamento básico REPORTAGEM Débora Stevaux, Eduardo Marques, Giulia bressani, Maria Clara Moreira, Mariana Zancanaro (1o ano de Jornalismo), Vinícius de vita (2o ano de Jornalismo) e RAFAELA MALVEZI (3o ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO BÁRBARA BLUM (1º ano de Jornalismo) ILUSTRAÇãO heloísa D’ANGELO (1o ano de Jornalismo)

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Além de ser o principal centro financeiro da América Latina, a cidade de São Paulo é a mais populosa do hemisfério sul. Isso significa que, na quarta maior aglomeração urbana do mundo, todo espaço é pouco. São 11,2 milhões de habitantes disputando um espaço de 1,5 mil quilômetros quadrados. Por isso, é necessário aproveitar todas as áreas disponíveis – inclusive as que ficam debaixo da terra. Dessa forma, ao mesmo tempo em que aproximadamente 47,2 mil litros de esgoto são tratados por segundo em todo o estado, milhões de pessoas são transportadas pelos túneis do metrô debaixo dos passos apressados dos paulistanos.

Mobilidade problemática Para evitar falhas e contratempos, toda a equipe de metroviários recebe treinamento intensivo: desde como lidar com qualquer tipo de adversidade e questões de segurança básica até emergências médicas, passando por tópicos como práticas antibombas e descarrilamentos. “Minha equipe tem que ser muito boa e afinada. Não pode haver dúvida”, enfatiza o supervisor geral César Quintans, um dos principais encarregados do funcionamento da estação Sé, a maior e mais movimentada estação de metrô da cidade.

Em períodos de pico de movimentação, cerca de 629 mil passageiros transitam por essa plataforma. Qualquer falha, humana ou tecnológica, pode culminar na paralisação de toda a linha vermelha, que liga a zona leste à oeste. “Um erro nosso, dos trens ou da rotina, pode parar São Paulo. Isso gera um impacto direto na economia da cidade e na vida das pessoas. A Sé, em particular, não admite erro.” A estratégia adotada para lidar com as torcidas organizadas é o melhor exemplo do preparo da equipe metroviária. Para evitar o encontro – e possível conflito – entre torcedores de times rivais, estes são conduzidos por seguranças a trens vazios e de uso exclusivo, seguindo para a estação de destino sem paradas intermediárias. Quando Palmeiras e Corinthians se enfrentam no Pacaembu, a torcida do primeiro é levada à Barra Funda, enquanto a do segundo é conduzida à estação Clínicas, de modo a não se cruzarem. Ainda assim, as manifestações que ocorreram em junho de 2013 contra o aumento das tarifas de metrô e ônibus, por exemplo, pegaram a administração desprevinida. “No início fomos afetados. Tudo foi alterado na nossa rotina, tivemos que nos preparar para conviver com os manifestantes. Mesmo diante dessa adversidade, tínhamos que

transportá-los. Antes de qualquer coisa, eles são usuários e cidadãos”, explica Quintans.

Ramificações ocultas Nem tudo aquilo que passa por túneis abaixo da terra é transporte de pessoas: existem encanamentos, bueiros ou bocas de lobo, além de canos para o abastecimento e tratamento tanto de água quanto de esgoto. Eles se dividem entre redes abastecedora e coletora, e são responsáveis pelo escoamento da água da chuva. A prioridade desse sistema é a distribuição de água própria para uso de toda a população – função realizada pela rede abastecedora. Para que isso aconteça, a água percorre um longo circuito depois que sai tratada das represas: dos grandes reservatórios de distribuição, onde fica armazenada, ela passa para os reservatórios de bairros, que a mandam através de grandes tubulações, chamadas de adutoras, que se ramificam para, finalmente, chegar às torneiras e chuveiros. Fundada em 1973, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (SABESP), atingiu a meta de 100% no índice de abastecimento de água em toda a região metropolitana da cidade no ano de 2013. Espera-se que até 2018 essa meta também seja

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Divulgação/Imovision

alcançada em relação à rede coletora, já que atualmente 13% do esgoto produzido em São Paulo não é colhido pela SABESP. De acordo com Alípio Teixeira, engenheiro civil e gerente do Departamento de Gestão de Bens Móveis da SABESP, no Brasil foi criado um sistema separador, para que a água da chuva não se misture com o esgoto, sendo a primeira de responsabilidade exclusiva da Prefeitura. Dessa maneira, a água da chuva flui para galerias pluviais por meio de bocas coletoras (conhecidas como bocas de lobo), passa por túneis e é levada aos rios sem qualquer tipo de tratamento. Com o esgoto é diferente: enquanto o residencial passa por um rígido e cuidadoso processo de coleta e tratamento, é previsto pela lei que o industrial seja tratado pelas próprias indústrias antes de ser depositado na rede coletora, pois a presença de metais pesados e de reagentes químicos danifica os processos de tratamento. O sistema de saneamento básico como um todo, principalmente no que diz respeito ao esgoto, está intimamente ligado à melhoria nas condições de saúde. “Você implanta saneamento e a mortalidade infantil cai proporcionalmente. Cada unidade monetária que se investe em saneamento serve como prevenção e vale por quatro unidades investidas em saúde”, afirma Teixeira.

Túneis restritos

Divulgação/sabesp

O estado de São Paulo possui seis grandes represas para garantir o abastecimento de toda a região. São elas os sistemas Cantareira, Alto Tietê, Guarapiranga, Alto Cotia, Rio Grande e Rio Claro. O minúsculo Sistema localizado na Serra da Cantareira é responsável por abastecer entre 60 e 70% dos consumidores da Região Metropolitana de São Paulo

A cultura hollywoodiana propõe que o esgoto sirva como esconderijo de criminosos, fugitivos, vilões, super-heróis ou usuários de substâncias ilícitas. A realidade do esgoto brasileiro, porém, não poderia ser mais diferente, a começar pelo tamanho das tubulações: podem ser

O CAMINHO DA SUJEIRA O esgoto necessita de um sistema rígido de tratamento, que segue padrões da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (CETESB): 1. Os objetos maiores são contidos por grades, como acontece nas galerias pluviais. 2. Os resíduos passam por uma caixa de areia, na qual um decantador faz com que as partículas menores sejam filtradas. 3. Os resíduos são levados a um tanque com bactérias que consomem a matéria orgânica do material. 4. O detrito passa por outro decantador até finalmente ser descartado no rio.

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desde os convencionais, de 10 centímetros, que saem das ligações presentes nas casas, até imensos túneis de concreto que estão próximos aos rios. Entre estes está o Interceptor Pinheiros, um túnel que tem 3,5 metros de diâmetro e que se estende por toda a margem do rio Pinheiros. Diferentemente dos túneis de metrô, que foram planejados para pessoas, os do esgoto são parte de um sistema bem restrito. “Depois de pronto, nem o funcionário entra mais”, explica o engenheiro civil Alípio Teixeira. Por mais que haja espaço suficiente para caber uma pessoa nas estruturas, estas são inacessíveis: estão repletas de gases tóxicos, como o metano, bem como os mais diversos tipos de lixo e o próprio esgoto. O mesmo ocorre com as galerias pluviais, que ligam bocas coletoras e bueiros aos rios. Em São Paulo, há aproximadamente 2.850 quilômetros desses dutos, nos quais vão parar não só a água da chuva, mas também muito lixo e esgotos irregulares. De acordo com Marcos Passo, tecnólogo em construção civil e funcionário do setor de obras na Secretaria do Município de São Paulo, “tem muita gente que faz a ligação do esgoto nas nossas galerias, o que é um problema sério, já que essa água toda e o esgoto também serão lançados no rio Tietê e Pinheiros sem tratamento”. Marcos também explica que a estrutura das tubulações de esgoto foi feita para suportar gases tóxicos e a corrosão, diferentemente das galerias pluviais, que não precisam “de concreto ou de um recobrimento da armação de alta qualidade. Para o objetivo dessas tubulações, que é transportar água da chuva, não é necessário tanto aparato técnico. Por isso, as ligações irregulares de esgoto são problemáticas. Se o esgoto for

Acervo pessoal/zezao

Divulgação/WARNER BROS

Em vez de super-heróis, os esgotos brasileiros abrigam lixo, água pluvial e até gases tóxicos. São Paulo possui cerca de 2.850 quilômetros de galerias pluviais cuja fiscalização é pouca e complexa

jogado numa galeria que foi construída há muito tempo, ele detona a galeria, e, em poucos anos, a faz desmoronar”.

Elaboração ATENTA Como a construtora responsável pelas obras é escolhida através de licitações, a SABESP é responsável por fiscalizar a empresa selecionada para que o projeto seja bem elaborado e entregue no prazo estipulado. A negligência na fiscalização deste processo pode causar grandes crateras nas ruas da capital, como ocorreu na avenida República do Líbano, em março de 2013. Um buraco de aproximadamente 40 metros de extensão se abriu porque a laje superior da galeria do córrego Uberaba não aguentou o grande volume de água. Foram feitas inspeções nas galerias pluviais de São Paulo nos anos de 2007 e 2008 para detectar problemas, no entanto, apenas 1% foi reformado. “São Paulo é muito grande, então só é feita uma obra de emergência se o risco for iminente”, explica o tecnólogo e engenheiro civil Marcos Passo. No metrô, a prevenção de acidentes é grande: dezenas de pessoas trabalham de madrugada inspecionando os túneis diariamente. Nas linhas verde e azul, 254 metroviários são responsáveis pela manutenção dos trilhos, cuja substituição pode envolver mais de 100 pessoas. A manutenção da via é um processo corrido, que se assemelha a uma maratona. Cada uma das etapas que o compõem são cronometradas e o limite para a conclusão da tarefa varia entre 15 e 30 minutos. “Da uma (horário em que a energia da rede é desligada) às três e meia da manhã, todo o trabalho deve ser feito, assim ainda temos meia hora

antes da reenergização para solucionarmos qualquer problema que possa aparecer”, afirma Carlos Frederico Guedes, supervisor de via permanente das linhas 1, azul, e 2, verde. Além da troca dos trilhos, a limpeza das vias é essencial para o funcionamento do metrô. As linhas são divididas em trechos e lavadas mensalmente, de modo a baixar a poeira confinada nos túneis, proveniente das pastilhas de freio dos trens. Para isso, é usado um caminhão-pipa adaptado para trilhos, que utiliza jatos direcionados para limpar o teto, as paredes e o chão. A higienização dos túneis beneficia tanto a via quanto o ar, pois impede a sujeira de chegar ao usuário e melhora o desempenho dos trens. “Quando o túnel é lavado, o próprio usuário percebe que o ar está mais limpo”, diz Frederico. “As pessoas não valorizam a limpeza do metrô justamente porque ela é feita. Se não fosse, perceberiam imediatamente”, completa. O metrô também realiza o controle integrado de pragas para eliminar ratos e baratas das instalações. “Em trechos descobertos, como o do Sumaré, baratas podem vir voando, mas dentro do túnel a ausência é garantida”, certifica Frederico. Já nas galerias pluviais, as baratas são bem-vindas. Sua presença é, na verdade, um indicador do tipo de poluente presente na água. Esses insetos apenas sobrevivem sem que haja a existência de gases tóxicos, provenientes de esgotos irregulares ou até mesmo de possíveis vazamentos da Comgás (Companhia de Gás de São Paulo). “Por incrível que pareça, um sinal de que uma galeria está funcionando bem é encontrar baratas lá dentro. Quando há muito gás, as baratas morrem também”, afirma o tecnólogo Marcos Passo.

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Fotos por bárbara blum

São mais de 250 funcionários trabalhando para a manutenção das linhas do metrô durante a madrugada

“As pessoas não valorizam a limpeza do metrô justamente porque ela é feita. Se não fosse, perceberiam imediatamente” Carlos Frederico Guedes, supervisor de via permanente das linhas 1 (azul) e 2 (verde)

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Sistema deficiente Com o crescimento populacional da cidade de São Paulo numa taxa de 0,56%, é desafiador atender a todas as demandas dos cidadãos de forma eficiente. Para a rede de saneamento básico, o que mais faz falta é um sistema integrado de mapeamento entre os planos federais, estatais e privados. Isso faz com que alguns processos de construção e manutenção dos canos envolvam uma burocracia complexa, que muitas vezes parece interminável. A SABESP tem seu próprio sistema de mapeamento, o Sistema de Informações Geográficas no Saneamento (SIGNOS), uma interface gráfica que utiliza uma base de dados. Com ela, é possível que a empresa saiba através de imagens de satélite onde se encontram todos os seus empreendimentos, desde pequenas tubulações residenciais a grandes túneis de concreto próximos a rios. Contudo, quando a empresa precisa construir numa nova área, é necessário entrar em contato com outras empresas para tomar conhecimento da presença de tubulações de gás, óleo ou energia na área, para então se pensar na estratégia a ser adotada na implantação do sistema de saneamento básico. No caso da Prefeitura, os registros são antigos e incompletos. “São Paulo cresceu de maneira rápida e desordenada. Em alguns bairros, pessoas canalizam o filete de córrego para poderem construir suas casas, e isso não é informado oficialmente”, afirma Marcos Passo, que trabalha há mais de 20 anos no Departamento de Obras da Secretaria de São Paulo.

Já nas linhas subterrâneas de transporte, o maior problema enfrentado ainda é a superlotação nos horários de pico. Na Praça da Sé, os passageiros esperam, em média, trinta minutos antes de poderem sequer entrar na estação. Na linha vermelha, oito pessoas chegam a ocupar o mesmo metro quadrado. A solução, de acordo com Quintans, não é reduzir o intervalo das composições – que já é um dos menores do mundo (103 segundos, na Sé) –, mas expandir a malha metroviária. Enquanto isso não ocorre, o Metrô busca alternativas para aliviar a superlotação. A principal delas é a adoção do sistema driverless, já implantado na linha amarela, que dispensa operadores e é, em tese, mais eficiente. No entanto, o novo método não é isento de críticas. “O automatismo não prevê excesso de usuários, a presença de usuários especiais (cadeirante, bengalante, deficiente visual), brincadeiras de mau gosto, blusas ou mochilas presas na porta”, declarou uma fonte que preferiu não se identificar. Porém, os investimentos no setor metroviário ainda são insuficientes. O Expansão SP (projeto de lei em vigor no estado desde 2007), por exemplo, incorporou novos trens à frota, que hoje conta com 150 veículos distribuídos pelas cinco linhas existentes. Apesar disso, ela continua obsoleta, sendo a idade média dos carros de 37,7 anos. Para suprir toda a demanda populacional, estima-se que São Paulo precise de 163,3 quilômetros de trilhos e, portanto, de uma frota ainda maior. A ampliação da malha metroviária está prevista para 2020, com a construção de seis novas linhas: laranja, prata, ouro, bronze, celeste e rosa.


memória

no rastro de

SÃO PAULO As pistas para desvendar o passado das ruas podem estar menos escondidas do que se pensa. Basta saber para onde olhar

Ana Vazzola

REPORTAGEM ANA VAZZOLA, MARIANA AGATI, MARIANA GUIMARÃES e NATÁLIA SCALzaRETTO (1o ano de Jornalismo) ILUSTRAÇÃO tHAÍS HELENA REIS (2o ano de Jornalismo)

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mariana guimarães

Os depósitos noturnos nas paredes dos bancos funcionavam como caixas eletrônicos do passado

Há centenas de detalhes que sobreviveram ao crescimento da cidade de São Paulo ao longo dos anos. Quem explora as ruas atentamente consegue descobrir preciosidades nos lugares mais inusitados, como no próprio asfalto, onde é possível tropeçar nas tampas de bueiro da extinta empresa de energia Light, invisíveis aos distraídos. Se engana quem pensa que o patrimônio histórico se encontra somente em museus e monumentos. Espalhados pelas ruas de São Paulo, ainda restam detalhes que, segundo o historiador César Oyakawa, “carregam em si a memória do nosso passado”, mas não são percebidos pela população. Um exemplo disso pode ser encontrado na rua XV de Novembro, no centro, onde ficavam as sedes dos mais importantes bancos do estado. Os prédios, em sua maioria, ainda mantêm os “depósitos nocturnos”, cofres embutidos nas fachadas nos quais os correntistas poderiam colocar seu dinheiro quando o banco não estivesse aberto. Apesar de preservados, quase ninguém os percebe. Os próprios funcionários dos bancos admitem não fazer ideia da função dos “depósitos” pelos quais passam todos os dias. Alguns nem mesmo haviam reparado neles. O escritor Mário de Andrade foi quem primeiro “iniciou o movimento de notar, registrar e catalogar as estruturas arquitetônicas que marcaram a história de São Paulo”, explica César. O artista modernista foi o responsável pela elaboração de um projeto de lei com tais ideais em 1936. No ano seguinte, o projeto foi concretizado por decreto.

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RESGATE NA REDE O patrimônio histórico brasileiro encontrou formas de resistir ao tempo facilitadas pelos recursos digitais: com a internet, o acesso à informação tornou-se mais simples e permitiu novas descobertas. É o caso do site São Paulo Antiga, editado pelo jornalista e pesquisador Douglas Nascimento. A página virtual se dedica a mostrar a constante mudança da cidade e, por meio de fotos e textos, conta a história de São Paulo através do que está nas ruas: casas antigas, objetos esquecidos, monumentos. O editor revela se sentir “atraído pela curiosidade jornalística de estar sempre buscando uma história interessante”. Uma destas é a do ponto de ônibus mais antigo da capital, situado na Praça Coronel Cipriano de Morais, no bairro da Lapa. A estrutura, construída em ferro e concreto, está ali há mais de 50 anos e é a única sobrevivente dessa época, já que suas semelhantes foram sendo retiradas e substituídas. Com a intenção de que o local fosse notado até mesmo pelos mais distraídos, dois jovens artistas, Renoir Santos e Átila Fragozo, resolveram decorar e personalizar o antigo ponto de ônibus colando em seu teto uma cópia da pintura da Capela Sistina, de Michelangelo – impressa por partes em mais de 900 folhas de papel. O trabalho durou cinco dias e foi realizado com o “propósito de chamar a atenção e despertar a curiosidade das pessoas para algo que quase ninguém enxerga e cuja a história mal conhecida”, opina Átila. Em compensação, os postes da antiga empresa de energia elétrica Light iluminam a capital desde o século XIX, sendo nota-

dos pela maioria dos transeuntes. Segundo dados do Ilume, o Departamento de Iluminação Pública da Prefeitura de São Paulo, existem 1.569 postes ornamentais na cidade. Mesmo com a atenção de quem passa, eles enfrentam uma situação de abandono e depredação: sofrem constantemente com práticas de destruição e furto de componentes – são registradas pelo Ilume cerca de cinco reclamações mensais dessa espécie. De acordo com a assessoria, o departamento também se responsabiliza pela manutenção dos postes danificados, reparando-os de acordo com as queixas feitas pela população.

MÉTODOS DE PRESERVAÇÃO Assim como o Ilume, vários outros órgãos governamentais possuem uma política de preservação do patrimônio histórico da cidade e das ruas. É o caso do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Brasil (IPHAN) e do Departamento do Patrimônio Histórico (DPH). Mas, embora eles sejam bem formulados na teoria, deixam a desejar na prática. Segundo o historiador César Oyakawa, os órgãos “são extremamente burocráticos e os mecanismos de avaliação, constatação e fiscalização do patrimônio não são eficientes”. “A mentalidade e cultura tanto patrimoniais quanto de gestão da cidade, não possuem um caráter de mudança, e se encontram estagnadas desde o início da urbanização de São Paulo”, completa César. Como no caso dos postes de luz, por vezes, as políticas públicas de manutenção patrimonial são corretivas, e não preventivas, como seria ideal. Douglas Nascimento comenta que “falta um departamento que


quantidade de postes na cidade

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a céu aberto

Relógio do Mappin A Mappin Store da rua XV de Novembro foi fundada em 1913. Em 1919, a loja foi transferida para a Praça do Patriarca, onde se instalou o famoso relógio do Mappin. Hoje, na esquina do Edifício Elisário Bahiana, o relógio continua fornecendo as horas exatas aos paulistanos.

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Palmeiras Imperiais As primeiras mudas das enormes palmeiras imperiais da Praça Ramos de Azevedo foram trazidas ao Brasil por Dom João VI, em 1808. Elas são testemunhas da história do País: assistiram ao movimento das Diretas Já e às manisfestações de 2013, bem debaixo de suas folhas.

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cuide do trabalho de preservação de forma eficaz”. O pesquisador cita como um bom exemplo de vigilância e manutenção do patrimônio público o que ocorre nos Estados Unidos: o governo norte-americano conta com um rígido sistema de proteção patrimonial, de modo que aquele que for flagrado destruindo qualquer herança histórica será rigorosamente punido pelo Estado. As construções antigas inseridas no cotidiano do paulistano, como os postes de iluminação, e as mais obsoletas, como a Passarela da rua da Mooca, sofrem, ao mesmo tempo, com o descaso e o desrespeito das atitudes depredatórias. A Passarela, por exemplo, não é mais utilizada massivamente. Hoje, ela é cortada por uma linha de trem (da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos [CPTM]), tendo sido construída pela São Paulo Railway Company no começo do século XX. Ficava ao lado da Porteira da Mooca, que, naquela época, era a principal passagem do bairro para o centro da cidade. Em 1976, a porteira fechou e, anos depois, um viaduto a substituiu. Embora tenha sido a solução perfeita para os problemas dos automóveis, a construção afastou os pedestres da região, o que diminuiu consideravelmente o fluxo de transeuntes na Passarela. O novo substitui o velho no processo de modernização da cidade, porém a história continua sendo contada nos detalhes das ruas. Segundo César Oyakawa, o desinteresse popular desmotiva a cobrança de atitudes do Estado. Douglas resume: “Falta educação patrimonial, falta educar o público de modo que ele se interesse por história”.

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COMPORTAMENTO

pão, Palco,

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pátio, lar A rotina de personagens urbanos que se apropriam das ruas de diferentes formas REPORTAGEM Ana Paula Canhedo, Andressa Lelli, Beatriz Magalhães, Fernanda Figueiredo, Michelle Kaloussieh (1º ano de Jornalismo), Brunna Amaral, Juliana Ortega, Karolina Ciccarelli, Nathalie Provoste e Vinicius Pessoa (2º ano de Jornalismo) FOTOS ARJUNA ESCOBAR (carteiro), BEATRIZ MAGALHÃES (mágico), BRUNNA AMARAL (garota de programa e flanelinha), FERNANDA FIGUEIREDO (morador de rua), NATHALIE PROVOSTE (vendedora), VINÍCIUS PESSOA (vendedor)

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NATHALIE PROVOSTE

São seis horas da manhã e o sol ainda não nasceu. A avenida Paulista, porém, já se movimenta. Enquanto os transeuntes apressados esbarram entre si nas calçadas e se acumulam nos pontos de ônibus, os que não têm tanta pressa formam uma fila desorganizada na banca de café da manhã em frente ao edifício número 500. A mesa exibe café puro e com leite, achocolatado, bem como uma variedade de bolos e sanduíches. Faltam à atendente mais braços para servir aos seis clientes que chegam: sozinha, a estudante Ewelyn Sousa, de 16 anos, toma conta da mesma banca de café da manhã de segunda a sábado. “Essa é a hora mais movimentada”, observa ela, ajeitando o capuz de uma das quatro blusas que vestia, enquanto o relógio marcava 13ºC. Enquanto isso, na rua Florêncio de Abreu, o flanelinha Josivaldo de Jesus observa as primeiras motos do dia serem estacionadas em frente aos pequenos prédios coloridos na via de comércio popular. É a partir das dez e meia da manhã, no entanto, que o movimento aumenta – exclusivamente composto por motos: os carros apenas aparecem no ponto que cuida aos domingos e feriados. “Só não trabalho no sábado, porque é quando vou à igreja”, afirma Josivaldo, que é evangélico. A falta de movimento não é familiar para Matheus, de 17 anos: o jovem trabalha na região da rua 25 de março. Das oito da manhã às cinco da tarde, Matheus coloca sua voz grossa e rouca em prática para anunciar diversos tipos de camisetas, bolsas, tênis, celulares, capas e até massageadores. “A maioria das pessoas que se interessa pelos nossos produtos não é de São Paulo”, afirma o jovem, mexendo na corrente dourada que leva no pescoço. Diferentemente de Matheus, Leandro Maehler não utiliza sua voz, mas sim truques de mágica com moedas e cartas de baralho para ganhar dinheiro nas ruas. Magro e com cerca de 1,60 de altura, o jovem de 21 anos também anda de monociclo, apesar de a mágica ser o seu verdadeiro fascínio. “Quem faz a mágica são as pessoas, não o ilusionista. É na mente de cada um que a mágica acontece”, garante. A região de Perdizes é o ambiente de trabalho de Sérgio do Carmo. Dos seus 53 anos de vida, 21 foram dedicados à entrega de correspondências na região. Para o trabalho, Sérgio precisa estar em boa forma física

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A jovem Ewelyn trabalha na avenida Paulista de manhã e estuda gastronomia à tarde – o carteiro não sabe ao certo qual distância percorre por dia, mas são quilômetros de caminhada – e tomar algumas precauções. Utilizar protetor solar é uma delas: “Uso todos os dias. Antigamente, a agência na qual trabalho dava um tubinho de loção para cada carteiro, mas hoje tem um pote lá na agência mesmo. Todos têm que passar antes de sair”, explica Sérgio. É só quando o sol vai embora que começa o período de trabalho de Aline, profissional do sexo há um ano e meio. A jovem de 22 anos, de longos e bem cuidados cabelos loiros, trabalha na avenida Indianópolis, famosa via de prostituição na zona sul da cidade. Usando um vestido curto, Aline chega ao seu ponto por volta das seis da tarde e vai embora às onze da noite. “Teve um tempo em que eu fiquei na Augusta, mas, como moro perto, preferi ir trabalhar mais longe de casa”, afirma. Aline trabalha nas calçadas, mas Manoel Pedrosa e José dos Santos moram nelas. A dupla vive sob o viaduto Professor Bernardino Tranchesi, logo abaixo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP). Mesmo com garrafas, copos plásticos e embalagens espalhadas ao redor dos seus colchões, os dois costumam varrer seu pedacinho da rua. “Aqui a gente fica coberto e evita a chuva. O problema é o frio. Sofremos com ele bem mais do que quem está em casa. O jeito é agarrar na Bíblia e se cobrir com o que tem”, diz Manoel.

ACASOS E ALTERNATIVAS Manoel tornou-se morador de rua há oito anos, quando se separou da mulher e deixou

a casa para ela. Já José vive nas ruas há três anos: ele veio do nordeste em busca de emprego, mas acabou ficando nas ruas e perdendo contato com a família. Os dois se conheceram no parque Trianon, que fica na avenida Paulista. “Eu passava o dia lá e vinha dormir aqui. Um dia, ele chegou aqui e foi ficando", relembra José. Para Ewelyn, a rua tem como propósito o enriquecimento de seu trabalho. A jovem de 16 anos gosta de tudo que é relacionado à culinária, tanto que, após desmontar sua banca de café da manhã e ir almoçar, ela frequenta um curso de gastronomia, que dura do meio dia às seis da tarde. No entanto, não é Ewelyn quem faz os bolos que vende durante a manhã: sua patroa os encomenda e também cuida do café e do achocolatado, preparados à uma da manhã. “Tem que trazer café fresco para cá, porque café requentado, ninguém merece!”, diz a jovem. Assim como suas outras quatro colegas de trabalho, que também cuidam de bancas de café da manhã na região da avenida Paulista de segunda a sábado, Ewelyn ganha R$150,00 por semana. “Para mim, R$600,00 por mês já está bom, porque é difícil arrumar um emprego em que eu possa estudar à tarde e à noite”, explica a jovem. Já Matheus é responsável por suas mercadorias: como os outros vendedores que lotam as calçadas da rua 25 de Março, ele compra os artigos e os revende. Por isso, o jovem não ganha quantia fixa por dia. “Tem dia em que não tiramos nada, tem dia em que ganhamos R$100,00, R$50,00”, conta o rapaz, que trabalha para ajudar a sua avó, com quem mora. No entanto, trabalhar na


BEATRIZ MAGALHÃES

“Não é só eu chegar e fazer uma mágica para você, eu quero te trazer um sentimento novo, uma perspectiva de uma coisa que é fisicamente impossível e que eu estou fazendo” Leandro Maehler, mágico

Leandro já chegou a ganhar R$800,00 em um dia fazendo mágicas nas ruas rua foi escolha dele. “Eu nunca trabalhei para ninguém, porque não tenho paciência. Gosto de trabalhar para mim mesmo: eu sou meu próprio empresário”, explica, sorrindo. O mágico Leandro também aprecia a liberdade que tem nas ruas – sem horários fixos ou chefes. Ele começou a trabalhar na rua andando de monociclo nos faróis, mas, quando a roda quebrou, o rapaz começou a fazer seus truques de mágica. O faturamento de Leandro varia: em seu primeiro dia como ilusionista, ele ganhou R$10,00 de um passante, mas o mágico já chegou a ganhar R$800,00 se apresentando no Parque do Ibirapuera. “Eu cheguei lá às cinco horas da manhã, e sai às três da tarde. Foi o melhor dia. Houve vezes em que eu fiz várias mágicas e ninguém me deu nada. É sem compromisso”, comenta. Além disso, para Leandro, a mágica também foi importante na recuperação de seu vício em cocaína, droga que usou dos 14 aos 18 anos. “Queriam me internar e nada disso me ajudou. Procurei na internet, comecei a estudar a cocaína e acho que isso que me levou até a mágica, como distração”, considera. No entanto, foi difícil para Leandro ter seu trabalho reconhecido. “Pessoas aleatórias, que querem cuidar da vida alheia, chegaram a ligar em casa me oferecendo cesta básica”, relembra o mágico, que só teve o apoio da irmã. Já a família de Aline, não sabe que ela está envolvida com prostituição. “Ninguém sabe. Meus parentes acham que trabalho com eventos”, confessa a jovem, que nunca havia pensado em se prostituir. Aline nasceu no Mato Grosso do Sul, e foi a falta de dinheiro, após a morte de sua mãe,

que a fez aceitar o convite de uma amiga para trabalhar como garota de programa, em São Paulo. Ela afirma não querer trocar a rua por uma boate: “Na rua, você não precisa beber, vem a hora que quer, vai embora a hora que quer. Aqui tem todos os horários: de dia, à tarde, à noite - em qualquer horário tem gente circulando”. Assim como Aline, o flanelinha Josivaldo também não é de São Paulo: nasceu em Ilhéus, onde quebrava cacau e cortava seringueira. Veio para cá depois de um acidente. “Eu levei uma picada de cobra na perna e não podia mais pisar. Então minha mãe me trouxe para São Paulo”, relembra. “E cá estou, na mesma rua, há 23 anos.”

Rotina Para o carteiro Sérgio, o percurso diário corresponde sempre às mesmas ruas. “Como a agência em que eu trabalho não é grande, o nosso percurso por aqui é pequeno”, explica. Sérgio entrega de duas a três mil cartas diariamente, carregando cerca de dez quilos. “De vez em quando, a gente usa ônibus”, afirma o carteiro, que não paga a condução se estiver uniformizado. Sua agência também lhe oferece capa e sapato para o caso de alguma surpresa meteorológica, mas Sérgio prefere usar seu próprio guarda-chuva. Para chegar ao trabalho, o carteiro sai de sua casa, em Pirituba, por volta das seis e meia da manhã. Seu trabalho começa às oito horas da manhã, e é só às cinco da tarde que a maratona diária termina. Aos sábados, no entanto, a caminhada não é tão puxada: no fim de semana, as entregas vão das oito da manhã ao meio-dia.

Josivaldo, que mora perto do Horto Florestal, tem que pegar dois ônibus para chegar à rua onde trabalha, no centro da cidade. “Entre quatro e meia e cinco horas, já estou de pé”, conta. O flanelinha diz que alguns de seus clientes já são “fixos”, e costumam lhe entregar a chave de suas motos. “O pessoal chega aqui e deixa toda a responsabilidade na minha mão e na da minha mulher. As motos ficam todas soltas e nunca roubaram nenhuma neste ‘calção’”, assegura. Por dia, o flanelinha chega a ganhar, no máximo, R$60,00. “É livre. Tem uns que não me dão nada, outros me dão R$0,25”, conta. Os clientes fixos pagam um valor mensal de R$150,00 a R$200,00. Mas Josivaldo diz não fazer contas no fim do mês. Vai utilizando o dinheiro conforme o recebe. “Ontem a gente conseguiu aqui 60 contos, e minha mulher já passou no açougue. Comprou um franguinho e feijão. Tem que se virar com esse dinheiro para viver”, diz. Matheus, que também depende do dinheiro faturado nas ruas, chega às oito da manhã na 25 de março, e só para de anunciar seus produtos quando vai à escola, no fim da tarde. “Estou aqui todo dia. O meu sustento é esse, só trabalho aqui”, explica. Para Ewelyn, o trabalho começa às três e meia da manhã, quando se encontra com suas quatro colegas de trabalho e pega carona com sua chefe. Elas passam pela fábrica onde encomendam os bolos e tortas a serem vendidos, e só então vão para a avenida Paulista – onde Ewelyn chega às quatro da manhã. “São seis pessoas com dez caixas e mais dezenove bolos. A gente ainda prepara os sanduíches no caminho. Um carro, seis

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BRUNNA AMARAL

fernanda figueiredo

Na avenida Indianópolis, sextas e sábados são os dias de maior movimento para as garotas de programa

pessoas e mais um monte de caixas… Parece carro de palhaço!”, brinca. Ewelyn só começa a desmontar sua banca de café da manhã por volta das oito horas da manhã, quando encontra sua chefe na avenida Brigadeiro Luís Antônio e pega carona de volta para casa. Além do curso de gastronomia, de segunda a sexta, Ewelyn ainda faz o ensino médio das sete às onze da noite. Aline também tem uma rotina agitada. Para ela, os dias mais movimentados são as sextas e os sábados, quando mais clientes aparecem. “Quando está bom mesmo, atendo uns quatro ou cinco. Quando não, um ou dois”, conta. Apesar de existirem drive-ins perto de onde trabalha, Aline prefere fazer programas num hotel que fica a três quadras de seu ponto. “Não ganho comissão do hotel. É uma questão de preferência, mesmo. Tem outros que pagam, como o Lido. Os hotéis perto do centro pagam, mas aqui, não”, explica. Os moradores de rua José e Manoel não têm horários – apesar de José gostar de saber que horas são. “Não tem muito o que fazer… Meu relógio parou, acabou a pilha”, lamenta. A rotina que a dupla de moradores conhece melhor é a dos transeuntes que costumam

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observar no viaduto, de quem acumulam histórias. “Aqui tem muitos ratos. Às vezes, as mulheres saem correndo, desesperadas, quando veem um. Um dia, uma quase veio parar aqui, em cima da gente”, se diverte Manoel. Ambos usam o banheiro químico do MASP, mas, para tomar banho, vão à Paróquia Achiropita, que faz diversos serviços sociais. Lá também deixam seus currículos, na esperança de surgir um emprego. O mágico Leandro também acumula histórias da rua. Uma de suas favoritas é a de quando abordou “um cara, e ele falou que não tinha dinheiro, mas que trabalhava com sorvete e tinha uma caixa para mim. Eu nem acreditei. São doze reais! Eu voltei para o farol muito animado”. De fala rápida e eloquente, o ilusionista conta que tem técnicas para deixar seus espectadores mais satisfeitos e, assim, receber mais dinheiro. “Uso alguns gestos, palavras. Por causa do tema de corações, utilizo muito as cartas de copas. Ou as cartas de ouro, quando vou fazer algum comentário sobre dinheiro. Trago o significado do ouro. Já guerra, espada”, explica. Entre as surpresas da rotina do carteiro Sérgio, por outro lado, estão encontros desa-

gradáveis com animais de estimação. Certa vez, durante sua entrega diária por uma rua estreita, foi mordido por dois cachorros, que se agitaram com sua aproximação. “Um deles conseguiu abrir o portão, e saíram os dois. Um me mordeu no peitoral e o outro, no braço. Por pouco não pegou meu pescoço!”, conta Sérgio, que conseguiu escapar dos animais ao fugir para a casa ao lado. Ele foi para o hospital, mas não chegou a precisar levar pontos nos machucados. “Isso ocorre raramente comigo, mas tem lugar por aí onde o carteiro é mordido com frequência”, diz.

PAUSA PARA O ALMOÇO Devido às horas que passa distribuindo cartas de casa em casa, Sérgio também formou algumas amizades. Estas são importantes, principalmente quando bate a fome: “Na rua, a gente já tem várias amizades, que oferecem água e café”. Além dos lanches, o carteiro escolhe levar ao trabalho uma marmita preparada em casa, prática da qual Matheus, parcialmente, também é adepto. “Compro marmitex do pessoal na rua aqui do lado”, afirma o vendedor, que sempre almoça às onze da manhã. Ewelyn, no entanto, parece não conseguir achar intervalo disponível em seu trabalho. Os bolos e salgados não são consumidos por ela, que só faz um lanche quando a correria permite. Enquanto isso, os moradores de rua José e Manoel se alimentam cerca de três vezes por dia. “Vamos beliscando o dia todo. Tem que ter bom faro para saber o que está ruim e o que não está”, diz Manoel. Segundo a dupla, muita gente ajuda com a alimentação. O serviço de assistência social passa pelo viaduto três vezes por semana, oferecendo alimentação e atendimento mé-


BRUNNA AMARAL

José e Manoel vivem sob um viaduto e colecionam histórias sobre os passantes

O flanelinha Josivaldo possui clientes fixos que lhe confiam as chaves de seus veículos

dico. Todo outro alimento que se arruma é dividido entre os dois companheiros. Como José e Manuel, Josivaldo também trabalha em dupla quando a fome aperta: o flanelinha recorre à esposa na hora do almoço. “Assim que a minha mulher chega, eu vou almoçar e ela fica no meu lugar. Trabalhamos em conjunto”, conta. No caso de Leandro, o almoço depende do faturamento diário. Ele conta que às vezes almoça em casa, ou num bar, onde possa comer um salgado. “Se ganhar bem no dia, vou num restaurante legal. Depois de fazer mágica, eu já fui comer no [restaurante] Outback, um lugar bem legal para se comer!”, comemora.

Corre-corre A liberdade que atrai essas personagens também proporciona situações de medo. Para as meninas da avenida Indianópolis, a exposição é o motivo principal por tantas terem recusado dar entrevista – além do medo de um programa dar errado. “Uma vez, um cara quis aprontar comigo. Acelerou o carro e disse que ia me matar”, conta Aline. “Eu consegui abrir o vidro do carro e chamei por socorro. Uma mulher de um outro carro me ajudou.” Desde então, mudou seu horário de trabalho nas sextas e nos sábados, mesmo sendo estes os dias de maior movimento durante a madrugada. “Eu já vinha tarde, lá pelas onze da noite, e ficava até às cinco da manhã. Agora não fico mais. De sexta e sábado dá muito malandro, é mais perigoso”, observa. A relação entre as autoridades e as personagens das ruas é ambígua. Manoel e José se preocupam com a Prefeitura, que, de vez em quando, aparece para levar alguns dos pertences da dupla. E o medo de roubo é o que os faz evitar albergues. “O problema dos

albergues é que, quando voltamos, não tem mais nada. Não podemos deixar nossas coisas na rua, senão levam. O albergue é só para dormir – eles não nos deixam levar nada para lá”, explica Manoel. José completa: “Não compensa ficar em albergue, nem nos dias frios”. O carteiro Sérgio diz já ter sido assaltado três vezes à mão armada. “A ordem que temos é a de não reagir, mas o medo é inevitável. Mesmo indo para a delegacia, somos suspeitos de sermos facilitadores”, conta. Josivaldo também diz ver muitos assaltos e furtos na região onde trabalha. Da Prefeitura, no entanto, o flanelinha não tem medo. Ele usa um colete laranja, que legitima sua atividade aos olhos do governo – ainda que, pela lei, a profissão de flanelinha possa ser considerada contravenção ou até mesmo um crime, considerando que geralmente é ligada à prática de extorsão ou loteamento de espaço público. Os camelôs da região da 25 de março, porém, têm graves problemas com a Prefeitura. Um tanto agitada com a presença de um grupo de repórteres, uma senhora, dona de uma barraca de bichos de pelúcia, explica: “Se a Prefeitura me pega dando entrevista, eles pegam a minha licença e eu não posso mais trabalhar aqui”. Para Matheus, no entanto, a Prefeitura não é o problema, e sim a polícia. O vendedor confessa, animado, correr de policiais todos os dias. “Faz parte da adrenalina. A vida aqui é uma alegria, nos divertimos. Quando não estamos trabalhando, estamos rindo, cantando, dançando”, diz, ajeitando o boné vermelho com um sorriso.

Descontração Menos agitada do que a de Matheus, a diversão de Manoel é ler a Bíblia e fazer artes com

as latinhas que recolhe. Inclusive, é com essa produção que Manoel arruma “uns trocados” – recentemente, pôde pagar até seu novo corte de cabelo. José, por outro lado, não desgruda do rádio. “Adoro escutar música, passo o dia com esse radinho”, conta. E se não está com o aparelho, gosta de passear pelas redondezas do viaduto e “tomar um solzinho”. Mesmo Ewelyn, que quase não tem tempo livre, encontra descontração no trabalho com seus clientes antigos. “Bom dia, moço! Hoje não tem o seu favorito, mas tem o substituto!”, diz a um cliente, entregando a ele um generoso pedaço de bolo de mandioca. Então aponta para dois homens que tomam café perto de sua banca, que não param de fazer brincadeiras com ela: “Esses dois só vêm me encher, é incrível!”, se diverte. A jovem explica que a maioria de seus clientes já é fixa, e trabalha nas redondezas da avenida Paulista. “Alguns trabalham até em lanchonetes, mas preferem tomar café aqui na rua!.” Ela conta que há um senhor morador de rua que era professor, mas ficou louco quando se separou da mulher. “Se você parar para conversar com ele, ele explica tudo; fala alemão, inglês, tudo que é idioma. Você vê muita gente na rua. Não se sabe como vieram parar aqui”, admira-se. Leandro, apesar dos truques, não vê seu trabalho apenas como mero entretenimento. “Não é só eu chegar e fazer uma mágica para você, você gostar e dizer: ‘pô, legal, bacaninha sua mágica, vou te dar dinheiro’”, ele começa. “Eu quero te trazer um sentimento novo, uma perspectiva de uma coisa que é fisicamente impossível e que eu estou fazendo”, argumenta o jovem, antes de ajudar uma moradora de rua que lhe pede dinheiro para comer. “É tudo o que tenho”, diz a ela, entregando-lhe todas as moedas do seu bolso.

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MODA chames oliveira

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o ambiente que me

veste Com bruscas mudanças climáticas e diversidade cultural gritante, as ruas de São Paulo restringem e ampliam o guarda-roupa de seus moradores REPORTAGEM ANA LAURA PÁDUa, CHAMES OLIVEIRA, DANIEL LOPES, ISABELLA MARINELLI, JENNIFER DETLINGER, PAULA VOLPI (1o ano de Jornalismo), PEDRO JOÃO DE CAMARGO e NATÁLIA GUADAGNUCCI (2o ano de Jornalismo)

O céu amanhece nublado na cidade de São Paulo. Dentro de um ônibus lotado, agasalhados com casacos, jaquetas e moletons, homens e mulheres disputam espaço durante o trajeto até os compromissos do dia. Do lado de fora, sapatos confortáveis e calças jeans de diversas tonalidades tomam conta das calçadas e das faixas de pedestres. As horas avançam e o termômetro faz o mesmo. Por volta do meio dia, os agasalhos são postos de lado, para serem trazidos de volta somente no fim da tarde. As mudanças bruscas no clima, bem como a irregularidade das calçadas e a pressa típica da multidão que ocupa as ruas são apenas alguns dos fatores que interferem na maneira como as pessoas se vestem diariamente em São Paulo. “Na cidade, a relação entre o espaço e as pessoas estabelece um diálogo com o urbano, o concreto, o asfalto, a violência, a sujeira e a multidão”, avalia Astrid Façanha, mestre em ciência da comunicação e especialista em composição e imagem de moda. O guarda-roupa dos paulistanos tende a ser prático, confortável e versátil; preparado para qualquer ocasião. De um lado, as ruas são responsáveis por limitar as escolhas de

vestuário de cada um, do outro, elas dão a oportunidade para quem quer se expressar a sua maneira numa grande cidade.

A roupa de cada dia São Paulo é sede de 38% das 100 maiores empresas privadas de capital nacional e um dos principais centros empresariais da América Latina, o que explica a grande quantidade de engravatados que passam diariamente pelas principais avenidas da cidade. O gerente de marketing do escritório de advocacia AIDARsbz, Eduardo Ferreira, de 33 anos, é um deles. Ele começou a usar terno aos 23 anos e se habituou ao traje formal com o passar do tempo. Hoje, chega até a “dormir no sofá” usando gravata sem se incomodar. “Não tenho problema com a roupa do trabalho, na verdade, só troco quando vou à academia”, conta. A vida profissional tornou-se um fator determinante na maneira como as pessoas se vestem. “Inevitavelmente, você vai ter que se adequar ao meio”, pondera a especialista Astrid Façanha. No entanto, o código de etiqueta no vestuário do paulistano não se restringe ao ambiente de trabalho. Os moradores da cidade mostram no dia-a-dia

uma preocupação com o estilo e, ao mesmo tempo, o conforto, no intuito de aguentar a agitada rotina paulistana. Tal agitação fica ainda mais clara para os que se mudam de outras cidades para São Paulo. É o caso de Dalva Falcão, enfermeira que trocou o sol carioca pela garoa paulistana. “O carioca é mais despojado; em São Paulo, as pessoas são mais contidas”, afirma. A temperatura foi um fator decisivo nas adaptações de visual da enfermeira: ela teve que aposentar várias peças que costumava usar no Rio de Janeiro depois da mudança. “No Rio, as mulheres em geral usam muitas peças decotadas e sensuais. Aqui em São Paulo, ando mais coberta”, explica Dalva. De acordo com Astrid Façanha, “enquanto o carioca deseja ser sensual, o paulistano prefere mostrar que é informado. A configuração urbanística de São Paulo contribui para moldar esse estilo. A roupa urbana acaba se tornando mais acolchoada, com cores mais escuras e vai, aos poucos, se transformando numa roupa de proteção”. Dalva também percebeu essa mudança automática na cartela de cores de seus trajes: “As roupas que uso agora são mais escuras. Sempre optei por cores mais básicas, como

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pedro joão De camargo

Astrid Façanha acredita que a informação de moda influencia no estilo dos paulistanos

mudou de Franca, no interior de São Paulo, para a capital. “No interior era difícil eu me encontrar, pois o padrão é limitado. Eu via peças diferentes, mas não tinha coragem de comprar porque faltavam ambientes para usá-las.” Astrid explica esse processo que ocorre nas pequenas cidades: “A vantagem do grande centro urbano em relação às cidades menores é que não existe a pressão social que te obriga a se vestir de uma determinada maneira para compactuar com algumas normas sociais”. A mudança para São Paulo possibilitou que Luís desenvolvesse seu senso de estilo – e que ficasse mais confortável colocando-o em prática. “Em termos de liberdade na escolha da vestimenta e de julgamento alheio, a cidade é bem mais liberal. Eu nunca me senti julgado por algo que usei. Talvez alguém tenha olhado estranho, mas, no interior, eu seria expulso”, conta.

Elegância prática

“A roupa urbana acaba se tornando mais acolchoada, com cores mais escuras, e vai, aos poucos, se transformando numa roupa de proteção” Astrid Façanha, especialista

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bege e marrom, mas notei que em São Paulo se usa muito preto. Logo, também passei a usar – o que não fazia no Rio, até pelo calor”.

Liberdade urbana A convivência e a coexistência de pessoas com diferentes tradições e origens, bem como o aspecto urbano das ruas paulistanas, permitem que os cidadãos sintam-se a vontade para expressarem suas personalidades plurais. Para Alberto Hiar, diretor criativo da Cavalera, marca brasileira especializada em moda urbana, “as personagens das ruas mostram que o paulistano gosta de se vestir bem e com estilo. Como São Paulo é um local que recebe gente do mundo todo, os estilos se misturam e se complementam, criando algo único”. A hostess da casa noturna Club Yacht, Melissa Depeyre, de 34 anos, concorda: “Muitas pessoas migram para São Paulo de outras cidades, estados e países. Elas trazem consigo influências do seu lugar de origem e, quando chegam aqui, vão em busca do seu próprio estilo”. O jovem Luís Felipe Giuberti sentiu essa experiência na pele quando, há 5 anos, se

Melissa, que estudou arquitetura e já trabalhou como assistente de Glória Coelho, renomada estilista brasileira, acredita que o que pode ser generalizado em relação ao estilo presente nas ruas paulistanas durante o dia é a busca pelo conforto e pela praticidade. “As pessoas em São Paulo são muito ativas, estão se movimentando o tempo inteiro, andam de cima para baixo e por isso querem algo prático.” Junto a essa característica, vem o anseio pela elegância, que é visto no guarda-roupa da própria Melissa. Nele podem ser encontradas peças de estilistas como Alexandre Herchcovitch e botas de criação própria (mantidas guardadas, justamente por não serem práticas). Astrid Façanha, descreve os paulistanos como pessoas que “almejam a elegância, o estar na moda, para serem descolados e chiques”. Esse contraste entre a praticidade e a elegância que ocorre em São Paulo se deve ao fluxo de informação e noção de estilo nas ruas e em toda a cidade. “Além de ter o próprio ambiente urbano como influência, a grande circulação de informação também contribui para a composição do estilo paulistano. Temos esse contraste: de um lado, o vestir urbano, e de outro, a informação de moda que vai se democratizando, dando uma quebrada na roupa de circulação, de proteção”, explica Astrid. Tal oposição pode ser melhor observada na transição do dia para a noite nas ruas de São Paulo. “Existe um movimento contrário de romper com a lógica cinzenta do espaço: uma intenção velada de desafiá-la”, conta a especialista. As cores tão sóbrias e sólidas que, durante o dia, quase se misturam ao concreto dos edifícios, se intensificam à luz da lua. Alberto Hiar, da Cavalera, acredita que “São Paulo é mais que preto e cinza”. Para ele, as cores da cidade surgem não só na agitação da noite, mas “a partir da arte de rua, da música, do rock ao hip hop e do grafite nos muros”.


lanna dogo

ACESSIBILIDADE

Aos

nossos pés Iniciativas comunitárias e normas governamentais tentam garantir que o espaço do pedestre nas ruas seja preservado e acessível a todos REPORTAGEM LANNA DOGO, LUANNA MARTINS, PAULA FORSTER (1o ano de Jornalismo) e ANDRÉ BALDINI (2o ano de Jornalismo)

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ANDRÉ BALDINI

LANNA DOGO

LANNA DOGO

De acordo com o Portal Mobilize, 70% das calçadas de São Paulo possuem nota abaixo de 5, numa escala de 0 a 10

Em 2002, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) do Governo Federal realizou uma pesquisa e constatou que aproximadamente 170 mil pessoas por ano sofrem traumas ao caírem na calçada – isso apenas na cidade de São Paulo. Contabilizando o resgate dessas pessoas, com o custo de em torno de R$2.600,00 por queda, são gastos cerca de meio bilhão de reais apenas para dar assistência às lesões anualmente. Somente no Hospital das Clínicas, são internadas em média 10 vítimas de quedas nas calçadas por dia. O custo de tais tratamentos é maior do que o de todos os demais tipos de acidentes de trânsito em São Paulo juntos. Mesmo assim, em comparação com as ações referentes aos pedestres, os projetos destinados a facilitar a circulação dos veículos e a harmonizar o trânsito caótico são muito mais numerosos, ainda que não saiam do papel. Sem manutenção e estrutura adequadas, as calçadas tornaram-se a causa de acidentes de trânsito, em vez de um fator de proteção aos pedestres. Principalmente para portadores de deficiências físicas, a situação das vias esburacadas e irregulares se tornou um perigo iminente.

DE OLHO Segundo as normas de acessibilidade da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), os pisos das calçadas e vias de pedestres devem possuir superfície regular, firme, estável e antiderrapante. A construção deve

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também evitar desenhos coloridos que possam confundir a visão dos pedestres. Além disso, recomenda-se o uso de material de revestimento antirreflexo e apropriado para cadeirantes. A campanha Calçadas do Brasil, uma iniciativa realizada pela equipe do Portal Mobilize, pretende assegurar-se de que as regras de construção de vias para pedestres estão sendo respeitadas. O portal é de uma organização nãogovernamental e visa concluir seu objetivo chamando a atenção da população para a má qualidade das calçadas. Por meio deste estímulo, os cidadãos se tornam responsáveis pela denúncia dos problemas para que providências sejam tomadas pelas autoridades. Ricky Ribeiro toma essa iniciativa ao coordenar o Portal Mobilize. Ele tem esclerose lateral amiotrófica, mesma doença de Stephen Hawking, que lhe tira os movimentos, mas que não afeta sua mente. Hoje Ricky se comunica através do tobii eye, um leitor óptico que interpreta os movimentos da pupila. Ao perceber a escassez de material existente sobre a mobilidade urbana sustentável, ele deu início às suas pesquisas sobre o assunto. Oito meses depois, Ricky começou o projeto Mobilize, reunindo todas essas informações no site, que já estava no ar. Os grupos Guardiões das Calçadas e Curativos Urbanos também integram a fiscalização: no caso do último, um projeto que começou com seis amigos, o intuito é despertar a atenção aos “machucados” das

calçadas por meio de cores. O projeto repercutiu em outras cidades do Brasil e chegou até mesmo na Itália. Já a iniciativa Guardiões das Calçadas surgiu em 2009, por meio da deputada Mara Gabrilli e da publicitária cadeirante Julie Nakayama, antiga guardiã da principal avenida de São Paulo, a Paulista. A ideia de recrutar civis para a fiscalização de calçadas deu tão certo que atualmente toda equipe de Mara Gabrilli faz parte do projeto. O grupo realiza vistorias em diversos pontos da cidade semanalmente, checando as calçadas que precisam ser reformadas e transmitindo as informações aos órgãos especializados no serviço. Além dessa fiscalização regular, os Guardiões das Calçadas tentam incentivar o hábito dos cidadãos de vistoriar as calçadas próximas da região onde moram.

PERIGO AO ANDAR As rampas e sinalizações para a acessibilidade dos deficientes físicos, a largura das calçadas, a presença de arborização e iluminação, os desníveis e irregularidades que dificultam a circulação dos pedestres, e outros inúmeros fatores são levados em consideração para a avaliação das calçadas. Segundo a última pesquisa, realizada em 39 cidades pelo Portal Mobilize no mês de agosto do ano de 2012, 70% das calçadas possuem nota inferior a 5, em uma escala que vai de 0 a 10. A média geral das ruas de São Paulo foi de 3,4, não chegando nem perto do ideal. Isso


se reflete nas estatísticas: dos 35 mil quilômetros de calçadas em São Paulo, apenas mil têm acessibilidade, somente 2,8%. Philip Gold, consultor em transportes e trânsito, pondera sobre a péssima condição das calçadas: “Falta um planejamento na construção das ruas de São Paulo e a própria manutenção – ou a falta dela – contribui para que muitas calçadas não sejam apropriadas ao trânsito seguro dos pedestres”. A urbanização em São Paulo se intensificou na década de 50, quando foram construídas vias que levassem em consideração a acomodação dos pedestres, sem estabelecimento de normas. Para Gold, o rápido processo de abertura das ruas fez com que as calçadas tivessem que ser posicionadas no desenho da cidade “para acomodar mais carros”. O jornalista Elcio Oliveira, de 54 anos, morador do bairro de Santana, cuja calçada foi considerada a pior de São Paulo, atribui como uma das causas das irregularidades nas vias a “falta de planejamento de urbanização”.

DA PIOR

PARA MELHOR Em contra partida, uma amostra do bom trabalho entre Prefeitura e cidadãos é a avenida Paulista, a melhor via da cidade de São Paulo, que conquistou 9,25 pontos na escala do Portal Mobilize. Ao contrário da rua Darzan, ela tem rampas de acesso largas e suficientes para os cadeirantes, além das sinalizações com os dois tipos de piso tátil para deficientes visuais – o de alerta, que avisa as situações de risco à segurança, e o direcional, que indica os caminhos em ambientes internos ou externos e os caminhos preferenciais – durante toda sua extensão. Toda padronizada, com o piso nivelado e oferecendo segurança a todos os pedestres, a avenida é o reflexo da reforma de 2007, que teve Mara Gabrilli como idealizadora. “A principal mudança foi a troca do mosaico português por placas de concreto armado moldadas in loco”, explica a deputada. O

concreto escolhido não tende a apresentar desníveis, além de ser liso e antiderrapante, o que facilita a caminhada. A avenida Paulista ainda conta com arborização e lixeiras fixas ao chão, dificilmente danificadas. A Lei Municipal 14.648/08 considera dever da Prefeitura a reforma das calçadas que estejam dentro de Rotas Estratégicas (trechos de 3 a 5 km que oferecem os principais serviços a população: transporte público, escolas, hospitais) e também define uma multa de no máximo mil reais ao proprietário do imóvel que não cuidar da calçada em frente à sua residência, entretanto, ainda assim a maioria das calçadas apresenta irregularidades. As estatísticas de quedas e de falta de acessibilidade demonstram o descaso dos órgãos responsáveis. Para melhorar este quadro, Philip Gold propôs que passassem a incluir também os acidentes a pé nas estatísticas dos acidentes de trânsito, já que a maioria resulta em lesões graves. Ainda não há nenhum país que considere quedas nas calçadas acidentes de trânsito, mas, segundo Gold, “as grandes perdas socioeconômicas decorrentes das quedas deixam clara a necessidade de planos e investimentos de desenvolvimento em calçadas de boa qualidade”. ANDRÉ BALDINI

Foram a grande quantidade de desníveis, buracos, falta de rampas para deficientes físicos e ausência de sinalização para deficientes visuais que fizeram com que a calçada da rua Darzan, em Santana (Zona Norte), fosse considerada uma das piores da cidade, recebendo a nota 3,13 na avaliação do Portal Mobilize. Além disso, sobra lixo espalhado por onde deveriam circular pedestres, pela rua e pela valeta. Elcio Oliveira considera “as calçadas da região muito mal conservadas, independentemente da rua Darzan”. Para ele, a reparação deveria ser realizada pela prefeitura da cidade. “Pagamos altos impostos, que deveriam ser revertidos para as necessidades da cidade”, opina. Mara Gabrilli, atual deputada federal eleita em 2010 e idealizadora do projeto de reforma da avenida Paulista, que aconteceu em 2007, compartilha da ideia de Elcio. Convidada pelo então prefeito de São Paulo, José Serra, para assumir a Secretaria Especial da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida, ela iniciou projetos relativos à conscientização de outras partes da Prefeitura sobre a importância da acessibilidade urbana. Segundo ela, “a própria Prefeitura não cumpre o que está em seu Plano de Metas. O Poder Público precisa dar o exemplo para a sociedade antes de cobrar. O munícipe não tem conhecimento técnico para isso”. O consultor em transportes e trânsito Philip Gold também deposita responsabilidade em órgãos públicos: “A melhor solução a longo prazo é as prefeituras assumirem totalmente a responsabilidade pela rede de circulação a pé, composta por calçadas e travessias”, afirma. Para o advogado André Stacchi, que trabalha na região da rua Darzan, “a lei diz que a obrigação de ‘cuidar’ e de ‘manter’ as calçadas é do proprietário do imóvel”.

Porém, André acredita que uma parceria entre ambos “não seria ruim”. "O dever [da Prefeitura] não é só fiscalizar, mas dividir a responsabilidade com o contribuinte", esclarece. Enquanto as pessoas mantêm o que está bom, a Prefeitura investiria mais para que as irregularidades deixassem de existir.

As calçadas da avenida Paulista são as melhores da cidade, contendo pisos táteis e rampas de acesso

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chapéu ENTREVISTA

a cidade

IDEAL Em conversa sobre os pilares que sustentam a cidade, o arquiteto Paulo Mendes da Rocha fala da formação de São Paulo, de inclusão social e especulação imobiliária

REPORTAGEM ANA BEATRIZ ROSA, ISABELA YU (1º ano de Jornalismo), BRUNA CAVALINI, JúLIA BARBON e THALITA FACCIOLO (2º ano de Jornalismo) IMAGENS THALITA FACCIOLO (2o ano de Jornalismo)

As estantes do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, de 85 anos, sustentam muitos livros com o seu nome. Ensaios sobre sua obra, como Paulo Mendes da Rocha - Projetos de 1957 a 1999 e América, cidade e natureza, que ele assina em parceria com a também arquiteta Maria Isabel Villac, habitam as longas prateleiras junto a clássicos da literatura, como Macunaíma, de Mário de Andrade, e A Metamorfose, de Franz Kafka. Os livros dividem os ambientes do espaçoso galpão que abriga o seu escritório, no 5º andar de um prédio na área central de São Paulo. Cercado por maquetes, pilhas de tábuas e tubos de papel, o ex-professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) agita suas mãos sobre uma das mesas, inteiramente castigada por estiletes. Atrás dele, a janela deixa entrar os ruídos da cidade. Graças a seu pai, engenheiro, Paulo Mendes da Rocha percebeu a capacidade material das transformações e deixou para trás a ideia de infância de ser fuzileiro naval: “Quando você empilha uma pedra, ela cai. Mas, se cortar a pedra de uma forma diferente, a força da gravidade que a derruba pode se transformar em uma virtude”. Nascido em Vitória, em 1928, o arquiteto se mudou para São Paulo com a família aos 6 anos, onde se fixaram em uma pensão na avenida Paulista: “Ainda não havia nenhum prédio. Eu vi São Paulo se fazer e não moraria em nenhum outro lugar”. Cursou Arquitetura na Universidade Presbiteriana Mackenzie na década de 50 e, sessenta anos depois, é considerado um dos maiores nomes da área: foi o único brasileiro além de Oscar Niemeyer a ganhar o Prêmio Pritzker – reconhecimento internacional de maior relevância na arquitetura – pelo conjunto de sua obra, em 2006. Apaixonado por São Paulo, Paulo Mendes da Rocha discorre sobre a mentalidade colonialista que resultou na “parte desastrada das cidades brasileiras”. Entre uma tragada de cigarro e outra, desconstrói ainda os conceitos de “inclusão social” e “casa popular”, além de idealizar uma cidade que ampara não só as necessidades de seus cidadãos, mas também os seus desejos, optando por uma “visão erótica da vida em detrimento de um sistema fabril”.

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“O planejamento urbano deve ser baseado em uma visão erótica da vida, a vida não foi feita para sofrer” Paulo Mendes da Rocha, arquiteto

Como se deu a formação da cidade de São Paulo e quais foram os traços mais marcantes desse processo? A história da cidade é a história mais antiga do homem. A nossa diferença é que fomos descobertos há 500 anos. Em São Paulo, tudo é uma inauguração precipitada e sob a inconveniência contraditória da política colonial, que é predatória e extrativista. Esse traço marca uma parte desastrada de todas as nossas cidades de modo quase dramático. A possibilidade de aventuras lucrativas para alguns atingiu o ápice da falta de planejamento com uma visão de caráter colonialista: dominar o outro para tirar de lá. Em Recife e Olinda, por exemplo, que já estiveram nas mãos da Holanda, país cheio de canais, existem pontes sob as quais os barcos não podem passar [ao contrário do país europeu, onde barcos são utilizados como meio de transporte]. Quando vim para São Paulo, eu via escrito nos bondes daqui: “São Paulo, a cidade do futuro”. Isso com a energia elétrica sendo instalada pela companhia Light, que é canadense e estava aqui para explorar as oportunidades de uma nova cidade [o Grupo Light é uma empresa privada de geração, comercialização e distribuição de energia localizada no estado do Rio de Janeiro]. O que a empresa fez? Sugou as águas do rio Tietê através do rio Pinheiros, jogou isso tudo em uma represa e produziu uma quantidade ínfima de energia. Mas é claro que todo mundo adorou: acenderam as luzes e colocaram o bonde para servir aos bairros que estavam ali. A Light, então, comprou tudo, loteou, fez uma companhia associada à City [empresa privada fundada em Londres que atua no planejamento de bairros com o conceito de “cidadejardim”, cercados por plantas], que fez esses bairros horríveis de lotes para casas, todos asfaltados e impossíveis de serem servidos por transportes públicos. Vendeu tudo para nós, destruiu os rios e depois foi embora. E nós achamos uma maravilha. Certos desejos cultivados podem ser instrumentos de retrocesso. Quais são os aspectos primordiais a serem levados em conta na elaboração do Plano Diretor do Município? É bastante complexo: especialistas devem ir aprimorando um plano permanente até que ele se dirija a alguns projetos específicos. Isso leva anos; tanto as obras, como a idealização do plano em si. Não é para trocar de projeto a cada governo. É um absurdo falar em qualquer coisa nova para o Plano Diretor de São Paulo, porque não devia ser novo. Temos que retomar muita coisa e iniciar um plano de longo alcance, que não beneficie o mandato de quatro anos de ninguém. Mas também não estamos falando de destino, pois somos nós que planejamos. A crítica é a um planejamento gerido por uma política de ideologia colonial, de exploração. Isso que eles chamam de Plano Diretor é sempre muito acanhado, para interesses políticos imediatos. Diante desse horizonte de dificuldades para o qual estamos olhando, você vê que os planos têm que ser feitos a longo prazo: são obras que levam cem, cinquenta, dez anos. Além disso, não se planeja nada para uma cidade que possa ser eficaz sem imaginar que o país como um todo possui um projeto de desenvolvimento: ela não pode ser tratada como um lugar isolado.

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Depois da habitação, um projeto constante a ser considerado é a associação dos bairros à rede de transporte urbano. Para o cidadão, isso significa conforto, dignidade e garantia de tempo livre, que é o bem mais valioso para o homem. Como implantar o transporte em uma cidade já construída como São Paulo? Uma coisa é fazer o planejamento e depois a cidade, outra coisa é pegar a cidade pronta e enfiar o transporte. Eu acho que as mudanças deveriam ser mais enérgicas. Claro que não existe a possibilidade de fazer tudo de uma vez, mas eu faria algumas correções radicais. A principal seria abrir túneis e vias que permitam um transporte público eficiente, elétrico e não poluente. Quando se fala em transporte público, sempre se faz uma degeneração da mente diante do pensamento colonialista: separa-se o rico do pobre, mas na realidade o transporte tem que ser para todos. O carro é uma maravilha se você não possui uma rede de transporte público eficiente, mas dizer que todo mundo tem que ter um é uma degenerescência, porque o automóvel como transporte urbano não faz sentido. É uma aberração, uma máquina de 800 quilos que ocupa um espaço enorme transportando uma pessoa que pesa 70. O metrô é muito bom, principalmente porque estamos falando de uma cidade que tem que ser feita sob si mesma. Acho que a grande tragédia de São Paulo é a má feitura do ponto de vista da engenharia em relação ao sistema hídrico, quando todo mundo já sabia que a água era um instrumento primordial de transporte. Acabaram com o rio Tamanduateí e seus afluentes e o rio Tietê tem problemas sérios, por exemplo. Mas também acho que será muito estimulante a convocação da sabedoria dos profissionais para corrigir esses erros: diante desse estrago, como fazer agora? A cidade é pensada de acordo com as necessidades humanas? A cidade é para todos. Uma vez criada, é democrática. A expressão “inclusão social”, por exemplo, é uma tolice, porque presume que existe uma exclusão. Quem são os excluídos? Hoje em dia você vê um catador de papel e ele pode não querer trocar de vida, porque está muito bem. Ele está inserido assim, e não abandonaria a cidade nem se dessem um terreno para ele plantar milho sei lá onde. Acho que ninguém abandona a cidade. Não me refiro a alguém que esteja morrendo na rua, claro, mas aos que estão na favela. É lá que está a maior manifestação de consciência urbanística; é como se falassem: “vou ficar na cidade, seja como for”. A expressão “inclusão social” já me parece uma coisa jesuíta, cristã, um favor que se vai fazer. Você tem que ter gente excluída para ganhar votos, prometendo que vai incluir todos. Mas, na verdade, o catador sabe melhor do que você como entrar. Por outro lado, a especulação inventa algo que não é cidade, que acaba destruindo-a como espaço público. É o tal condomínio fechado, onde não há transporte público, o que obriga o uso do automóvel. A rua é sua, você pode viver ou morrer nela, mas, no condomínio, o guardinha não permite isso. A cidade, por si, bem feita ou mal feita, é para todos.


Para o arquiteto, o gozo da vida na estrutura urbana também se manifesta através da elaboração de pequenos objetos

A construção de habitações populares aproxima São Paulo dessa ideia de “cidade para todos”? O senso comum envolve o conceito de casa popular de forma depreciativa: o termo “popular” tem que significar algo que seja para todos. A habitação chamada popular tem a mesma água e a mesma luz de um apartamento “de luxo”, a diferença é que, no segundo caso, simplesmente se reveste o prédio de granito e se coloca vidro espelhado. O supérfluo não diz nada. Não faz sentido construir uma casa que tenha os mesmos recursos básicos de um jeito torto e mal feito só para que fique com cara de “popular”. A questão fundamental é que o morador tenha onde dormir, num local bem localizado dentro do desenho da cidade. O que você pode fazer é prever o mais acessível possível, como um fogão e uma geladeira mais baratos, ou oferecer planos de financiamento com um caráter de maior acessibilidade, mas, levando em conta o conceito contemporâneo de casa, não se pode fazer uma habitação propriamente “popular”. A casa mais barata e acessível hoje seria o Edifício Copan. São mil casas: imaginando que em cada casa moram cinco pessoas, são cinco mil pessoas no total. É como uma favela, e é assim que deveria ser. De que modo a especulação imobiliária reflete na maneira como a cidade é organizada? Acredito que há uma conivência desastrosa e até criminosa do poder público com a iniciativa privada, e essa conivência favorece à especulação imobiliária. Trata-se a cidade como um grande mercado e, dentro desta perspectiva de caráter elitizante, colonialista, quem tem dinheiro abandona a cidade. A rua São Luís (no Centro), por exemplo, tinha diversos apartamentos de luxo e não durou 10 anos: quando surgiu o metrô, os moradores foram embora. As pessoas não querem o que é democrático, para todos, e esse isolamento é contrário à evolução e ao progresso. Você tem que submeter o espaço a um planejamento inteligente, que vai além de cortar em retalhos e vender pedaços. O caso do processo de verticalização, por exemplo, é louvável, porque permite que uma quantidade muito maior de

pessoas possa ficar onde moraria apenas uma família, mas dá margem a ambiguidades. A cidade se transforma na floresta de pedra, na brutalidade do concreto. A cidade se adapta às necessidades das pessoas ou essas necessidades surgem a partir das transformações urbanas? A arquitetura nasceu com o homem. Ela está ligada às nossas origens, porque tem a capacidade de transformar a natureza em um lugar efetivamente habitável dentro dos nossos interesses evolutivos. O habitat humano se tornou, para nós, algo construído, ou seja, uma transformação objetivada, idealizada antes da própria natureza. A cidade existe antes mesmo de ser construída. Isso significa que um projeto vem suprir desejos que já existiam, não é você quem os inventa. Se nada for feito, as pessoas dão um jeito. Fazem churrasco na frente de botequim para se encontrarem na rua, por exemplo. O desejo já existe, não é o arquiteto que inventa isso. Qual deve ser a principal função da cidade? Um dos papéis que a cidade deve exercer é o de amparar a imprevisibilidade da vida. Isso significa que o sujeito deve ter a liberdade de escolher o que fazer: o tempo mais valioso e criativo do homem é aquele em que ele pode decidir o que quer fazer. Quem perde três ou quatro horas por dia dentro de um meio de transporte para o trabalho e de volta para casa não pensa, não conversa, não decide. O urbanismo e a arquitetura não são alimentados apenas pelas necessidades estritas das pessoas, mas também pelos seus desejos, e os dois devem ter o mesmo peso. O planejamento urbano deve ser baseado em uma visão erótica da vida, a vida não foi feita para sofrer. Com esse modelo de cidade, você sai do trabalho, encontra um amigo, vai para um bar conversar, aparece outro; você não tem pressa, porque toma um metrô daqui a pouco; não está aflito com isso. Seu amigo fala sobre uma peça de teatro. Ele liga para a mulher e ela pega o metrô para encontrar com ele. Eles vão ao teatro e voltam no último metrô, da meia-noite. Essa é uma visão de gozo da vida.

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meio ambiente

Raízes no concreto Projetos ambientais pretendem reverter a situação acinzentada de São Paulo com o plantio de mudas e hortas comunitárias REPORTAGEM Alessandra Petraglia, Beatriz Malheiros, Dâmaris Dellova, davi sant’ana (1º ano de Jornalismo) e Pedro goldgrub (2º ano de Jornalismo)

A horta comunitária da Vila Pompeia foi idealizada pelos moradores da região. O espaço também abriga a Geladoteca, a biblioteca da horta

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Com uma paisagem predominantemente cinza e insípida, a cidade de São Paulo faz jus aos estereótipos pelos quais é conhecida, como “selva de pedra” e “cidade sem cor”. De acordo com a Secretaria Municipal do Verde e Meio Ambiente, o bairro do Itaim Paulista, na zona leste, e o distrito rural de Parelheiros, no extremo sul da capital, são, respectivamente, as áreas com o menor e o maior índice arbóreo de São Paulo. Só no ano de 2012, a Prefeitura recebeu 12 mil ligações pedindo a poda de árvores espalhadas pela cidade. No entanto, diversas iniciativas criadas por cidadãos paulistanos estão em desenvolvimento, com o objetivo de manter e aumentar o verde presente na cidade. Isso melhora a qualidade do ar, ameniza o clima e atenua os problemas das enchentes no verão, disponibilizando uma área maior para que o solo possa absorver a água das chuvas.

Espaços comuns Insatisfeitos com o contínuo processo de verticalização da região, os moradores do bairro Vila Pompeia tiveram a ideia de criar uma horta comunitária. O projeto ganhou vida quando um grupo de moradores descobriu que um terreno ocioso, localizado na esquina entre as ruas Francisco Bayardo e Saramenha, se tratava, na verdade, de uma área pública. O objetivo inicial era recuperar parte da área verde perdida na região. Porém, o resultado acabou sendo muito mais significativo: depois de terem recuperado e fertilizado o solo, os moradores criaram oficinas de cultivo para conscientizar os habitantes do bairro, bem como uma rotina de cuidados com a horta comunitária. Segundo a voluntária Ana Godoy, “tudo o que é produzido pode ser revertido para a população, uma vez que qualquer um pode colher e consumir os alimentos plantados”. Todas as iniciativas da horta funcionam a partir da coletividade. O cultivo, por exemplo, “é feito por manejo orgânico, enquanto a água para o sistema de irrigação é cedida por um posto de saúde que fica no terreno ao lado”. A Geladoteca parte da mesma ideia: após ser doada pela voluntária Diná Ramos, a geladeira foi personalizada para tornar-se a biblioteca pública da horta, além de ser utilizada também para o armazenamento das sementes. Durante toda a semana, os voluntários


beatriz malheiros

Natureza em desenvolvimento Outra iniciativa que preza a manutenção e o aumento das áreas verdes na cinza cidade de São Paulo é o Viveiro Manequinho Lopes, que fica no portão 7A do Parque do Ibirapuera. Em 1928, Manoel Lopes de Oliveira Filho, o Manequinho, teve a ideia de implantar o Viveiro, contando com a ajuda de Arthur Etzel, e Erwin Burckhardt. Contando com uma área de 4,8 hectares, divididos em 10 estufas, 3 telhados e 39 quadras para matrizes e estoque de mudas, o Viveiro faz parte da Secretaria do Verde e Meio Ambiente e é responsável por todo o paisagismo da cidade de São Paulo. Nele são desenvolvidas as mudas que ocuparão os locais públicos da metrópole, como praças, parques e canteiros. O Viveiro produz cerca de 300 espécies de plantas ornamentais herbáceas e arbustivas, como trepadeiras, aromáticas, medicinais, entre outras. “Algumas espécies ficam todo o tempo em locais fechados, enquanto outras precisam de espaços abertos, depen-

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dendo das exigências de cada uma”, conta a engenheira agrônoma Renata Longo. As sementes são coletadas nos viveiros Arthur Etzel e Harry Blossfeld, também administrados pela Secretaria do Verde e Meio Ambiente. “As mudas são distribuídas mediante solicitação de qualquer pessoa, grupo ou órgão, sendo que eles têm a responsabilidade de levá-las embora”, explicou Renata. Apesar de o Viveiro ser aberto ao público, a Universidade Aberta do Meio Ambiente e da Cultura de Paz (UMAPAZ) oferece visitas monitoradas nas quais educadores contam a história das árvores Pau-Brasil e Seringueira, espécies localizadas na entrada do local. Além de promover a integração com a natureza, o projeto tem grande relevância ecológica, já que são desenvolvidas técnicas de reprodução para as diferentes espécies, aumentando sua produtividade e mantendo um banco genético para o futuro. “São realizados experimentos de propagação, poder germinativo das sementes e experimentos de reprodução assexuada”, complementa Renata Longo. Mantido pela Prefeitura de São Paulo, o Viveiro Manequinho Lopes fica no Parque do Ibirapuera e funciona de segunda à sexta das 7h às 17h. As atividades de produção são executadas apenas por funcionários da Prefeitura, mas os resultados são compartilhados por todos.

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se organizam pelo Facebook e se dividem na manutenção do local. Aos domingos, às 11 da manhã, são realizados encontros na horta com um café da manhã comunitário. O cultivo é aberto para os que quiserem participar, basta estar disposto a levar um prato de comida e botar as mãos na terra.

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O Viveiro Manequinho Lopes desenvolve e distribui as mudas das árvores de São Paulo, contando com mais de 300 espécies. À direita, imagem da zona leste de São Paulo, a região com menor índice arbóreo da cidade

Você sabia? • São Paulo tem 18% da Mata Atlântica original. A média nacional é de 8%. • São Paulo tem uma cobertura vegetal de 63 m² por habitante. • Das 31 regiões da cidade, 12 têm uma cobertura vegetal menor do que o ideal, de 12 m² por habitante. A maioria dessas regiões fica na zona leste. • O Itaim Paulista, local menos arborizado, tem uma cobertura de 2 m² por habitante. Na região de Parelheiros, são 2.665 m² de verde por habitante. (fontes: Atlas Municipal de São Paulo e SOS Mata Atlântica)

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FOTORREPORTAGEM

SINESTESIA

URBANA

Entre transeuntes, trabalhadores e monumentos, a rua traz à tona experiências e ações cotidianas que permeiam o ser paulistano REPORTAGEM Isabella Faria, Raphaele Palaro, Juliana Moyses, Mariana Dib, Júlia Müller (1° ano de Jornalismo) e Luíza Fazio (3° ano de Jornalismo)

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JÚLIA MÜLLER usou uma CANON T3i - f/3,5 - 18mm - ISO 3200 - 1/4s. No olhar do entorpecido, o rápido movimento se congela ESQUINAS – 2º SEMESTRE 2013

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Da rua se vai, vem, ou fica no mesmo lugar. A pressa e o andar rápido podem ser acompanhados de um tropeço, podem resultar num empurrão, ou mesmo gerar uma descoberta. Nas vias de São Paulo transitam anônimos, célebres, objetos ou apenas sensações. E, assim como o asfalto se molda aos seus passantes, estes também se apropriam da rua em suas simples ações. Em suas vistas estão o contraste e a abertura do concreto que reside em cada um.

Centro das atenções A movimentação e o trânsito são caóticos na avenida Paulista. No vão do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), estão sentados Marcelo e Ricardo, de 36 e 20 anos, respectivamente. Os dois observam o que acontece ao seu redor enquanto fumam maconha. O efeito da droga torna a avenida palco de inúmeras sensações. “A maconha faz com que você isole os momentos. Tem coisa demais acontecendo aqui”, define Marcelo. Enquanto, de acordo com ele, a avenida se torna uma espécie de fotografia, para Ricardo, os sons ficam mais perceptíveis. “A droga potencializa alguns sentidos e incrementa outros.” Marcelo e Ricardo seguem para a calçada. Os transeuntes e as construções a sua volta perdem o sentido, ao passo que as luzes, cores e sensações se tornam dinâmicas e colidem entre si.

Magnitude petrificada Distante da agitação da avenida Paulista e em frente ao Parque do Ibirapuera, encontra-se o Monumento às Bandeiras. Inaugurada há quase 50 anos, a obra criada pelo escultor ítalo-brasileiro Victor Brecheret e recentemente pichada em ato contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215 – que tira a responsabilidade de demarcação de terras indígenas do governo federal – é impossível de ser ignorada. A grandiosidade das figuras esculpidas em toneladas de granito é vista pela média de 500 mil pessoas que passam pelo Parque do Ibirapuera semanalmente, bem como tantos outros passantes e moradores da zona sul da capital paulista. Crianças, adultos e até alguns idosos se arriscam subindo pelas pernas dos bandeirantes para chegarem à barca ou aos ombros dos homens de pedra. Eles se equilibram e observam os carros, ônibus, caminhões, bicicletas e pedestres que circulam por todos os lados. Um filho sobe com o pai, e a mãe, que tem medo de altura, fica para trás. “Vocês vão cair”, grita dona Elza, de 42 anos, quando o filho e o marido tentam escalar a cabeça de um bandeirante. “Eles já me disseram que a vista de lá é muito bonita, mas eu não subo por nada.” E quando os dois descem, os dizeres são confirmados. “Mãe, dá para ver a cidade inteira lá de cima!”, exclama o menino. O Empurra-Empurra, como o monumento é conhecido pelos paulistanos, faz parte da história de Bruno, de 6 anos. “Eu gosto de trazê-lo aqui para conhecer a história do País também. Pobres bandeirantes, nunca iriam imaginar que viveriam o resto de suas eternidades olhando

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para esta paisagem na cidade de São Paulo”, pondera a mãe do menino.

Sustento do asfalto Fernando Guimarães sai do centro de São Paulo todos os dias às sete da manhã, e segue em direção ao mosteiro São Bento. Chegando lá, ele se ajeita na cadeirinha no canto esquerdo de uma das duas tendas de madeira presentes e começa seu trabalho. O lustrador de sapatos saiu de Governador Valadares, no interior do estado de Minas Gerais, quando tinha 15 anos e veio para São Paulo com o sonho de viajar para os Estados Unidos. Mas, ao chegar à capital paulista, seu dinheiro acabou, assim como seu sonho de tentar a vida na “terra de Tio Sam”. Logo, ele decidiu trabalhar no centro da cidade. “São as ruas que têm que convencer o cliente a entrar”, revela. E todo tipo de gente vai se acumulando nas tendas, dos mais descolados até os mais sérios. A rua também convida o passante às feiras livres, que se identificam pela harmonia do espaço desorganizado: o grande apanhado de vozes e cheiros parece nunca perder sua aura convidativa e agradavelmente caótica. O clima é familiar: os vendedores conversam com os clientes que, por mais ocupados que estejam, não dispensam um gracejo e, quem sabe, uma promoção. Ao final da manhã, os gritos dos feirantes sobem de tom e surgem diversas promoções. Ouvem-se passos apressados: “meia dúzia por um real”, o cheiro do pastel começa a enfraquecer, as cores das frutas e verduras, agora nos carrinhos dos clientes, enchem a visão. Aos poucos, tudo vai se desmanchando. Há bagaços no asfalto e restos de caldo de cana nas bancadas. A rua parece mudar de atmosfera. Os feirantes agora dão espaço para os garis, que são responsáveis por recolher os fragmentos de mais uma feira deliciosamente conturbada.

Direções Rodrigo Santos vê a rua de um imenso vidro, esteja ele embaçado, ensolarado, ou chuvoso. O baiano de 61 anos veio para São Paulo em 1972 e, após trabalhar em escritórios de contabilidade e como vendedor, decidiu transformar seu gosto por dirigir em uma atividade rentável: tornou-se motorista de ônibus. “Olha, tem que ter muita paciência”, desabafa. O homem rechonchudo estampa um breve sorriso no rosto, principalmente porque é domingo, “o melhor dia para se trabalhar”. Ele aponta em direção ao vidro: “olha aí, assim dá gosto de dirigir. Dia tranquilo, sem trânsito”. Por encarar a rua durante 9 horas por dia, o motorista mantém com ela uma relação de amor e ódio. Ela o sustenta, mas é falha. “O asfalto de São Paulo é complicado. Tem muito remendo, às vezes, buracos. Não dá para dirigir sem preocupação.” E em consequência do vai e vem intenso das vias paulistanas, Rodrigo já desistiu de dirigir por prazer: “Não aguento esse caos. Agora, quando saio para passear, pego o transporte público mesmo. Prefiro o metrô, não dá mais para ficar horas dentro do carro, assistindo à rua passar”.


MARIANA DIB usou uma NIKON D90 - f/22 - 28mm - ISO 400 - 1/30s. Feira livre: típico espaço harmonioso e desorganizado ESQUINAS – 2º SEMESTRE 2013

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RAPHAELE PALARO usou uma CANON T3i - f/10 - 30mm - ISO 100 - 1/100s. O Monumento às Bandeiras olha para a avenida Brasil ESQUINAS – 2º SEMESTRE 2013

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LUÍZA FAZIO usou uma NIKON D90 - f/10 - 80mm - ISO 800 - 1/200s. O motorista Rodrigo vê a rua através do vidro do ônibus

RAPHAELE PALARO usou uma CANON T3i - f/4.0 - 25mm - ISO 1600 - 1/50s. O lustrador de sapatos Fernando em ação 42

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MARIANA DIB usou uma NIKON D90 - f/5.0 - 40mm - ISO 400 - 1/125s. Os restos de uma agitada feira livre ESQUINAS – 2º SEMESTRE 2013

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teatro

cortinas abertas Muitas vezes desvalorizado, o teatro de rua mostra suas diversas facetas e prova que é necessário muito empenho para seguir experimentando no asfalto paulistano REPORTAGEM ANA FERRAZ, heloísa D’ANGELO, joana borges, joanna cataldo (1o ano de Jornalismo), gabriela monteiro (2o ano de Jornalismo) e mariana marinho (3o ano de Jornalismo) IMAGENS DIVULGAÇÃO

Já passava das seis da tarde quando o gostoso calor da noite paulistana tomou conta do ambiente. Na Rua Newton Prado, no bairro do Bom Retiro, um círculo animado de pessoas, todas ansiosas, começava a se formar. O latido dos cães da vizinhança, além dos murmúrios das pessoas, eram os únicos ruídos do crepúsculo de domingo. De repente, um saci com formas femininas pula, gargalhando, dentro da roda. Depois de algumas estripulias, anuncia, feliz: “A cobra vai fumar!”. O palco improvisado, cujo cenário não passa de alguns blocos de madeira pintados de preto, ganha vida: a música invade o espaço, trazendo consigo

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soldados da Força Expedicionária Brasileira, cachorros cantores, prostitutas coloridas, generais gringos, ditadores cruéis e imigrantes europeus. É assim, mexendo com a imaginação, que começa o ensaio da peça A cobra vai fumar, do grupo Teatro União e Olho Vivo, o TUOV.

A rua como palco “É no peito/ É na raça/ É na rua/ É na praça”, garante o hino do grupo. Com quase 50 anos de existência, o TUOV é uma das companhias de teatro popular mais antigas e importantes de São Paulo. Ele leva espetáculos recheados de história, música e cultura bra-

sileira para um público majoritariamente carente, se apresentando em escolas, centros comunitários, igrejas e ruas. Fundado em plena ditadura militar, com a união das companhias Teatro Casarão e Grupo XI de Agosto, o TUOV se diz “em resistência desde 1966”. O grupo, preocupado com a realidade social brasileira, busca não só se apresentar de graça nas ruas das periferias, como também provocar os moradores: as peças retratam episódios esquecidos, mal contados ou escondidos da nossa história, como A Revolta da Chibata - A História de João Cândido, um Almirante do Povo. Graciela Rodrigues, responsável pela identidade visual


A Cia do Miolo (à esquerda) e o grupo Teatro União e Olho Vivo (à direita) utilizam suas peças como formas de estreitar laços sociais e políticos

do grupo, explica: “É uma proposta do Olho Vivo de desvelar a história que está escondida e que não é contada nos bancos escolares. A história do João Cândido [da Revolta da Chibata], dos Queixadas [das greves de Perus], dos índios guarani, são assuntos que já trazem um questionamento. E é a partir dele que surge a identificação das pessoas”. O público, de fato, se reconhece nas peças do TUOV. Bia Morra, de 19 anos, estudante de comunicação em multimeios, tenta explicar o fascínio que sentiu por A cobra vai fumar: “O teatro é uma forma muito legal de expressar, comunicar, gritar para o mundo ‘ei, tem alguma coisa errada aqui’. E essa peça gritou. É um jeito de educar também”. Uma outra espectadora, que preferiu não se identificar, concorda: “Achei incrível. Uma mistura de sons, cores e história. Acho que o melhor de tudo é o fato de ser na rua, onde qualquer um pode passar, ver e absorver essa aula de história. É um tapa na cara”. Já a Companhia Brava leva o velho lema de Molière para as ruas: “ridendo castigat mores (rindo corrigem-se os costumes)”. Os espetáculos do grupo, que atua há cerca de quin-

ze anos na capital paulista, buscam cumprir um papel social por meio do riso, abordando questões como a desigualdade, o culto à mercadoria e a dominação de classes. “Só é possível fazer teatro de rua se refletirmos sobre ela, sobre como o mundo está organizado”, afirma Fábio Resende, integrante da Brava. A opção de fazer teatro na rua surgiu por acaso. No início, o grupo se apresentava na zona sul, onde existiam apenas dois teatros públicos. Para evitar disputas com outras companhias, resolveram repensar a maneira como encaravam o fazer teatral. “Onde o público estava? Nas ruas, nos bares, nos parques, menos nos teatros. Começamos, então, a nos apresentar nas ruas”, explica Fábio. Responsáveis por todo o processo de montagem, desde a criação do roteiro até o cenário, o grupo já se apresentou em mais de 300 bairros, conquistando cerca de 150 mil espectadores até meados de 2003, quando a contagem foi cancelada devido à enorme instabilidade nos números de público. Para a Companhia do Miolo, a rua se apresenta como um espaço público fértil e propício ao encontro, tanto estético quanto

político. Formado em 2003, o grupo realiza pesquisas sobre urbanismo e teatro popular nacional e estrangeiro. “O estudo nos provoca a continuarmos nossa trajetória na rua. Percebemos a necessidade de estreitar nosso vínculo com o público”, conta Renata Silva, diretora da companhia. Segundo a filosofia do grupo Tablado de Arruar, a rua deve retornar às suas origens. “A rua é um lugar privado e privatizado. Se nós voltarmos ao passado, na história, essa ideia de algo público, compartilhado por todos, nunca chegou a se efetivar. Isso foi um dos motivos para que nós continuássemos desenvolvendo formas artísticas para ocupar essa rua: torná-la um espaço realmente público”, diz Clayton Mariano, ator e diretor do Tablado. A companhia, que surgiu em 2001, faz peças nas ruas de São Paulo que abordam temas presentes no cotidiano, como a especulação imobiliária e a expulsão das classes mais baixas de determinados bairros. Apesar de muitos grupos ocuparem as ruas da cidade, a crítica teatral Beth Néspoli entende que, aos olhos de muitos – inclusive da própria crítica –, o teatro de rua ainda é

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Para a Cia do Miolo, os espetáculos apresentados nas ruas são especiais por estabelecerem um espaço de convivência sem hierarquia

“Essa ideia [da rua] como algo público nunca chegou a se efetivar. Isso foi um dos motivos para que nós continuássemos desenvolvendo formas artísticas para ocupar essa rua: torná-la um espaço realmente público” Clayton Mariano, ator e diretor do grupo Tablado de Arruar

considerado desprestigiado. Isto porque, de acordo com ela, o teatro brasileiro é historicamente encenado no palco. “Raramente se conta uma história teatral do Brasil incorporando o que fez o teatro de rua. É difícil dizer se não existe uma tradição, se existe uma que não é tão forte, ou se nós não estudamos o teatro de rua que existe”, comenta. Entretanto, Néspoli entende que esse cenário tende a mudar. “A tendência não é mais ser um teatro desprestigiado pela crítica. Existem grupos fazendo coisas muito interessantes nas ruas. Teremos cada vez mais um teatro potente ou não potente, que diz algo ou não. Assim, irá se sobressair quem tem algo a dizer, na rua ou no teatro italiano”.

público em cena Depois de cada espetáculo do TUOV, há sempre um debate com o público: “Surge a identificação das pessoas. Elas começam a dizer ‘eu também sofri com isso’. A discussão é justamente para promover a integração com o público”, explica o ator Cícero Almeida, que está no grupo há 18 anos. A espectadora Bia concorda: “Acho importante debater com o público para ver o que a gente entendeu e o que a gente vai levar mesmo da história”.

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Essa forma questionadora e reivindicadora de fazer teatro, expondo e discutindo os problemas sociais diretamente com a população, já rendeu à companhia confisco de bens durante a ditadura militar e vários boicotes nos anos seguintes. Renata, da Companhia do Miolo, explica que as pessoas, em geral, são muito receptivas nas ruas. “No momento do espetáculo, se estabelece um espaço mais igualitário de relações, sem hierarquias. Então, você vai ver o morador de rua, a dona de casa, o bancário e o comerciante lado a lado, rindo, chorando, comentando e se divertindo.” Quanto à organização cênica nas ruas, Renata conta que é um pouco mais complicado do que no palco. “Trabalhar em um espaço com tantas adversidades requer do ator o domínio de jogos que, no palco, são dispensáveis, e um preparo físico apurado. Já fizemos cenas onde o acontecimento real se misturava à cena de ficção e era impossível discernir o que era teatro ali”, diz. Essas dificuldades intrigam o público, como explica a espectadora Bia: “Eu vi que estava todo mundo de boca aberta o tempo todo, e isso é uma coisa muito difícil de fazer no teatro. Imagina na rua? Tem barulho, gente comen-

do, bicho, gente que resolve sair andando, não tem como evitar que toque um celular. Deve ter gente que vai só por curiosidade, como eu, e acaba maravilhado, encantado... Como eu, também”. O teatro de rua também impõe desafios na hora de atrair o público. A rua não tem palco e, ao contrário do teatro de espaço convencional, o público não está naquele lugar esperando que alguma apresentação aconteça. Por isso, as companhias tiveram que buscar diferentes maneiras para chamar a atenção dessas pessoas. Enquanto o TUOV distribui panfletos, espalha a notícia das apresentações oralmente e faz propagandas cantadas minutos antes da peça, o Tablado de Arruar criou uma estratégia nada convencional: “Começávamos a cena com uma briga, aquilo formava uma plateia em dois minutos. Depois da briga, a gente começava a peça falando diretamente com o público. Até a terceira peça, entrávamos com um caminhão com música alta. Como não prestariam atenção na gente?”, expõe Clayton. Para Graciela, apresentar na rua é um desafio e, por isso, o TUOV precisa estar bem ensaiado: “Todo o nosso equipamento cênico está preparado para se adaptar a isso. Sabe-


HELOÍSA D’ANGELO

O grupo Teatro União e Olho Vivo (TUOV) acredita que a preparação é essencial para lidar com as adversidades das apresentações nas ruas

mos que estamos fazendo uma intervenção, e não modificando o espaço permanentemente”. Para os integrantes do TUOV, tudo deve ser reaproveitado: cenário, figurino e até financiamento. “Chamamos nossa estratégia de ‘Robin Hood’: apresentamos, por exemplo, em escolas, cobrando ingressos. É esse dinheiro que vai bancar nossas apresentações nas ruas, nas periferias”, explica Cícero. Para se sustentar, a Brava e o Tablado de Arruar contam com o apoio da Lei de Fomento ao Teatro, da Prefeitura de São Paulo. Estabelecido pela Lei 13.279/02, o programa busca apoiar o trabalho de pesquisa e produção teatral como forma de desenvolver o teatro e fazer com que um número maior de público tenha acesso a ele. De todos os projetos inscritos nos dois editais realizados por ano, apenas trinta são selecionados para serem contemplados pelo programa. É o que espera o grupo maranhense Os Itinerantes. Hoje, ele conta apenas com o apoio do Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais, criado com a finalidade de apoiar financeiramente, por meio de subsídio, não apenas companhias de teatro, mas toda atividade artístico-cultural. A falta de capital é a maior dificuldade enfrentada pela

companhia, que tem como proposta discutir os problemas sociais, refletindo em seus espetáculos – hoje apresentados no Largo do Cambuci, em São Paulo – a realidade do povo marginalizado. “A rua é o espaço de encontro, é onde as manifestações acontecem. Para nós, que trabalhamos com a cultura popular, não há lugar mais apropriado que a rua”, afirma Aládia Cintra, atriz do grupo. Já a Companhia do Miolo trabalha com editais públicos e venda de espetáculos. “Estas verbas são geridas de acordo com o projeto, e os artistas envolvidos recebem seus cachês igualmente rateados, ou seja, todos, diretor, músicos, atores trabalham com um mesmo valor de pagamento”, diz Renata.

espontaneidade Ao colocarem numa balança as delícias e os problemas das apresentações de rua, os grupos chegaram a diferentes conclusões. A questão climática é um ponto importante, porque influencia na decisão do público de permanecer para assistir à peça: “Quando chove, não há como fazer. Ninguém fica. Já no frio, a gente sempre tenta”, conta Renata. A diretora também aponta outros problemas: “A interferência no som, a dificul-

dade de iluminação, o cachorro, tudo isso atrapalha”. Graciela, porém, discorda e acrescenta que, para o TUOV, as dificuldades são estimulantes. “Eu não chamaria de ‘obstáculos’. Estamos acostumados com as características de cada lugar. Fazemos uma intervenção, mas não modificamos o espaço. Esteticamente, tudo o que está em volta faz parte da apresentação. Até as pessoas.” A questão do público é, para todos os grupos, a melhor parte de trabalhar nas ruas. “O público de rua é totalmente espontâneo e tem uma sinceridade muito grande. É extremamente crítico e exigente. Está com pressa. Se ele fica, é porque, de fato, alguma coisa interessa. Então, é uma reação muito honesta”, resume Clayton, e sua opinião encaixa-se perfeitamente às das outras companhias. Encenar nas ruas de São Paulo acaba sendo um desafio que vale a pena, como conclui Renata Silva, da Companhia do Miolo: “A rua é esse turbilhão de provocações para o artista, mas é também um espaço de conflito que gera, muitas vezes, insatisfações. Mas, como já dizia o verso de uma canção [Nos bailes da vida - Milton Nascimento], ‘todo artista tem que ir onde o povo está’. E o povo está nas ruas”.

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PERFIL

Se essa rua fosse viva Ela é local de passagem, sempre meio, nunca fim, exterior, mais que isso: personagem

REPORTAGEM Juliana Milan, Mariana Canhisares, Sarah Mota Resende, Sean Farinha, Vitória Vaccari (1º ano de Jornalismo), Erick Noin, Letícia Dias (2º ano de Jornalismo) e Thiago Navarro (3° ano de Jornalismo)

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THIAGO NAVARRO

Quando o sol se põe, o comércio da 25 de Março fecha suas portas e a rua se torna quase deserta

A rua é o referencial da cidade: “segue reto na Estados Unidos, dobra a direita na Augusta, tal lugar é na esquina da Santos com a Campinas...”. Numa cidade-mundo como São Paulo, espera-se que suas ruas também sejam feitas de contrastes e opostos, e a realidade não decepciona. Quase vivas, a Maranhão, a Alba, a Aspicuelta e a 25 de Março são respectivamente reconhecidas como chique, perigosa, noturna, comercial; todos rótulos rasos para descrevê-las. É difícil acreditar que essas quatro ruas existam a poucos quilômetros uma da outra – por vezes, as situações e personagens que convivem num mesmo local surpreendem e divertem. A cada quarteirão, as características mudam: os padrões das calçadas, as cores do asfalto, a própria existência deste. Prédios, casas e canteiros de obras se misturam; novos, antigos, restaurados, abandonados. Uma rua tem árvores, outra tem lama, uma terceira tem as calçadas tão lotadas de gente que a solução é caminhar entre os carros. Uma descansa à noite, enquanto o movimento na outra está apenas começando. Numa, os cachorros têm raça, acessórios, roupas

e brincos – na outra, eles são considerados sortudos se tiverem nome. Nas palavras de João do Rio: “Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma! [...] Se as ruas são entes vivos, as ruas pensam, têm ideias, filosofia e religião”.

Tranquilo tumulto Cercas elétricas, câmeras de vigilância, muros altos e seguranças em todos os cantos compõem a paisagem. O dia começa calmo nas calçadas da rua Maranhão, como de costume. O maior grupo é composto por jovens do Instituto Europeo di Design (IED). Em duplas ou trios, os estudantes ficam sentados, fumando nos degraus da faculdade ou encostados nos canteiros que dividem o prédio do IED da Igreja de Santa Teresinha. A calmaria, entretanto, não se reflete no asfalto. As ruas são tomadas por um fluxo constante de carros. São poucos os táxis disponíveis, enquanto os ônibus mal param pela falta de passageiros nos pontos. Dos dois lados da rua, carros estacionados do início ao fim da zona azul; o único espaço disponível é demarcado por uma linha

branca: vaga para idosos, e ela fica vazia por menos de quatro minutos. Durante as manhãs, as patas caninas dominam a calçada, acompanhadas por andadores profissionais. Eles levam cães de todos os tamanhos, raças e cores para passear. À tarde, donos e empregadas domésticas se juntam a essa rotina. Os empreendedores da região também se adaptaram ao ramo: Renata Oliveira, de 40 anos, dona de uma banca de jornal há 10, além de vender roupinhas e coleiras, oferece serviço de passeio. Ao longo do trecho da rua inserido no bairro do Higienópolis, uma pincher toy sem coleira corre na calçada com rápidos e delicados passos. Ao sinal de qualquer pedestre, a cachorrinha Cristal vai à sua direção, entusiasmada, mas sempre volta quando Silvia Ribeiro, de 41 anos, a chama. Com 2 anos de idade, o que falta em tamanho na pincher, lhe sobra em energia. Pantera, cachorrinha da mesma raça que anda ao seu lado, mostra sinais da idade: aos 11 anos, quase cega, ela não se movimenta muito e não é tão afetiva como a mais nova. Dona Silvia trabalha como doméstica e sua principal ocupação é

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ERICK NOIN

Na rua Alba, o cenário é de tumulto nas vias e miséria nas calçadas

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VITÓRIA VACCARI

Localizada no bairro Higienópolis, a Maranhão ostenta prédios de luxo

cuidar das “meninas”, como as chama. “Ela [Cristal] não é desobediente, só muito animada. Quando ela anda comigo de ônibus, vai quietinha o caminho inteiro.” E esse passeio acontece com certa frequência, segundo Dona Silvia, afinal, “elas vão para casa comigo no final de semana, que é minha folga”. Durante a tarde, o movimento da rua muda. O fluxo de carros diminui, e o de pedestres aumenta ligeiramente. Os pontos de ônibus ficam mais cheios. Os alunos da Universidade Presbiteriana Mackenzie voltam em bandos para casa, e os do IED se dispersam em motos e skates. No final da rua, o movimento do Pão de Açúcar – único supermercado na Maranhão – continua tão intenso quanto estava pela manhã. O trânsito fica confuso perto da porta dos fundos do Colégio Sion, onde os pais estacionam em fila tripla para pegar seus pequenos. E, sem aviso, a rua acaba numa praça, no único lugar do mundo onde [a rua] Maranhão faz fronteira com [a rua] Rio de Janeiro.

De tudo um pouco “Sabia que o pessoal das casas não gosta que tirem fotos?”, diz, sob tom de aviso, o bemhumorado segurança do bar São Bento, Daniel Bispo. Ele completa: “Geralmente, os caras estão na companhia de outras mulheres”.

É início de noite e a rua Aspicuelta, na Vila Madalena, começa a se movimentar. “Aqui tem uma concentração boa de bares”, diz Marcelo Andrade, de 27 anos, que é do interior do estado e sempre frequenta a localidade quando vem à capital. Ele e seu “companheiro de cerveja” ocupam uma mesa exterior no bar José Menino, na parte mais movimentada da Aspicuelta, o cruzamento com a rua Mourato Coelho. O estabelecimento possui ares boêmios e toca samba ao vivo todos os dias. Durante a semana, abre às seis da tarde e a concentração de frequentadores chega ao ápice nas sextas-feiras, por volta das nove horas da noite, quando o espaço para transitar nas calçadas se torna escasso. Há ainda a Cervejaria Patriarca, que, além da obrigatória cerveja, dispõe ainda de um cardápio gastronômico tipicamente brasileiro, como bolinho de carne seca com mandioca e picanha na chapa. No entanto, segundo o segurança Cláudio Soares, de 59 anos, o local já foi bem mais frequentado. “O movimento caiu bastante. Antigamente, era lotado até de domingo”, diz ele, que culpa a lei seca pela mudança. Por volta das dez da noite, as pessoas já começam a disputar espaço com os carros, tornando árdua a tarefa de transitar nas calçadas.

Em meio à crescente multidão está o vendedor ambulante Ricardo Leite, de 33 anos, que tira boa parte de sua renda vendendo maços de cigarro e chicletes aos frequentadores da região nos finais de semana. “Se você vier a São Paulo e não conhecer a Vila Madalena, não pode dizer que conheceu São Paulo”, afirma ele. Outro personagem conhecido pelos frequentadores da Aspicuelta é o desenhista René Paulauskas, que há 13 de seus 39 anos trabalha fazendo caricaturas nas ruas do bairro. “Não dá para saber o que a pessoa espera. Mas, geralmente, elas saem satisfeitas com o trabalho.” Quando questionados sobre o público que frequenta a rua, os entrevistados não pestanejam em qualificá-lo de eclético e plural – de roqueiros a sambistas, de empresários engravatados a baladeiros de carteirinha. Com tantos estilos diferentes e diante de um mar de pernas e cabeças, é tênue a linha que separa o comum do excêntrico, o anônimo do conhecido, e é isso que faz deste lugar um verdadeiro patchwork de pessoas, assim como é toda a Pauliceia Desvairada.

25 horas por dia “25 de Março/Mão-de-obra da Turquia/Levanta-se muito cedo/Quando ainda não é de dia/

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Mais um aqui pro 'fregueis'/'Divinha' que tem na mão/Aqui caro sai barato/E tem até prestação.” Não fosse por um único detalhe, a música de Adoniran Barbosa permaneceria atual: se na década de 60 quem dominava o comércio lá eram os árabes, hoje, quem dá as cartas são os chineses. Tudo começou com uma enchente, nos tempos de Adoniran. Os tecidos, produto forte da época na região, ficaram encharcados, e liquidá-los foi a única estratégia encontrada pelos comerciantes. Deu tão certo, que a fama de pechincha sobrevive até hoje. A rua de 2,5 km de extensão, forma, com outras 18 ruas, uma região de intenso comércio. Mas engana-se quem pensa que preço baixo só atrai consumidores de classes menos abastadas. Segundo a União dos Lojistas da Rua 25 de Março e Adjacências (UNIVINCO), em pesquisa realizada em 2010 pela TNS Research International, 56% dos compradores são de classe A e B. A 25 de Março desperta por volta das seis horas da manhã. A movimentação no quarteirão entre a rua Carlos Nazaré e a avenida Senador Queiróz é o primeiro sinal de que o dia começou. Centenas de pessoas aglomeradas comercializam roupas, brinquedos e outros produtos por lá. Ao mínimo sinal da aproximação de policiais militares, as mercadorias são guar-

dadas às pressas em sacolas. Gritos de “É o ‘rapa’” preenchem o ambiente. “É constrangedora a forma como eles nos abordam. Pegam pelo braço e quem olha pensa que a gente está roubando, mas, na verdade, esse aqui é o nosso trabalho”, afirma o ambulante Carlos Souza, apressado e tenso com a aproximação de policiais. Os ambulantes ilegais se dispersam e esperam por um momento de distração para poderem voltar. É o que fazem, durante todo o dia; todos os dias. Um rapaz recolhe o monte de lixo acumulado em frente à sua loja. Bem-humorado, comenta com o colega: “Os caras não limpam, e eu tenho que fazer isso!”. Os poucos garis não dão conta da velocidade com que se produz lixo na rua. As lojas abrem, os camelôs montam suas barraquinhas e os primeiros compradores começam a chegar. Voltam também os perseguidos ambulantes. “A fiscalização é muito maior de manhã”, afirma Carlos Souza, que há 8 anos vende ilegalmente papa-bolinhas na região. “Antigamente, a responsável pela fiscalização era a Guarda Civil Metropolitana. Eles tomavam apenas as mercadorias. Agora, com a Polícia Militar, além de pegarem a mercadoria, nos levam para a base umas três ou quatro vezes por dia. A gente brinca dizendo que essas mercadorias apreendidas são os nossos impostos”, completa.

A calçada, que, dependendo do lugar, tem de 2 a 6 metros de largura, é limitada demais para a quantidade de pessoas que visitam a região, mesmo em dias de movimento fraco. Avançando pelas ruas, os pedestres disputam espaços com carros, motos e caminhões. As portas das lojas vão baixando junto com o sol. As barraquinhas também vão se retirando e, incrivelmente, o preço do pen drive cai de R$30,00 para R$ 10,00. “Leva! Para acabar!”, insiste o vendedor. No fim da tarde, pessoas com sacolas nos braços caminham, satisfeitas, até a entrada da estação de metrô São Bento. E a 25 de Março pode descansar por mais uma noite.

Entre altos e baixos O ônibus entra na rua Alba em alta velocidade. Conforme desce até um córrego e sobe uma ladeira rumo a avenida Santa Catarina, é possível ver da janela os antagonismos da rua. Primeiro uma grande favela, depois uma agência do banco Itaú. A rua é uma rota de acesso da zona sul, ligando o bairro do Jabaquara a Santo Amaro. O fluxo de carros e pessoas é intenso, como o de uma grande avenida. A Alba, porém, tem somente duas pistas, uma voltada a cada sentido e, por isso, são diários os congestionamentos pela manhã e no fim da tarde. A vida acelerada do paulistano, no enVITÓRIA VACCARI

Os frequentadores da rua Aspicuelta, na Vila Madalena, são plurais e ecléticos

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tanto, não é regra na rua Alba. A observação mais atenta mostra a coexistência de outra realidade ambígua: enquanto muitos sobem e descem apressados, outras pessoas conversam e descansam na frente das barbearias e de outros estabelecimentos. Na parte mais alta, no cruzamento com a Santa Catarina, o tráfego e comércio são ainda mais intensos. Ao lado da agência do banco Itaú, com grandes árvores na fachada, e em frente a um supermercado, uma tenda feita de cobertores e lonas abriga duas pessoas: um casal emigrado do nordeste do País, que não encontrou melhores condições de vida em São Paulo. Miseráveis e, pelo que indicavam os cachimbos no chão, usuários de crack. "A gente passa muita necessidade aqui. Frio, fome. Mas eu nem tenho mais como voltar para minha casa [em Alagoas]", explica Vida, sentada na calçada. Sabato Manzi, de 79 anos, lembra, deixando de lado seu jornal, que há algumas décadas a rua era uma estradinha de terra e os terrenos eram chácaras e lotes vazios. Hoje, a caracteriza com desdém: "A situação melhorou de 10 anos para cá, mas a violência não tem fim. Existe gente boa e trabalhadora na favela, mas também vemos viciados e traficantes de drogas aí”. As transformações pelas quais passou a rua Alba foram visíveis, como conta o portei-

ro Nilson Peçanha, de 44 anos. "De uns governos para cá, muita coisa melhorou. Tem mais ônibus, coleta de lixo e polícia na rua. Acho que a região está mais segura." E essa região cresce. Novos prédios e comércios brotam em cada canto. Por se situar num bairro periférico da cidade, entretanto, a pobreza se acumula. Na parte mais baixa da rua, há um complexo de favelas: Campinho, Espraiada, Taquaras, todas na mesma situação de precariedade. Nessa parte da Alba, as calçadas, pontilhadas por botecos, cortiços e barracos, ainda são de terra. Alguns homens sentados nas soleiras olham o movimento; bêbados alugam balconistas com suas lamúrias; garotos do tráfico vigiam qualquer movimento suspeito. A música é alta e popular: “Contando os plaque de 100/ Dentro de um Citroën/ Aí nóis convida/ Porque sabe que elas vêm”. Mulheres penduram roupas enquanto gritam para as crianças se afastarem do córrego que corta a rua, destino do esgoto e do entulho. Como em Veneza, os muros da casa dão diretamente para água, o que levou a Prefeitura de São Paulo a desapropriar centenas de casas e barracos. Cientes do perigo, os moradores organizados pedem somente que o novo governo cumpra com a promessa e os transfira para moradias populares – um fim ao descaso e ao abandono.

“É constrangedora a forma como eles [policiais militares] nos abordam. Quem olha pensa que a gente está roubando, mas, na verdade, esse aqui é o nosso trabalho” Carlos Souza, vendedor ambulante

THIAGO NAVARRO

Com a aproximação do fim do expediente, os comerciantes da 25 de Março expõem o restante de suas mercadorias ESQUINAS – 2º SEMESTRE 2013

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protesto

Os agentes da depredação explicam suas motivações e o que está envolvido na destruição do espaço público REPORTAGEM AMANDA SAVIANO, MARIANE MONTEIRO, MARINA GABAI (1o ano de Jornalismo), BEATRIZ ATIHE, ISADORA COUTO (2o ano de Jornalismo) e rafael rojas (4o ano de Jornalismo) IMAGENS ISADORA COUTO (2º ano de Jornalismo)

Dentro de uM protesto, o vandalismo e a depredação chamam atenção. A partir das manifestações de junho deste ano, circularam na mídia com maior frequência os atos cometidos por “vândalos”. O termo é derivado de povos germânicos que invadiram e saquearam Roma no século V. No caso brasileiro, a culpa foi designada, repetidas vezes, aos adeptos do movimento Black Bloc. Estes andam em grupo, vestem-se com roupas pretas, além de máscaras que cobrem seus rostos, e defendem o anticapitalismo por meio de depredações de símbolos como bancos e redes de fast food. O movimento destaca-se também pela ausência de lideranças e a solidariedade existente entre os adeptos. Apesar de ter começado na Alemanha, em 1980, e ter repercutido em Seattle, em 1999, e Londres, em 2011, o movimento Black Bloc só chegou e ganhou notoriedade no Brasil recentemente. A adepta Ramona Parra*, de 23 anos, afirma que “está acontecendo uma discussão sobre o tema. Pessoas que não conheciam os Black Blocs agora sabem que existimos”.

Contradições

O movimento Black Bloc utiliza a depredação como forma de protesto

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“Sou absolutamente contrário às táticas de ação dos Black Blocs. Não estamos diante do uso maciço da violência para legitimar certos interesses, mas de manifestações localizadas e individuais de vandalismo, que mais repelem do que agregam pessoas em torno de determinada causa”, defende Gilberto Maringoni, doutor em História Social pela


Universidade de São Paulo (USP). Maringoni também critica a inexistência de programas ou estratégias nas ações dos Black Blocs. “A forma de luta do movimento, ou seja, o vandalismo, é o próprio objetivo.” As ações dos Black Blocs também são questionadas por outros grupos. O Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) não concorda com a tática de violência adotada pelo Black Bloc. Segundo Arielli Moreira, da Direção Estadual da Juventude do PSTU, o vandalismo pode prejudicar a legitimidade dos movimentos e de suas pautas: “Nós achamos que a depredação dos patrimônios que representam o capital não levará a uma transformação da sociedade”. Além disso, a militante de 23 anos acredita que “só quebrar as coisas na rua não surte o efeito desejado. Isso abre espaço para o questionamento por parte da população sobre a possibilidade de repressão ao movimento devido a certa ação. Acreditamos que, em vez de quebrar o banco, por exemplo, deveríamos tentar convencer os cidadãos a pararem de trabalhar durante um dia”. De acordo com Arielli, o debate entre movimentos é essencial para que se chegue a um acordo. “O PSTU está do lado dos Black Blocs do ponto de vista da revolução, mas achamos que a tradição das militâncias de esquerda é debater sobre os rumos do movimento. É responsabilidade das organizações colocarem suas opiniões de maneira clara para criar um debate franco.” Já John Márcio, de 22 anos, adepto das táticas do Black Bloc, acredita que o tipo

de atuação que o movimento apresenta nas manifestações, como a depredação de agências bancárias, por exemplo, é válida. “Achei ótimo terem quebrado os bancos da avenida Paulista. Se você tem 30 centavos na sua conta, o banco toma. Temos que destruir esse tipo de coisa”, comenta o jovem ativista, que participou ativamente do ato do Movimento Passe Livre (MPL) que questionava o cartel do metrô de São Paulo. A universitária Ramona Parra acrescenta que o foco do movimento é atingir os representantes do poder, o que contradiz a visão de “baderna generalizada” criada pelo senso comum. “Temos um consenso de não combater pequenas lojas, em respeito aos pequenos trabalhadores, que também são explorados. Bancas de jornal também não fazem parte de nossos alvos.”

Choque estratégico O Black Bloc saiu do anonimato e foi parar nas capas de revistas e jornais do País. Com isso, chamou atenção, mas foi colocado na berlinda por sua relação entre choque visual e a movimentação do poder público. “Se não houver agressividade, não vai adiantar nada, eles não ficarão com medo da gente. Ficar andando com as bandeiras para lá e para cá não vai mudar nada. Nós reagimos para prejudicar os maiores, os engravatados”, explica John Márcio, que é ajudante-geral em um colégio de São Paulo. Outra questão que surgiu depois da visibilidade adquirida pelos Black Blocs foi a

confusão entre quem fazia ou não parte do movimento. Ramona Parra, afirma que “ser Black Bloc não é algo que surge do nada. Não é apenas cobrir o rosto e sair quebrando tudo: é uma ideologia. Parece que agora virou moda ser um de nós. Gente que nunca leu um único livro anarquista coloca uma camiseta preta no rosto e sai por aí dizendo que é dos ‘nossos’. O movimento não se trata de vandalismo por vandalismo”, afirma a universitária. Os temas levados às ruas pelo Black Bloc fazem parte da rotina dos integrantes do grupo. John Márcio, por exemplo, cita questões relacionadas ao transporte público: “Eu peguei trem a vida toda, todos os dias. Poucas vezes fui sentado, sempre fico espremido”, conta. Para Ramona, “violência é pegar transporte lotado todos os dias, violência é o [deputado Marco] Feliciano na Comissão de Direitos Humanos e Minorias, violência é a Copa do Mundo desabrigar centenas de pessoas, violência é índio morrendo, e não o que nós fazemos”.

A lei Outra forma polêmica de manifestação urbana é a pichação. Fellipe Weber, mais conhecido como Lecheval, encara suas tags – impressões artísticas do mundo do grafite – como forma de expressão. Na perspectiva dos grafiteiros, o ato é somente considerado vandalismo se a pintura ocorre em uma propriedade sem a autorização do dono. No entanto, de acordo com o Artigo 65 da Lei de Crimes Ambientais, tais expressões são con-

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Os adeptos do Black Bloc andam em grupos e caracterizam-se pelas vestes pretas e pelos rostos cobertos

sideradas formas de vandalismo. “O artigo 163 do Código Penal pune o crime de dano e os artigos 62 e 65 da Lei 9605/98 punem a pichação. O grafite não autorizado é considerado pichação, cuja pena é de detenção de 3 meses a 1 ano mais multa”, explica a advogada Fabiana Ciccarelli. De mochila nas costas, portando látex, rolo e tinta spray, Fellipe sai durante a noite na missão de deixar sua marca em muros de diversos bairros da cidade. Ele não se importa com as pessoas que passam por onde está pintando, no entanto, o cuidado é necessário: “Quando você está numa ação, uma pessoa tem que ficar olhando. Melhor se for uma amiga, porque, se vem uma viatura, paramos tudo e fingimos ser um casal”, conta Fellipe, gargalhando. O grafiteiro passou 16 de seus 29 anos em ação nas ruas. Para ele, só vale a pena correr risco quando o muro é bem visível. “Tudo tem que ocorrer de forma planejada, temos que ver se não há ‘guardinha’ na rua, como está o movimento da polícia. A ação precisa acontecer no mesmo dia, senão vem outro, chega e faz.” O muro ou parede também passam por critérios, “a gente não costuma fazer em porta de loja que não está para alugar, porque ela fica aberta ao longo do dia. Preferimos as que ficam fechadas”.

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Lecheval, como o grafiteiro é conhecido, já foi detido uma vez “pichando uma portinha lá no Bom Retiro”. “Eles me pegaram um pouco depois de eu ter terminado e me levaram à delegacia especializada em crimes ambientais. Chegando lá, fui hostilizado. A delegada já chegou acusando: ‘o que esses filhos da puta fizeram? Se fosse na época da ditadura, vocês estavam fodidos’.” Entretanto, quando é surpreendido por policiais, Fellipe diz “não afrontar ninguém”. Tenta o diálogo como primeira alternativa. O que motiva os atos mesclados de arte e crime é a sensação do momento: Fellipe ressalta que a adrenalina pura do vandalismo é executá-lo num lugar proibido e que ter escapado da polícia de alguma forma impulsiona outros atos. Nas manifestações, ele se expressou pichando ônibus, chegando até a levar uma garrafa de gasolina com a intenção de fazer barricadas ou botar fogo em alguma agência bancária. No entanto, Fellipe reforça que “tem que quebrar a coisa certa; lixeira, que é um instrumento de cidadania, acho errado”. Além disso, o grafiteiro defende a ideia de que “depredação de instituição financeira é justificável, já que sustenta um sistema cruel que aumenta a desigualdade social”. A Justiça prevê penas diferentes para

pichação em patrimônio público: “O dano é qualificado e a pena, que era de 1 mês a 1 ano, passa a ser de 3 meses a 3 anos. O ato deixa de ser crime de menor potencial ofensivo”, esclarece a advogada Fabiana Ciccarelli. *O nome da entrevistada foi trocado para manter a sua verdadeira identidade.

DANOS DO VANDALISMO (Entre junho e setembro de 2013)

Metrô - R$ 115 mil. Vidros de estações quebrados, incluindo da Trianon-Masp, e luminárias. Um trem da Linha 3 Vermelha foi pichado. SPTrans - 313 veículos sofreram depredações e outros 197 foram vandalizados. Três ônibus tiveram os bancos incendiados e um foi queimado por inteiro. Também houve registros de atos de vandalismo nos Terminais Bandeira e Pq. D. Pedro II.


LOCOMOÇÃO

Imobilidade O inchaço do trânsito paulistano e as possibilidades de deslocamento em uma cidade parada REPORTAGEM BRUNA MENEGUETTI, CAMILLA SANCHES (1o ano de Jornalismo) e PÂMELA VESPOLI (2o ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO ANA CLARA MUNER, CAMILA GREGORI e DANIELA RIAL (1o ano de Curso) ILUSTRAÇÃO THAÍS HELENA REIS (2º ano de Jornalismo)

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De acordo com uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) em parceria com a Rede Nossa São Paulo, para os cidadãos, o trânsito é o quarto fator mais problemático da cidade. Fernanda Conforto gasta duas horas no trajeto de sua casa, na periferia da zona leste, até a Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/ USP), no Butantã, onde trabalha e estuda. Isabel Pereira sai de sua casa, em Suzano, às seis da manhã para chegar três horas depois nas residências em que trabalha, na zona leste de São Paulo; durante o percurso, a faxineira precisa pegar dois ônibus e um trem. Dalva Carolina prefere sair duas horas depois do escritório de advocacia onde trabalha, no centro da cidade, para não enfrentar as infindáveis filas de carros no horário do rush. Segundo um estudo realizado pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), os paulistanos ficam, em média, 31% do tempo do trajeto parados em congestionamentos ou semáforos no horário de pico do trânsito. Desde o final do século passado, com o Plano Urbanístico Básico (PUB), a cidade realiza metas que vivem apenas nos papéis da Prefeitura. Segundo Luiz Carlos Costa, professor aposentado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP), as vias expressas do PUB, que cortavam radicalmente São Paulo, por exemplo, não obtiveram verba suficiente para a construção e “só ficaram conhecidas pelo seu apelido divertido de Vias Impressas do PUB”.

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Foi prioritariamente devido à imobilidade urbana vivenciada pelos paulistanos todos os dias que, no mês de junho deste ano, mais de 120 mil cidadãos foram às ruas a fim de exigirem melhores condições de transporte. Graças à onda de descontentamento e protestos, medidas como a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos transportes e a organização de um novo Plano Diretor Estratégico começam a sair do papel. Para quem, como Fernanda, Isabel e Dalva, encara o caos do trânsito paulistano diariamente, a rotina é complicada. “O trânsito chega a ser mais cansativo do que o trabalho”, resume a estudante Fernanda.

Direito de ir e vir Segundo Jorge Bassani, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), há menos de 200 pessoas em um hectare de terra na cidade. Alguns bairros têm menos de 100. “A princípio, tal dado parece ser positivo, porém, São Paulo possui 20 milhões de habitantes e esses números se refletem na distância entre o cidadão e o centro.” Bassani aponta para o fato de ser preciso levar infraestrutura para a população que mora longe, afinal, “não é criando mil possibilidades de se locomover de lá [periferia] para cá [centro] que se melhora a mobilidade. É levando empregos para a periferia e trazendo pessoas para morarem no centro também”. Atualmente, São Paulo remedia as deficiências da mobilidade adotando o metrô

como principal forma de transporte público. Mesmo com apenas 39 anos de existência e 74,2 quilômetros de extensão – pouco, quando comparada com metrópoles como Nova Iorque e Paris – a malha metroviária de São Paulo é responsável pelo transporte diário de um terço da população, bem como 17% do transporte público municipal da cidade. São 9 mil funcionários, somando de faxineiros a operadores de trem, para 4,5 milhões de usuários. O Brasil começa a expandir o sistema metroviário no momento em que os países europeus estão abandonando essa alternativa, devido à alta despesa. “Mobilidade não é fazer metrô – até porque ele não resolverá sozinho –, e sim ter vários modos de as pessoas circularem pela metrópole; é incentivar as pessoas a irem a pé e a usarem trem”, afirma Jorge Bassani. A jornalista e criadora do projeto Cidades para Pessoas, Natália Garcia, considera que “a boa cidade não é a que tem mais avenidas, mas a que tem mais opções”. O projeto de Natália consiste numa rede de conteúdo e conexões urbanas que tem a missão de gerar repertório sobre como melhorar a mobilidade com o trabalho conjunto entre a iniciativa privada, o poder público e a sociedade civil. A jornalista percorreu 12 cidades do mundo junto à artista plástica Juliana Russo em busca de ideias que tenham melhorado a situação de tráfego de seus habitantes. Natália exemplifica: “No Brasil, gastase dez vezes mais com infraestrutura para carros do que para transporte público. Além


disso, cada carro carrega em média 1,6 pessoas”. Uma solução citada pela jornalista está sendo aplicada em Sorocaba e já foi implantada em Londres: o uso das faixas exclusivas para ônibus que são compartilhadas com ciclistas. No caso de Londres, a iniciativa diminuiu o predomínio do espaço do carro e reequilibrou as opções da cidade. São Paulo tem 17 mil quilômetros de ruas e avenidas, mas somente 150 quilômetros de corredores de ônibus. “É uma divisão muito desigual”, contesta Natália.

Público x Privado A responsabilidade de construção de novas vias para desafogar esse quadro caótico de mobilidade é constantemente transferida do poder público para o capital privado. Esta mudança no quadro de obras tem como consequência a ampliação de tráfego onde se concentram as empresas e o esquecimento de regiões imóveis no desenho da cidade. “A preocupação do capital privado é fazer o investimento, dar lucro e gerar emprego. Quem é o organismo que vai cuidar para que os interesses do dinheiro e da sociedade não fiquem tão desiguais é o poder público, através de instrumentos legais”, explica Bassani. No caso de São Paulo, os investimentos divididos entre capital público e privado resultam num processo de expansão extremamente heterogêneo, com um grande número de construções em áreas irregulares. Para Natália, a relação entre o público e o privado na sociedade urbana vai muito

além do setor imobiliário. Essa interação do homem com as ruas engloba, na perspectiva privada, a criação de diversos projetos que incentivam um olhar novo sobre o cotidiano do universo metropolitano. Um forte exemplo disso é o movimento BikeSampa, que possui incentivo do capital privado. “O BikeSampa importa um modelo europeu de troca de financiamentos de rede de bicicletas por publicidade em espaços públicos. No Brasil, o Banco Itaú comprou todos, mas outras empresas pretendem adaptar a ação”, diz Natália, que se preocupa com a continuidade e a ampliação do projeto. “Você começa uma ideia genial e a estraga. Deve-se gerir sistemas que conversem entre si. As empresas não podem transformar o projeto de acordo com interesses publicitários.” A jornalista compara a eficiência das obras públicas com as funções dos softwares e dos hardwares: assim como os hardwares de computadores, as obras são arquitetura física, mas elas poderiam ser planejadas para que suas funções como software, focadas no cargo operacional, fossem expandidas. O hardware é apenas a estrutura e o software é o uso dessas estruturas. “A ponte Estaiada, por exemplo, é como se fosse um hardware com um só software: carros rodando. Não tem outras possibilidades de uso”, explica Natália.

Um novo plano Com o intuito de diagnosticar e reparar os problemas de mobilidade e planejamento da cidade, a Prefeitura de São Paulo desenvol-

veu neste ano uma nova alternativa para o Plano Diretor Estratégico (PDE), a partir de uma análise científica da realidade do espaço urbano. É função do PDE prevista em lei a inclusão social e territorial, bem como a concretização do direito à cidade por todos os cidadãos, ou seja, a garantia de acesso aos “benefícios e comodidades da via urbana” (Artigo 6º da Lei encaminhada para a Câmara em 26 de setembro). O novo plano tem, entre seus objetivos, a implementação de um grande número de corredores de ônibus e a integração das linhas ferroviárias num sistema mais próximo à capacidade do metrô. Para a jornalista Natália Garcia, os corredores de ônibus constituem “a melhor solução para o transporte público em São Paulo hoje”. Por outro lado, Luiz Carlos Costa, ressalta que a medida adotada não atinge a capacidade quantitativa considerada por ele fundamental para atender a demanda de transportes. Segundo o professor, desde o primeiro plano diretor, idealizado em 1971, “ficou notório que, por mais que se queira atender às necessidades reais da população, esse atendimento nunca seria satisfatório dentro deste modelo de governo, porque a cidade é orientada pelas forças econômicas de mercado”. Ele ainda conclui: “O PDE é um fator de esperança, mas isso é uma visão dos que têm a ingênua ideia de que as coisas podem mudar apenas com um plano, pois ele ainda representa uma ameaça aos interesses estabelecidos pelo mercado”.

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SAÚDE

QUEM TEM

MEDO DA RUA? A influência do espaço público nas causas e nos sintomas de disfunções mentais como síndrome do pânico e depressão REPORTAGEM GIOVANA CASTRO, Jordana langella, nathalia ruiz (1o ano de Jornalismo), KETLYN DE ARAÚJO e NATHÁLIA GIORDANO (2o ano de Jornalismo) IMAGEM JUAN GUTIERRES (3º ano de Rádio e TV)

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chapéu

Faculdade, academia, manicure, barzinho, balada. Uma universitária comum, de classe média, na faixa etária de 18 anos, costuma frequentar esses e vários outros locais sem preocupação. Para Letícia Pacheco, esses também eram passeios comuns, até que um dia, no meio da noite: “Acordei com falta de ar. Parecia que alguém estava me sufocando, me apertando. Meu coração ficou muito acelerado, parecia um ataque cardíaco. Fiquei assustada e pedi para que me levassem ao prontosocorro, porque isso nunca tinha acontecido comigo. Quando o enfermeiro chegou, viu que meus batimentos estavam a 120, e chamou o médico. O doutor virou para mim e falou: bem-vinda à síndrome do pânico”. O transtorno não tem causa certa para acontecer, e as consequências são das mais variadas. No caso de Letícia, a rua se tornou motivo de medo. “Eu não gosto de sair na rua sozinha, nem para locais típicos da rotina, como farmácias e mercados. Não utilizo transporte público. Baladas, nem pensar!”. Em lugares próximos, possíveis de se ir a pé, ela sempre está acompanhada. E naqueles mais distantes, pega carona com o pai. A empresária Claudinete Camilo, de 40 anos, também já sofreu do mesmo transtorno na adolescência, dos 12 aos 18 anos. Ela não conseguia ficar perto de muitas pessoas, mas não tinha ideia de qual era o seu problema. A multidão lhe causava desespero e sua própria casa era um ambiente desconfortável, fazendo com que Claudinete chegasse a cogitar o suicídio.

Desenvolvimento Segundo a psiquiatra Laura Helena Andrade, especialista na influência das ruas em doenças mentais e professora do Departamento e Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), a síndrome do pânico é feita de crises paroxísticas – que começam e terminam – sem motivo aparente. “De repente, a pessoa tem sintomas como taquicardia, sudorese (transpiração em excesso), sensação de morte iminente, tremor, falta de ar, tontura.” No caso de Claudinete, havia diferentes sintomas a cada dia, como dores de garganta e barriga, mas os médicos negavam a existência de doenças. Os sintomas físicos são acompanhados por medo, que, de acordo com Laura Helena Andrade, pode ser caracterizado como uma sensação de perda de controle, loucura, ou

de que algo grave atingirá o paciente. Letícia Pacheco, por exemplo, chegou a trancar aulas teóricas de direção devido à impressão de que os alunos iriam sufocá-la na sala de aula.

O Tratamento É imprescindível que o paciente enfrente a doença com o auxílio de um especialista para que, segundo a psiquiatra Laura Helena, “ele não produza o medo pelo medo, chamado de retroalimentação”. No caso de Letícia, o sentimento de confiança e de segurança são trabalhados em seu tratamento junto a técnicas de respiração, que ajudam-na no momento em que uma crise ameaça vir. O cuidado por meio de remédios é pesado: Cetralina (antidepressivo) e Rivotril (tarja preta) foram recomendados, mas as doses diminuem conforme o tratamento, que é a longo prazo. Ainda hoje, a estudante teme que algo lhe aconteça ao sair na rua: “Eu já me assustei só por um carro ter passado ao meu lado. Achei que me puxariam para dentro dele e abusariam de mim”. A empresária Claudinete só procurou ajuda após um ano de sintomas frequentes. Apesar de ter buscado opiniões de especialistas e usado vários tipos de medicamentos, sua melhora só foi possível graças à ajuda familiar. A tia de Claudinete era a pessoa que mais a confortava, fazendo com que ela se desligasse do problema por um tempo. "Tinha uma frase que minha tia sempre falava: quando você ficar mal, Deus é a força e o

poder, com a força de Deus você há de vencer. É uma fuga, né?”, admite. Após ter se livrado da síndrome do pânico, a empresária não teve mais recaídas, nem a necessidade de procurar médicos. Porém, ainda sente receio de ficar em lugares fechados, como elevadores, e também não gosta de ouvir os noticiários.

perigo urbano Laura Helena Andrade afirma que o ambiente urbano contribui para o desenvolvimento dos transtornos ansiosos, pois alguns fatores como a violência e o estresse diário em grandes cidades, como São Paulo, tendem a levar ao isolamento. A pesquisa feita pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e coordenada pela psiquiatra evidencia essa afirmação: conforme os dados coletados, cerca de 29,6% da população paulistana possui algum tipo de distúrbio mental. Outro fator que pode influenciar o pavor pelas ruas é a grande mídia, seja pelos noticiários ou pelas novelas : “Uma coisa que eu não posso assistir é jornal. Só de ver o último caso de assassinato que ocorreu, já fico incomodada. Nem novela eu gosto de acompanhar, porque, mesmo que seja ficção, eu me coloco no papel das personagens”, diz Letícia. Claudinete comenta sobre o medo que sentia ao sair de casa, mesmo acompanhada por alguém: "Eu não podia ficar perto de ninguém, não conseguia ficar inserida na multidão. Tinha medo das pessoas, de que alguém me afetasse com as palavras".

Diferenciando OS TRANSTORNOS

TR

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Síndrome do Pânico: se caracteriza por crises temporárias e totalmente inesperadas de medo e desespero Agorafobia: se dá pelo medo de sair sozinho ou estar em lugares lotados, mesmo quando abertos Fobia Social: está relacionada ao medo de se expor por vergonha

o storn s de hum

or

Depressão: pode ser provocada por uma disfunção bioquímica do cérebro, bem como fatores genéticos e outros que funcionam como “gatilho” para o problema, como traumas na infância, estresse físico e psicológico ou consumo de drogas Bipolaridade: embora cause episódios de euforia, agitação e alto nível de energia, possui uma fase depressiva que acarreta em temor por sair de casa Distimia: tipo de depressão crônica de menor intensidade

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GASTRONOMIA

RANGO NA CALÇADA A comida de rua saiu da sarjeta para ocupar seu devido lugar na pauta dos vereadores e na agenda dos paulistanos REPORTAGEM Beatriz coppi (2º ano de Jornalismo), Gustavo jazra, paola perroti (3º ano de Jornalismo) e bianca chAer (4º ano de Jornalismo)

extinta na cidade. Felizmente, ela não desapareceu, e atualmente briga na Câmara Municipal por melhores condições de existência e legalidade. Em maio deste ano, o vereador Andrea Matarazzo (PSDB) protocolou o projeto de lei Nº 311/2013, que regulamenta a venda de alimentos em vias públicas e que foi aprovado em primeira votação, no começo de setembro. Chefs como Checho Gonzales e Daniela Narciso compraram esta briga, e desde 2012 realizam eventos para movimentar este mer-

divulgação/o mercado

Conhecida MUNDIalmente por ser uma capital gastronômica, a cidade de São Paulo tem uma antiga tradição de comida de rua, que se inicia no tabuleiro de doces carregado sobre as cabeças dos vendedores, passa pelos sanduíches de pernil servidos na porta dos estádios e se estende aos pastéis vendidos diariamente na feira. Após passar por uma espécie de inquisição durante a gestão do ex-prefeito Gilberto Kassab, a tradicional comida de rua parecia

O Mercado oferece a gastronomia de chefs renomados fora dos restaurantes

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cado e incluir a comida de rua no dia-a-dia dos moradores da capital. “A nossa vida continua sendo dificultada até hoje em função da morosidade do sistema, que é muito burocrático. Para tirar um alvará, por exemplo, leva um mês. Nós esperamos que, com a mudança na legislação, a comida de rua ganhe mais adeptos e se fortaleça”, garante Checho.

NAS calçadaS Em abril de 2012, chefs consagrados largaram os fogões industriais e foram cozinhar em barraquinhas para um público muito mais vasto e diverso do que o que estavam acostumados a receber em seus restaurantes. O primeiro evento do gênero em São Paulo foi O Mercado, que, tanto por seu ineditismo quanto por sua proposta saborosa, atraiu mais de três mil pessoas ao Sal Gastronomia, espaço que abrigou a feira, em Higienópolis. Mal se passou um mês e, durante a 8ª edição da Virada Cultural de São Paulo, outra leva de chefs tarimbados como Alex Atala (D.O.M), Erick Jacquin (La Brasserie), Rodrigo Oliveira (Mocotó) e Raphael Despirite (Marcel) ocuparam o Viaduto Presidente Costa e Silva, na zona Oeste de São Paulo, como parte de outro evento, o Chefs na Rua. Entre galinhada, steak tartar e ceviche, o Minhocão recebeu cerca de 220 mil pessoas durante todo o dia, segundo dados da CET. Tamanho foi o sucesso da iniciativa da chef Daniela Narciso e do produtor cultural Maurício Schuartz, que o evento ganhou novas edições. De lá para cá, o Vale do Anhangabaú presenciou a celebração da culinária nordes-


renato leite ribeiro

“Massinha” conseguiu se adaptar às leis e encontrar um espaço para sua kombi de comida italiana

tina, a Praça Ramos de Azevedo comemorou como nunca o aniversário de 459 anos de São Paulo e a 9ª edição da Virada Cultural também contou com a participação do Chefs na Rua, mais precisamente na avenida São Luís. Com uma proposta similar, Daniela e Maurício fixaram na agenda semanal da cidade a Feirinha Gastronômica. Os organizadores definem o evento como “um espaço aberto para o encontro entre os amantes da boa gastronomia e os apaixonados por panelas e fogão”. A feira reúne uma vez por semana barracas de chefs, donas de casa, banqueteiras e entusiastas da cozinha, para expor seus produtos ao público ávido por boa comida a um preço justo. Após se estabelecer na Vila Madalena por cerca de quatro meses, o evento ganhou mais espaço, e agora acontece aos domingos, no Espaço Qualquer Coisa, em Pinheiros. Quem visitou garante que a experiência é válida: Débora Mayumi, de 27 anos, esteve no espaço da rua Girassol em junho. “Normalmente eventos desse tipo não suprem minha expectativa, mas a variedade das comidas e o atendimento me surpreenderam, gostei bastante. É meio universo gourmet, meio xepa de feira”, brinca. Felipe Germano, de 20 anos, ainda não foi conferir a Feirinha, mas diz que adora a feira da Liberdade – não apenas pela boa comida, “mas também pelo preço baixo”. Aos domingos, as ruas da Liberdade são cobertas por barraquinhas que vendem pratos tradicionais como yakissoba e tempurá, além de alguns quitutes inéditos como o doce de fei-

jão e o bolinho de polvo. “O guioza deles é do tamanho da minha mão fechada e custa três reais!”, conta Felipe. O responsável pelo prato é Frank Nakamura, que trabalha na feira desde que nasceu. A barraca, uma das primeiras da feira, foi herdada da mãe, junto com a receita do guioza. “Para conseguir vender o guioza naquela época, minha mãe costumava dar o quitute de graça para as pessoas comerem. Ela chegava a dar até dois para a pessoa experimentar, para poder vender um”, relembra ele. Frank e os irmãos não entendiam muito bem o que a mãe estava fazendo. Ela explicava: “Eu vou primeiro ensinar o brasileiro a comer. Depois que ele aprender a comer, ele vai vir sem eu pedir”. E ela acertou em cheio.

fora da lei Eventos como Chefs de Rua e Feirinha Gastronômica acabaram levantando uma questão importante para a venda de comida na rua: a (falta de) legislação para regulamentar essa atividade. Atualmente, no espaço público, só é permitida a venda de cachorro-quente em veículos motorizados. Pastel e caldo de cana, só em feira livre. Todo o resto – tapioca, acarajé, yakissoba, pipoca e milho-verde – não é regularizado. Em 2012, a gestão de Kassab causou rebuliço na cidade com a forte fiscalização da comida de rua, tentando, inclusive, acabar com o famoso “sopão” que muitas ONGs promovem durante o inverno para os sem-teto da capital. A justificativa da Secretaria Municipal de Segurança Urbana era a de “coibir a

distribuição insalubre dos alimentos”. Além disso, diversos vendedores tiveram seus carrinhos e alimentos apreendidos pela Guarda Civil Metropolitana. Dona Ivanir é proprietária da Kombi mais famosa da Vila Madalena, apelidada de Vanidog, também conhecida como “dog dos sonhos”. Seu negócio foi um dos poucos que permaneceu no mesmo local após a passagem de Kassab pela Prefeitura de São Paulo. “Ele [Gilberto Kassab] foi eleito bem na época que eu tinha feito o pedido do alvará. O próprio chefe de apreensão me orientou. Ele falou: ‘Ivanir, você vai rápido tirar esses documentos, porque o prefeito mandou tirar todos os dogueiros da rua’”. Mesmo assim, tem quem encontre brechas na lei. É o caso de Rolando Vannuci, o “Massinha”, que vende comida italiana em uma kombi estacionada na avenida Sumaré desde 2007. “Me arrisquei durante quase um ano, até que fui sabendo de leis e situações ao meu favor. Advogados vinham, jantavam e perguntavam sobre minha regularização, até que me disseram que comprariam essa briga sem me cobrar nada”, conta Rolando. Todos os dias, o vendedor para sua “cantina ambulante” no estacionamento de uma loja de lingerie – um local privado e que, portanto, não é irregular. Depende apenas de um comum acordo entre o chef e a dona do local. Rolando já encontrou sua forma de existência legal nas ruas, resta agora que os novos projetos que regulamentam a comida de rua continuem ajudando quem cozinha de pé no asfalto.

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ALI NA ESQUINA TEXTO francielen mariotto, heloisa aun, laísa dall’agnol, LÍGIA NEVES e rúbia souSa (1º ano de Jornalismo) IMAGENS heloIsa aun (1º ano de Jornalismo)

a praça é

A revitalização da Praça valorizou os estabelecimentos ao seu redor

nossa Palco partilhado entre várias tribos, a Praça Roosevelt é símbolo da diversidade cultural e do convívio no espaço público

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Devido ao fácil acesso e à reocupação, a Roosevelt tornou-se um ponto de encontro Já quase no centro de São Paulo encontra-se um local que simboliza a identidade paulistana. Descendo a rua Augusta, paralela à Consolação, chega-se à Praça Roosevelt, conhecida por sua agitação diária e por ser um espaço destinado aos que procuram uma diversão à paulistana. A Roosevelt não é como todas as outras praças: rodeada por postes de iluminação, bem como restaurantes, bares, lojas, teatros e prédios residenciais, ela chama atenção por sua arquitetura irreverente, constituída por muito concreto e poucas árvores. Dona de um passado tenebroso, marcado por tráfico de drogas, prostituição e violência, a Praça Roosevelt foi capaz de consolidar-se como um local coletivo, cheio de confluências e ofertas culturais, por meio de uma série de iniciativas de revitalização e reocupação. Marcas do passado A Praça Franklin Roosevelt foi nomeada em homenagem ao ex-presidente estadunidense nos anos 50, mas, até então, era conhecida como Praça da Consolação. Atualmente, ela é formada por uma gama variada de grupos sociais, que dividem e convivem no espaço urbano. No entanto, desde a sua inauguração, em 1970, o local sofreu frequentes mudanças e tornou-se o ponto de referência de inúmeros acontecimentos de São Paulo. “Nos tempos de faculdade, lá por 75, 77, eu frequentava muito os arredores da Praça com a minha turma. Tínhamos uns amigos atores e, depois das peças, ficávamos batendo papo e bebendo. À praça em si nós não íamos, pois o espaço não era muito bom”, conta José Maurício Vieira, professor de História. Até o início da década de 80, o entorno da Roosevelt era um local agitado da noite paulistana. Diversos bares, restaurantes, cinemas e boates reuniam os muitos frequentadores, que representavam a efervescência cultural daquela época. Em meados de 1990, a decadência tomou conta da Praça Roosevelt. Sem iluminação e praticamente abandonada – tanto pelos habitantes quanto pelo poder público –, a Praça foi tomada pelo tráfico de drogas e tornou-se local de assaltos e outros episódios de violência. A chegada das companhias teatrais, como Os Satyros, em 2000, e Os Parlapatões, em 2006, modificou a relação da população com o local. Pouco a pouco, tal interação com a cultura transformou o cenário urbano, induzindo mais e mais pessoas a ocuparem novamente a Roosevelt. O diálogo entre a cultura e a sociedade inseriu novamente uma vitalidade ao local, que se revelou um dos espaços de maior convívio social da cidade. Hoje em dia Segundo Vera Maria Pallamin, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU - USP), “as transformações da Praça Roosevelt foram múltiplas e contraditórias, divididas em práticas associadas ao lazer e à cultura. Há também as econômicas,

que se referem ao papel da Praça como um equipamento público, como a revalorização do comércio e do metro quadrado construído nas proximidades”. A ampliação e modernização da área central, no final de 2012, contou com a instalação de pistas aplainadas, que melhoraram as condições para novos frequentadores da Praça, como jovens com seus skates, patins e bicicletas a moradores do bairro que buscam um local para passear com seus cachorros. Há ainda, na lateral da Praça, no acesso à rua Odila Maia Rocha Brito, um parquinho para crianças, onde se encontram famílias reunidas fazendo piqueniques e grupos de amigos. “Antes da reforma, era tudo largado, o chão era todo esburacado. Não dava nem para passar à noite, por causa da falta de policiamento. Agora, [a Praça] virou ponto de encontro. A galera vem aqui, se reúne, e depois vai para a Augusta, para a Paulista”, diz o estudante Sílvio Mariano, de 24 anos. “O bom daqui é o acesso fácil. Eu moro em Itaquera e costumava andar de skate lá perto, na Radial. Mas aqui é muito melhor. Basta um metrô ou ônibus para chegar”, acrescenta Jefferson, de 24 anos. Durante a noite, o universo da Roosevelt é outro. A boemia pela qual a Praça é famosa se faz notória. Os bares da rua lateral abrem e as pessoas começam a chegar. Lá pelas onze horas, os teatros borbulham e as pessoas se dirigem às calçadas, conversando e bebendo. Em plena terça-feira, o movimento é o mesmo de um sábado à noite. Praceando Os skatistas são um dos grupos que mais se destacam na Praça. De acordo com um policial militar que preferiu não ser identificado, “algumas pessoas reclamam do barulho dos skatistas e do grande movimento que há em dias de eventos”. As reclamações em torno da tribo se estendem: vários moradores e frequentadores da Praça Roosevelt alegam que a quantidade skatistas em determinadas ocasiões atrapalha a circulação. Porém, o skatista Igor Sarmento discorda: “Moro ao lado da Praça desde que nasci. Conheço todos por aqui e acredito que não somos um problema”. O ator William Barros, concorda: “É normal que existam desentendimentos quando há um grande número de pessoas, principalmente de diferentes tribos e pensamentos num mesmo espaço, mas acredito que sabendo respeitar o outro, conflitos podem ser evitados”. A convivência entre diversos grupos fica nítida a partir dos movimentos que se utilizam da Praça Roosevelt como um espaço de apropriação e articulação política. A reinauguração da Praça, em 2012, ocorreu com o movimento Existe Amor em SP, levando milhares de pessoas ao espaço público. Foram debatidas questões como a campanha eleitoral e os investimentos de cultura em São Paulo. Movimentos, tribos, coletivos e grupos teatrais se apropriam da Praça e fazem dela o que ela deve ser: um verdadeiro palco cultural.

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QUADRINHOS POR ANDRÉ SILVA (4º ano de Jornalismo)

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QUADRINHOS POR heloísa d’angelo (1º ano de Jornalismo)

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CRÔNICA TEXTO Tiago mota (4º ano de Jornalismo) IMAGEM Nathalie Provoste (2º ano de Jornalismo)

Espaços e não-espaços da revolta Eu estive lá? Caminhei pelas avenidas no sul de São Paulo, começando pelo Largo da Batata, na noite do dia 17 de junho, junto de outras 65 mil pessoas, isso só na capital paulista. Eu gritei, cantei, corri e ainda terminei a noite num bar, na Santa Cecília, tomando uma cerveja e vendo pela TV a repercussão daquelas horas alvoroçadas. A gente vive a juventude esperando por aquele momento que valerá um “eu estive lá”, que só vai ser dito muitos anos mais tarde, na velhice, em uma cadeira de balanço. Eu poderia dizer que estive lá. Provavelmente vou acabar dizendo. Mas, em alguns momentos, era como se não estivesse. Para todo lugar que olhava, havia uma tela brilhante. Pessoas tiravam fotos, faziam vídeos, twitavam e checavam as notícias sobre tudo que ocorria. Essas telas são portais para um universo expandido de compreensão. Portais pelos quais eu não passei. Tenho um celular de menos de cem reais. Não tem câmera, não tem touch screen, e nem pense que eu acesso internet por meio daquele troço. No dia seguinte, ninguém quis comentar comigo sobre manifestações. Ninguém quis saber o que vi, o que senti. Não por rudeza, imagine. Mas, muito embora tenha pisado naquele chão, eu não deixei nem um só rastro ou pegada digital durante aquela noite. Como se minha existência não tivesse sido plena. Não postei no Facebook ou no Twitter, não dei upload de nada, não troquei whatsapps com os colegas. Só eu sabia que, de fato, estive lá. Não. Este não é um texto do tipo “naquele tempo era melhor...”, saudoso por uma época sem telinhas brilhantes. Pelo contrário, fico fascinado. Acho um espetáculo. E o astro dessa performance não é tanto a tecnologia em si, mas a apropriação simbólica dela feita por nós, corpos sócio-culturais. Essa existência, calcada em “ambientes” digitais, parece ser uma tremenda de uma abstração. Lá, os lugares e os objetos se tornam algoritmos. Não se sente, toca ou cheira os números. Precisamos sair dos “espaços” de mediação e das abstrações para voltarmos às praças, às ruas, à convivência física. O tcheco Vilém Flusser, em seu O universo das imagens técnicas: elogio

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da superficialidade, fala em nulodimensões: no digital, não haveria o espaço da comunicação. Um “ambiente” sem dimensões, em que a subtração dos sentidos encontra seu ápice. Esse “não-espaço” é o das tecno-imagens, feitas por aparelhos e em pontos, grânulos, pixels e números. Nele estamos cada vez mais inseridos. Nele também nos tornamos abstrações, grânulos. No mundo das não-coisas, nos movimentamos por aí como o vento. Rastros de nós mesmos por ali e por acolá. Somos tão inseridos nessas telas que a experiência plena de se estar na rua durante as manifestações de junho só foi completa para quem tinha um smartphone. Mas acalme-se. Como disse, este não é um texto pessimista. Ao mesmo passo em que o digital nos abstrai, o modo como temos nos apropriado desses portais também ilumina facetas formidáveis da nossa cultura. Olhem para o que ocorreu no Brasil. Ou para o Egito, ou para a Turquia. A revolta começou ali, no nulodimensional. Mas, no desenvolver da história, 65 mil pessoas foram às ruas da maior cidade da América Latina. Com esses aparelhos em nossas mãos, geramos conteúdos simbólicos poderosos que continuam a desafiar os procedimentos da nossa sociedade. Estamos no Facebook, sim, mas também estamos nas praças. O espaço e o não-espaço coexistem. O desafio do pensador é compreender essa complexa dinâmica. Porque talvez não sejamos sempre “funcionários” dos aparelhos – emprestando mais um termo de Flusser. Talvez seja esta a ecologia da comunicação que emerge das apropriações que fazemos de todos esses gadgets e bugigangas. Eu continuo sem meu smartphone. No fim daquela noite, naquele bar, estive bem acompanhado de alguns amigos que os têm. Eles twitaram, tiraram fotos, fizeram vídeos. Mas também nos sentamos todos em torno da mesa de metal, tomamos a mais gelada cerveja de nossas vidas. Brindamos e rimos. Tivemos aquela sensação de poder mudar o mundo. Somos corpos, acima de tudo, e corpos que tomam cerveja. Eu estive lá. Todos nós estivemos lá.



chapéu

“Escolho às vezes um objetivo para minhas caminhadas. Sigo por uma rua cujo nome me seduziu, que me indicaram para a minha coleção de ruas particulares, meu álbum de ruas. Uma rua abstrata, carregada de signos. Uma rua acariciada por árvores, com pássaros retráteis. Uma rua inverossímil, serena, crápula. Examino o desenho das calçadas, suas fraturas; conto vasos de flores, lavanderias, janelas.” Jacques Roubaud

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