Revista esquinas #60

Page 1

REVISTA-LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA FACULDADE CÁSPER LÍBERO #60 - 2º SEMESTRE DE 2016

SEM CASA, SEM METRÔ

Obras paralisadas da linha 6-Laranja provocam desapropriações na Brasilândia

SAÚDE A luta pela Reforma Psiquiátrica FOTORREPORTAGEM Tradição maranhense da Festa do Boi COTIDIANO Terra e ancestralidade nos quilombos ESPECIAL HOLANDA Acolhimento de refugiados e a vida em casas-barcos LGBT Homossexualidade no Marrocos QUADRINHOS Quando uma jovem de classe média escolhe abortar


䄀 䘀刀䔀儀唀쨀一䌀䤀䄀 䐀䄀

攀渀琀爀攀瘀椀猀琀愀猀   爀攀瀀漀爀琀愀最攀渀猀   攀猀瀀漀爀琀攀   愀挀攀猀猀椀戀椀氀椀搀愀搀攀

最愀稀攀琀愀愀洀⸀挀漀洀


EDITORIAL D

ados objetivos, vozes diversas de quem vivencia ou pesquisa a temática, observação apurada de repórter, que checa cada informação e tece a aventura da reportagem. Este foi o exercício encarado por 44 estudantes de jornalismo que participaram desta edição da Esquinas. Orquestrados pelos monitores Felipe Sakamoto, Guilherme Guerra e Paula Calçade, superaram as expectativas que eles mesmos tinham quando propuseram as pautas. O projeto da Linha-6 do metrô saiu do papel. Desapropriou diversas residências na região da Brasilândia. Demoliu as casas. E estagnou. O que resta para essas famílias são as memórias. Na reportagem de capa desta Esquinas, são narradas histórias desses moradores e os embates jurídicos para as indenizações. A memória também pode ser luta: a preservação da ancestralidade nas

Novos rumos reportagens nos quilombos do Vale do Ribeira é uma das reivindicações políticas que revelam tecnologias sociais e de plantio compartilhada entre suas gerações. Como as mulheres da comunidade quilombola Barriguda quebram o coco para extrair o babaçu e produzir óleo ou sabão, no Maranhão. De lá também vem o Bumba-meu-boi. A dança, os cantos e os adereços coloridos constituem a representação da morte do boi na tradicional Festa do Boi, que acontece há mais de 30 anos no Morro do Querosene, no bairro do Butantã, tema da fotorreportagem desta edição. No ano de Olímpiadas no Brasil, o investimento necessário para se tornar um atleta de alto nível é retratado pelas histórias dos boxeadores Patrick Lourenço e Taynna Taygma. A saúde e os direitos das mulheres são pautas em duas reportagens: “Nua e

Fundação Cásper Líbero PRESIDÊNCIA Paulo Camarda SUPERINTENDÊNCIA GERAL Sérgio Felipe dos Santos

Faculdade Cásper Líbero DIRETOR Carlos Costa VICE-DIRETOR Roberto Chiachiri Filho COORDENADORA DE JORNALISMO Helena Jacob

Esquinas EDITORA-CHEFE Bianca Santana EDITORES Felipe Sakamoto e Paula Calçade

REVISÃO Carolina Moraes e Gustavo Maschião

EDITOR DE ARTE Guilherme Guerra DIAGRAMAÇÃO Beatriz Fialho e Giulia Gamba

Crua”, sobre as atrizes no meio pornográfico, e “Maria Mudança”, HQ sobre o aborto de uma jovem de classe média. Trazemos também informações exclusivas da Holanda e do Marrocos. O jornalismo internacional que não se pauta pelas agências de notícias, mas suja os pés em diferentes territórios, tem sido praticado e incentivado na Faculdade Cásper Líbero. Sempre em conexão com nossas indagações locais, sem perder de vista o singular, traçando paralelos com temas universais. Neste semestre, o projeto gráfico da Esquinas mudou. O número de reportagens aumentou, assim como o aprendizado e a autonomia dos editores e repórteres. Esperamos aprofundar ainda mais experimentações nas próximas edições. Parabéns a cada estudante. E boa leitura! Por Bianca Santana, editora-chefe

PROJETO GRÁFICO Beatriz Fialho e Guilherme Guerra

PARTICIPARAM DESTA EDIÇÃO

Ana Carolina Pinheiro, Ana Clara Giovani, Bárbara Gomes, Beatriz Issler, Beatriz Moraes, Breno Zonta, Bruna Somma, Camille Carboni, Carol Cotes, Carolina Moraes, Catalina de Vera, Denise Kanda, Diego K. Carvalho, Enrico Weg Sera, Felipe Sakamoto, Gabriel Manzo, Gabriel Seixas, Giovanna Almeida, Helô D’Angelo, Juliana Avila, Juliana Gigliotti, Khaila Garcia, Larissa Bonfim, Letícia Furlan, Lívia Vitale, Lucas Sam, Luciana Lira, Lygia Ribeiro, Lyssa Miranda, Marcela Palhão, Marcela Schiavon, Mariana Gonzalez, Mariana Martucci, Marina Braga, Mayara Rozário, Natália

Koyama, Pedro Caramuru, Quezia Isaías, Rhaisa Trombini, Ugo Sartori, Vanessa Nagayoshi, Vanessa Victoria, Victória Franco, Yasmin Toledo

IMAGEM DE CAPA Ana Clara Giovani AGRADECIMENTO Arthur Ponzeto Núcleo Editorial de Revistas Avenida Paulista, 900 – 5º andar – 01310-940 – São Paulo – SP Tel.: (11) 3170-5874/5814 E-mail: revistaesquinas@gmail.com Site: casperlibero.edu.br/revistaesquinas

CC

BY

Você pode copiar, adaptar e distribuir os conteúdos desta revista, desde que atribua créditos – a menos que haja um © explicitado.


Nesta edição 06 Por outro ângulo Vinda da periferia, a fotógrafa Talita Virgínia retrata o cotidiano de seu pai policial

10 Adeus, Brasilândia Com obras paralisadas, o projeto da Linha 6-Laranja do Metrô desapropria famílias no distrito da Brasilândia

18 Rap nas ruas MCs disputam rimas em ruas e praças espalhadas pela cidade

20 Investindo no esporte A situação de dois boxeadores que precisam de patrocínio para alcançar as competições olímpicas

24 O poder da mente Conhecida por ser a religião dos astros de Hollywood, a Cientologia vem ganhando adeptos em São Paulo

26 A voz e o corpo da luta antimanicomial Pacientes são transferidos de manicômios para residências terapêuticas

32 Periferia clama poesia Fragmentos de um sarau organizado por estudantes de escolas estaduais da periferia de São Paulo

33 Projetos urbanos Por meio de iniciativas em seus bairros, cidadãos melhoram sua relação com a cidade

34 O popular da turma A expansão do mercado da cultura nerd segundo os próprios aficionados

35 Entre cachos e inscritos

Perfil da youtuber Kamila Tchara, que ajuda mulheres a assumirem seus cachos

36 Festa do Boi

Fotorreportagem sobre a tradicional festa maranhense do Morro do Querosene, no bairro do Butantã

4

Revista Esquinas


44 A cor do mangue Ancestralidade, conflitos agrários e cooperativismo em comunidades quilombolas no Vale do Ribeira e no Maranhão

50 O jogo da publicação Desafios enfrentados por jovens escritores na publicação de um livro no Brasil

52 Nua e crua

A saúde das mulheres na indústria pornográfica

54 Novos sentidos Perfil do jornalista Rodrigo Lombardi, que abriu o sebo Desculpe a Poeira

57 Ouro digital Conheça o bitcoin: uma moeda eletrônica que dribla os impostos

58 Estrangeiras encarceradas Reportagem sobre mulheres presas fora de seu país de origem

63 Primeira infância O trabalho da ex-primeira-dama Ana Estela Haddad para garantir os direitos básicos de crianças

64 Pelo direito de ser Gays do Marrocos contam como é viver em um país onde a homossexualidade é crime

65 Especial Holanda Série de três reportagens: as casas-barcos nos canais de Amsterdã, a cafeteria que abriga refugiados e as tulipas do jardim Keukenhof

68 Maria Mudança Reportagem em quadrinhos mostra a experiência de uma jovem ao abortar

70 Entre o gozo e o gatilho Descrição densa de um bloco de notas e a reflexão sobre o ato de escrever

SEÇÕES 03 EDITORIAL 06 ENTREVISTA 22 CAPA 34 FOTORREPORTAGEM 70 PROSA Sumário

5


ENTREVISTA

Por outro ângulo

Talita Virgínia narra em seu trabalho fotográfico a dualidade de ter um pai policial e morar na periferia

Texto por Denise Kanda e Mayara Rozário Fotografia por Denise Kanda

C

huvisca brandamente em Pinheiros, bairro da Zona Oeste de São Paulo, em uma segunda-feira fria e cinzenta, onde encontramos a fotógrafa Talita Virginia, de 24 anos, em um café ao lado do Instituto Chão. O local pequeno e acolhedor possui paredes inteiramente enfeitadas, um tapete com a figura de Frida Kahlo dando boas-vindas aos clientes, além de uma playlist dos anos 80 que torna o ambiente descontraído e jovial, assim como a fotógrafa. Vestida com um casaco de lã creme que ressalta o verde musgo do cachecol e o castanho de seus olhos, Talita conta à Esquinas sobre projetos futuros, sua visão do cotidiano tão presente em seus trabalhos, como o Pai Po-

lícia, que deixou de ser o projeto de conclusão de curso que retrata a relação entre um pai que trabalhava como policial militar e sua filha para ganhar um novo formato. Para Talita o trabalho que está sendo transformado em um livro, deixará para trás o modo explícito que expunha os fatos, abrindo espaço para uma experiência cheia de interpretações e descobertas, que mexe com a percepção do leitor. A ideia de Talita é que esse novo formato possibilite uma experiência única para cada pessoa, em que ela possa descobrir, ou não, os jogos de imagens subentendidas pela autora. A fotógrafa também fala da conexão que mantém com os materiais que produz, afirmando que tudo o que cria tem muito do que pensa e do que é.

Pai Polícia também garante reflexões acerca de quem são esses homens na intimidade quando não estão fardados

© TALITA VIRGÍNIA

6

Revista Esquinas


DENISE KANDA

O que você descobriu do seu pai e sobre a PM nesse meio tempo? Antes, me fazia muito essa pergunta: “Como será que meu pai é na rua?”. Obviamente que nas primeiras vezes que o acompanhei, todos os policiais tratavam as pessoas formalmente. Só depois de algumas vezes que mudaram a postura. Em alguns momentos, eles falavam para eu permanecer onde estava e que eles já voltavam, sabia que eles iam dar um cacete em alguém. Eu obedecia, estava ali com eles, sob a guarda deles. Sabia o que ia acontecer, mas ficava pensando em uma saída de falar sobre o que eles estavam fazendo de uma forma que não fosse tão direta. Por isso foi caminhando para essa história focada numa criança, porque ela pode tanto representar a filha dele como a filha de alguém que sofreu alguma coisa por parte do policial. Então, o projeto tinha muito de que eles eram uns infelizes, explorados pelo governo, que ganham mal, que são mal treinados, uns fodidos que tinham que ficar de segurança em porta de Villa Country para conseguir mais grana, ao mesmo tempo em que eles, enquanto estavam ali exercendo o poder que tinham, também eram cruéis. Qual o seu trabalho mais marcante? Com certeza o Pai Polícia, porque foi meu primeiro trabalho e mexe muito com a minha intimidade e família. Esse projeto foi tão importante para mim que está virando um livro, muito diferente de quando foi criado. Olhá-lo em formato de livro e falar: “Nossa! Um desenho de um sapatinho roxo, que negócio é esse?” Já é uma experiência diferente do que você o ver quadro por quadro numa exposição, ou em um site. O barulho que a página faz é importante. O cheiro que a página tem é importante. Estou até vendo se consigo dar um cheiro de pólvora às páginas, porque eu quero que a experiência seja completa. Já que o livro é um objeto físico, você vai usar seu nariz, sua mão, seu olho, o ouvido no passar das páginas. Mas no final, todos os trabalhos acabam sendo um pouco marcantes, porque todos os temas que faço enquanto trabalho pessoal tem a ver com alguma coisa que vivi. Não vou buscar uma história, eu a percebo no meu entorno. O que o seu pai achou do projeto? Quando falei que queria fotografar, ir à ronda junto, ele falou: “Beleza. Vamo aí”. Depois da décima quinta vez, começou a dar desculpas para eu não ir. Mas, quando comecei a mostrar o meu trabalho e sair em algumas revistas e exposições, ele ficou super orgulhoso. Comprou todas as revistas Piauí – que não tinha para vender em Taboão da Serra, só em bancas daqui [centro de São Paulo] – e mostrou para os amigos. Sempre tive muito medo dele quando criança, tinha medo de vê-lo com aquela roupa preta. Era algo subentendido. Minha mãe era a intermediária para eu falar com ele ou pedir alguma coisa. E hoje, de vez em quando, dependendo do assunto, ainda disfarço e faço isso. Meu pai era mais bravo do que é hoje, porque sofria muita pressão. Atualmente, meu pai é super tranquilo, compreendeu isso e ficou orgulhoso porque começou a sair em revistas, o que para ele é uma coisa muito maluca. Você comentou que sentia muito medo da figura do seu pai fardado. Você acha que a sua irmã também teve esse mesmo medo ou cresceu mais próxima a ele? Nós temos quinze anos de diferença e, quando ela nasceu, meu pai não era tão assim, já estava a ponto de se aposentar. Quando eu ainda era pequena, a profissão o estressava e o afetava muito. Ele era muito mais nervoso com as coisas e com as pessoas. Então, com a minha irmã acho que meu pai conseguiu se expressar melhor, eles são bem próximos. Eu era a primeira filha, o cara tinha vinte anos, entendo também que é muito complexo lidar com esse tanto de coisa. Acho que para a minha irmã essa fase foi mais gostosa. Talvez tivesse medo, mas não tanto da figura, mas da profissão em si, que é perigosa. A minha irmã nunca teve isso de pedir as coisas por intermédio da minha mãe, ela mesma pedia.

Entrevista

7


De que modo a profissão do seu pai afetou a sua vida? Foi mais quando era pequena, meu pai trabalhava na rua ainda. Como ele atuava no bairro em que a gente morava, tinha muito medo. Em um episódio, acabou matando o chefe do tráfico do bairro e tivemos que sair de casa e da escola – eu e o meu irmão perdemos seis meses de aula. Quem só saía para a rua era o meu pai, que trazia comida e eu, minha mãe e meu irmão ficávamos com a minha tia para não permanecermos sozinhos em casa. Na minha infância teve umas coisas assim, meio traumáticas, mas acabamos nos acostumando. Depois, na minha adolescência, ele trabalhou só na rádio, então foi tranquilo. Na faculdade, foi a época em que meu pai voltou para rua, mas como me mudei para uma república na Lapa, perto do Senac, essas coisas passaram a não me afetar tanto, e, acho que é por isso que passei a usar a minha irmã, de cinco anos na época, como alter ego, porque ela pegou essa fase dele na rua, então teve também essas histórias de não poder falar a profissão do pai.

“ © TALITA VIRGÍNIA

Não me sinto pertencente onde meus pais estão e nem aqui (Pinheiros). Pequenas situações cotidianas mostram diariamente que você pode até estar com o pé aqui, mas sempre terá o pé lá” Talita Virgínia, fotógrafa

8

Revista Esquinas

E por depender desse status de classe, como você enxerga esse paradoxo em ter um policial atuando no seu bairro (na periferia) e morando na sua casa? Como seus amigos da escola viam isso? Bom, na escola nunca tive nenhum feedback porque ninguém sabia, eu não podia contar. Mas na faculdade, por exemplo, já cheguei sofrendo bulliyng bizarro das patricinhas, porque era ProUnista – jamais teria dinheiro para pagar a faculdade. Era a única menina lá que precisava vender bolo de chocolate para conseguir comprar papel fotográfico. Nesse sentido foi muito chato porque até então na escola não convivia com essas classes sociais. No início, a faculdade foi bem chata, pois foi o começo desse meu embate. Às vezes, chegava de papete e elas falavam “chegou a Jesus Cristo”, eram coisas desse tipo. Mas por outro lado foi bom, porque desde esse tempo tenho esse embate, e é um dos temas que eu estou trabalhando em outros projetos. A polícia é alvo de várias críticas no que se refere às suas abordagens na periferia. O que você enxerga de certo e errado nessas críticas? Primeiro acho certo haver crítica, pois acho que estamos nos questionando muito mais hoje, devido ao acesso à informação maior do que alguns anos atrás. E sei lá, acho que antes a corporação enquanto polícia podia fazer muito mais coisas sem que ninguém soubesse ou notasse. Mas hoje, você não pode sair e bater em qualquer um, pode ter alguém te filmando. Ainda assim falta muito essa visão de que os policiais estão ali para servir, não ao governo, ou às instituições privadas, mas à população, pois eles também fazem parte dela. São vítimas deles mesmos no final. Porque se nós fôssemos fazer um desenho do ciclo de quem eles espancam e a relação dessa pessoa ali no bairro, esse ciclo vai voltar para eles em algum momento. Falta um pouco dessa visão por parte de quem dá opinião, e falta diálogo, pois em vários países do mundo a polícia é vista como a quem você pode recorrer, aqui não. Depende muito do seu status social, onde você está e de que situação vive. A polícia não está aqui para proteger a população, mas sim por interesses que sabemos quais são.


© TALITA VIRGÍNIA

Qual foi o seu primeiro contato com a fotografia e como você vê o seu trabalho, de forma mais artística ou jornalística? O meu primeiro contato foi em um curso de fotografia na ONG Meninos do Morumbi. Nesse momento, eu estava acabando o Ensino Médio, e pensei: “Ah! Vou fazer faculdade de fotografia”. Então, com o passar do tempo, pude trabalhar com produção cultural – produzindo obra de arte mesmo – e jornal. Antes, achava que era a área jornalística que eu queria, mas esta falta de expressão visual me incomoda muito! De vez em quando até faço pauta para jornal, mas assim, retrato. Hoje, estou entre as duas coisas, fazer pauta de vez em quando, mas também fazer ensaios para mandar para edital, participar de uma mostra e trabalhar no meu livro. Procuro balancear entre essas coisas de pagar as contas e conseguir levar o livro em paralelo a outros projetos. O que mudou do seu segmento fotográfico de 2006 para cá? Como estava na ideia de ser fotojornalista, todas as imagens eram muito diretas. Então quando ganhei uma bolsa de estudos e fui fazer um mestrado de fotografia na Espanha, que é uma outra cultura, entendi que aquilo tudo era completamente ultrapassado. Esse tipo de foto aqui (PM ao lado de uma criança com livro) é muito direta, você consegue resumir a história toda. Mas se você vai resumir uma história complexa em uma única imagem, qual é o mérito do trabalho? Tem que ir conduzindo o leitor para ele ir tirando suas próprias conclusões. Comecei a entender que é interessante fazer imagens mais simbólicas, imagens que juntas fazem sentido. Tem muito mais impacto um cachorrinho de pelúcia encurralado do que você fazer a foto de alguém apontando a arma. Isso já foi visto, não provoca nada nas pessoas, o que provoca é a ausência. Tem uma teoria do Ernest Hemingway que é muito boa, chama A teoria da ponta do

Talita conta que quando criança tinha medo da figura fardada do pai

iceberg. Temos o mar e a ponta do iceberg. A ponta é tudo o que você vê, porém tem muito mais ali em baixo. A mesma coisa serve para um trabalho de fotografia. Se você dá tudo isso aqui, não tem graça nenhuma. O seu trabalho tem que mostrar algo, mas que dê espaço para as pessoas entenderem que há muito mais além daquilo. Evocar toda essa história que está aqui debaixo depende da interpretação delas, então isso torna o leitor muito mais ativo. Eu adoro essa teoria [risos]. Que projeto você gostaria muito de fazer, mas ainda não arriscou? Olha [risos], é que isso já foi feito, mas, se não tivesse, eu adoraria. Tem uma fotógrafa mexicana chamada Daniela Rossell, que era muito rica, amiga de todos os ricaços do México. Ela começou a fotografar as amigas com uma estética muito inovadora, e nem era fotógrafa, só rica mesmo. Rossell as fotografava dentro de suas casas com suas peles de onça, aquelas coisas bem bregas de gente muito rica, e conseguia condensar tudo em um único retrato de cada pessoa. Quando isso chegou às mãos de conhecedores da área, foi super aclamado. Só que as amigas dela quando começaram a ver o que saía de crítica do livro, começaram a entender que aquelas fotos só davam a entender o quão estranhas e miseráveis eram aquelas vidas. É muito impactante, adoraria fazer isso: fotografar artistas de classe média em toda a sua teoria de esquerda e tentar condensar em um retrato o tanto de hipocrisia que tem nisso, sabe? Mas é algo que eu nunca pretendo fazer porque se não vou perder todos os meus amigos. Talvez possa fazer isso quando estiver para morrer mesmo [risos]. Entrevista

9


POLÍTICA

ADEUS, BRA

65

Revista Esquinas


ASILÂNDIA Os relatos de famílias desapropriadas pela construção da linha 6 do metrô

Texto por Ana Carolina Pinheiro, Ana Clara Giovani, Gabriel Manzo, Letícia Furlan, Lygia Ribeiro e Natália Koyama Fotografia por Ana Clara Giovani

Editoria

66


No lugar onde será construída a estação Brasilândia, há um vazio. Com ruínas de antigas casas, poucas árvores e muita terra, o local abriga aquilo que já se foi

G

anhava quem dava a volta no quarteirão primeiro. Cláudio compensava as pernas curtas com sua leveza. Quando foi fazer a volta na esquina, tropeçou e começou a rolar. Um amigo disse que parecia uma batata. O apelido pegou e ninguém o conhece por Cláudio. Há 55 anos, Batata jogava futebol na frente da sua casa que depois se transformou na sua oficina autoelétrica. Por mais de 25 anos, a oficina foi o ponto de encontro dos jogadores da Mocidade Paulista e do Estudante, que tomavam banho e depois ficavam bebendo uma cerveja e conversando por horas. Um dos companheiros do Seu Batata era Sílvio, que foi apresentado como o “melhor enfermeiro da região”. 12

Revista Esquinas

Com quase 30 anos de diferença, a semelhança se encontra na barriga de chopp e no boné na cabeça. Seu Batata, branco, com cabelo, bigode e cavanhaque também brancos. Silvio, negro, sem cabelo, sem bigode e sem cavanhaque. “Quando mais um casava, a gente construía mais uma casinha no quintal”. Iracema e seus irmãos passavam o dia todo brincando nas ruas de terra. Foram longos e bons tempos em uma casa grande na Freguesia do Ó, dividida por toda a família. Hoje, ela tem os cabelos grisalhos, cinco filhos e quinze netos. Negra, com uma pele lisa, é tímida. “Tava em casa quando bateram palma, fui atender lá. Um advogado. Tava dando a notícia de que o metrô ia passar”.


Estava em casa quando bateram palma, eu fui atender. Era um advogado. Ele dava a notícia de que o metrô ia passar aqui” Iracema, aposentada

O chão de terra batida, entre as duas calçadas da Rua Amaro Domingues encontrava os pés descalços de Zilda, que brincava com os amigos na frente de sua casa, em 1958, no bairro Itaberaba, vizinho à Brasilândia. “Lembro-me da minha mãe costurando no canto da cozinha e o meu pai abrindo aquele portão com estacas de madeiras ao chegar do trabalho”. A jovem Zilda cresceu, casou e não mudou. O número 67 continuou

sendo a sua casa, mas agora com o marido, o filho e a irmã, que morava em uma casa no mesmo quintal. A vizinhança familiar e os hábitos cotidianos se transformaram em lembranças quando, em 8 de maio de 2012, o Governo do Estado de São Paulo publicou o decreto nº 58.025 em que informava a desapropriação de 400.407 m² em toda a região do projeto do metrô. Eram 406 os imóveis que seriam demolidos, 52 terre-

nos vagos seriam ocupados, 214 residenciais e 140 estabelecimentos comerciais destruídos, para a construção da Linha 6 Laranja do metrô, que ligaria a Zona Norte ao centro da cidade. Um comunicado impresso chega à caixa de correspondência de todas as casas que estavam no meio do percurso da Linha 6. No informativo oficial, o Metrô de São Paulo alertava, de forma atenciosa, que aquela residência deixaria de existir dali a um tempo, afinal, naquele trajeto seriam implantadas determinadas estações. O ajuizamento das desapropriações foi feito por peritos e engenheiros que avaliaram as condições de cada imóvel e, segundo a Secretaria do Transporte, todos os moradores deveriam receber indenizações compatíveis ao valor real e de mercado de suas casas. Segundo as pessoas ouvidas pela reportagem da Esquinas, não funcionou bem assim. Iracema, Zilda, suas famílias e vizinhos precisaram do auxílio de advogados particulares que fizeram novas avaliações do imóvel para conseguir aumentar o valor das indenizações. Política

13


USUCAPIÃO

OS TRATORES CHEGAM. Em 29 de abril de 2015, Seu Batata tira os últimos pertences e deixa a oficina. Tem na lembrança cada detalhe do imóvel, desde o azulejo até o terraço. Quando a construção do metrô foi confirmada, muitos advogados começaram a passar de porta em porta oferecendo seus serviços. Uma delas foi Valéria Valentino. Desesperados, sem saber o que fazer, os moradores acreditavam que se pagassem a profissional, o processo sairia mais rápido. A advogada sugeriu que entrassem com uma ação por Usucapião. Para isso, Sílvio fez inúmeros empréstimos com parentes e amigos e gastou ao todo 15 mil reais, 8 mil para a advogada e 7 mil com encargos burocráticos que pede o Usucapião, para acertar toda a documentação provando que aquele imóvel era dele. “Até hoje não recebi nenhum centavo. A advogada só sabe falar que tem que aguardar. O juiz deu o número do nosso processo, ficamos entrando no site para ver, mas a gente não entende nada. Nunca sai. Aí liga pra ela e ela fala ‘Ah, tem que aguardar’”. Iracema sempre esteve muito conformada com a desapropriação já que, para ela, “pobre não ganha briga de rico, não.” Primeiro, os oficiais de justiça contratados pelo Governo do Estado de São Paulo passavam dando a notícia das desapropriações, depois os assistentes sociais chegavam para conversar. A notícia veio em 2012 e, em 2015, ela e sua família se mudaram. Receberam 80 mil reais, o equivalente a 80% do valor da sua antiga casa. O dinheiro recebido, que ela não achou justo, deu como entrada em uma casa em Caieiras, onde não se adaptou. Então começou a pagar aluguel para continuar no bairro Itaberaba, lugar onde criou os filhos. Domingo, 8 agosto de 2014, na casa da família Casagrande, a campainha tocou. Era uma oficial de justiça com a ordem de desapropriação. Foi o último churrasco em família. Em 2010, as perfurações eram realizadas nas proximidades da Avenida Itaberaba, mas os moradores não acredi-

BRASILÂNDIA

Vila Cardoso

Um direito que o cidadão adquire sobre o imóvel, ou outro bem, depois de utilizá-lo por determinado tempo, ou seja, é uma forma de aquisição concedida ao indivíduo por obter uma posse prolongada do imóvel tavam que aquele boato que rodava pelo bairro realmente sairia do papel, mas a obra do metrô chegou. Foram dois anos em meio a escritórios de advocacia, três avaliações da casa feita por peritos diferentes, alguns encontros de moradores e reuniões com representantes do metrô. A luta não parava, eles queriam um valor justo pela indenização. “Uma coisa que você pode anotar é que o processo de desapropriação feito pelo Estado é desumano. Pois, você primeiro tem que sair da casa, para depois eles te pagarem”. O dinheiro da indenização ainda não havia caído na conta bancária do casal, mas mesmo assim as chaves da casa foram entregues à concessionária Move São Paulo, responsável pela construção do metrô. As obras da Linha 6-Laranja finalmente começaram, no dia 13 de abril de 2015. A Avenida Otaviano Alves de Lima, na Freguesia do Ó, foi o primeiro lugar a ser escavado. As estações iriam preencher 15,3 quilômetros subterrâneos. “São 4,5 bilhões de reais em investimento privado, 4,5 bilhões de reais em investimento público, e as desapropriações são por nossa conta. Pagamos 500 milhões já depositados para

Revista Esquinas

MUDANÇA: O TREM VEM CHEGANDO. Seu Batata agora faz alguns trabalhos pequenos, na sua casa mesmo, três ruas abaixo de onde ficava a oficina. “É mais triste, eu passo aqui cinco, seis vezes por dia. Venho pegar minha neta, paro o carro ali, fico olhando e penso ‘será que é verdade?’, fico vendo o tapume na minha frente, sabendo que eu podia estar ali.” Sílvio paga mil reais no aluguel duas ruas ao lado da sua antiga casa. Até o dia que fomos conversar com ele, nunca tinha voltado à rua que viveu a vida toda. A família de Iracema se separou. Se antes todos eram vizinhos de porta, agora são longos os telefonemas para matar a saudade. Diego está na casa em Caieiras, Douglas mora de favor na casa do sogro na Cachoeirinha, Diogo se mudou para o Rio de Janeiro e Alessandra deixa de comer para pagar aluguel no Paulistano. A única que teve oportunidade de continuar morando com os pais foi Cláudia, que dorme com os dois filhos em uma cama de casal em um puxadinho nos fundos da casa. A desapropriação, para ela, já é um problema do passado: “Ah, eu estou preocupada com o meu filho que está se separando”. Zilda e Zé Carlos fizeram orçamento com três escritórios de advocacia. Escolheram um que era especializado nesse tipo de causa, mesmo com os honorários mais caros do que os outros. Os gastos não eram poucos, mas o casal ainda conseguiu comprar mais duas casas. Uma para o filho, que morava com eles na casa demolida, e outra para a irmã de Zé, que também tinha um quarto e cozinha no fundo do quintal. O comprovante de pagamento dessas novas

Trecho do Projeto Linha 6-Laranja do Metrô Itaberaba Hosp. V. Penteado

João Paulo I

Freguesia do Ó 14

moradores da região da Linha 6. A obra tem que estar operando até 2020”, afirmou o governador Geraldo Alckmin em 2015, em uma nota divulgada no portal da Secretaria dos Transportes Metropolitanos. O percurso entre Brasilândia e São Joaquim, que é feito em 90 minutos, passaria a ser feito em 23 minutos.

Santa Marina Água Branca


casas, as gravações, os documentos e CDs com vídeos das visitas dos oficiais de justiça – que passavam pela casa com uma praticidade técnica, que vinham na contramão do sentimento da família, naquela situação – estava dentro de um plástico transparente, que Zé Carlos abria a todo momento, e citava algum dado ou informação como forma de comprovação do seu argumento. Para Zilda, o discurso racional do esposo é um escudo para o seu sofrimento com a perda da casa, mesmo sem ter sido criado lá, como ela. “Passar pela Rua Amaro e não ver o número 67, dói”, comenta Zé. Ela se lembra do cheiro de almoço de domingo que a cozinha tinha, da felicidade do filho dentro do estúdio de música, que foi construído no segundo andar da casa, e do aconchego que sentia ao sentar na sala para assistir à novela. Eram recordações de sensações, poucas lembranças eram de coisas materiais. “Não tenho muito apego pelas coisas, mas sinto muito por conta dos aniversários, almoços, conversas jogadas foras, que vivi naquela casa”, lembra Zilda. AS MÁQUINAS PARAM. Com três anos de atraso, a obra que já teve os anos de 2018, 2019 e 2021 como prazo de entrega, no dia 2 de setembro, não recebeu data para sua conclusão. A Move São Paulo, parceria público privada do governo estadual, era formada inicialmente pelas empresas Odebrecht, Queiroz Galvão, UTC e pelo fundo de investimentos Eco Realty, assumindo, assim, metade do custo estimado da construção em 9,6 bilhões de reais, cujo início das atividades foi no ano de 2014.

Apesar de só ter sido paralisada no mês de setembro deste ano, a obra e o contrato de licitação já sofrem com investigações de irregularidade desde seu início. O Tribunal de Contas do Estado (TCE) questionou as frequentes mudanças nas ações das concessionárias responsáveis e cobrou providências do governo. Segundo um relatório do TCE, a UTC deixou o consórcio em 2015 e transferiu sua parte acionária ao holding Little Rock Participações, hoje com o nome OM Linha 6 Participações, que foi comprado pela Odebrecht em 2014 e também já havia recebido as ações de participação dessa mesma construtora. A Queiroz Galvão recebeu uma parte do controle acionário da UTC e mudou o nome comercial da concessionária. O Tribunal de Contas do Estado cobra providência do governo por causa das falhas apresentadas na posse das ações. Além disso, essas alterações sem o respaldo governamental foram consideradas uma quebra da cláusula do contrato. A Procuradoria-Geral do Estado (PGE), de acordo com o TCE, só teria aprovado essas trocas por meio do Secretário de Transportes Metropolitanos, Clodoaldo Pelissoni, o que foi feito apenas em abril de 2016. Soma-se a isso, o questionamento do Tribunal de Contas sobre a quantia que o governo desembolsou em 2014 e 2015, que foi o equivalente a 592,3 milhões de reais em recursos do Cofre do Estado (Tesouro) direcionado ao pagamento das desapropriações dos imóveis para construção da Linha 6. Esses pagamentos foram cobertos

HOLDING

Empresa que detém a maioria das ações de outras empresas e possui o controle de sua administração em políticas empresariais. Configura-se em uma sociedade gestora de conglomerados de um grupo por financiamento da Caixa Econômica Federal somente depois dos repasses à concessionária, no dia 29 de setembro de 2015. A Move São Paulo defendeu-se em nota oficial afirmando que as modificações no quadro societário “respeitaram o contrato e as leis, e receberam anuência do governo”, que “corroborou” a alteração com um parecer da Procuradoria-Geral do Estado (PGE). Também, foi divulgado pela assessoria que a OM Linha 6 é de controle da Odebrecht e que, portanto, não caracterizaria alteração no controle acionário. Já a Secretaria dos Transportes Metropolitanos esclareceu que as retiradas do Tesouro foram necessárias em decorrência Sé

Campos Elíseos República

Liberdade

Anhangabaú

São Joaquim

Santa Cecília

Marechal Deodoro

Palmeiras Barra Funda

Higienópolis Mackenzie

Vergueiro

Bela Vista

14 Bis Perdizes Pompeia

SESC Pompeia

PUC Cardoso de Almeida

Brigadeiro

Angélica Pacaembu

Trianon Masp Consolação

Política Clínicas

15


da demora na formalização do contrato com a Caixa, mas que “não houve prejuízo ao governo, ao cronograma de execução das obras e, principalmente, àqueles que foram desapropriados”. Salientou ainda que foi favorável à alteração acionária “porque as empresas ingressantes atendiam aos requisitos de habilitação e qualificação econômica e financeira necessários para assumir o serviço”. Em 2014, começou a Operação LavaJato, que investigou as três empresas constituintes dessa parceria público privada, indiciando seus presidentes por suspeitas de propina que envolvia contratos referentes à empresa estatal Petrobrás. A dificuldade na obtenção do financiamento de longo prazo de 5,5 bilhões de reais com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) na obra da Linha 6 do metrô advém, no entendimento do Secretário de Transportes, Clodoaldo Pelissioni, da operação da Polícia Federal: “Em razão do envolvimento das empresas na Lava Jato e da situação econômica do país, elas estão tendo dificuldade em obter o dinheiro. Isso é muito preocupante”, disse ele em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo. Procurada durante essa reportagem, a Secretaria de Transportes Metropolitanos se manifestou sobre os motivos da paralisação das obras e como estão procedendo para retomada: “O Governo do Estado de São Paulo notificou a concessionária para que retome de imediato suas atividades sob pena de multas e penalidades. Não há pendências junto à Move São Paulo que impeçam a retomada das obras. O Governo do Estado trabalha intensamente para que a questão possa ser solucionada, colaborando junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para que a instituição autorize o financiamento de longo prazo para o parceiro privado”. Caminhar pelas ruas da Brasilândia e ver aqueles quarteirões lotados de entulhos e cercados pelos tapumes grafitados é algo desanimador para os moradores e, principalmente, aos desapropriados. “Nós torcemos pela concretização da obra, não é porque fomos retirados da nossa casa que não vamos entender que tudo isso é para um bem maior”, comenta Zé Carlos. Para Batata, não ver as máquinas trabalhando é mais triste, pois ele pelo menos poderia estar em sua oficina. “Não temos o metrô e nem o imóvel”, conclui. Questionada ainda sobre a continuidade dos processos de desapropriação, a Secretaria limitou-se a informar que dos 371 imóveis privados que estavam previstos inicialmente, 349 deles (94% do total) já tiveram emissão de posse e estão liberados para obras. Quanto às indenizações, esclareceu que uma desocupação só é permitida por lei após o depósito do valor indenizatório em juízo e que o Governo do Estado de São Paulo já desembolsou o valor total dessas indenizações. Não foi o 16

Revista Esquinas

que aconteceu, Zilda e Zé Carlos, Iracema e Sílvio disseram que foram desapropriados antes de receber qualquer parcela da indenização. Até essa reportagem ser finalizada, nenhuma das três famílias recebeu o valor total da desapropriação. Sílvio, inclusive, afirma que não recebeu absolutamente nada. Os recursos dessa finalidade ficaram previstos inicialmente em 979 milhões de reais e juntamente com os 694 milhões de

reais para as obras, que, somados, resultam em 1,6 bilhão de reais que o governo estadual já aplicou na construção. A Esquinas não obteve resposta da assessoria em relação aos dados de desocupação referentes apenas ao distrito da Brasilândia. Por outro lado, a assessoria da Move São Paulo declara, em nota oficial, que cumpriu todas as obrigações contratuais e atribuiu os motivos de suspensão das atividades a fatores alheios ao domínio


Os quarteirões da Estrada do Sabão com as ruas Professor Viveiros Raposo e Domingos Francisco Lisboa estão cercados pelos tapumes. Em meio ao bairro da Brasilândia, esses vazios denunciam a paralisação das obras do metrô. Não há movimentação ou barulho de máquinas, somente terras abandonadas

da concessionária, como: a deterioração da economia, os atrasos na liberação de áreas públicas por parte do Poder Concedente e mudanças nas exigências do BNDES. Afirmou, porém, que os processos de desapropriação seguem normalmente e que trabalha para a retomada do projeto, mantendo, assim, intactas as mais de nove mil vagas prometidas durante a construção da obra e os mais de mil postos de trabalho que seriam espalhados nas

quinze estações da Linha 6-Laranja. A assertividade técnica dos discursos da Move São Paulo e do governo de um lado e o sentimento dos desapropriados e moradores da região da Brasilândia, que acreditam que o término da obra será posterior às suas próprias mortes, de outro. Assim como Zilda e Zé Carlos, Iracema ainda espera pelos 20% restantes do valor da indenização prometido pela Concessionária Move São Paulo. Esse di-

nheiro ajudaria a terminar de pagar os 56 mil reais restantes da casa em Caieiras. No meio do barro e da poeira, algumas paredes com azulejo e porta papel higiênico ainda estão de pé, provando que o lugar já foi habitado, já teve vida. Quem sabe daqui a dez, vinte, trinta anos, terá novamente. Mas uma vida com pressa, uma vida que vem e vai e que lota os trens nos horários de pico. Por enquanto, não se ouve nem os barulhos dos tratores. Política

17


BATALHA

Rap nas ruas As batalhas de sangue e de conhecimento se espalham pela cidade Texto por Ugo Sartori Fotografia por Beatriz Issler

É

sexta-feira. Os bares fervem e na esquina da Avenida Paulista com a Rua Augusta, na frente do Banco Safra, vê-se uma aglomeração. Roupas escuras, largas e bonés fazem o conjunto de quem está ali. Sem microfone, sem caixa de som com beat, é tudo na garganta. Ao som do beatbox (batidas com a boca) feito por diferentes pessoas que se revezam, os MCs soltam suas rimas conforme o tema escolhido pelo público. Cada um tem trinta segundos para fazer seu som, mandar sua ideia, uma realidade

transcrita em versos. Ao final, o apresentador grita o nome de cada um e o que for mais ovacionado segue na batalha. Por toda a cidade, minas e manos se encontram para o desafio de rimas. As batalhas de rap ocupam o breu da cidade, quando cai a noite e a movimentação muda. As calçadas das grandes avenidas perdem um pouco do fluxo das horas anteriores, os passos diminuem o ritmo. Nas praças e esquinas, o número de pessoas cresce. Assim se conhecem os MCs por São Paulo. A data do surgimento das batalhas

não é exata, mas a partir de 2000 elas tomaram a cidade. A roda é formada pelo público e no centro ficam o apresentador e os MCs que vão disputar uma vaga para a próxima fase; o número de etapas depende do número de participantes inscritos no dia. Existem dois tipos de batalhas: as de sangue e as de conhecimento. Na primeira, os rappers se atacam com palavras afiadas e rimas improvisadas, xingamentos são comuns, pois a intenção é “tirar sangue” do adversário. Já as de conhecimento têm


outro estilo, vence quem tiver a melhor rima sobre algum tema que pode ser prédefinido pelos organizadores, ou que pode ser escolhido pelo público na hora. Mas, em ambas, vence aquele que não perder o ritmo, a ideia, a rima e o improviso. O público é quem decide o ganhador: o MC mais aplaudido segue para a próxima chave da batalha. Elas são uma oportunidade para os novos rappers mostrarem seu talento e ganhar notoriedade. MC É COMPROMISSO. “Sexta Free - Batalha Racional” é o nome da competição que acontece desde 2011 com uma pegada menos agressiva. Homens e mulheres do coletivo Kush Crew, em 2010, rimavam, faziam freestyle e curtiam rap. Mas quando pensaram em iniciar uma disputa de rimas queriam que fosse diferente. As batalhas sanguinolentas já existiam em São Paulo, então organizaram uma de conhecimento, como já existia no Rio de Janeiro. Rafael ‘Smoke’, de 26 anos, um dos organizadores da Kush Crew completa: “A partir daí rolou a Sexta Free - Batalha Racional. Batalha de sangue é daora, tá ligado? Você tirar um barato com o outro: tamanho, altura, gordura, só que uma base para o MC é o conhecimento. Então, pensamos que uma batalha do conhecimento vai puxar o intelecto que é o que a gente quer!”. Dito e feito, os MCs têm que buscar no fundo da cabeça rimas para qualquer tema: transporte público, homofobia, segurança, educação, ou até sobre um fiel que vai à igreja. Magida, de Porto Alegre, perto dos 30 anos, foi a única mulher que batalhou naquela noite. Rimou um pouco, mas logo parou porque se sentia incomodada com a diferença de idade entre ela e os outros MCs. “O lance é o seguinte, tu tem que falar, tem que passar o que você sabe. Não importa onde tu tá, a mulher vai ser minoria”. Mas ela prova que mulher sabe rimar. Só não levou a batalha da noite porque se enrolou no tema “lua cheia de sonhos”, que acabou caindo para um lado mais emocional e complicado. O campeão daquela sextafeira, Vick, de 23 anos, morador da Brasilândia, não gosta de batalhas de sangue. Com uma voz marcada pela revolta explica o motivo: “Não tenho nada

contra quem ataca! Eu comecei atacando, só que hoje não faço isso, porque quando você foge de uma amarra do sistema, não tem como você se atar no nó de novo. E a amarra do sistema é a batalha ser divertida, engraçada, ser algum episódio do programa do Danilo Gentili ou do CQC, para playboy branco europeu ver. E eu não tô aqui pra atacar meu próprio irmão, se for pra atacar, vou atacar quem tá errado!”. Diferentemente do que o rapper Vick acredita, a Batalha da Santa Cruz, uma batalha clássica de sangue, pretende ir além do xingamento. Ela acontece na saída da estação do metrô desde 2006. É a mais antiga de São Paulo e referência em todo o país. Consiste em três rounds, sem tema, só ataque. Mas, como disse Gah MC, o organizador da noite, “a batalha de sangue desenvolve o pensamento, o raciocínio. Porque é muito mais do que só xingar o cara, tem toda a ideia de criar uma metáfora, um trocadilho, tem que fazer a galera entender. Batalha de sangue é atitude, você vai xingar o cara, mas vai fazer isso bem feito, se impor e isso tudo você pode levar pra vida, na escola, no trabalho”. A batalha acontece todo sábado e é uma das maiores da cidade. Logo no topo das escadas rolantes do metrô estão MCs, plateia e organizadores. Assim que todos se inscreverem, a roda fecha e começa a batalha. Ela acontece sem beat nenhum, o único som são as vozes grosseiras que criam uma melodia de ataque. No início, alguns vêm mais de mansinho, meio acanhados para sair xingando alguém que eles nem conhecem. Mas quando vai chegando para o final, dá para sentir o peso das palavras, esperando um pequeno vacilo do adversário para vir com tudo e nocauteá-lo. Segundo Gah, é disso que veio o rap. “A raiz da batalha de MCs de qualquer lugar do mundo é essa mano, esse ataque”, afirma. Como é uma batalha de sangue, nada mais esperado do que o próprio a flor da pele, não é comum, mas alguns participantes acabam perdendo o controle. No sábado, logo no começo da batalha, um MC xingou a avó do outro e acabou sendo desclassificado. O clima ficou bem tenso, mas nada que atrapalhasse o evento. O próprio Gah diz que não é comum, mas acontece. Mas as batalhas não são apenas violentas. Na mesma noite, duas irmãs gêmeas, que ainda nem alcançaram os 13 anos, acompanhavam seu pai recitar uma poesia de autoria própria. A batalha do Santa Cruz é próspera e rica em cultura, naquele mesmo lugar já germinaram MCs que hoje fazem sucesso e estouram pelo país, mas que tiveram suas raízes no Metrô Santa Cruz: Emicida, Projota e Rashid, são alguns nomes que começaram com as improvisações lá.

A raiz da batalha de MCs de qualquer lugar do mundo é essa mano, esse ataque” MC Gah, organizador da batalha de rap da santa cruz

JUNTO E MISTURADO. Distante do centro da cidade, atravessando-a sentido Zona Norte, chega-se pela linha 7 do trem à estação Francisco Morato. Na Rua Juvenal Harttman, acontece a Batalha da Estação. Essa tem uma pegada diferente das outras, mas o foco ainda é a briga de freestyle entre MCs e outras vertentes do Hip Hop. O fundador Paulo Malik, militante há mais de 25 anos, explica que o movimento Hip Hop une o grafite, o break dance, o beat e as rimas. “No intuito de querer fortalecer essa cena do hip hop, eu tive a ideia de fazer a batalha e nisso convidei uns parceiros para cada um contribuir na sua área”, conta. O evento ocorre uma vez por mês, sempre às sextas-feiras e dois rappers cuidam da batalha, Luis Preto e Mamuti 011. Além deles, DJ Clevinho faz o som, há um curador de grafite, Bonga; e Denis Jaconto, que cuida do território da dança. Todos vivem na região e estão no projeto desde o início. A batalha, em si, é voltada para o conhecimento, Malik diz que preza por isso, pois não quer ver qualquer tipo de preconceito na praça, “tentamos dar primazia para o conhecimento, para que não tenha palavras de baixo calão, homofobia ou bullying”. Assim, vale tudo na disputa, menos o desrespeito. E como a ideia era fazer mais do que só as rimas pelas rimas, os intervalos da batalha são preenchidos com shows de outros estilos musicais, leitura de poesias, lançamento de livros e artes plásticas. Tanto querendo valorizar a cultura do Hip Hop até batalha de grafite e de break, ainda pretendem fazer uma de DJ, mas o foco ainda são os versos improvisados. A cidade está cheia das batalhas de rap que resistem e se expandem cada vez mais. As rodas ganham mais volume pelo grande número de espectadores, é possível ir a uma batalha de rap a cada dia da semana. Todo dia tem. Mas como a cidade que não dorme estaciona seus ônibus, seus trens e metrôs perto da meia-noite, as batalhas costumam acabar antes desse horário. O campeão leva seu troféu, a folhinha com o chaveamento da noite (papel com as chaves das batalhas travadas), e cada um pega seu caminho, esperando pelas próximas batalhas.

MONTAGEM POR BEATRIZ FIALHO

Batalha

19


ESPORTE

Investindo no esporte A trajetória de atletas que dependem de patrocínio para continuar nos ringues Texto e fotografia por Bruna Somma e Giovanna Almeida

“S

empre gostei de boxe, desde criança, só nunca lutei em campeonatos oficiais”. Luís Cardoso possuiu o mesmo técnico que o célebre Popó: Ulysses Pereira. Atualmente, é orientador técnico do Clube Nacional Jundiaí, que se destina a ensinar boxe para crianças e adolescentes que vivem em vulnerabilidade social em Belém, no estado do Pará. No Rio de Janeiro, o boxeador e técnico Raff Giglio conclui o aprimoramento da sua academia, o Instituto Todos na Luta, de objetivo igual ao de Luís. O local se manteve por alguns anos de maneira independente até que em 2009, dois anos depois da empresa de material médico-hospitalar Oscar Iskin se interessar pela causa e apoiá-la, a associação se tornou uma ONG. Taynna Taygma e Patrick Lourenço são importantes personagens da trajetória desses dois técnicos. Taynna, filha de Luís, conheceu o esporte por meio de seu pai. Assim como Patrick, praticou muitas outras modalidades antes da sensação de pertencimento ao entrar em um ringue. Patrick, nascido na comunidade do Vidigal e atualmente beneficiado pelo programa governamental Bolsa Atleta, conheceu a criação de Giglio em 2006, aos 13 anos. Nessa época, o instituto passava por muitas dificuldades financeiras. O atleta afirma que ao começar a treinar e se ver diante de tantos obstáculos, pensou em desistir: “Não tínhamos tênis e quase nada para competir. Minha vida inteira foi um desafio”. Entretanto, segundo Patrick, o treinador Raff sempre buscou suprir as dificulda-

20

Revista Esquinas

des que surgiam, não importando qual fossem. Muitas vezes pagou por conta própria equipamentos, transporte e hospedagem para seus atletas, chegando a contar com a ajuda financeira do ator Malvino Salvador, que completou uma “vaquinha” que alguns amigos de Raff fizeram para ajudar nas despesas dos boxeadores em um dos campeonatos brasileiros. Os esforços de todos os envolvidos não foram em vão: com 18 anos, Patrick tornou-se tricampeão brasileiro. Tal feito lhe rendeu o convite para a Confederação Brasileira de Boxe (CBB) e o Bolsa Atleta Nacional. Hoje, Patrick recebe o Bolsa Pódio, de 11 mil reais por mês – é a categoria mais alta do programa. Desta vertente, fazem parte mais 105 atletas brasileiros que participaram dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro. Criado em 2005, o projeto é o maior programa governamental de patrocínio individual do mundo e, de acordo com o Ministério do Esporte, já auxiliou mais de 17 mil atletas. O público alvo são esportistas de alto rendimento, independente da condição financeira. Dos 6.152 atualmente contemplados pelo Bolsa Atleta, Taynna é possuidora da categoria Nacional pelos bons resultados em campeonatos brasileiros, e afirma que nunca houve problemas na admissão do valor. INVESTIMENTO E TRAJETÓRIA. O pai de Taynna se diz contra a ideia de que o Brasil é um país que investe pouco em esporte. Para ele, os atletas brasileiros recebem bastante apoio se comparado a países como Cuba e Colômbia, por exemplo, e reconhece

que o valor recebido pelo programa não pode ser comparado a um salário, mas que é possível impulsionar os sonhos de um esportista. Sendo 465 brasileiros competidores nos Jogos Olímpicos deste ano, segundo o Ministério do Esporte, 358 são contemplados pelo Bolsa Atleta. Otílio Toledo, coordenador técnico e responsável pelo planejamento da equipe da Confederação de Boxe, discorda dos benefícios do programa: “Uma grande farsa. Muitos atletas se aproveitam, é só se inscrever em uma academia e competir em um campeonato brasileiro para tê-lo”. Para ele, a maioria dos boxeadores que são de famílias pobres, enxergam no esporte um meio de conseguir mudar o padrão de vida, “o boxe é um esporte duro e normalmente só aguenta aquele que já tem uma vida com muitos problemas”. Ao longo da carreira de Taynna até os dias de hoje, ela saiu vitoriosa de 212 lutas de 278, incluindo quatro títulos pan-americanos e o cinturão Les Ceintures Montana, adquirido na França e do qual se orgulha. Seu destaque perdurou nos campeonatos brasileiros após os estaduais até que chamou a atenção da Seleção Brasileira, e a convocação não tardou a chegar. Sua primeira participação internacional ocorreu na Argentina contra a anfitriã, em 2006, e a atleta obteve a medalha de bronze. Tudo o que é necessário para competir no esporte é fornecido ao atleta quando ele faz parte da Seleção Brasileira. A Confederação Brasileira de Boxe garantiu para Taynna e Patrick o patrocínio padrão, proporcionado pela Petrobrás,


MONTAGEM: BEATRIZ FIALHO. PATRICK: CCBOXE /DIVULGAÇÃO; TAYNNA: BRUNA SOMMA

Durante a tarde de uma quinta-feira, com o treino já finalizado, Taynna permanece em sua academia. Ao lado, Patrick treina de segunda a sábado, duas vezes ao dia

Esporte

21


além de maior visibilidade e oportunidade de participação em campeonatos internacionais, continentais e mundiais. A sede dos treinos localiza-se no Centro Esportivo Joerg Bruder, em Santo Amaro, Zona Sul de São Paulo. A partir de janeiro de 2017, um novo ciclo se iniciará no Centro, para a próxima Olimpíada. Diferentemente de Taynna, que nunca possuiu um patrocinador particular, Patrick recebe o apoio da marca de roupas e tênis Everlast. O foco na vida do beneficiado torna-se exclusivamente o treino e bons resultados, quando alcançados, na maioria das vezes, mantém o benefício. O Ministério do Esporte estabelece que, para ser patrocinado, o atleta deve estar entre os vinte primeiros na modalidade no ranking brasileiro e ser indicado pelas entidades nacionais de administração do esporte. Tais rankings são grandes vitrines para que a Seleção Brasileira enxergue

o esportista, que conta como critério os seguintes itens: idade, condição técnica, condição física, perspectiva e nível de talento. Segundo Samuel Orthey, preparador e auxiliar físico da Confederação de Boxe, as classificatórias para os Jogos Olímpicos ocorrem por meio do ranking nacional e os destaques são indicados para uma seleção específica, a pré-olímpica. Normalmente, a escolha é consolidada alguns meses antes dos Jogos. Patrick, que participou do evento graças à sua primeira colocação no segundo ranking mundial, foi derrotado na primeira fase da competição olímpica. Durante tais seletivas, Taynna competiu em 16 lutas preparatórias para uma vaga no Rio 2016. De acordo com ela, por sua adversária possuir um título da Olimpíada de 2012, acabou sendo previamente descartada. A busca por respostas que fundamentasse a escolha que lhe pareceu injusta foi in-

BOLSA-ATLETA O programa que garante condições para treinamentos e competições possui seis categorias:

Atleta de base 14 a 19 anos. É necessário estar vinculado a um clube. 370 reais mensais

2

Nacional Maior de 14 anos, entre o 1º e o 3º lugar no ranking nacional. 925 reais mensais

Olímpico/Paralímpico Maior de 16 anos, ter integrado a delegação brasileira como titular. Valor de 3.100 reais mensais 2

2

322

Revista Esquinas

1

3

Internacional Maior de 14 anos, 1º ao 3º lugar no ranking internacional. 1.850 reais mensais

Pódio Criada em 2012, destinada a atletas com chances de medalha. De 8–15 mil reais mensais

3

1

1

Estudantil 14 a 20 anos, entre o 1º e 3º lugar em esportes individuais ou coletivos. 370 reais mensais

3


GIOVANNA ALMEIDA

À direita, alguns dos equipamentos utilizados pelos atletas da Seleção de Boxe e abaixo, luvas pertencentes ao Clube Atlético Nacional Jundiaí

“ BRUNA SOMMA

cansável, e a única que encontrou durante todo o processo foi o fato de que a Seleção Brasileira tem o direito de escolher quem lhe convir. A Secretaria do Esporte, Lazer e Juventude do Estado de São Paulo afirma que nenhum órgão além do Governo Federal pode intervir na autonomia de uma instituição privada, como são federações e confederações, pois além dessas contarem com instrumentos internos para apurar erros, estão também sob constante fiscalização do Ministério Público. Otílio afirma que a escolha foi absolutamente legítima. Assim como todos os outros atletas, segundo ele, Taynna foi testada em diferentes eventos, terminando um placar de 9x7 para ela. No ranking nacional, a boxeadora era a número 1, porém não apresentava resultados satisfatórios nas competições internacionais. Hoje, automaticamente demitida da CBB, que abrirá um novo ciclo para 2020, Taynna diz não sonhar mais com os Jogos Olímpicos, e continua a afirmar que isso não depende dos seus méritos, “a parte política decepciona, mas as viagens

e o conhecimento adquiridos por eu ter feito parte da CBB valeram a pena”. O Clube Atlético Nacional Jundiaí, principal sede dos treinos de Taynna há oito anos, coordenado por seu pai, Luís Cardoso, possui parceria com a prefeitura do município. Pelos bons resultados nos campeonatos brasileiros, os atletas recebem uma quantia mensal do governo e, ocasionalmente, de instituições privadas. Hoje, o clube se preocupa mais com a parte técnica do boxe – o foco não é mais formar esportistas para a Seleção Brasileira, segundo Luís. Atualmente, Taynna está focada em fazer parte do mundo Mixed Martial Arts (MMA), Artes Marciais Mistas, em tradução livre. Para ela, este é um universo mais amplo, e é preciso treinar com mais suporte e com técnicos mais experientes. Apesar de hoje treinar junto com Juninho Crivelari e Cassiano Titio, grandes nomes da era MMA, a atleta não descarta a possibilidade do boxe profissional. “Um não atrapalha o outro”.

Como atleta, não temos um futuro certo. Lutamos em competições para que essas se tornem um espelho e para que seja possível alcançar valores monetários maiores, só que quando isso não vem, precisamos trilhar outros caminhos” Taynna, boxeadora

Esporte

23


RELIGIÃO

O poder da mente Conheça a Cientologia, religião escolhida por astros de Hollywood que está ganhando espaço no Brasil Texto por Marcela Palhão

“V

ocê precisa se conhecer primeiro para encontrar a entidade superior que rege o Universo”. Lucia Winther, diretora da editora Ponte do Brasil, responsável pela tradução dos livros cientólogos no país, explica o que prega a religião criada por L. Ron Hubbard, em 1952. Cercada por polêmicas e frequentada por artistas hollywoodianos, a Cientologia procura melhorar o relacionamento das pessoas com o universo físico e espiritual, além de ajudar na superação de momentos traumáticos e a desvendar os mistérios da mente. CRIADOR E CRIATURA. Lafayette Ron Hubbard é a cabeça por trás da Cientologia. Filho de um oficial da Marinha dos Estados Unidos teve a oportunidade de viajar o mundo e conhecer pessoas de outras nacionalidades, o que aguçou a sua curiosidade pela mente humana. Incentivado pelos pais a cursar engenharia, Hubbard frequentava algumas aulas de psicologia na Universidade George Washington, sempre indagando quais eram os avanços nos estudos do comportamento humano. Nesta época, ele começou a escrever para se sustentar, tendo diversos livros de ficção científica publicados, o mais conhecido, Battlefield Earth, a Saga of the Year 3000, ganhou uma

Confira algumas celebridades que seguem a Cientologia

Tom Cruise é considerado o maior divulgador da Cientologia

Christopher Reeve fez alguns cursos para iniciantes, mas não permaneceu na igreja 24

Revista Esquinas

F0T0S POR WIKICOMMONS

John Travolta atribui sua fama à fé

adaptação para os cinemas em 2000, estrelado por John Travolta, hoje fiel cientólogo. Ao perceber que conseguia escrever e agradar o público, LRH, como é chamado pelos seguidores da Cientologia, decidiu juntar duas paixões e lançou o livro Dianética, O poder da mente sobre o corpo, em 1950, que se tornou um best-seller com 20 milhões de exemplares vendidos e foi traduzido para 50 línguas. Segundo esse livro, a mente grava todos os acontecimentos traumáticos no que Hubbard chamou de “mente reativa”, uma parte do cérebro que age abaixo do nível da consciência, fazendo com que as sensações daqueles momentos se tornem como um botão de liga e desliga para emoções ali vividas. Uma pessoa descobre, em um dia chuvoso, que seu cachorro fugiu, por exemplo. Dali em diante, as emoções serão reavivadas sempre que a pessoa entrar em contato com a chuva, mesmo que inconscientemente. Hubbard inventou uma técnica chamada de “audições”, que permite à pessoa descobrir que momentos gravados em sua mente reativa faziam com que ela tivesse sentimentos negativos. As audições funcionam como uma sessão de psicoterapia em que ministros, cientólogos mais graduados, ajudam os fiéis a se conhecerem e desligarem de sensações negativas, mas o que Hubbard não esperava é que levassem pessoas a visitar vidas passadas: “Não é regressão, porque não envolve nenhum tipo de hipnose ou perda de sentido, mas o indivíduo consegue retornar a incidentes de outras vidas e entender porque eles têm peso na sua experiência atual”, explica Lucia Winther. De acordo com ela, quando as técnicas de Hubbard deixaram de envolver apenas a mente e passaram a lidar com o espírito das pessoas, ele decidiu que era a hora de criar uma religião, a chamada Cientologia. “Dianética foi criada para sabermos como a mente funciona, já a Scientology estuda e trata do espírito em relação a si mesmo, o universo e outras formas de vida”. A Cientologia é baseada em estudos das obras deixada por Hubbard, que escreveu mais de 90 livros sobre o tema antes de morrer, em 1986, com 74 anos, e a prática das audições. O objetivo é que um fiel consiga desligar totalmente sua mente reativa e atinja o estágio Clear, em que tenha total conhecimento de si mesmo e de seus sentimentos. Lucia Winther afirma que a Cientologia crê que o espírito vai trocando de corpo até atingir o nível em que não precisa de um corpo para existir. “Se você morresse agora, o seu espírito deveria ir até uma maternidade e encontrar outro corpo. Um espírito só existe sem um corpo quando ele não precisa mais de um para existir”. L. Ron Hubbard é o único espírito que atingiu esse estágio.


1ª Dinâmica: É o conhecimento de si como individuo, da expressão da individualidade

2ª Dinâmica: É o impulso para a existência como geração futura, como a vivência familiar

3ª Dinâmica: Envolve a escola, a sociedade, a cidade, a nação e todas as relações em grupo

As Dinâmicas da Existência

4ª Dinâmica: É o conhecimento da existência como Humanidade 5ª Dinâmica: Abriga toda e qualquer forma de vida, vegetal ou animal

Para entender o Universo, o indivíduo deve conhecer as dinâmicas prospostas pela Cientologia Ilustração por Arthur Ponzeto

8ª Dinâmica: O cientólogo tem acesso à chamada Verdade, um segredo sobre a criação do mundo e a chegada dos thetans, almas banidas do Universo, à Terra

7ª Dinâmica: A fonte de vida, já que considera que somos todos espíritos em busca do estado Clear

O DIA EM QUE ME TORNEI CIENTÓLOGA. Para conhecer e ter uma experiência mais próxima do que é ser cientólogo, decidi participar da iniciação, que é a porta de entrada da Cientologia. Fui até a única igreja que existe no Brasil, localizada depois da estação Carrão do metrô, em São Paulo, em uma pequena casa geminada de fachada bege. Nenhuma placa indicava que a igreja era ali, mas bem perto das grades do portão, dentro da sala, é possível ver um quadro com uma foto do L. Ron Hubbard, sorridente, em tamanho real. Após tocar a campainha, fui recebida por uma simpática senhora chamada Diva, responsável pelo lugar e cientóloga há 12 anos. “Eu me tornei outra pessoa depois de conhecer a religião, sei me comunicar melhor e me conheço melhor. Eu estava desesperada atrás de alguma coisa que fizesse sentido para mim e quando conheci a Cientologia, me achei”. Preenchi uma ficha com meus dados pessoais e fui submetida ao chamado Teste de Personalidade, 200 perguntas a que deveria responder com Sim, Não ou Talvez/Não Entendi. Entre questões comuns como “você se sente ansiosa facilmente?” e “acha fácil expressar emoções?”, havia perguntas que me deixaram curiosa para saber que conclusão eles teriam de mim, como “você se

6ª Dinâmica: É o esforço do ser humano para manter a sobrevivência do universo físico

opõe ao sistema de liberdade condicional para criminosos?” e “você come rápido?”. Depois que devolvi o teste preenchido, Diva passou minhas respostas para um computador, gerou um gráfico, que apresentava meus pontos positivos e negativos. Fui levada a uma sala para ter uma longa conversa com ela sobre minha vida e meu comportamento. Segundo a cientóloga, apresentava sinais de estar, naquele momento, dispersa e triste, de ser teimosa, ter iniciativa e guardar meus sentimentos. “Se você decidir estudar a Dianética e a Cientologia, o primeiro passo é largar remédios psiquiátricos, caso você tome, porque eles te deixam inconsciente para tomar decisões ou gravar acontecimentos. De qualquer maneira, eles não fazem falta, porque aqui nós conseguimos curar essas doenças com as audições”, avisou Diva. Após duas horas de conversa e de ter contado sobre minha vida e ela ter constatado quais acontecimentos marcaram meus familiares e se tornaram minhas heranças sentimentais, que poderiam ser as responsáveis pelo meu mal-estar e tristeza, me despedi de Diva. Ela prometeu manter contato por WhatsApp para que eu pudesse tirar mais dúvidas e me aproximar da Cientologia. Religião

25


SAÚDE

A voz e o corpo da luta antimanicomial A transição dos hospícios para as residências terapêuticas Texto por Gabriel Seixas, Mariana Martucci e Pedro Caramuru Fotografia por Pedro Caramuru

D

irce Cordeiro já passou por cinco internações em manicômios. Ela leva na testa uma cicatriz decorrente de uma crise em que caiu e bateu a cabeça. Em 1988, na primeira de suas internações, foi dado a Dirce o diagnóstico de psicose maníaco-depressiva, transtorno mental que faz o paciente passar por fases de extrema euforia seguidas por períodos de tristeza, arrependimento e profunda depressão. Durante o tempo em que a felicidade invadia e tomava conta de seu corpo, além dos sonos encurtados, seus gastos não conheciam barreiras. Ela se tornava extremamente pródiga e caridosa. O cartão de crédito e o talão de cheque eram usados até o limite. Dirce até chegou a doar seu carro para poder realizar o sonho de uma pessoa que acabara de conhecer durante uma viagem a Roraima. Porém, como a alegria podia durar meses, mas não para sempre, logo vinha o arrependimento, e as contas, as dívidas e as repetidas internações. O período dentro dos manicômios era quase sempre repetido. Conforme o tempo passava, ela se sentia cada vez mais dopada, perdendo o controle motor até das tarefas mais básicas, como comer, escovar os dentes e falar. Não sabia o porquê estava internada e o propósito de ser medicada diariamente. Amenizava-se a crise e recebia alta, até a próxima internação. Hoje, Dirce é mais do que os médicos, enfermeiros, família e pessoas que a controlaram, e trataram, permitiriam. Ela se envolveu na luta antimanicomial, tornou-se diretora executiva da Associação de Volta Para Casa e luta para estender a sua realidade de autonomia a outros pacientes. “Eu tinha achado o verdadeiro motivo para continuar e viver o meu presente: a vida. A luta pela vida”, Dirce relata em sua tese de especialização pela Faculdade de Medicina do ABC. Embora a sua história seja de superação, nem todos os pacientes que, como ela, entraram nos hospitais psiquiátricos tiveram a mesma recuperação. 26

Revista Esquinas

Muitos, se não ficaram trancados perpetuamente, perderam-se ao longo do trajeto para o suicídio, às drogas, à condição de morar na rua ou aos próprios delírios. Os manicômios eram vistos como um asilo para desova de doentes, onde pessoas eram jogadas e trancadas, não para amadurecer, mas para apodrecer sob um regime altamente autoritário, reflexo da própria época. Aos loucos criminosos, internados até o final da década de 1980, eram oferecidas poucas, se não nenhuma, oportunidades de reabilitação. Os hospitais psiquiátricos combatiam a desobediência dos pacientes com castigos que extrapolavam até as condições dos presídios comuns. Conforme relata o Dr. Paulo Sampaio, mé-

portamento. As reações adversas, descritas na bula dos medicamentos prescritos pelo médico, variavam entre forte relaxamento, incontinência urinária, tremores e contrações violentas, que acometiam a musculatura das costas, pescoço e cabeça, deixando o paciente em um arco voltado para trás. Os tratamentos desumanos levaram médicos, familiares e trabalhadores de hospitais psiquiátricos a protestarem – reivindicando por um modelo de saúde humanizado. No processo de repensar o regime ditatorial, em 1987 foi realizada a I Conferência Nacional de Saúde Mental, que trouxe a importância de se tratar a doença psíquica como fruto de um contexto não só biológico, mas também socioeconômico. O relatório do evento, publicado no ano seguinte, sinaliza que a doença mental pode ser compreendida também como resultante do processo de exclusão social e humilhação dos pacientes. “A medicalização e psiquiatrização frequentemente mascaram os problemas sociais e assim contribuem para a alienação psíquica e social dos indivíduos submetidos a estes processos, despojando-os de seus direitos civis, sociais e políticos”. A reforma se materializou no projeto de lei do deputado Paulo Delgado (PT-MG), escrito em 1989. Retida entre tramitações parlamentares, apenas em 2001 a legislação foi aprovada. O texto da lei nº 10.216, ou lei da Reforma Psiquiátrica, diz que “a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”, e que “o tratamento em regime de internação será estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais”.

Saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente a ausiência de doença ou enfermidade Organização Mundial de Saúde, 1946 dico psiquiatra, ex-diretor do Hospital de Custódia de Franco da Rocha e autor do livro A Desconstrução de um Sonho, o repertório para disciplinar os internos incluía castigos físicos e espancamentos, contenções mecânicas, aplicações de eletrochoque, ameaça e uso de medicação e confinamento solitário. Em alguns hospícios, o confinamento se fazia com a interdição do uso de roupas, inclusive durante os períodos de frio do inverno paulista. Lençóis e fronhas também eram proibidos, pois poderiam ser usados pelos detidos para cometer suicídio. Os cuidados hospitalares também eram falhos e remédios eram prescritos desnecessariamente como punição de mau com-

O RECURSO EXTRA-HOSPITALAR. Com a aprovação da lei 10.216, a hegemonia dos hospitais psiquiátricos como núcleo organizador no tratamento das doenças mentais começou a ser contestado. Somente na


PEDRO CARAMURU

O serviço de residências terapêuticas oferece, além de maior autonomia sobre seu o cotidiano, refúgio e conforto aos usuários do sistema de saúde

Editoria

66


PEDRO CARAMURU

Em Santo André, o CAPS e a Associação De Volta Para Casa representam uma segunda família para as pessoas que buscam ajuda. O tratamento se mistura à rotina diária dos pacientes como uma forma de oferecer maior autonomia e capacidade de atuação. Alguns dos personagens desta página começaram cedo a percorrer a trajetória do tratamento e, hoje, têm maior conhecimento e controle sobre a sua doença. Outros, só iniciaram o percurso há pouco tempo e têm ainda uma jornada pela frente, algumas vezes a doença os acompanhará pelo resto da vida. Independentemente, nestas instituições as pessoas recebem o amparo e auxílio necessários, sem que, para isso, seja necessário interromper parte de suas vidas em internações nos hospitais psiquiátricos. Hoje, no Brasil, diversos hospitais psiquiátricos estão reduzindo o número de leitos em favor de tratamentos que priorizem a sociabilização dos pacientes

65

Revista Esquinas


capital paulista foram 17 mil internações pelo SUS em 2015 devido a transtornos mentais como demência, abuso de álcool e outras drogas psicoativas, esquizofrenia, oligofrenia (atraso no desenvolvimento intelectual), transtornos de humor e neuróticos, entre outros. A expectativa do número de internações para 2016 é pouco maior que 16 mil, próximo dos calores do final da década de 1990. A lei da Reforma Psiquiátrica ajudou a estabilizar o número de internações sem que este crescesse proporcionalmente ao aumento populacional. E para atender ao excedente de pacientes, surgiu um novo modelo de atendimento: os Centros de Atenção Psicossocial, ou CAPS. Esses centros são utilizados principalmente como unidades básicas de saúde para o sofredor psíquico. Este novo padrão está muito mais centrado no atendimento local e personalizado que oferecem serviços que variam do atendimento psiquiátrico, fornecimento de remédios pela farmácia, terapia ocupacional, enfermaria com leitos, sala de convivência e barbearia para o bem-estar e autoestima dos pacientes. A forma inovadora está justamente em tratar o paciente no seu próprio contexto sem afastá-lo do seu círculo de convivência. Para Daisy Miriam, enfermeira e coordenadora do CAPS Praça Chile, em Santo André, sua preocupação está em prover um serviço humanizado que excede o dos hospitais psiquiátricos. “O que nós podemos oferecer que não seja parede e confinamento? Porque parede e confinamento cronifica. Você ter um sujeito dentro do convívio social, validando as suas potencialidades, não a doença, a gente consegue que a pessoa preserve o mínimo do que houver de são. Esse é o nosso grande desafio”. A unidade de Santo André está mudando a vida de seus usuários. Ao redor dela, diversas residências terapêuticas foram instaladas – a sexta deve ser inaugurada em dezembro de 2016 – porém, mais do que alterar a paisagem, o CAPS está ressignificando a vida de seus pacientes como Juliana* e Francisco*, ao mesmo tempo em que recebem tratamento para esquizofrenia, também trabalham na rede. Ele, no serviço de escritório e ela como cuidadora, garantindo que outros tenham acesso aos mesmos recursos. A experiência deles primeiro como pacientes e, em seguida,

como acolhedores aponta para resultados melhores. Francisco* teme que se não fosse pelo trabalho desenvolvido pelo CAPS em Santo André, seu destino hoje poderia ser diferente. Segundo ele, “se eu tivesse tido as crises esquizofrênicas em 1994, 1996, estaria em um manicômio, ou podia estar em presídio psiquiátrico, porque era muito agressivo, muito nervoso”.

contabilizavam 721.44 de casos. Em 2015, ocorreram apenas 22.821 internações. A diminuição é resultado da política de redução de leitos e não internação compulsória na pós-reforma psiquiátrica. O repasse de verbas públicas do orçamento da saúde mental a hospitais psiquiátricos em todo o Brasil, no mesmo período, também foi reduzido. Antes da lei 10.216 chegou a ser

A unidade do CAPS II, na Praça Chile em Santo André, disponibiliza medicação e psicoterapia

Diferentemente da forma como as alucinações são tratadas pela cultura popular – como forma de genialidade matemática, ou fantasia – os surtos de esquizofrenia, na maioria das vezes, convergem para paranoias e sensação de perseguição, que colocam o sofredor em estado de angústia, agressividade e medo. Francisco* conta que as suas alucinações prejudicavam o seu trabalho. Enquanto caminhoneiro, ele ouvia xingamentos e ofensas dos outros motoristas, mas, mais do que atrapalhar seu serviço, as alucinações o acompanhavam até a porta de casa. “Às vezes, chegava onde morava e ouvia a sua voz: ‘É você mesmo, seu filho da puta’. Eu achava que você estava lá, porque falei de você e ouvia ‘vem aqui fora!’. Eu ia à rua às onze, meia-noite, e não tinha ninguém, mas achava que tinha porque eu ouvia a voz. Uma vez peguei um martelo e você não estava lá”. O número de internações pelo sistema público de saúde no estado de São Paulo decorrentes de retardo mental, esquizofrenia e demência caiu desde 1998. Na época,

de 85%, hoje chega apenas a 20,61%, segundo o Ministério da Saúde. A redução abrupta levanta novas questões dentro da comunidade médica. Marcelo Ortiz, diretor técnico do Instituto Bairral de Psiquiatria e médico psiquiatra que já trabalhou em um CAPS na cidade de Águas de Lindóia, acredita que o tratamento exclusivo no centro oferece riscos ao tratamento do paciente e que a ampliação da rede de serviços é necessária. “Por mais eficaz que sejam, por mais

Ter um sujeito dentro do convívio social, validando suas potencialidades, e não a doença, torna possível preservar o mínimo do que houver de são” Daisy miriam, enfermeira Saúde

29


CAPS I

Atende até 30 usuários da saúde mental por dia. Abrange uma área de até 70 mil habitantes. Funciona em dias úteis até às 18 horas

CAPS II

Engloba uma área de até 200 mil habitantes e comporta até 45 usuários por dia. Encerra às 21 horas

Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)

CAPS III

Funciona diariamente e durante 24 horas. Atende populações acima de 200 mil habitantes. Recebe até 60 pacientes por dia

CAPS AD

Atende usuários com transtornos mentais resultantes do uso e/ou dependência de substância psicoativa

competente, por mais estruturado que esteja, ele não dá conta de determinadas situações”. Tais ocasiões podem envolver tentativas de suicídio ou até mesmo o desaparecimento do paciente. Também, o médico acredita que a eficácia está numa rede que atenda às diversas necessidades dos tratamentos, levando em conta a circunstância na qual o usuário está inserido. Para Marcelo, ainda há uma escassez dessa integração entre os recursos extra-hospitalares e os hospitais psiquiátricos. Nesse contexto, no dia 1º de dezembro de 2016, a Secretaria Municipal de Saúde da cidade de São Paulo fechou o último leito em hospital psiquiátrico. Mais de 160 pacientes foram encaminhados para unidades de residência terapêutica e hospitais gerais com objetivo, segundo nota oficial, “de reconstruir os vínculos sociais e familiares desses indivíduos, e de afirmar a sustentação da concepção de cuidado em liberdade”. O RETORNO PARA A CASA. A transição de um modelo centrado no hospital psiquiátrico para um atendimento diário e personalizado demanda uma equipe multidisciplinar e, muitas vezes, o acompanhamento sofre com limitações no aporte de recursos, pois sua importância é subestimada pela classe política. “Os partidos de direita tendem a enxugar os gastos sociais. Em 2008, a gente perdeu a nossa sede antiga por causa disso”, conta Elizabeth Henna, bacharel em Ciências Sociais, é uma das poucas integrantes do grupo antimanicomial “De Volta Para Casa” que nunca passou por nenhuma internação, porém conhece a realidade dos sofredores psíquicos por um caso em sua família. Parte dos pacientes se diz apolítica, mas a falta de 30

Revista Esquinas

representatividade legislativa faz com que busque emitir seus títulos de eleitor, podendo assim lutar por seus direitos por meio do voto. Enquanto essa realidade não se consolida em todo o país, o movimento continua a demonstrar sua força de oposição por outras vias. Em dezembro de 2015, o ex-psiquiatra e ex-diretor da Casa de Saúde Dr. Eiras de Paracambi, Valencius Wurch Duarte Filho foi nomeado Coordenador da Saúde Mental Álcool e Drogas pelo Ministério da Saúde. No hospício que dirigiu, durante o período em que foi diretor, praticava-se tortura, eletrochoques e a dopagem por medicamentos contra seus pacientes. O movimento social organizado de luta antimanicomial se mobilizou por meio de 656 entidades, e militantes ocuparam parte do Ministério da Saúde por 121 dias, demandando a exoneração de Valencius do cargo. No dia 09 de maio de 2016, a exoneração foi confirmada. Para Deise, “a Reforma Psiquiátrica vai além de propostas partidárias. Precisa haver o entendimento de que esse processo está muito cunhado na questão partidária e eu gostaria que a gente pudesse olhar além, dentro das políticas de saúde pública”. Ao redor da associação e do CAPS, são implementadas os serviços de residências terapêuticas (SRTs), que buscam reinserir na sociedade usuários abandonados nos antigos manicômios – com internações que perduraram mais de 20 anos. Até agora são cinco sob o cuidado de Zélia Tolentino, enfermeira de formação, coordenadora das residências de Santo André, “membra de corpo e alma”, em suas palavras, da luta antimanicomial. Ela revela as dificuldades no cuidado de pessoas que perduraram por tanto tempo em uma internação reclusa, que trespassa algo básico como não saber o próprio nome ou idade. “Como que eu vou resgatar


a cidadania? Pois saem de lá sem eira nem beira. Muitos sem saber o próprio nome.” As residências são divididas entre mistas e só masculinas ou femininas, a depender dos casos clínicos de cada casa, influenciando também no número de cuidadores designadas a cada endereço. Apesar do processo trabalhoso e longo, as residências se provam eficientes na visão de Zélia: “Tudo nas casas é decidido por assembleias com todos os moradores. Experimenta chegar atrasado pra ver como eles cobram. Isso é uma evidência da recuperação dessas pessoas e de sua autonomia”. Ao adentrar a SRT da rua Estados Unidos, em Santo André, todos os moradores nos recebem sentados, em um grande sofá, assistindo à televisão. Cerca de oito homens, das mais variadas idades, decidem se será permitido a visita – todos concordam. Luiz carrega a chave dos portões junto de si enquanto mostra a casa. Todos os três quartos possuem ao menos duas camas e um armário individual para cada usuário. Roselly, uma senhora de meia idade cuidadora na residência, conta que é bem tranquilo seu trabalho, e seus pacientes são amigáveis e respeitosos. Uma de suas responsabilidades é acompanhar os moradores em passeios pelo bairro para comprar roupas, ir ao cinema, ao parque e ao CAPS. Os moradores da mesma casa sempre fazem essas atividades em conjunto, o que ajuda a construir um sentimento de proteção entre eles, segundo Dirce. A estrutura de tratamento se desenvolve constituindo laços estreitos entre os usuários e seus cuidadores. Sandra, durante o dia, é frequentadora do CAPS e moradora da residência terapêutica feminina. Ela entra na sala, chorando, e implora à Daisy – responsável por seu cuidado – que a deixe

Controlar o acesso a sua própria casa também é ter o controle de si, pequenas conquistas no cotidiano do usuário da saúde mental ilustram anos de luta por seus direitos

levar sua medicação para casa, para tomala mais tarde. Era seu aniversário e estava preocupada em ficar sonolenta durante a comemoração. Da festa participaram colegas e moradores de outras residências, com a possibilidade de desfrutar de um bolo de morango após os dois parabéns cantados pelos presentes. Na STR onde hoje moram, vê-se que os cuidados se ampliam para além do corpo e trazem conforto para os

sentidos da mente. Embora a reforma do setor psiquiátrico não seja uma realidade em todo o país, ela tem se mostrado um avanço fundamental para a construção da autonomia de pacientes. Sandra vive sem as amarras do confinamento que outrora era recorrente – mesmo que para isso ela tenha que atrasar os comprimidos.

*

Os nomes foram trocados para preservar a

identidade dos entrevistados. Saúde

31


CIDADES

Periferia clama poesia No Sarau dos Mesquiteiros, na Zona Leste de São Paulo, jovens encontram oportunidades por meio das artes Texto por Beatriz Moraes, Khaila Zaidan e Larissa Bomfim Fotografia por Larissa Bomfim

E

ntre as ruas Major Ângelo Zanchi e Doutor João encontra-se o Centro Cultural da Penha, na Zona Leste de São Paulo. Localizado no alto de uma ladeira, o prédio de cores claras se mistura com o céu cinza da tarde de sábado e chama atenção em meio às ruas estreitas. O lugar está lotado de jovens e crianças desde a entrada até as cadeiras da biblioteca – ou do teatro –, que anseiam por segurar o microfone ou apenas participar da festa. Ao som de um tambor, um alto falante e uma gama de palmas ritmadas, um grupo de mais ou menos vinte crianças enche de vida o espaço com suas vozes em uníssono a cantar: “Pra onde eu vou? Vou para o sarau!”. Sorridentes e determinadas, elas contagiam o ambiente com essa manifestação artística muito animada e cheia de significado. O Sarau dos Mesquiteiros começou em 2006 na escola pública estadual Jornalista Francisco Mesquita. A iniciativa partiu de Rodrigo Ciríaco, ávido leitor, escritor e professor de História. “Quando me lembro de literatura na escola, era sempre uma coisa muito chata. Vista como um manual para você ler e escrever bem e não a literatura como arte, como linguagem”. Para mudar essa perspectiva, o professor buscou maneiras de tornar a literatura acessível para as crianças. Trazendo livros da biblioteca da escola e também de seu acervo pessoal, sendo a maioria referente à literatura periférica, Ciríaco passou a introduzir a ideia do sarau. Após recitar um poema, o professor notou os primeiros efeitos nos alunos, que, se não foram todos imediatamente capturados pela magia das palavras, ao menos deixaram que uma boa dose de curiosidade penetrasse por meio de uma fresta de possibilidades em suas mentes. A partir disso, o projeto alavancou e foi conquistando um número 32

Revista Esquinas

cada vez maior de crianças deslumbradas com a arte. Durante os anos seguintes, Ciríaco conseguiu espaço para convidar alguns escritores, como Renan Inquérito e Sérgio Vaz. A ideia de trazer convidados também é de desvincular a imagem do autor à de algo inalcançável, mostrando que a chance de participar ativamente da literatura não era algo tão distante da realidade destes jovens. “Um por todos e todos por um” é o lema dos alunos e professores que formam o coletivo. Somente em 2009, o projeto conseguiu ser comtemplado pelo edital do Programa Vai da Secretaria Municipal de Cultura, a partir disso a proposta passou a ser implementada não apenas no ambiente escolar, como também em outros espaços públicos da cidade, elencando, além dos estudantes da escola Evandro Mesquita, toda a comunidade do Jardim Verona e Ermelino Matarazzo, para participar do Sarau dos Mesquiteiros. Desde então, todo terceiro sábado de cada mês, as reuniões abrem espaço para que qualquer um assuma o palco e tenha vez para colocar sua alma à disposição de quem assiste. Os próprios jovens, sob a orientação cuidadosa de Ciríaco, organizam os eventos, montam os cenários, direcionam uns aos outros para garantir a fluidez dos saraus, constroem mesas de pintura para as crianças e montam uma banca de livros para aqueles que queiram fazer suas citações de última hora.

Uma das características marcantes do grupo é a união da poesia com o rap da comunidade, uma ponte para a chamada poesia slam. Esse gênero, originário dos guetos americanos e representado no Brasil especialmente pelos saraus periféricos, nada mais é do que a poesia recitada com uma entonação mais forte, de forma dura, fazendo barulho, misturada com a música e chamando a atenção do público com elementos exteriores ao texto: a própria voz. São jovens a partir dos 13 anos que lotam as bibliotecas em dias de evento. E deles, ouve-se: “O sarau muda todo mundo que participa”. Cada um com sua história, com os olhos cheios de poesia. A arte da rua é democrática e clama pela participação das pessoas, especialmente nesse tipo de evento, no qual para participar é “só chegar”, sem pagamento ou obrigações. O sarau, por fim, se torna não apenas uma rota de fuga, mas uma nova oportunidade.

Biqueira literária

Vendo pó! Vendo pó... Vendo pó... esia Tem papel de 10 Tem papel de 15 Tem papel de 20 Com dedicatória do autor Ainda vivo

O Sarau dos Mesquiteiros é aberto ao público e acontece todo terceiro sábado de cada mês


Projetos urbanos Iniciativas para uma metrópole mais acolhedora JOÃO VICTOR MARQUES

Texto por Yasmin Toledo

D

iante da percepção de que as ruas, calçadas, escadarias e praças podem ser um ambiente de lazer, convívio social e atividades ao ar livre, surgiram os projetos Cidade Ativa, Orquídeas na Vila e Corrida Amiga. São realizadores de diferentes ações com distintas abordagens, mas o que os une é o objetivo comum de fazer de São Paulo um ambiente mais agradável, que inspire as pessoas a saírem de suas casas para aproveitar melhor o espaço público e interagirem com ele.

As orquídeas são plantadas em vasos feitos de materiais reciclados na Vila Madalena

CIDADE ATIVA. Em 2014, Gabriela Callejas, após retornar de Nova Iorque, onde estudou arquitetura, sentiu a necessidade de importar para São Paulo o conceito de Desenho Ativo, que tem como objetivo incentivar as pessoas a terem hábitos mais saudáveis a partir de ações urbanísticas. Então, criou a Cidade Ativa, uma organização sem fins lucrativos que realiza pesquisas e projetos de intervenção na capital paulista. Uma de suas iniciativas, o projeto “Olhe o Degrau”, procura reintegrar as escadarias degradadas e esquecidas às paisagens da cidade, possibilitando, além de um deslocamento mais seguro, o uso desses espaços para o lazer e prática esportiva. Por meio de oficinas de grafite e pintura, esses escadões são requalificados. A iniciativa, que teve sua estreia na escadaria localizada na Rua Alves Guimarães, no bairro de Pinheiros, hoje, já atuou também nas regiões do Jardim Ângela e Pompéia. “É um ciclo. Temos em foco mudar a cidade para que as pessoas mudem os hábitos, mas também que as pessoas mudem os hábitos para a cidade mudar”, explica a coordenadora da Cidade Ativa, Rafaella Basile.

CORRIDA AMIGA. A Corrida Amiga foi fundada por Silvia Stuchi, em 2014, e é formada por uma rede de voluntários que tem como o objetivo fazer com que as pessoas troquem os automóveis pelo transporte a pé. Aos interessados em realizar essa troca, basta entrar no site do projeto e falar com um dos voluntários, que se propõe a ajudar com dicas, planejamento de trajetos e até mesmo servindo de companhia

nas primeiras caminhadas. Os corredores amigos – apelido que usam para se referir àqueles que se voluntariam no projeto – estão espalhados por todo o Brasil, mas caso não haja um atuando na região onde o pedido foi feito, a ajuda é dada de forma inteiramente online. Uma das soluções adotadas pelo projeto para que os cidadãos optem pelas caminhadas é tornar as calçadas e ruas locais mais acessíveis e convidativas. Ainda no ano de 2014, a equipe da Corrida Amiga criou uma Campanha chamada “Calçada Cilada”. Inicialmente por meio de fotos compartilhadas em redes sociais e, hoje, pelo intermédio de um aplicativo de celular, é possível denunciar dificuldades e obstáculos encontrados pela cidade, como buracos e falta de sinalização, mapeando, assim, problemas encontrados em trajetos. Apenas em 2016, a campanha conseguiu mais de duas mil denúncias em cidades de diversos estados, com destaque para São Paulo, Distrito Federal, Paraná e Rio de Janeiro.

DIVULGAÇÃO

DIVULGAÇÃO

A Cidade Ativa reintegra escadarias em São Paulo

ORQUÍDEAS NA VILA. “Eu moro na Vila Madalena desde que nasci. Quando era moleque, conhecia o bairro inteiro porque brincava na rua, e, depois de um tempo, quando começou a sair prédio para todo lado, não conhecia mais ninguém”. Foi a partir desse incômodo que, em 2011, o professor Diego Lahóz, com a intenção de restabelecer uma relação mais íntima entre os moradores de seu bairro e as ruas onde habitam, passou a distribuir orquídeas de seu próprio jardim pelas árvores e postes de sua vizinhança. Seu projeto, que recebeu o nome de Orquídeas na Vila, cresceu e hoje, graças à ajuda dos moradores que contribuem com regagem, doações de flores e montagem de arranjos, o bairro está mais florido. Além disso, os vasos são feitos com materiais retirados do lixo, como garrafas pet, coadores de café e, até mesmo, sapatos usados. Para Diego, um dos aspectos positivos do projeto, além de deixar as ruas mais bonitas, é criar na população uma noção de coletividade, em que as pessoas trabalham juntas para cuidar de um espaço comum.

Corrida Amiga dá dicas para um trajeto mais seguro

Cidades

33


CULTURA

O popular da turma De intelectuais retraídos a geeks descolados, os nerds mudam paradigmas e o encanto dos quadrinhos ganha mais adeptos Texto por Lucas Sam, Luciana Lira, Lyssa de Miranda e Vanessa Victoria Fotografia por Vanessa Victoria

A

casa da bancária Marcia Anasazi, de 48 anos, tem um móvel só com brinquedos da franquia cinematográfica Star Wars, como o boneco do robô R2D2 e um abajur do mestre Yoda. Uma prateleira com naves do filme intergaláctico Star Trek e outra com diversas figuras de ação do seriado Arquivo X e dos filmes Helboy, Predador, Robocop e ET. A cultura geek (nerd em inglês) está cada vez mais presente no cotidiano da cidade de São Paulo. A popularização dessa cultura está se espalhando pelas lojas, cinemas e eventos típicos desse universo, como o Comic Com, Anime Friends e o Brasil Game Show. Mas nem sempre ser nerd foi considerado algo positivo. O termo é uma gíria e não se sabe exatamente quando surgiu. No entanto, uma das teorias é que a palavra está atrelada ao escritor norte-americano Theodore Seuss Geisel (Dr. Seuss), autor de livros infantis clássicos como O Gato de Chapéu e Se Eu Dirigisse o Zoológico, de 1950, e apresenta um personagem considerado esquisito chamado Nerd. No ano seguinte, em 1951, foi publicada na revista Newsweek uma reportagem sobre os costumes dos jovens na cidade de Detroit, que estavam sendo apelidados de nerds. Assim nasceu o estereótipo do garoto intelectual franzino, solitário, de óculos grandes, aparelho nos dentes e cheio de espinhas no rosto. Além de ser uma consumidora aficcionada de filmes e livros, Marcia também faz representações de personagens fictícios, denominado como cosplayer. Ela já foi o Elfo da série de filmes O Hobbit, a professora Trawlaine de Harry Potter, e diversos personagens de Star Wars, como Jedi, Piloto Rebelde, Asajj Ventress, dentre outros. Quando começou a prática, em 2004, suas produções eram “cospobres”, como ela define, feitos com roupas improvisadas ou alugadas em lojas de fantasias. Atualmente, ela conta com a ajuda de uma cosmaker, profissional especializado em costurar e providenciar a fantasia, que produziu as vestimentas da rainha Amidala de Star Wars por 3 mil reais. “Vivemos em uma época que dá para trabalhar e fazer um monte de coisa sendo nerd. Seja em lojas, eventos, lanchonete ou Youtube. É um negócio que agora é comum, ser nerd virou normal”, 34

Revista Esquinas

conta o vendedor da loja Limited Edition, Daniel Bergaminim, que trabalha como mestre de cerimônia de eventos nerds, como o Anime Friends. Localizada na Rua da Consolação, no Jardins, o estabelecimento impressiona quem não conhece o mundo nerd. Luzes iluminam vitrines que glorificam as figuras de ação aclamados nos quadrinhos e filmes. Nas prateleiras, personagens de todas marcas emocionam qualquer fanático pela DC Comics e Marvel, entre outras grandes empresas de quadrinhos. O público é composto majoritariamente por nerds mais velhos, que, saudosistas, relembram sua adolescência e infância. A figura de ação do Capitão América é vendida ao preço de 2 mil reais. A personagem do Doutor Destino, de Quarteto Fantástico, sai por 11 mil reais, e a personagem do vilão Darth Vader a 13 mil reais. Aberta em 2009 pelos sócios Rodolfo Balestero Pranaitis e Daniel Altavista, a Limited Edition teve faturamento médio de 290 mil reais por mês em 2014. A Comix Book Shop, que fica na Alameda Jaú, próxima à Avenida Paulista, é outra loja geek, especializada na venda de gibis e revistas modernos, raros e antigos. À venda, estão reunidos em boxes, vinte a

cinquenta quadrinhos que custam de 300 a 700 reais. “Houve uma procura maior por quadrinhos principalmente devido aos filmes que estão saindo, como Capitão América: Guerra Civil. Todo mundo queria saber a origem dessa história”, conta o vendedor Thiago Aurélio da Silva, ressaltando a popularização das HQ por meio das adaptações cinematográficas. As bilheterias dos cinemas explodem toda vez que um filme de ficção científica ou de super-herói é lançado e muitas obras audiovisuais ostentam sucesso por meio de sua nerdice. É o caso de Star Wars: O Despertar da Força, filme lançado em fevereiro de 2016. Ao alcançar a grandiosa marca de 2 bilhões de dólares arrecadados nas bilheterias mundiais, o filme ficou atrás somente dos longas Titanic e Avatar. No meio de todo esse cenário próspero, o crítico de cinema, cinéfilo e nerd desde criança Rodrigo Narimatsu afirma que a cultura geek tem sido aproveitada como forma de ganhar mérito ou status, algo que pode ser perigoso. Para ele, seguir esse estilo hoje virou moda e muitos realmente usam esse momento para ganhar dinheiro sem entender bem esse univerno. “Acho legal a pessoa se interessar e se aprofundar, mas se aproveitar disso, não”. VANESSA VICTORIA

A loja Mundo Geek é especializada em vestuário nerd e renova seu estoque mensalmente


BELEZA

Entre cachos e inscritos

Criadora de um canal no Youtube sobre cabelos e maquiagem, Kamila Tchara ajuda mulheres a assumirem sua identidade Texto por Bárbara Gil e Camille Carboni Fotografia por Camile Carboni

N

o bairro de Sítio Morro Grande, na periferia da Zona Norte de São Paulo, mora Kamila Tchara e seu marido, Anderson Silva. O apartamento, além de casa, também é o cenário dos mais de 40 vídeos no canal do Youtube de Kamila que, aos 27 anos, organiza sua agenda entre emprego, gravações e trabalho como maquiadora. É na frente do notebook que Kamila passa boa parte de seu tempo livre, administrando o canal Universo Feminino. Tudo começou em 2014, com a criação de um blog sobre cabelos cacheados. “Uma amiga minha estava em transição, e eu sempre a ajudava e dava ideias de bons produtos para o cabelo, até que ela me perguntou por que não fazer um blog”. Mas nem sempre a blogueira, formada em administração de empresas, pode dar dicas sobre crespos, já que apesar dos pais serem cabeleireiros, ela manteve os cabelos alisados até completar 19 anos. “Alisei quando tinha oito anos. Minha mãe passava [escova progressiva] porque eu tinha muito cabelo e dava um trabalhão”. A necessidade de voltar aos fios naturais veio quando caindo, fracos e quebradiços, os cabelos não conseguiam aguentar os processos químicos do alisamento. Começou a procurar formas de recuperar cachos, e descobriu a transição capilar. Ficou nove meses nesse processo, em que químicas são deixadas de lado até o cabelo crescer e voltar à sua forma natural. Porém, uma crise de autoestima a fez voltar com a progressiva. O arrependimento, logo depois, trouxe a decisão de passar pela transição novamente. Mais nove meses se passaram e era hora de outra grande mudança: o big chop (grande corte), todo o cabelo danificado foi cortado. Kamila ainda relatou que, durante a transição, o marido não se acostumou de imediato com as mudanças, assim como seus parentes mais próximos. Sua mãe, inclusive, insistia que o cabelo da filha não formaria cachos de jeito nenhum. “No início, minha família falava ‘nossa, mas por

que você fez isso? Era melhor antes’, e isso me chateava”. Para ela, o apoio familiar é essencial em momentos como a transição capilar, que pode afetar a autoestima da pessoa. A maquiadora formada pelo SENAC, começou a se aprofundar mais no assunto e quando se sentia insegura, passou a conversar em grupos de mulheres cacheadas no Facebook, que têm o objetivo dividir experiências e incentivar mulheres em processo de transição. Hoje, sua autoestima é percebida nos vídeos do canal, idealizado partir da proposta de uma marca de produtos capilares, que sugeria a produção de vídeos para uma parceria. Completou um ano em outubro e o canal está próximo da marca de 6 mil inscritos, que começou a crescer com a audiência das leitoras de seu blog e, principalmente, com a divulgação que Kamila promovia nos grupos de cacheadas no Facebook, que chegam a ter mais de 200 mil membros. Os vídeos, que antes eram gravados pelo celular, agora contam com a ajuda de uma câmera semiprofissional, presente do maior incentivador do blog, o pai de Kamila. A responsabilidade técnica fica com Anderson, definido como “marido, fotógrafo, empresário, motorista, tudo!”, enquanto a blogueira comanda os processos de criação. Tudo gira em torno de cuidados capilares, com vídeos como “5 dicas que toda cacheada deve saber”. Porém, o conteúdo também inclui moda e maquiagem, sendo esse seu foco profissional no momento. Além de seu emprego como administradora, ela trabalha como maquiadora nos fins de semana e pretende abrir um espaço de maquiagem,

De acordo com dados da L’oréal, 56% das brasileiras têm cabelo crespo e 63% delas prefeririam tê-lo liso. Nesse cenário, blogueiras como Kamila Tchara falam sobre autoaceitação e cuidado com os cachos

CAMILE CARBONI

e investir em equipamentos e iluminação para gravar tutoriais. Kamilla se tornou referência por meio da internet, e percebeu como a sua postura diante de seu cabelo foi capaz de influenciar mulheres mais próximas. Depois da resistência inicial, sua mãe voltou aos cachos, assim como suas primas e vizinhas, que começaram a repensar a atitude de alisar os cabelos quando Kamila passou pela transição capilar. Sua decisão refletiu no seu ambiente de trabalho. “Eu sou a única cacheada, têm negras mas todas com cabelo relaxado, mas agora uma moça cortou por querer ficar com o cabelo igual ao meu”. Beleza

35


36

Revista Esquinas

ANA CLARA GIOVANI

FOTORREPORTAGEM


Festa do Boi A tradição maranhense nas ruas do Morro do Querosene

H

á 30 anos, nasceu o boi Luzeiro Grande no Morro do Querosene, que fica próximo ao Instituto Butantã. Todo ano ele renasce, é batizado e morre em três festas que acontecem no mesmo local – uma para cada fase da vida do boviníssimo. Cobrimos a morte do boi, que costuma acontecer perto do dia de Finados. Neste ano, ele morreu no dia chuvoso de 13 de novembro, reunindo pessoas para dançar e convidando-as a fundirem suas lágrimas com as gotas caindo do céu. O ritmo das matracas e pandeirões abre espaço para o maranhense Tião Carvalho e o Grupo Cupuaçu transformarem o Morro do Querosene três vezes ao ano. Responsáveis pela elaboração da decoração e das danças da festa, o grupo completa 30 anos de existência. Com diferentes sotaques, o grupo é composto por pessoas de todo o Brasil. Todas as quintas-feiras eles se reúnem em um teatro próximo ao Parque do Povo para ensaiar os passos e os cantos que conduzirão a festividade. Quando chegou ao Morro do Querosene em 1980, Tião sentiu a necessidade de suprir a carência da cultura popular nas pessoas e consegue, com maestria, manter essa tradição acesa até hoje. A festa de rua une comemoração e luto, dança, canto, sorriso e choro. Emoção. Dançarinos e dançarinas cheios de cores, barracas de sabores nordestinos e nortistas reúnem, todos os anos, os moradores do bairro para trazer a São Paulo um pouco da cultura maranhense. A praça do Boi é o local em que a festa se inicia. As barracas são armadas pela manhã e funcionam até a madrugada, com cachaças especiais de gengibre, limão, cravo e canela. Uma roda de capoeira une as pessoas e anuncia que o boi está por vir. Não há palco e plateia, todos dançam e cantam juntos pelas ruas do Morro do Querosene. Por Ana Clara Giovani, Pedro Caramuru e Victoria Franco

Fotorreportagem

37


PEDRO CARUMURU

ANA CLARA GIOVANI

No carrinho de mão, a fogueira acompanha os músicos durante toda a festa. O calor afina a pele do pandeirão. Quanto mais quente, maior a variedade de notas atingidas

À esquerda, Bartira Menezes dá o ritmo da dança e, à direita, Tião Carvalho, com microfone sempre na mão, canta. Ele também é o idealizador da festa e líder do Grupo Cupuaçu

38

Revista Esquinas


VICTORIA FRANCO

66

Editoria


PEDRO CARAMURU

65

Revista Esquinas


ANA CLARA GIOVANI

ANA CLARA GIOVANI

ANA CLARA GIOVANI

PEDRO CARAMURU

Os dançarinos vestem-se com penas, miçangas e lantejoulas. Eles, que também são moradores do bairro, dançam com o boi nas ruas do Morro do Querosene. Ao todo, são diversos personagens da cultura brasileira, que incluem vaqueiros, caboclos, índios, pajés e curandeiros

Fotorreportagem

41


PEDRO CARAMURU

65

Revista Esquinas


O boi, depois de laçado, é amarrado, morto e sangrado. Seu sangue, simbolizado pelo vinho, é repartido entre os participantes, enquanto seu corpo, recorberto por um manto branco, é velado após as horas de festividade

ANA CLARA GIOVANI PEDRO CARAMURU

Ao final do trajeto, os participantes se reúnem em roda para laçar o boi. A torcida é dividida: uns desejam que o boi escape com vida, outros querem que o vaqueiro consiga laçá-lo. Apesar das preferências, a festa só continua quando o boi é capturado. Para isso, a corda passa pelas mãos daqueles que, amparados por Tião, querem tentar a sorte como vaqueiros

PEDRO CARAMURU

Tomados por um tom mórbido, os participantes transbordam de emoções. O canto transformou-se em lamúria, e o riso, em choro na Festa do Boi Fotorreportagem

43


COTIDIANO

A cor do mangue Busca por titulação de terra no Quilombo do Mandira, em Cananéia, litoral sul de São Paulo Texto por Carolina Moraes e Gabriel Seixas Fotografia por Gabriel Seixas

S

eu Chico retira suas mãos negras de cima de uma das mesas de plástico que ocupam a parte externa do Bar do Nei e do Chico. O manejo das ostras rachou as digitais de seus polegares ao meio, as extremidades dos dedos estão margeadas por longas fissuras. “Tá feio, né?”, pergunta o homem de 59 anos. Os cortes desenham em suas mãos de unhas curtas parte fundamental da história de seu povo. Os rios que dividem o mangue da bacia hidrográfica do Ribeira são a seiva de Francisco Assis Coutinho e seus familiares: palco da disputa do direito à terra. Os europeus proprietários de terras, quando viram sua produção de arroz minguar diante da lucrativa monocultura cafeeira do início do século XIX, mudaram-se para Minas Gerais. O quilombo restou e sobreviveu como fruto da relação do patriarca local com uma negra escravizada que doou a propriedade para seus descendentes. Em 1974, a família Mandira possuía 1.344 hectares espalhados pelo vale. Mas ao fim do século, só restariam 53 hectares. Os empresários Affonso Antonio Di Trani Splendore e Aluísio de Assis Buzaid desceram a serra do mar com o dinheiro. No Brasil das estradas, graças à construção da BR-101 – que liga São Paulo ao Paraná – vislumbraram uma oportunidade de multiplicar seu capital adquirindo as terras da região. Prometeram “perseguir até o inferno” quem não vendesse as terras, como contam os moradores da comunidade. Depois das compras, abandonaram o terreno, mas deixaram seus nomes nas escrituras de posse. Todos os outros que cobiçam a fertilidade do Ribeira deparam-se com uma constante: o Quilombo do Mandira resiste. 44

Revista Esquinas

Agência Estado, 06 de agosto 2002, às 16h32: “Um projeto de exploração sustentável de ostras no Estuário de Cananéia, no extremo sul do litoral de São Paulo, é um dos finalistas do Prêmio Iniciativa Equatorial 2002. A premiação [...] será anunciada durante a Cúpula para o Desenvolvimento Sustentável (Rio+10), que acontece a partir de 26 de agosto, em Joanesburgo, na África do Sul.” Foi Chico Mandira quem recebeu o prêmio. “Na terra de onde veio meu povo”, conta com os olhos marejados sobre a ida ao continente africano. Até meados dos anos 1990, segundo conta, os coletores de ostra da região, que inclui as famílias do Quilombo, não realizavam nenhum manejo na extração, não respeitavam o tamanho mínimo para coleta do molusco e nem o período de reprodução da espécie. 60% do dinheiro dessa coleta desorganizada ficava na mão de atravessadores, locais responsáveis por repassar o produto aos compradores. O caminho percorrido a partir de 1994 até o reconhecimento internacional de um trabalho que está em harmonia com o meio ambiente descende das mudanças da organização do Quilombo. Os remanescentes começaram a se organizar a partir da luta dos quilombos de Eldorado, que já estavam à frente nesse debate. Atravessando uma estrada de 15 km sem desvios, marcada por pequenos riachos que escorrem e desaguam no mangue, buscaram apoio. Aliaram-se à Defensoria Pública há cerca de oito anos e ao

Instituto Socioambiental (ISA) há sete. Com novos laços e uma consciência coletiva de organização, o quilombo se transformou. “O que aprendi na minha vida desde 1994 não aprenderia na escola”, afirma Seu Chico. Os membros do Mandira se encontraram com outras comunidades e famílias ribeirinhas de Cananéia e, a partir da troca de experiências e do desenvolvimento do projeto do professor Antonio Diegues, doutor em Ciências Sociais e pesquisador da USP sobre meio ambiente, camponeses e trabalhadores do mar adotaram a premiada forma de exploração sustentável e tornaram a região uma reserva extrativista. Integraram-se à Cooperativa dos Produtos de Ostras de Cana-


Desde 1994, Francisco Mandira tornou-se uma referência na construção da identidade do quilombo

néia (Cooperostra), que fez dos produtores os próprios donos do negócio. A ABERTURA DO QUILOMBO. “Boate azul” sai do som logo em cima do balcão, atravessa a parede aberta e chega à área externa do Bar do Nei e do Chico. Não demora para que em volta de onde iniciamos nossas conversas com os moradores, comecem a chegar turistas. Aos poucos, eles vão ocupando as outras mesas do restaurante. Desde a reorganização do quilombo, os Mandira entenderam que o turismo podia – e devia – ser um dos pontos fortes para se sustentarem e estabelecerem um convívio com o restante do município já turístico. Além das ostras, a culinária local também parte do marisco. São diversos pratos que, no final de novembro, compõe a Festa da Ostra. Apesar da importância da comercialização da especialidade do quilombo, o ar-

tesanato feito pelas mulheres do Mandira se firmou, para além de uma outra fonte de renda, como uma forma de articulação política. A fábrica de artesanato, onde são produzidos colares, brincos, cestos de cipó, chaveiros e cascas de ostras pintadas é comandada pelo grupo de artesãs. E hoje, as paredes do galpão de pé direito alto são cobertas com sua produção. O galpão, o restaurante e o espaço para a festa não se separam de suas moradias. É logo no caminho entre o bar e o terreno, que divide o salão e a casa de artesanatos, que casas baixas cintilam desordenadamente embaixo de um sol ardido. E, para trás dessas construções, árvores altas se erguem e delimitam a área. Ao pé do vale, escondida no Ribeira, encontra-se uma rede de cachoeiras – vias de ligação entre nascentes mangue. Os turistas adentram na estrada de terra do

Mandira. A preocupação com os lixos deixados pelos visitantes se torna mais uma responsabilidade dos moradores. NO TEMPO DA MARÉ. Raízes aéreas desenham o trecho estreito do mar que dá acesso ao local de criação dos moluscos. A medida que a maré baixa, elas se revelam: são dezenas arranjadas entre galhos banhados de lama. De lá são retiradas e deslocadas para as telas duplas de plástico em que crescem e se reproduzem durante todo o ano. Entre os dias 18 de dezembro e 18 de fevereiro, ocorre a temporada de defeso da ostra: a não retirada dos crustáceos nesse período garante a reprodução saudável da espécie. Em janeiro de 2016, o então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, derrubou o Decreto Legislativo 293/2015, que garantia aos Cotidiano

45


pescadores o pagamento de um salário mínimo durante o período. Segundo ele, a mudança buscava “adequar os períodos de defeso a uma outra realidade em que algumas espécies não estão mais ameaçadas de extinção ou os locais de pesca não oferecem riscos para a preservação de determinada espécie”. O ministro reforçou a ideia de que não teriam prejuízo ao deixar de receber o seguro porque suas atividades econômicas se manteriam. E o benefício não chegou aos moradores da comunidade. Passada a temporada de 2016, os períodos de defeso foram restabelecidos em março pelo ministro Luís Roberto Barroso, que atribui a suspensão a uma economia de custos, em razão da crise econômica, que coloca em risco o meio ambiente. Apesar da restituição do benefício, a mudança na presidência e os resultados das últimas elei-

ções para prefeito e vereador deixam um ambiente preocupante entre os moradores do quilombo, com Gabriel Rosa do PSD eleito para prefeitura de Cananéia e uma bancada conservadora ocupando a Assembleia Legislativa. UM CLIMA TAMBÉM DE INCERTEZAS. Há 40 anos não chovia granizo nas terras do Mandira. Neste ano, o gelo caiu. Seu Chico explica o fenômeno com a frase de seu avô: “O homem perdoa, Deus perdoa e a natureza, não”. As mudanças climáticas que trazem chuva demais e estiagem não atingem só o Quilombo do Mandira, mas toda a região do Vale. Segundo o acompanhamento do ISA com os quilombos da região, o aumento da temperatura, consequência direta da poluição de uma mata já muito devastada, afeta a frequência e a intensidade dos fenômenos naturais. Na região de Eldorado, o excesso de chuvas e a oscilação entre altas temperaturas e geadas atrasaram o início tradicional dos plantios. Essa instabilidade chega às águas que ocul-

O homem perdoa, Deus perdoa e a natureza, não” Seu Chico, liderança quilombola

tam as redes do mangue na maré cheia. E pequenos crustáceos semi-esféricos, cuja extremidade se assemelha a uma fenda vulcânica, reproduzem-se exponencialmente. As cracas, que naturalmente se grudam nas conchas das ostras, crescem junto ao aumento da temperatura da água e a produção dos bivalves é atingida: das cerca de 500 dúzias retiradas semanalmente, o número é reduzido a 150. Depois da retirada, a ostra é bem menor. Resistir aos problemas ambientais e sociais afirma uma existência enquanto comunidade quilombola que se distancia das apresentadas nos bancos escolares, e de uma relação com a terra e com o tempo que se passa por gerações. Juninho Mandira, de 27 anos, um dos filhos de Francisco, caminha pelo mangue enquanto conta sobre seu trabalho. Seu, de sua esposa, de seu filho. De um corpo que é maior que eles: formado pelas histórias de quem constituiu essas terras antes e de quem as continuará. Em uma tentativa falha, buscamos entender um fluxo de trabalho a partir de uma noção pautada no relógio. Mas Juninho Mandira nos tira desse lugar: “Nosso tempo é a maré”.

Apesar de seu filho sempre pedir para acompanhá-lo nas idas ao mangue, Juninho procura equilibrá-las com os estudos escolares

46

Revista Esquinas


De longe Texto e fotografia por Victoria Franco

Conflitos entre práticas ancestrais e políticas de preservação ambiental em comunidades quilombolas do Vale do Ribeira

S

aio de São Paulo em direção a Eldorado pela Régis Bittencourt. Nas quatro horas de viagem, alterno meu olhar entre folhas cruas de um bloco de notas e ao que a janela do carro me permite ver. Monotonia pura. Não arrisco estimar o número de bananeiras que vejo, até porque chega um ponto em que meu olhar não as alcança mais – são muitas. Ivo Santos Rosa de 51 anos, morador do Quilombo Sapatu, conta sobre os aviões de empresas agrícolas que sobrevoam o Vale do Ribeira para pulverizar químicos na imensidão de bananais. A fala de Ivo evoca protesto e logo traz uma lembrança pungente: foi muita luta para que as crianças da escola da comunidade de Poça, engolida pelo avanço dos latifundiários bananeiros em direção a territórios originalmente quilombolas, não ficassem expostas aos químicos durante as refeições ao ar livre no colégio. Uma medida foi tomada para acalmar as manifestações de pais e famílias: em vez de lancharem com agrotóxicos sendo despejados diretamente sobre suas cabeças no pátio, foram colocadas para comer dentro das salas de aula – agora, os chamados pesticidas só percorrem um caminho minimamente mais longo para chegar até elas pelo ar. Poça fica na margem direita do Rio Ribeira de Iguape; a fonte de água das comunidades quilombolas também recebe, involuntariamente, pulverizações. João Santos Rosa é pai de Ivo, tem 74 anos de memória coletiva – viva. Quando converso com Seu João, aceno, também seus ancestrais. A fala apressada é de quem tem muito a contar sobre o que aprendeu com os que vieram antes dele. “Quem protege a cabeceira das águas, tem água para toda vida”. É por isso que a família de Seu João não faz roça perto do rio. Se os quilombolas têm o cuidado de não derrubar a vegetação próxima ao Ribeira de Iguape para preservar suas águas e, com elas, todo um modo de vida, quem vem de fora parece ver a terra como bem a ser consumido, reforçando a hierarquia do domínio humano sobre a natureza, convencionada no chamado desenvolvimento.

BARRAGEM NÃO. Quando foi construída, entre 1630 e 1690, era de taipa com telha de barro. Hoje, depois da restauração, tem uma parte em alvenaria, e as travessas e telhas foram trocadas. Em 1972, foi tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT), passando a ser reconhecida como um patrimônio social da humanidade. A Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, o mais antigo templo religioso existente no Alto Vale do Ribeira, abrigou a resistência dos ancestrais de Setembrino da Guia Marinho, de 45 anos, liderança do Quilombo de Ivaporunduva. Com o declínio da extração de ouro, os negros escravizados da região foram deixados ao abandono. Visados por outros senhores de engenho para serem levados até Minas Gerais, resistiram. “Eles não aceitaram mais viver daquele jeito,

É na Casa de Taipa que João, Esperança e Ivo fazem e vendem o artesanato do Quilombo Sapatu

sentaram naquela Igreja e ali ficaram”. Do bar de Setembrino, vejo as costas da capela. Branca, gasta, uma escada pintada de terra se estende até nós. Se o projeto da construção das hidrelétricas de Tijuco Alto, Funil, Itaoca e Batatal sair do papel, a Igreja de Ivaporunduva ficará submersa. Com ela, irão memórias, cultura, história, direitos e uma área total de aproximadamente 11 mil hectares que abrangem cavernas, Unidades de Conservação , territórios protegidos pelo governo, cidades, terras de quilombos e de pequenos agricultores. O turismo, fonte de renda de quilombos como o de Ivo e Setembrino, será prejudicado. O Rio Ribeira de Iguape, 470 km do mais importante corredor socioambiental do bioma Mata Atlântica, terá seu regime hídrico alterado sig-

Cotidiano

47


“Nós já fomos escravos. Hoje, não somos obrigados a fazer o que não gostamos. Os nossos patrões somos nós mesmos”, conta Setembrino

nificativamente; perderá suas nuances, cores, contrastes, e vários de seus peixes. As árvores, madeira podre debaixo d’água. Os quilombolas, refugiados de suas próprias terras. A Companhia Brasileira de Alumínio, do Grupo Votorantim, alega a relevância do projeto para gerar energia e a empresa já gastou mais de 100 milhões de reais em projetos, audiências públicas e aquisição de terras desde que o projeto foi concedido em 1988, segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica. Mas para o Instituto Socioambiental (ISA), a produção energética deste grupo será destinada a um grupo privado, o que contribuirá para que o Vale do Ribeira continue sendo fonte de enriquecimento não da população local – que permanece historicamente excluída – mas para as indústrias eletro intensivas como o complexo metalúrgico da CBA. Em novembro deste ano, após 28 anos de idas e vindas, esse controverso projeto que a Companhia Brasileira de Alumínio queria erguer no Vale do Ribeira foi barrado pelo Ibama. Em um parecer de cinco páginas, o instituto negou o pedido de licença ambiental prévia do empreendimento. Mesmo os quilombos comemorando o cancelamento como uma vitória, continuam com medo que seja um golpe dos empresários. Para Frederico de Freitas Silva, porta-voz do ISA, o fim do Tijuco Alto veio acompanhado de uma proposta para passar as hidrelétricas de Itaoca e Funil, no Rio Ribeira, pois são projetos de pequeno porte e os protestos poderiam ser menos intensos do que os contra o Tijuco Alto. 48

Revista Esquinas

TEMPO DA TERRA. Dona Marina veio de Betinho, Minas Gerais. Tem 64 anos, vive no quilombo de Nhunguara desde a década de 1990. Hoje, é coordenadora da associação do bairro e, junto com mulheres quilombolas, faz a gestão artesanal da fábrica de chips de banana verde da região. Parte do produto pode ser comprada diretamente com elas, outra é encaminhada para grandes cidades por meio da Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale). Na porta de sua casa, há uma tábua de madeira para evitar que os cachorros entrem, ela coloca uma camiseta limpa recém-dobrada como pano de chão. Meus tênis, antes brancos, estão cheios de terra. Prefiro tirá-los, embora ela insista que não seja necessário. Sento-me à mesa da cozinha, aguardo por Orlando de 62 anos, cunhado dela. “Espera um pouquinho que ele já vem”. Surpreendo-me: pisco e Seu Orlando está na minha frente. Aqui, a relação com o tempo a que estamos acostumados em São Paulo é diferente, não há interferência do trânsito ou os milhares de imprevistos. Em Iporanga, esperar um pouquinho não é eufemismo. Seu Orlando aperta os olhos com um sorriso. Vem para contar como faz roça. Primeiro, abre espaço para o cultivo com fogo. Para evitar que o fogo se espalhe, faz o aceiro: com a foice, traça um contorno de dois metros de largura em volta da área a ser queimada. Costuma queimar o mato logo antes da chuva, assim os nutrientes penetram no solo. Tudo vai melhor se for feito na lua minguante. Depois, planta. Seu Orlando interrompe bruscamente a explicação por não ver necessidade de dizer mais sobre como, quando ou exatamente onde planta. Para quem faz roça desde os 8

anos de idade, plantar é algo muito natural, passado dos pais para os filhos e filhas. Nos quilombos, a Terra não pertence ao ser humano. Nós é que pertencemos à Terra. Encho Seu Orlando de perguntas. Descubro que trabalham em um pedaço de terra por um ano, depois deixam a capoeira descansar e vão para outra área. O tempo é o tempo da terra. Tudo o que o chão dá, vai para a mesa. Se sobrar, encaminha para a Cooperquivale, e demora cerca de dois meses para voltar como dinheiro. Ultimamente, quase não tem sobrado. “A gente só pode plantar se o Ibama nos enviar os papéis. Senão, é multa”. Os papéis sobre o que ele fala são autorizações prévias emitidas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Neles, o órgão ambiental determina que a roça seja feita em um pedaço de terra delimitado, definida de acordo com o que é melhor para o meio ambiente dentro de seus critérios, o que pode ir contra o conhecimento ancestral da comunidade, como acontece com ato de queima da vegetação baixa para começar o plantio. Os quilombolas sabem onde plantar o que, com que e em que época do ano para ter uma boa colheita. Começam a roçar em agosto. Os alimentos só são colhidos se forem plantados até novembro. É outubro, nenhum papel chegou para Seu Orlando ainda. Dona Esperança é mãe de Ivo, nascida no Quilombo Pedro Cubas. Tem 71 anos, é conhecida por fazer uma multimistura de ervas e cereais que cura qualquer doença. Chego à Casa de Taipa e me encanto com a beleza do trabalho da senhora. É artesã e agricultora. Assim como Seu Orlando, e outros tantos agricultores quilombolas, incomoda-se com as barreiras impostas pela lei ambiental. “Eles vêm e demarcam uma área onde o arroz não vai dar sem veneno. Mas a gente não coloca. Nossa lavoura é dada com a força da terra”. Ivo, Seu João, Setembrino, Orlando e Dona Esperança trazem no corpo uma encruzilhada histórica. A violação sistemática dos direitos dos negros atinge a todos. Seja Sapatu, Poça, Ivaporunduva, Nhunguara, Pedro Cubas, em 1690 ou 2016. Ivo olha com firmeza e diz: “Não somos remanescentes de escravos, somos escravos até hoje”. Ainda assim, resistem. Resistem, porque as memórias coletivas tecem suas relações. Os passos de Ivo, Seu João, Dona Esperança, Setembrino e Seu Orlando vêm de longe – e os fazem escolher destinos diferentes do perecimento. Pertencem.


Mulheres quebradeiras Texto e fotografia por Ana Clara Giovani

“E

i minhas amigas, minhas irmãs, minhas companheiras, vejam o sofrimento das quebradeiras, vejam o sofrimento das quebradeiras”. Ex-quebradeira de coco e líder da comunidade quilombola Barriguda, Dona Dica declama essa poesia quando pergunto sobre como foi trabalhar como quebradeira a vida toda. As palavras são ditas com naturalidade, como se essa fosse a única realidade possível de se viver. Dorinha trabalha para a União das Quebradeiras de Coco

Todas estavam sentadas na mesma posição. Direto no chão, pernas abertas, costas arqueadas e pés descalços. Parecia até que aquele lugar já tinha o formato para que os corpos delas se encaixassem. Não é por menos, são mais de duas décadas com o machado em meio às pernas, quebrando coco. Não é o coco que tem água dentro, que se vende na praia. É o da palmeira babaçu, e dentro dele vêm até cinco amêndoas que são transformadas em óleo ou sabão. Vez ou outra, um gongo, larvinha branca que nasce e se alimenta do fruto, toma o lugar de uma amêndoa. Os maranhenses dizem que essa larva frita com farinha é uma delícia. A casca do coco se transforma em carvão e as palhas das folhas da palmeira, em cestos. A União das Quebradeiras de Coco de Itapecuru é uma cooperativa que reúne mulheres quebradeiras da comunidade quilombola Barriguda, localizada na zona rural de Itapecuru Mirim, interior do Maranhão. Lá, elas quebram o coco, cultivam sua horta e alimentam seus animais. Cada uma tem um espaço reservado para desenvolver a subsistência como desejar. Essa cooperativa reúne mulheres, que, com integrantes de outros grupos dos estados do Maranhão, Piauí, Tocantins e Pará já somam mais de 300 mil. O machado fica encostado no chão com a ponta virada para cima, a mão esquerda posiciona o coco sobre a parte afiada e um pedaço de madeira bate no fruto dividindo-o ao meio. Esse movimento é repetido pelo menos sete vezes em cada coco, quebrando-o em vá-

O mercado de coco babaçu é uma alternativa de renda no interior do Maranhão rias partes. Só assim se extraem todas as amêndoas. A cada batida, o medo de atingir um dedo. E se acontecer? “Aí sara e a gente volta a quebrar de novo”, se conforma Dona Dorinha, que trabalha há anos como quebradeira. Um quilo da amêndoa vendida por meio da cooperativa custa entre quatro e cinco reais. Antes da cooperativa, o quilo era vendido a trinta centavos para a população local e ainda mais barato para as indústrias fabricantes de óleo e sabonete. O cooperativismo faz com que as mulheres tenham conhecimento e sejam registradas na Política de Garantia de Preço Mínimo para os Produtos da Sociobiodiversidade (PGPM-Bio), um projeto do governo federal que estabelece um piso para a venda de produtos naturais. O preço mínimo do quilo da amêndoa do coco babaçu é de 2,87 reais. Essa foi uma das conquistas das quebradeiras, que lutam diariamente contra os pecuaristas e a favor de formas alternativas de desenvolvimento para a região. Para conseguir melhores condições de trabalho, essas mulheres chamam a atenção do governo por meio de fóruns e debates, como por exemplo o BabaçuTec, um evento que reúne as quebradeiras de coco de todo o estado do Maranhão para discutir com o Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento, alternativas de desenvolvimento no mercado do coco babaçu. Elas chegam na cooperativa pela manhã e só vão embora no final da tarde. Lá, as quebradeiras têm os equipamentos necessários para trabalhar. Alternam suas rotinas entre cuidar das hortas e dos animais e coletar as amêndoas. A quantidade de coco quebrado por dia depende da necessidade de cada uma. Para muitas, essa atividade é a única ou a maior fonte de renda da família e por isso chegam a quebrar o equivalente a dezoito quilos de amêndoa por dia. Ser quebradeira é uma oportunidade de independência para as mulheres que sobrevivem preservando essa tradição regional. A cooperativa União das Quebradeiras de Coco de Itapecuru é uma alternativa empoderadora. Em meio ao barulho ensurdecedor das marteladas que não param, Dona Dorinha, concentrada em seu coco, conta: “Aqui é melhor do que estar em casa, escutando raiva de menino e raiva de gente grande”. Cotidiano

49


MERCADO EDITORIAL

O Jogo da Publicação Texto por Catalina de Vera, Diego K. Carvalho e Rhaisa Trombini

P

ara entrar no mercado editorial brasileiro, um escritor estreante pode enfrentar dificuldades, mas tem principalmente três opções para publicar seu livro: por meio de uma editora, de um self-publishing ou publicação direta online. A primeira é a mais conhecida, porém a mais burocrática, já que existe um processo de triagem e preferência das grandes editoras por nomes mais conhecidos e internacionais: “O estrangeiro já vem consagrado com garantia de venda”, explica Luiz Alvaro de Menezes, gerente de projetos da Câmara Brasileira do Livro. Para o escritor Flávio Mello, o mercado editorial é cruel e as editoras sempre escolhem autores mais famosos pelo público. Luiz Alvaro, entretanto, diz que não é questão dos grupos editoriais procurarem o lucro em detrimento de in-

centivar novos talentos da literatura, mas ressalta que uma editora é um negócio – e ser escritor, também. “Falam que o livro tem que ser mais barato, mas alguém tem que produzir esse exemplar”, acrescenta. “E isso custa”. PUBLICAÇÃO AUTÔNOMA. O self-publishing é uma alternativa para aqueles que não desejam passar por todo o processo de publicação de uma editora. Uma iniciativa interessante é o Clube de Autores, a maior plataforma de self-publishing da América Latina e que possui um setor chamado Profissionais do Livro, oferecendo revisão, diagramação e confecção de capas profissionais a custos baixos em relação às grandes editoras. O maior problema para quem opta por essa ferramenta, porém, é a falta de visibilida-

Segundo a Câmara Brasileira do Livro, um título que vende um total de 15 mil exemplares pode ser considerado um best-seller

50

Revista Esquinas

Conheça os processos percorridos por um jovem autor até ter seu livro publicado no Brasil

de e divulgação mais ampla. Para isso, existem projetos como o Mesa do Editor, um site que opera como uma vitrine de produções independentes, encontradas por agentes literários e 13 mil editoras de mais de dez países. A publicação direta online é outro método que tem crescido com o aumento dos livros digitais, ou e-books, mais conhecido pelo Kindle Direct Publishing (KDP), da empresa de livros Amazon. Porém, Luiz Alvaro adverte: “O editor, além de apurar o que o mercado vai ler, também dá uma orientação para o autor, e na Amazon, você perde esse suporte”. O livro é lançado no sistema em poucos minutos depois de enviado e é exibido no aplicativo disponível em Android, Windows Phone, PC e produtos Apple, o que possibilita um grande número de leitores.

O livro brasileiro mais vendido é O Alquimista, de Paulo Coelho, com aproximadamente 65 milhões de cópias vendidas em todo o mundo


Processo de publicação de um livro Escrita

Imaginação, inspiração e criatividade são a chave para o desenvolvimento da história

Pré-edição (pelo próprio escritor) Apresentar à editora É um processo difícil que deve abranger tanto as pequenas quanto as grandes. Ainda assim, pode apresentar um alto índice de rejeição

Contrato

Após encontrar uma editora com interesse em publicar sua história, o contrato se torna a parte burocrática do processo

Entre digitar a última palavra e enviar para a editora, há algumas correções gramaticais e trechos a serem revistos na obra

Rejeição

A quantidade de “nãos” pode surpreender, mas isso não reflete a qualidade da obra. Procurar incessantemente é fundamental para a publicação

Outras alternativas Há outras opções autônomas e mais acessíveis, como o self-publishing e a publicação online

Esse momento depende tanto da tendência do mercado quanto de um bom timing para chegar às prateleiras

Mercado editorial

51


SAÚDE DA MULHER

Nua e crua Texto por Carolina Cotes, Quezia Isaías e Vanessa Nagayoshi

P

atrícia Kimberly se prepara para mais um dia de trabalho, mas não é uma preparação qualquer. Atriz pornô de 32 anos tem no corpo um instrumento de trabalho fundamental. Para encarar a maratona de gravações, que incluem até mesmo cenas de dupla penetração, ela segue um ritual que vai desde relaxantes musculares a pomadas e utilização de plugs anais, que ajudam a relaxar a musculatura da região. A atriz conta que, em uma das vezes, chegou a tomar três comprimidos e entrou em cena praticamente dopada. “Faço isso para relaxar. Mas, em uma das vezes, o cara me jogava de um lado para o outro, e eu nem sentia mais”, conta. Relatos como o de Patrícia são comuns entre as atrizes pornôs. Britney Bitch, nome artístico escolhido por Priscila, de apenas 22 anos, há dois no ramo, resume bem uma rotina que inclui práticas agressivas. “O produtor falou para os atores me pegarem com força e teve uma hora em que quase desmaiei. Fiquei chateada, chorei, fiquei tonta. E, mesmo assim, a gravação durou o dia inteiro, porque disseram que eu não estava fazendo direito”. A rotina de trabalho dessas profissionais do sexo deixa marcas físicas e psicológicas.

Revista Esquinas

Entre 50 cenas de filmes pornográficos, 94% dos atos de agressões são cometidos contra as mulheres

A falta de informação gera um ciclo vicioso entre o preconceito, a agressão sexual e a lucratividade da indústria pornográfica, sendo este último, o canal que permite o processo abusivo e a consequente deterioração da saúde da mulher. A pornografia, ao obedecer as regras de oferta e demanda, subentende um tipo de consentimento do consumidor para com as etapas de produção do conteúdo. A conscientização é um processo lento que precisa ser coletivo. “As mulheres são mais vulneráveis porque têm uma educação mais castradora, elas são mais julgadas. Toda questão sexual ainda é revestida por muito tabu, muito machismo”, afirma a ginecologista e especialista em sexualidade feminina Carolina Ambrogini, completando seu argumento dizendo que o homem é mais livre sexualmente. Além da violência psicológica, a mulher está em constante exposição às doenças sexualmente transmissíveis. Herpes, clamídia, gonorreia, AIDS, sífilis e tricomoníase são algumas das DST’s que ganharam visibilidade no Brasil nos anos 90. Apesar da grande proporção de informação veiculada pela mídia, ela não foi capaz de erradicar as dúvidas em relação às doenças as quais as atrizes pornôs estão sujeitas todos os dias. Patrícia Kimberly revela o método de prevenção mais comum. “A grande maioria dos produtores fazem com camisinha aqui no Brasil. Só duas produtoras que fazem sem [camisinha] atualmente.” André Santos, sexólogo da Sociedade Brasileira de Estudos de Sexualidade Humana (SBRASH) confirma que a maior parte de atrizes na indústria pornográfica entra no ramo por falta de escolha e inpornô formação, por preferir um caminho mais fácil para o ganho financeiro a curto prazo, porém, sem estruturas para lidar com o que está por vir. Britney Bitch entrou no ramo sem muitas expectativas, ao se deparar com um anúncio no jornal de uma produtora

Tava tudo doendo, o produtor parou e disse: ‘Quando você terminar de chorar, a gente termina a cena” Patrícia Kimberly, atriz

52

Três atrizes pornôs contam dos traumas vivenciados na indústria do sexo e como cuidam da saúde

que precisava de garotas para filmes adultos. Na época, ela procurava um emprego, então resolveu tentar, foi aceita e a partir daí não parou mais. “Eu assistia filmes pornôs e eu achava bonito, como se fosse atriz de novela”. Nesse cenário, muitas atrizes acabam se submetendo a práticas fetichistas – desejo sexual em certas atividades, objetos ou partes do corpo. Dentre os aspectos no meio chamado de mainstream ou popular da pornografia, estão categorias como “abuso facial” (nome dado à prática de sexo oral que leva à náusea e até ao vômito), o fisting anal (prática sexual que consiste em inserir a mão e até o antebraço no próprio ânus ou no do parceiro), alguns atos sadomasoquistas como a asfixia erótica: “Amiga realizando fetiche violento de sexo brutal real com essa loirinha sadomasoquista que adora sofrer”, entre outros. Tais práticas acabam ferindo a integridade física e psicológica das mulheres que, sem ter consciência da violência, se doam aos fetiches abusivos. “Tem coisas que eu não consigo fazer, então não faço. Teve uma menina que falou sobre o limite da criatividade no pornô, e ela contou que em uma cena, em que estava embriagada e pingaram vela no seu corpo, mas a vela era colorida então deixava marcas, ela não sabia disso, não sentiu a dor e no fim o corpo dela ficou cheio de bolhas”, relata a atriz Patrícia Kimberly. Jéssica*, de 30 anos, é ex atriz pornô e atualmente está casada e é mãe de dois filhos. Traumatizada, ela revela que os homens perdem o controle quando se trata de criar maneiras de fazer sexo. “As pessoas chamam de fantasia inventar uma maneira de sair do comum, e algumas não se dão conta que perderam o controle e já não tem uma vida sexual saudável, já se tornou doentia”. Ainda assim, muitas atrizes não veem esses episódios como violência, consideram isso como um risco ocupacional, ou seja, uma consequência do ramo. Após uma série de agressões que sofreu durante a gravação em que chegou a desmaiar, Bri-


tney atribui o ocorrido ao fato de na época ser inexperiente e revela em tom de alívio “mas a cena terminou, graças a Deus. Isso foi bem no comecinho da carreira mesmo, agora eu já consigo fazer tudo ‘mais de boa’”. Patrícia comenta que já vivenciou experiências do tipo: “Já aconteceu uma cena que eu tive que parar porque tava tudo doendo, o produtor parou, eu comecei a chorar e ele disse: ‘Quando você terminar de chorar, arrumar sua maquiagem, a gente termina a cena’. Caso o contrário eu sairia com a metade do cachê ou sem”. O Brasil, segundo os estudos do site TopTenReviews, é vice na produção de conteúdo adulto mundial, perdendo apenas para os Estados Unidos, onde se concentra a maior quantidade de produtoras de pornografia no mundo. A lei de 2013, válida no mercado norte-americano, obrigava o uso de camisinhas durante as gravações. A transformação foi impactante para o meio, porém, cedendo às pressões da indústria bilionária, a lei foi desregulamentada em fevereiro de 2016. No Brasil, não existem termos legais específicos sobre a indústria pornográfica de modo geral. O mais próximo de uma tentativa pela regulamentação dos profissionais do sexo foi o Projeto de Lei 4211/12, do deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ), que previa a prestação de serviços sexuais de livre vontade mediante remuneração a partir dos 18 anos de idade, vedando qualquer tipo de exploração sexual. A ausência de legislação também é responsável pela prática abusiva de produtoras de “fundo de quintal”, nas quais o amadorismo coloca em risco a saúde da mulher. Esse quadro é ressaltado por Paula Aguiar, presidente da Associação Brasileira das Empresas do Mercado Erótico e Sensual (ABEME) e do Conselho Empresarial de Prevenção do HIV: “No Brasil não existe nenhuma representação política no pornô. Com a ascensão da pirataria, o meio acabou ganhando um ar muito mais amador, dificultando a representação, ou mesmo a não facilitar os atores uma forma mais profissional”. Acrescenta que para tal regulamentação se tornar possível, o interesse deve partir dos atores e atrizes, os quais ainda não expõe seu posicionamento sobre a construção de uma legislação. “Eu acho que tá tudo certo”, se posiciona Britney Bitch ao ser questionada sobre o modo como a indústria pornográfica lida com a saúde. PREVENÇÃO E PROFILAXIA. Apesar da ausência de normas, existem políticas públicas que podem ser úteis para a conscientização desses profissionais. Em 2002, a Coordenação Nacional de DST’s e Aids, do Ministério da Saúde, lançou uma campanha nacional voltada para as profissionais do sexo feminino chamada “Sem vergonha, garota. Você tem profissão”, que buscava promover os cuidados à saúde e conscientização das mulheres sobre os

Uma atriz fez um exame que deu negativo para o HIV e novamente outro exame que deu positvo, mas ela continuou usando o negativo para não perder seus trabalhos” Cristiano Gamba, infectologista

seus direitos. Além disso, atualmente, as próprias produtoras estão arcando com os custos dos exames. “Costumo ir no Lavoisier ou no Delboni. É a produtora que paga tudo e pegam os resultados”, conta Patrícia. Em contrapartida, existem exceções, pois a pornografia, por ser uma indústria, seguindo a lógica do capital, procura brechas para o barateamento de suas produções. Sendo assim, Britney revela que quando começou a gravar com a produtora Brasileirinhas, não utilizava o preservativo e, hoje, para economizar dinheiro, as gravações são feitas com camisinha. Porém, o exame não é necessário. Cristiano Gamba, infectologista da rede pública do Centro de Referência de Treinamento em DST e AIDS, diz que os exames devem ser exigidos regularmente para evitar a invalidez do resultado. “Houve um caso de uma atriz que veio aqui, fez um exame que deu negativo (para o HIV) e depois outro exame que deu positivo, ela continuou usando esse exame negativo para não perder os trabalhos”. A popularização de métodos preventivos transformou radicalmente o número de casos que, no passado, eram volumosos pelo desconhecimento das precauções. Já hoje, a procura de apoio médico é baseado na pós exposição sexual, ou seja, posterior a relação desprotegida. “Mas eles sabem que a gente existe? Precisaria de uma campanha de orientação do nosso serviço mostrando que nós existimos. Com esse novo método da profilaxia pós exposição, que chamamos de Profilaxia Pós Exposição (PEP), ficamos com uma evidência maior, e muitos vêm nos procurar por causa disso”. Já disponível em 18 unidades médicas especializadas em DST’s na grande São Paulo, o novo medicamento, conhecido como “pílula do dia seguinte contra AIDS”, diminui até 96% o risco da contaminação pelo HIV após uma situação de exposição... O intervalo ideal que pode garantir a eficácia do medicamento exige o início do tratamento de duas até 72 horas após a exposição.

Nos EUA, atores e atrizes pornôs costumam ganhar entre US$400 e US$1.000 por cena, segundo a associação humanitária Pink Cross Foundation Este tipo de iniciativa possibilita o maior cuidado para com a saúde sexual de quem é exposto diariamente com diferentes parceiros, o questionamento está ainda na diluição da iniciativa de cuidado contínuo com o corpo. “Eu percebo que são pessoas muito abandonadas em termos de saúde pública, elas agem muito do que uma diz pra outra, e nós podemos oferecer um atendimento com uma orientação gratuita aqui. Vão descobrir a gente quando tiverem alguma emergência para uma profilaxia”, posiciona-se o infectologista. A sexóloga observa que existe um impacto que implica na dificuldade de atrizes se envolverem em uma relação amorosa por causa do preconceito e ciúmes do parceiro que enxerga a atriz numa situação de marginalidade, além de existir um confronto entre o trabalho sexual durante as gravações e o cansaço de levar a relação sexual para a vida pessoal. “Meus namorados não duram muito tempo. No começo eles aceitam [a profissão], só que vai passando o tempo e quando eles falam para eu largar, eu largo deles. Já aconteceu uma vez e quis parar de gravar, arrumei até um emprego numa academia, só que o salário era 750 por mês, por isso desisti”, conta Britney.

*

Os nomes foram trocados para preservar a

identidade das entrevistadas. Saúde da mulher

53


COTIDIANO

Novos sentidos O jornalista Ricardo Lombardi abdicou do ritmo das redações para abrir o sebo Desculpa a Poeira, em Pinheiros Texto e fotografia por Enrico Weg Sera e Juliana Gigliotti

A

rua Sebastião Velho começa a partir da intersecção com a Mourato Coelho. Seu pavimento de paralelepípedo se estende por dois quarteirões, até acabar na rua Antônio Bicudo, em outro cruzamento. A tranquilidade em suas esquinas dá ao pedestre a esquisita sensação de não estar em São Paulo. Estranhos se dão “bom dia” como se fossem conhecidos. A rua no bairro de Pinheiros é formada por comércios discretos e modestos prédios residenciais. É na garagem de um desses que o sebo Desculpe a Poeira está abrigado. “Muita gente acha que eu fico lendo o dia inteiro.” Ricardo Lombardi, o dono do estabelecimento, estava sentado com o computador no colo. Ao seu lado, uma mesa de madeira lotada de livros. À sua frente, a garagem de 24m² onde o sebo está instalado. Os braços expostos revelam algumas das incontáveis tatuagens que tem espalhadas pelo corpo. Apesar da crença de muitos, o que Ricardo menos faz em seu expediente é ler. Por trás dos óculos Ray-Ban, seus olhos cor de mel percorrem os livros, enquanto suas mãos os folheiam e garantem o bom estado dos produtos. Com frequência coloca preços em livros e os devolve às suas respectivas prateleiras. O silêncio da rua é raramente cortado por carros passando ou cantos de passarinhos. Mas o sebo fala. E logo de cara já pede desculpas. Mesmo não havendo muito pelo que se desculpar. A suposta poeira não é um incômodo em nenhuma das prateleiras que tomam o espaço da garagem. O nome Desculpe a Poeira veio do inglês excuse my dust, palavras sugeridas pela crítica e escritora Dorothy Parker para seu epitáfio. A escolha dela para a inscrição em sua lápide foi a mesma que Ricardo escolheu para escrever em seus logos. Parker morreu em 1967. Quase 50 anos depois, o sebo nascia. E há dois anos a livraria de usados vive e pulsa. Por meio da mesa de madeira lotada de livros, que fica na calçada, o sebo convida curiosos a entrarem. As capas sussurram prévias do que os aguarda dentro do espaço aclarado por três luminárias e 54

Revista Esquinas

outros abajures. “A história do livro usado é sempre você conectar aquela obra com alguém que não sabia que ela existia, mas que precisa dela”, diz Lombardi. Quando criança, Ricardo ficava mais à vontade lendo do que brincando com seus amigos. Tinha dificuldade de participar de grupos e eventos sociais, e encontrou na leitura uma proteção, um motivo para ficar quieto, sem interrupções. Seu pai lhe dava uma espécie de mesada para comprar livros. Conforme crescia, os interesses literários dele mudavam de gênero. Foi nos sebos que ele encontrou um local de trocas. O fascínio por lojas de livros usados veio da percepção, em um mundo sem internet, de que nelas podiase descobrir autores e gêneros novos. As dicas e caminhos literários de outros clientes iluminaram escolhas para um caminho próprio. E agora, no Desculpe a Poeira, Ricardo possibilita que clientes descubram os seus caminhos. Há três estantes principais dentro da garagem. Cada uma com suas prateleiras, cada prateleira com sua categoria, indicadas por plaquinhas de metal ou etiquetas. Na esquerda, destacam-se duas prateleiras Machadianas, cercadas por outras de assuntos gerais (como como biologia e psicologia) e de livros em línguas estrangeiras. Na estante do meio são encontrados livros sobre cinema, música, moda, design e turismo. À direita, encontramos literatura brasileira e estrangeira, história geral e outra exclusiva para livros de jornalismo. O interesse por ser jornalista surgiu quando, cursando Direito, começou a trabalhar no arquivo do Estadão. O emRicardo Lombardi era editor de conteúdo do Yahoo! quando decidiu mudar de vida. Trocou as redações por um sebo instalado na garagem de sua mãe e abriu mão de 70% do seu salário, de acordo com os próprios cálculos. Hoje, sua vida é pautada pela simplicidade: não gosta de agendar programas e passa seu tempo livre com os dois filhos

ENRICO WEG SERA


prego era apenas para ajudá-lo a pagar as despesas de casa após o divórcio dos seus pais, mas acabou influenciando a mudança de curso. Ao sair de Direito, foi para a Faculdade Cásper Líbero, onde se formou em 1994. O início de sua carreira é marcado pela passagem no Estadão e Jornal da Tarde. Posteriormente, foi para a Contigo!, na Editora Azul, e trabalhou como correspondente em Nova Iorque pelo Último Segundo, do iG. Ao voltar, trabalhou na revista Sabor, da Editora D’Ávila e na América Online. Seguiu para a Editora Abril, onde editou a revista Bravo!, o Guia do Estudante/Almanaque Abril e a VIP. Seus maiores interesses eram as editorias de cultura e viagem. A

paixão se concretizou em um projeto pessoal quando fundou, em 2007, no iG, o blog Desculpe a Poeira, com o intuito de expor pautas e fontes culturais para colegas jornalistas desenvolverem matérias. A sua última experiência foi como editor de conteúdo do Yahoo!, em 2014. “Eu já tinha vivido 25 anos como jornalista. Chegou um ponto em que eu achei que aquilo não funcionava mais para mim. Eu tinha ido para um lado do jornalismo que já não me interessava mais, o lado da gestão, da burocracia, da administração de empresas. Para mim, era muito claro que tinha muita gente mais capacitada do que eu para fazer aquele trabalho”. Em seu trajeto foi pauteiro, redator, corres-

pondente, blogueiro e editor. No final de 2014, o espaço que daria lugar ao sebo já estava pintado e quando o projeto semivivo tomou um formato que o agradava, dedicou-se integralmente aos livros. Assim, a garagem de sua mãe virou uma loja de usados. Dois anos após a abertura, o espaço, antes vazio, agora é tomado por livros. Mas não só de livros lota-se o lugar. Coleções de revistas, como a Piauí, ocupam o chão, assim como vinis. No canto esquerdo, a acomodação termina com uma pequena mesa e um computador ligado a uma seleção de músicas serenas no Spotify. Prateleiras menores se refugiam nesse canto, com mais livros ocupando-as. Post-its

Is aut quibearum ute alite niminciam faccusa pererum dit es ditatus dandellabo. Sedia simolut quam, sim reptiorent molor atemodit pro in consed magnis estiori diorum atibusam, evellit, quates acestrum

Cotidiano

55


e lembretes a lápis sobre encomendas e pendências preenchem o espaço. A parede do fundo é vermelha, e nela está encostada outra prateleira. Embaixo dessa, livros, dos mais diversos, formam pilhas no chão. Um dos vários montes acaba em Esclerose Múltipla, escrito por Sérgio Roberto. Outro, acaba em Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol. “Quem é você?”, pergunta a Lagarta para a Alice no clássico. Confrontada com a pergunta, que acanha a personagem, ela

Foi interessante abrir uma porta para a rua, pois as histórias vêm até você. É um novo sentido” Ricardo Lombardi, do sebo “Desculpe a Poeira”

ENRICO WEG SERA

responde: “Eu… Eu neste momento não sei muito bem, minha senhora… Pelo menos, quando acordei hoje de manhã eu sabia quem eu era, mas acho que depois mudei várias vezes…”. Durante a narrativa, Alice passa por reflexões e mudanças, envolvendo o leitor em momentos de indecisões e confusões existenciais. Questionamentos e transformações tiveram grande impacto na vida de Ricardo, que substituiu tudo por uma loja de livros usados, uma carga de trabalho maior e uma vida pautada pela simplicidade. “Uma coisa que o jornalista faz muito é perguntar. E uma vantagem é que você também faz perguntas para si mesmo”. Ricardo trabalha mais. Na maior parte do tempo, ele gerencia o lugar sozinho. Nara, sua estagiária, o ajuda de manhã com o acervo digital. Há, no total, 3200 livros cadastrados no acervo, mas Ricardo chuta que há de 6500 a 7000 livros no total. Parte deles está exposto no sebo e outra parte fica na casa de sua mãe. Em sua própria casa, no centro de São Paulo, ele tem um armário com livros que folheia ou lê antes de colocar à venda, uma espécie de entreposto, como descreveu. O excesso de carga de trabalho, porém, é compensado pela flexibilidade. “Eu só tenho domingo de folga. Essa parte é mais pesada. Por outro lado, eu também sou dono do tempo”. A loja funciona das 10 às 18 horas, menos de segunda, quando abre às 14.

A decoração também é tarefa de Ricardo. Fotos, frases e capas de jornais enquadradas enfeitam as paredes. Lombardi escolhe, para decorar a garagem, itens que fazem parte da sua trajetória ou da história do sebo. As datas das capas de jornais são dias importantes em sua vida, como o nascimento de seus filhos. Em ocasiões especiais, Ricardo ainda realiza eventos temáticos, selecionando e expondo livros que combinem com datas notáveis. As atividades realizadas por ele podem parecer extremamente distantes do jornalismo. Mas, ao abrir o sebo, o dono descobriu que muitas coisas aproximam as duas profissões, como a busca por pautas e as histórias que chegam até ele: “Bom, acho que a coisa mais interessante para mim foi abrir uma porta para a rua. Eu sempre brinco que no jornalismo geralmente a gente vai atrás das histórias, para descobrir coisas. Quando você abre uma porta como essa, as histórias vêm até você. É um novo sentido”. Ricardo relata que pessoas sentam na cadeira do sebo e lhe contam de suas vidas. Assim, ele recebe notícias sobre o bairro, conversa com pedestres e acolhe senhoras em busca de autores obscuros. Ao atender pessoas no sebo, é difícil diferenciar se Ricardo está conversando com um novo cliente ou com um velho amigo. É como se, sutilmente, entrevistasse seu freguês até entender do que ele precisa. As conversas tomam patamares profundos e Lombardi indica livros a dedo, aqueles que se encaixam com as necessidades e histórias daqueles que frequentam a loja. Alguns visitam o sebo em busca de inspiração para suas próprias mudanças de vidas, já que o lugar representa concretamente uma transformação.

Além de decorar o sebo com quadros e capas de jornais, Lombardi promove happy hours temáticos. Revistas e livros sobre um determinado assunto são selecionados e expostos no Bar do Bigode, na esquina do estabelecimento

56

Revista Esquinas


Texto por Mariana Gonzalez

U

m investimento vem driblando as desconfianças na economia e crescendo mundo afora: o bitcoin. Essa tecnologia não é novidade – nasceu em 2009 – mas ganhou destaque em 2016, ano em que atingiu a marca de 100 mil usuários no Brasil, de acordo com o Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio). Conhecida há algum tempo por investidores e prestadores de serviço que costumam realizar grandes operações internacionais – já que dribla impostos e barreiras burocráticas – a moeda vem ganhando espaço entre usuários comuns, que podem usar a tecnologia para investimento, contando com sua valorização, ou para fazer transações em lojas comuns, como a lanchonete Las Magrelas e a Adolfo Brownie Shop, localizadas na capital paulista. Mas antes de apostar as fichas, é importante entender como o bitcoin funciona. Afinal, ao mergulhar no universo tecnológico, o usuário é o único responsável pela segurança do investimento, já que essa moeda digital segue a lógica P2P, peer to peer (de igual para igual), ou seja, o negócio é realizado pelo vendedor diretamente com o comprador, sem a intermediação de um banco. Essas características garantem a independência e protege a identidade dos usuários, mas torna os procedimentos mais arriscados: “Ao investir, você é seu próprio banco. Isso significa que, diferentemente de um investimento tradicional, você não tem a quem recorrer se acontecer um erro na transação ou se a moeda desvalorizar e o investimento for por água abaixo”. A engenheira de dados Patrícia Estevão ainda completa: “Bitcoin é informação. É preciso conhecer as possibilidades de valorização e desvalorização da moeda, que é muito flutuante”. Sendo assim, é exatamente como investir em ouro, explica o economista Gabriel Aleixo, que pode gerar muito lucro, mas é preciso que o usuário entenda a lógica de compra e venda caso ao contrário pode sair no prejuízo. ALCANCE. O Mercado Bitcoin é um dos maiores portais que aproxima compradores e vendedores de bitcoins no Brasil e ainda oferece consultorias para investidores de primeira viagem. Rodrigo Batista, CEO da empresa, ressalta que a maioria dos usuários do site usa a moeda como um especulativo, ou seja, compra para vender quando seu valor subir, mais ou menos como quem investe em ações na bolsa de valores.

TECNOLOGIA

Ouro digital

O bitcoin vale muito: atingiu a marca de 100 mil usuários brasileiros. Mas afinal, como funciona essa moeda virtual?

A parcela dos usuários comuns, que se encaixam nesse segundo perfil definido por Batista, tende a crescer. O empresário Adolfo Delorenze, dono da confeitaria The Brownie Shop, começou a se arriscar nas moedas digitais há quatro anos e, hoje, é um investidor bastante à vontade com a tecnologia. Há cerca de um ano, levou o investimento que realizava por conta própria para seu estabelecimento e, desde então, a resposta tem sido positiva: “Pelo menos uma vez por semana um cliente opta por pagar as comprar em bitcoins”, calcula. Adolfo conta que, durante os Jogos Olímpicos, a procura por essa opção de pagamento aumentou consideravelmente. Ele garante que a opção não encarece os produtos e acredita que, se o uso do bitcoin fosse mais frequente, os clientes é que sairiam no lucro: “Se fosse mais popular, os comerciantes não pagariam as taxas de transação nem o aluguel das máquinas de cartão e essa economia poderia refletir na queda do preço”. Diferentemente da The Brownie Shop, existem estabelecimentos de pequeno e médio porte que aceitam pagamento em bitcoin e recebem pouca demanda dos clientes que optam por esse recurso. É o caso do Giramondo Hostel, na Vila Madalena, em São Paulo. Aberto há quatro anos, o estabelecimento aceita pagamento em bitcoin desde a inauguração, para facilitar a transferência internacional de hóspedes. Mas William Cardoso, que trabalha no Giromondo há seis meses, só viu um cliente usar o recurso para pagar as diárias – justamente um francês, que evitou as taxas de câmbio ao transferir moedas digitais. A clínica veterinária Prevet, no centro de São Paulo, é um exemplo ainda mais extremo: começou a aceitar pagamento em bitcoins em 2014, mas desde então, nenhum cliente

optou por pagar os cuidados com os pets com moedas digitais. ENFRENTAMENTO. “Bitcoin é, em muitos casos, resistência”, para o economista Gabriel Aleixo, “o bitcoin pressiona as grandes empresas bancárias a estarem sempre se renovando”. Ele acrescenta, ainda, que trata-se de um caminho sem volta: “Se o serviço tradicional não é eficiente, surge uma novidade que atrai os consumidores por ser mais segura, mais barata ou mais eficaz. É o que acontece com qualquer tecnologia. Aconteceu com o Uber, que obrigou os táxis a melhorarem o serviço. Está acontecendo com o bitcoin”. O obstáculo ainda é um caso de estrutura tecnológica. Para Rodrigo Batista, trata-se de “uma tecnologia ainda que precisa ser bem aprimorada em termos técnicos para que, de fato, se popularize”. Isso porque, segundo o CEO do Mercado Bitcoin, o sistema das moedas ainda não suportaria uma grande quantidade de pequenas transações simultâneas como os bancos tradicionais – que chegam a realizar até 35 mil operações ao mesmo tempo em todo o mundo. Mas, como foi destacado por Patrícia Estevão, os desenvolvedores estão focados na missão de aumentar a capacidade de processamento da moeda digital e o desempenho deixa Gabriel Aleixo otimista: “O bitcoin ainda não é eficiente para pagar um cafézinho. Mas tem tudo para ser”.

Tecnologia

57


DIREITOS HUMANOS

Estrangeiras encarceradas Como o tráfico internacional de drogas leva mulheres para prisões em São Paulo Texto por Juliana Avila

“N

ós precisamos de dinheiro e eles oferecem em troca de um transporte. Dizem que não vai acontecer nada. Mas fui presa assim que cheguei aqui”. Inicia o relato de Carmen*, boliviana de 36 anos que cumpre pena no Brasil por tráfico internacional de drogas. Ela conta que conheceu um senhor na fronteira da Bolívia com o Brasil, que lhe ofereceu uma boa quantia caso ela as levasse para fora do país. Mãe de um adolescente e trabalhadora de uma confecção de roupas, ela aceitou a proposta sem muitos questionamentos, inclusive sobre qual substância transportaria. Foi flagrada logo no aeroporto Internacional de Guarulhos com “diamantes cristalinos” e, após julgamento, foi condenada a sete anos, dois meses e doze dias de prisão. Atualmente, está na Penitenciária Feminina da Capital, localizada no bairro do Carandiru na cidade de São Paulo. Assim como Carmen*, Maria*, uma jovem portuguesa de 25 anos, também cumpre pena na mesma penitenciária. Questionada sobre a razão de estar presa, ela fala sobre a sedução do discurso do tráfico, mas muda de assunto bruscamente e conta que participa de vários cursos oferecidos pela instituição: “Trabalhar distrai a mente. E, no final, a gente tira uma grande lição daqui”. As trajetórias delas são semelhantes à da esmagadora maioria das pessoas encarceradas estrangeiras no Brasil. Segundo números de 2014 do InfoPen, órgão de levantamento de dados penitenciários do Ministério da Justiça, 90% delas é acusada de tráfico internacional de drogas. Boa parte é detida diretamente nos aeroportos, 58

Revista Esquinas

enquanto tentam importar ou exportar substâncias ilegais – no caso do estado de São Paulo, isso acontece majoritariamente no Aeroporto Internacional de Guarulhos. Em 2014, o Brasil abrigava 2.784 estrangeiros em suas prisões, o que corresponde a cerca de 0,6% do total de presos do país. São Paulo tem o maior número desses encarcerados, cerca de 65%. Os homens estão concentrados na Penitenciária de Itaí, no interior do estado, e as mulheres, como Carmen* e Maria*, estão na Penitenciária Feminina da Capital, na Zona Norte da cidade de São Paulo. As pessoas que vêm de fora encontram as mesmas dificuldades que os brasileiros dentro do sistema prisional, como a escassez de material e a falta de apoio psicológica e social. Entretanto, são acrescidos a eles agravantes particulares, como a falta de compreensão da língua e do processo jurídico. Carmen*, por exemplo, queixa-se de que sempre toma muito cuidado ao se expressar, pois tem receio de ser mal interpretada e arranjar problemas dentro da penitenciária. Além disso, existe a dificuldade de contato com o Consulado e familiares. Para Paulo Marcos de Almeida, juiz da 2ª Vara Federal de Guarulhos, assim que um estrangeiro é flagrado em delito, há uma série de procedimentos que devem ser obedecidos. O principal é que o Consulado precisa ser notificado de sua prisão, da mesma maneira que o indivíduo precisa estar ciente de seu direito de comunicar-se com representantes deste departamento público. Caso não possa pagar um advogado particular, a justiça é obrigada a lhe fornecer um defensor público. E, durante a audiên-

cia, é parte do protocolo oficial a presença de um tradutor, que faça a intermediação entre as falas do réu e das autoridades presentes. Entretanto, essa nem sempre é uma realidade, Carmen*, por exemplo, não teve tradução para o espanhol de seu processo e sentença, e ficou alheia à maior parte do que aconteceu na audiência. Como acontece com os brasileiros, esses presos também têm direito à progressão de regime – ou seja, passar do fechado para o semi-aberto e, eventualmente, para o aberto. Entretanto, esse benefício pode não ser vantajoso para os estrangeiros. De acordo com Thalita Sanção, mestranda na Faculdade de Direito da USP. Na maioria dos casos, eles não possuem família ou contatos no Brasil e não são assistidos devidamente pelos seus Consulados, o que os deixa em uma situação de extrema vulnerabilidade quando estão fora da prisão. “Até pouco tempo atrás eles saiam das penitenciárias

Até pouco tempo atrás, eles saíam das penitenciárias sem nenhum tipo de documento, já que os passaportes ficam detidos durante todo o processo legal” Thalita Sanção, advogada


Editoria

66

BEATRIZ FIALHO


BEATRIZ FIALHO

sem nenhum tipo de documento, já que os passaportes ficam detidos durante todo o processo legal”, comenta. Com o objetivo de sanar parte desses problemas, em 2014 foi sancionada a Resolução Normativa nº 110, que concede aos estrangeiros que cumprem pena no país documentos provisórios de identidade. A Resolução foi importante para aqueles em progressão de regime, pois, tendo esse documento em mãos, eles regularizaram sua situação no país, inclusive acessando direitos básicos como saúde e busca por trabalho. Para os que ainda estão presos, essa regularização possibilita que abram uma conta bancária, podendo enviar e receber dinheiro.

60

Revista Esquinas

BEATRIZ FIALHO

ENGAJAMENTO. Entre as organizações engajadas na regularização dos presos estrangeiros está a Associação Nacional de Estrangeiros e Imigrantes no Brasil (ANEIB). A entidade surgiu no início dos anos 2000 a partir da iniciativa de estudantes estrangeiros da Universidade de São Paulo, que sentiam não haver nenhuma organização lutando pelos seus direitos. Desde então, atua em uma série de episódios envolvendo um grande contingente de indivíduos dessa população. O principal exemplo foi a luta pela Lei da Anistia Migratória conquistada em 2009, que regularizou imigrantes irregulares no país e beneficiou mais de 40 mil pessoas. O presidente da Associação e também um dos seus fundadores, Grover Calderon, é um advogado boliviano que presta muitos serviços a presos, além de auxiliar pessoalmente alguns Consulados. Ele lamenta que a Associação não possa ser mais atuante, e atribui isso à falta de recursos financeiros.Seu nome tem ganhado destaque entre os estrangeiros do presídio masculino de Itaí, que o advogado visita frequentemente. Entre as dificuldades mais chocantes, ele observa o abandono dos encarcerados por parte dos Consulados. Itaí fica a aproximadamente 300 km de São Paulo, e portanto prestar auxílio a esses presos tem um custo muito alto, com o qual muitas unidades consulares não estão dispostas a arcar. Outra instituição de referência na área é o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, que desenvolve o Projeto Estrangeiras, composto inteiramente por mulheres e que busca auxiliar encarceradas da cidade de São Paulo, dando a elas voz, atenção jurídica e acom-

Quando percebemos que a pessoa prefere ficar na prisão a ir para a rua, tem alguma coisa muito errada acontecendo” Paulo Marcos de almeida, juiz


panhamento emocional. A iniciativa conta com a colaboração da Defensoria Pública da União de São Paulo, o qual cede ao ITTC estagiárias que auxiliam no dia-a-dia do Instituto e nos atendimentos dentro das penitenciárias. Segundo Isabela Cunha, uma das colaboradoras do Projeto, 95% dessas mulheres são acusadas de tráfico internacional de drogas, fazendo o papel de “mula” – pessoa cujo trabalho é o transporte de entorpecentes. A maioria é provenientes de países africanos, como Angola e África do Sul, e países latinoamericanos, como Bolívia, Colômbia e Peru. Muitas são mães e provedoras do lar, que buscavam complementar sua renda e acabaram em negócios ilícitos. “Uma história bastante recorrente é a da mulher que está precisando de dinheiro e conhece alguém que lhe oferece uma determinada quantia para que ela faça um transporte, às vezes explicitamente de drogas e, às vezes, mascarado de outra mercadoria”, diz Isabela. O ITTC realiza atendimentos semanais na Penitenciária Feminina da Capital a mulheres em regime fechado e semi-aberto. Durante essas visitas, as colaboradoras buscam facilitar o contato das presas com seus familiares, a Defensoria Pública e seus respectivos consulados. Além disso, as orientam em relação ao andamento do seu processo criminal. Maria* elogia a atuação da instituição: “Elas fazem diferença para muita gente aqui dentro”. OPORTUNIDADE PARA PESSOAS ESTRANGEIRAS PRESAS. A Justiça Federal de Guarulhos, em parceria com o Centro de Defesa de Direitos Humanos de Guarulhos (CDDH) e o setor de responsabilidade social do Aeroporto Internacional de GRU, elaborou o projeto PRORREST – Programa de Ressocialização de Réus Estrangeiros. Ele tem duas frentes de atuação: facilitar a expedição de CPF para os réus e a construção de um albergue transitório. O juiz Paulo Marcos de Almeida, um dos idealizadores do Programa, diz que antes do PRORREST os estrangeiros precisavam enfrentar muitos passos burocráticos para conseguir o CPF, o que tornava o processo muito difícil e demorado. Em vigor desde janeiro de 2016, a iniciativa cortou etapas para que os réus da Justiça Federal de Guarulhos adquirissem o documento. A aquisição do CPF sana o problema de documentação dos réus, pois eles precisam requisitar uma Carteira de Trabalho, sem isso não conseguem empregos formais quando estão em liberdade. A segunda proposta do PRORREST é a construção de um albergue transitório para que os réus em liberdade tenham um lugar para ficar até poderem se estruturar sozinhos. Dessa forma, também terão endereço fixo para receber a visita dos respectivos Consulados e de assistentes sociais. Segundo Orlando Fantazzini, secretário de habitação de Guarulhos e presidente do CDDH, a expectativa é que as pessoas permaneçam nele por, no máximo, seis meses. O albergue está sendo construído como uma extensão da casa sede do Centro de Defesa, que será responsável inteiramente pela sua gestão, e a previsão é que seja inaugurado ainda neste semestre. A construção foi financiada pela Concessionária do Aeroporto de Guarulhos, e atualmente, procuram outros parceiros, principalmente Embaixadas. Além disso, buscam dialogar com parte do empresariado da cidade: “Essa parte é difícil porque muita gente tem preconceito com a questão de detentos e egressos”, conta o juiz. Paulo Marcos relata que a ideia do projeto teve seu embrião há alguns anos. Em uma audiência de leitura de sentença, uma italiana condenada por tráfico internacional de drogas recebeu o direito de apelar em liberdade, um privilégio pouco comum nesse tipo de caso. Entretanto, ela começou a chorar e fazer questionamentos sobre onde iria ficar e como iria se manter. Percebendo que as autoridades presentes não tinham respostas para suas colocações, ela insistiu em continuar presa. “Quando percebemos que a pessoa prefere ficar na prisão, que não é um hotel de luxo, a ir para a rua, tem alguma coisa muito errada acontecendo”, conta o juiz. “É preciso que esse estrangeiro tenha suporte, porque senão ele tem muita chance de voltar para a criminalidade”. Maria* e Carmen* comentam a transformação que o encarceramento provocou em suas vidas. Ambas dizem que têm sido um grande aprendizado e que passaram a valorizar as coisas que elas têm fora da prisão. Entretanto, saudade ainda é o principal sentimento em pauta: “Lembrar e sentir falta do próprio país e da família é a pior parte”, diz a portuguesa. A respeito do futuro, a perspectiva de Maria* é que ela ganhe sua liberdade em breve: “Eu já passei o último Natal aqui, presa, sozinha. Esse ano quero passar em casa, com a minha família”. Carmen*, questionada sobre planos de voltar à Bolívia, não consegue evitar um choro soluçante. “Eu tenho um neto de um ano e o meu maior sonho é conhecê-lo”.

*

Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.

Visita à penitenciária A minha entrada na Penitenciária Feminina da Capital foi permitida pelo Juiz Corregedor dos Presídios e pela Diretora da Penitenciária. A visita aconteceria no dia 8 de novembro às 8 horas. O Setor de Reintegração pesquisou entre as detentas quais tinham interesse em participar da reportagem. No dia combinado, fui levada para além dos grandes portões azuis marcados pelo nome SAP (Secretaria da Administração Penitenciária). Passei pela revista, que contou apenas com o detector de metais, e depois fui guiada ao Setor de Reintegração. Fui recebida por uma das responsáveis pelo departamento, Alessandra. Ela pediu desculpas e explicou que, das três estrangeiras que concordaram em conversar comigo, uma estava doente e não poderia comparecer. Em seguida chamou Maria* e nos levou a uma sala onde poderíamos conversar sem interrupções. Maria* é uma ex-universitária portuguesa de 25 anos presa por tráfico internacional de drogas. Durante a nossa conversa, mostrou-se educada e eloquente, porém distante. Preocupou-se em apontar suas conquistas dentro da penitenciária e apoiava sua fé na ideia que faltava pouco para ela voltar para casa e para perto de seus pais, que sempre lhe deram suporte durante o encarceramento, tanto emocional quanto financeiro. O tom da entrevista com a boliviana Carmen* foi bastante diferente. Aos 36 anos, a mulher que já é mãe e avó não recebeu uma educação formal e hoje não recebe nenhum apoio econômico da família. Em diversos momentos ela não conseguiu segurar um choro sentido, e desculpava-se toda vez. No fim da conversa, ela agradeceu e me desejou sucesso na vida como jornalista. Saindo do protocolo, a abracei e disse que também desejava a ela muita sorte. Direitos humanos

61


EDUCAÇÃO

Primeira infância em São Paulo Texto por Marina Braga

E

ntre entrevistas, seminários, viagens e aulas na Universidade de São Paulo (USP), Ana Estela Haddad não deixa de lado a simpatia. Na sala fria do gabinete, que contava com toda a potência do ar condicionado, conversamos nos sofás. Frente a frente, falamos sobre a política pública coordenada por ela, que não diminuiu o ritmo até o final de dezembro de 2016, mesmo com a vitória do candidato João Dória Júnior (PSDB) no primeiro turno. O interesse pela primeira infância surgiu na juventude. Quando ainda estava nos primeiros anos da graduação em odontologia, realizou um estágio voluntário em uma creche para trabalhar no cuidado da saúde bucal de crianças pequenas. A dentista e militante do Partido dos Trabalhadores alcançou os Ministérios da República antes mesmo de o marido Fernando Haddad ser convidado para ser Ministro da Educação no governo Lula, em 2005. Entre 2003 e 2005, ocupou o cargo de Assessora do Ministério de Educação e, logo em seguida, no Ministério da Saúde, de 2005 a 2010. Ana Estela participou da formulação do texto do ProUni, programa de incentivo a jovens de baixa-renda no acesso à universidade. Desde que voltou a São Paulo, reveza seu tempo com o Departamento de Ortodontia e Odontopediatria da USP, onde é professora. Como primeira dama, Ana Estela coordenoou, voluntariamente, o programa São Paulo Carinhosa, inspirado na iniciativa federal Brasil Carinhoso. A proposta é monitorar o crescimento e o desenvolvimento infantil por meio dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS). Famílias que vivem na extrema pobreza no município ou que estão cadastradas no Bolsa Família recebem visitas domiciliares dos profissionais que, na grande maioria das vezes, são seus próprios vizinhos. Entre o público-alvo estão mães com baixa escolaridade, adolescentes grávidas, mães com dependência de álcool ou drogas, recém-nascidos prematuros ou de baixo peso, que somam juntos, aproximadamente, 200 mil famílias na cidade. “O Brasil Carinhoso, de fato, me inspirou. É um exemplo de política intersetorial, porque amarra saúde, educação, assistência social e trabalho”, explica Ana 62

Revista Esquinas

A ex-primeira-dama Ana Estela Haddad fala sobre o projeto São Paulo Carinhosa DIVULGAÇÃO

Estela. O Bolsa Família, segundo ela, também é um programa exemplar por gerar maior autonomia para as brasileiras: “Primeiro, o recurso vai para a mulher, entendendo que ela, muitas vezes, é aquela que se preocupa com a alimentação dos filhos”, afirma. Ana Estela atua pelos direitos sociais e civis das crianças Bailinhos de Carnaval, Viradinhas Culturais e sessões de cinema nos CEUs do Estado para com a garantia dos direisão outras realizações da São Paulo Cari- tos de bebês e crianças. Em São Paulo, nhosa, voltadas para a democratização do João Dória, prefeito eleito, tem a opção acesso à cultura para as criança em situa- de continuar a São Paulo Carinhosa. Sua ção de maior vulnerabilidade social. Essa inspiração também pode vir da criação do seria a primeira vez que a criança ganha Criança Feliz do governo de Michel Teum espaço na orientação da programação mer, lançado em cinco de outubro de 2016. cultural da cidade. A nova política tem como foco a interA região do Glicério, entre a Sé e a venção domiciliar. Reduzindo o repasse de Liberdade, é um território citado por Ana verba da União para os municípios, o goEstela como exemplo. “Esse bairro possui verno federal contratará 80 mil assistentes a maior concentração de cortiços, em que com Ensino Médio completo para realizar a falta de acesso a condições mínimas de visitas semanais ou quinzenais às famílias habitação para as famílias afeta o desen- beneficiadas pelo Bolsa Família. Ana Estevolvimento integral dos bebês e crianças, la Haddad afirma que o Criança Feliz não pois estão expostos a situações de violência está integrado ao Sistema Único de Saúde e não possuem espaços para brincar”, ex- e isso é um problema. Para ela, o ACS é plica. Juntas, as secretarias municipais de parte fundamental para que o programa Habitação, Saúde, Assistência e Desenvol- funcione, pois uma pessoa da comunidade, vimento Social e Desenvolvimento Urbano com o suporte necessário, realiza as visitas elaboraram um projeto em parceria com a conhecendo a realidade sócio-cultural. sociedade civil. Foi promovida a escuta das Segundo a Secretaria Municipal de crianças desses cortiços sobre as melhorias Educação de São Paulo, a gestão Haddad que poderiam ser feitas. A ação resultará construiu 91 mil vagas em creches em seu em uma praça, que está em construção, mandato, cumprindo 70% da meta estionde um playground está sendo instalado. pulada na campanha do ex-prefeito. Em setembro de 2016, 133 mil crianças ainda SÃO PAULO: PARA SEMPRE CARINHOSA? aguardavam na fila de espera. João Doria Quando a presidenta da República sofreu promete zerar essa defasagem em um ano, impeachment, em agosto de 2016, logo se fazendo parcerias com associações privadestituiu o programa Brasil Carinhoso e das e sem fins lucrativos, sem necessariaseu caráter de defesa da responsabilidade mente construir novos prédios.


Pelo direito de ser Texto por Felipe Sakamoto

S

amir* estava em um táxi, na cidade de Fez, no centro de Marrocos, quando viu uma pessoa de salto alto, bolsa feminina e roupas curtas sendo agredida por três homens heterossexuais que, por considerarem a vítima um homem afeminado, resolveram fazer “ justiça” com as próprias mãos. Enquanto os socos e chutes continuavam, um dos agressores gritava para que alguém chamasse a polícia, não para proteger a vítima, mas porque, no país, ser homossexual é crime. De acordo com o artigo 489 do Código Penal marroquino de 1962, são proibidos “atos licenciosos ou contra a natureza com um indivíduo do mesmo sexo”. A punição pode variar de seis meses a três anos na prisão ou multa de 200 a mil dirhams, aproximadamente 340 reais. O islamismo é a religião oficial do Estado segundo o artigo 6° da Constituição de Marrocos. Assim, a interpretação religiosa de condenação da homossexualidade prevalece. Contudo, em um artigo do livro Progressive Muslims: On Justice, Gender, and Pluralism, em português Muçulmanos Progressistas: sobre Justiça, Gênero e Pluralismo, o autor Scott Kugle, Doutor em História da religião pela Universidade Duke, afirma que no Alcorão não há menção à homossexualidade “Esses ‘homens que não têm necessidade de mulheres’ [descritos no Alcorão] podem ter sido gays ou assexuais, mas por definição não eram homens heterossexuais. Eles não são julgados ou condenados em parte alguma do Alcorão”, escreve. O jovem de 22 anos, Samir*, queria pedir ao taxista que parasse o carro para poder salvar aquele que desafiou

EDITORIA....

DIRETO DO MARROCOS O preconceito e os obstáculos enfrentados por homens gays em um país onde ser homossexual é crime

os padrões sexuais e de gênero do país. Mas temia que fosse também identificado como gay. Samir* é magro, alto, tem o cabelo raspado dos lados, e sempre bem penteado para trás. Seu olhar é forte, marcante. Diz que não parece ser gay – e evita parecer. Por medo. Nascido no sul de Marrocos, em Agadir, o estudante de psicologia, formado em gastronomia, conta que se descobriu gay na adolescência: “Quando tinha 16 anos, senti amor por homens. Não consegui entender esse sentimento, apenas sentia que gostava mais de homens do que de mulheres”. Na família, desconfia que sua mãe saiba de sua orientação sexual, mas ela prefere não tocar no assunto. O pai saiu de casa quando tinha 10 anos, e nunca mais voltou. Somente o irmão mais velho sabe sobre a sua sexualidade. De início, não reagiu bem, mas depois aceitou. “Ele disse que tem orgulho de mim e que sempre serei o irmão caçula, não importa o que for”, conta. Samir* é precavido e tem sorte. Em Marrakesh, Mohammed*, de 22 anos, foi expulso de casa pela família em março deste ano quando descobriram que é homossexual. Hoje, divide um apartamento com o namorado, mas para conseguir pagar as contas precisa fazer trabalhos informais e se prostituir. Existem dias em que ele passa fome. “Se sua família descobrir que você é gay, eles podem te matar, é uma vergonha ser gay nas famílias árabes”, conta Samir*. RELACIONAMENTO E LUTA. Para gays, lésbicas e bissexuais se relacionarem no Marrocos, o caminho mais fácil parece ser a vida noturna e por meio dos aplicativos de celulares, como Tinder e Grindr. Samir*

conta que existem clubes LGBT em sua cidade, frequentados também por jovens heterossexuais. A polícia, segundo ele, não fiscaliza o espaço. Porém, em Marrakesh, de acordo com o francês Gabriel*, que mora na cidade há três anos, existem bares frequentados por pessoas LGBT que depois de alguns meses sofrem pressão de moradores e das autoridades para que barrem a entrada de homossexuais. Dessa forma, os pontos de encontro não são fixos, mudam constantemente. “Você pode viajar com seu namorado para qualquer lugar e se divertir nos clubes, as pessoas vão achar que vocês são amigos, mas na verdade são um casal”, relata Samir*. Associações e grupos buscam lutar contra a homofobia no país. O coletivo Aswat, que significa vozes, em árabe, criado em 2002, oferece suporte às mulheres lésbicas, bissexuais e transexuais palestinas, via internet. A Associação Marroquina de Direitos Humanos procura anular processos contra homossexuais no país. Segundo o levantamento da ONG Kif kif, desde a independência de Marrocos, em 1956, até 2010, 5 mil homens gays foram condenados à prisão. Enquanto esse quadro não muda, o ambicioso Samir* diz que uma de suas muitas metas é ser dono e chefe de um restaurante luxuoso e moderno. Agadir significa muralha na língua dos povos berberes do norte da África. Para as pessoas homossexuais no Marrocos, agadir é sua realidade. É preciso esconder uma parte de quem se é para sobreviver. Em diversas partes do mundo, a população LGBT precisa construir fortalezas para se defender ou esconder. Na Arábia Saudita, Irã, Iêmen, Mauritânia, Sudão e em regiões da Nigéria e da Somália, as pessoas culpadas por conduta homossexual podem ser condenadas à pena de morte. Coletivos e ONGs no mundo, como a Kifkif no Marrocos, lutam para que o preconceito não vença e essas pessoas possam viver sem medo. “Ser gay é um presente muito bonito que Deus me deu”, afirma Samir*, diversas vezes. No Brasil, apesar do direito legal a diferentes orientações sexuais, segundo relatório do Grupo Gay da Bahia, em 2013, a cada 28 horas uma pessoa morre por homofobia.

*

Os nomes foram trocados para preservar a

identidade dos entrevistados.

LGBT

63


ESPECIAL HOLANDA F lores, moinhos, tradições e muitas histórias irrigadas pelas águas dos canais. Ad Kox tem o prazer de viver ancorado ao balanço da correnteza de Amsterdã. Já imaginou como seria morar dentro de um barco? Não muito longe dali, em Lisse, um parque com 2 hectares e mais de 4 milhões de tulipas chama a atenção dos turistas. O maior jardim da Europa é conhecido pelos aromas e pela beleza grandiosa da simpli-

cidade natural aos olhos dos visitantes. Em Arnhem, moradores decidiram contribuir com a causa dos mais de cinco mil refugiados que buscam um recomeço na Holanda. Lá, uma cafeteria se transformou em um centro de acolhimento. A vida da sociedade holandesa pulsa na água e na terra. Foi em busca de transformar esse vigor em palavras, imagens e registros que, por iniciativa da Faculdade Cásper Líbero, um grupo estudantes via-

jou até a Holanda no final de abril deste ano. Cabia aos estudantes escolherem pautas que os interessassem e produzir matérias como correspondentes internacionais. A cada novo olhar, diferentes sensações que foram exprimidas com cuidado de um artesão para tecer essas narrativas.

Texto e fotografia por Lívia Vitale e Marcela Schiavon

Casas sobre as águas A vida de quem conhece a fundo os canais de Amsterdã

E

les estão por toda a parte. Amsterdã, a capital dos Países Baixos, é regada pelas veias, artérias e capilares de água. No passado, a grande circulação de produtos entre um navio e outro motivou a criação de portos na cidade. Turistas se uniram aos trabalhadores do século XVII – período no qual os holandeses, tradicionalmente ótimos navegadores e cartógrafos, dominaram o comércio mundial – que já conheciam as águas ao transportarem mercadorias, como

armas, açúcar e porcelana. Juntos, na tarefa de se deslocarem pelos canais, descobriram os segredos de Amsterdã no balanço da correnteza. Quatro séculos depois, inúmeros barcos que cumprem a função de casas encontram-se estacionadas nas laterais dos rios, como se os canais fossem ruas e, os barcos, carros e grande parte deles se mantém ancorados permanentemente, camuflados no cenário histórico da cidade. Corredores estreitos, portas que exigem afastamento para serem abertas, poucos

cômodos, apenas um banheiro, mas uma vista distinta. A sensação de que as leis da física deixam de existir e a água sustenta os pés, como se fosse possível caminhar pela água. Paralelas ao barco, construções em tijolinhos coloridos se findam com a vista de uma ponte ovalada. Para entrar neste barco em específico, é necessário descer uma pequena escada para sair do nível do calçamento e chegar ao nível do mar. Há apenas uma porta localizada na parte central. Dentro, um pequeno corredor interli-

LÍVIA VITALE

Ancorado em um dos muitos canais de Amsterdã, o aposentado Ad Kox, de 59 anos, construiu a sua casa

64

Revista Esquinas


ga o quarto principal, o único banheiro, a sala e cozinha. Ter um barco não é sinônimo de luxo, porém também não há desconforto para as mais de 2500 famílias que optaram por morar em barcos nos canais de Amsterdã. Dentre elas, encontra-se o simpático Ad Kox, aposentado de 59 anos, que não hesita em mostrar a casa para os turistas curiosos que caminham pela calçada. “Moramos aqui durante a semana e, geralmente, em finais de semanas, nós alugamos o barco. Meu amigo, que divide a casa comigo, está passeando com o nosso cachorro agora”. O custo para comprar um barco é de cerca de 40 mil reais e para mantê-lo ancorado em uma marina holandesa é de 30 reais por 0,3 metros, ou seja, por volta de 600 reais a cada 6 metros. Nos anos 1970, as casas-barco eram como as kombies hippies de Amsterdã, um estilo alternativo e ilegal de se viver. Hoje, morar em uma casa flutuante possui o suporte do próprio governo holandês. “Por um tempo, eu não tinha casa e morava com amigos. Depois, comecei a procurar por um lar e o irmão do meu chefe, que estava morando neste barco, me mostrou e acabei comprando. Agora, é como uma casa própria” orgulha-se Kox que vive em

seu barco antes de se tornar uma tendência. Quem decide morar nesse tipo de moradia, deve aceitar, por lei, que o o barco fique estacionado. A infraestrutura básica, que inclui eletricidade e água, é conseguida por meio de conexões a fontes de abastecimento. Desde que os impostos sejam pagos, os moradores marinheiros podem usufruir dela. A cada quatro anos é preciso transportar o veículo para uma doca porque o barco, depois de tanto tempo parado, precisa de uma limpeza. Lá, retira-se toda a sujeira fixa no casco, conhecida como craca, e é realizada uma manutenção para impermeabilizar a superfície submersa. Além disso, a lógica imobiliária já foi incorporada às casas barco. Assim, o preço inclui também a localização dele. Os três canais mais requisitados são Herengracht, Prinsengracht e Keizersgracht. Como afirma Kox: “Tenho que pagar uma taxa pelo local em que eu estou morando também. Esse valor é para a cidade de Amsterdã”. Segundo ele, não é tão frio no inverno. Como um típico holandês, acostumado ao clima extremo, a chuva e o vento não o incomoda, mesmo estando mais próximo da água. Parece surpreendente imaginar que o movimento do barco não atrapalha tanto

quanto a agitação do centro de Amsterdã. A turista inglesa, Geórgia Donald, de 48 anos, que passeia pela primeira vez na Holanda, preferiu a água em vez da terra como hospedagem. Para ela, que fez questão de mostrar o barco pequeno em que está hospedada, com um quarto, uma sala e um banheiro, “O balanço das águas não é nada se comparado ao som dos sinos do santuário Basílica de São Nicholas”. Kox, pelos anos de experiência, resolveu o problema com dois vidros grossos, que isolam barco contra ruídos indesejáveis. Quanto ao balançar, ele afirma que depende muito do barco que passa ao lado. “Quando o tempo está muito bom, ensolarado, como agora, uns vinte graus, muitos barcos passam ao lado. Aí, pode ser um problema”. A união dos próprios moradores de barco é a melhor opção para ter segurança, eles podem avisar uns aos outros se houver alguma manifestação suspeita. Mas parece que esse tipo de casa pode ser um cantinho de isolamento quando se quer. “Se você vive na cidade de Amsterdã terá sempre os seus vizinhos ao lado, em cima, embaixo e estou livre de tudo isso. Posso dizer que é muito relaxante”. Kox se despede afirmando que deveria terminar a limpeza do barco, de que cuida com muito carinho. MONTAGEM POR CAROLINA MORAES. FOTOGRAFIAS POR LÍVIA VITALE

Especial Holanda

65


Um refúgio em meio ao caos

A

comunidade de Arnhen, na Holanda, é conhecida pelo seu lado acolhedor. Apesar de ser uma cidade grande, ainda é possível notar o ar de cidade interiorana. Todos os estabelecimentos têm uma ótima combinação: chá e poltronas que, juntos, passam a sensação de tranquilidade. Dentre eles, uma nova cafeteria chama a atenção com pássaros brancos simbolizando a paz, enfeitando a porta. Ao fundo da loja há um local repleto de blusas, calças, sapatos e acessórios masculinos. Açúcar, biscoito e cerca de dez voluntários, homens e mulheres, dispostos a ajudar. Atrás do sofá, uma cortina que abriga guarda-roupas e sacolas lotadas com sapatos e acessórios, como boinas, cachecóis e luvas para doação a ser entregue para refugiados, já que o país é muito frio. Essas pessoas também disponibilizam tempo para ajudar com, desde aulas de holandês até companhia para jogar dominó. Com baixo índice de criminalidade, a Holanda começou a abrigar refugiados em prisões. Há mais de cinco anos, a medida vem sendo adotada a fim de que centros prisionais desativados no país ganhem uma boa função. Em contraponto, alguns bairros holandeses decidiram fazer diferente e começar a inserção social daqueles que buscam alento, em cafeterias. Como muitos não podem trabalhar legalmen-

Em Arnhem, moradores voluntários de uma cafeteria prestam auxílio a refugiados que chegam à Holanda

te no momento, não conseguem dinheiro para sobreviver, pois para se empregarem de maneira legal, precisam solicitar um visto de turista ou permissão para trabalho, mas ambos são custosos. Porém, para que imigrantes se reinserissem o mais cedo possível na sociedade realizou-se, de porta em porta, uma espécie de pedido de colaboração em novembro de 2015. Uma comunidade, na cidade de Arnhen, comoveu-se e começou a doar roupas e dinheiro a quem chegava. Pequenas boas ações têm feito o possível para tornar os dias dos refugiados um pouco melhores. A Arnhem para os Refugiados (AVV) é um desses lugares. Segundo a voluntária Annet Storm, de 28 anos, “o que muitas dessas pessoas precisam quando chegam à Holanda é entrar em contato com a sociedade”. Com cabelos curtos, sorriso cativante, vontade de fazer a diferença, ela conheceu a iniciativa por morar próximo ao local e notar crescente movimento em uma rua quase abandonada e, atualmente, disponibiliza o seu tempo para ler e ensinar idiomas aos que ali procuram um apoio. O café tem como objetivo colocá-los novamente em contato com as pessoas: sentar, beber, jogar e socializar. Rebecca Erbrink, de 20 anos, é holandesa de classe média alta, estudou em Arnhem e acrescenta: “O café é uma ótima alternativa para quem acaba

de chegar a um país completamente diferente, com costumes muito distintos”. ENCONTRAR ACOLHIMENTO. Desde a Segunda Guerra Mundial, a Europa nunca recebeu tantos refugiados. De acordo com a Agência da ONU para Refugiados (Acnur), apenas em 2015, cerca de 60 milhões de pessoas se deslocaram no mundo em razão de conflitos. Isto equivale a quase quatro vezes a população atual da Holanda, onde 40 mil refugiados foram recebidos no ano passado, quando Klaas Dijkhoff, ex-secretário de Estado da Segurança e da Justiça, declarou que 4.200 pessoas, fugitivas de guerras, chegaram à Holanda em apenas uma semana. Muitos deles não querem conversar e, os que aceitam, sentem-se envergonhados, tristes, amargurados. No café, dois homens pedem para não tirar fotos e não querem ter os nomes, idades e profissões reveladas. Ambos são negros, magros e roem as unhas. Um afirma ter deixado filhos e esposa. Outro, a mãe. A princípio discutem entre si, com um inglês fluente, pois discordam sobre quem perdeu mais. No fim, entram em acordo: família é família e estar sozinho em um país desconhecido é ruim. Yahya Mukhtaar Mayikey , de 32 anos, é outro refugiado, nasceu na Somália e passou um mês viajando. Ele é alto, negro, careca, evita olhar nos olhos e percorreu, da Somália até a Holanda, um longo caminho. Foram sete países e muitas perdas. Hoje, está sozinho e sem saber onde ficou a família. Afirma gostar dali, do ambiente, até confessa que a Holanda é um bom país, mas não deixa a tristeza de lado, mesmo sorrindo. Para ele, não conseguir se comunicar com nenhum dos colegas do albergue onde mora causa angústia e desejo de voltar para casa. Desabafa confessando que a Europa é muito diferente do que ele pensava, as pessoas estão dispostas a ajudar, embora ainda haja um plano de fundo com base em muita intolerância.

A voluntária Annet Storm ensina o seu idioma para os refugiados e conta que já ouviu muitas histórias que ajudaram no seu crescimento pessoal

LÍVIA VITALE

66

Revista Esquinas


Entre a comercialização e a beleza, Keukenhof se destaca como referência no protagonismo das tulipas

O mundo a florescer

H

olambra, localizada no interior do estado de São Paulo, corresponde ao principal produtor de flores do país. A cidade é nomeada assim, pois as três primeiras letras remetem ao país europeu, as três últimas ao latino e as duas do meio à América. Mas, o que poucos sabem é que o local foi administrado por holandeses e, por isso, garante reconhecimento. Já existe um lugar conhecido como o “país das flores”, e é de lá que vem a tradição do cultivo das tulipas. A partir do começo de março até o final de maio, as tulipas transformam grandes partes da Holanda em uma colcha de

retalhos colorida. Quando se vai ao país em abril para ver as tulipas florescerem, não importa para onde se olhe, os campos serão diferentes e, sem dúvida, coloridos. O Keukenhof é um parque diverso. Próximo a ele e ainda na estrada, nota-se uma pintura expressionista formada por plantações. Ao entrar no parque, o aroma é inconfundível, penetrando em cada poro do corpo, complementando os sentidos. Crianças, idosos, animais de estimação, todos são bem-vindos. A acessibilidade é enorme e o ambiente, acolhedor, já que os corredores são amplos, planos e não há escadas. LÍVIA VITALE

AS VARIEDADES. Do centro da folhagem surge uma haste, com uma flor composta por seis pétalas, com cores e formatos múltiplos: a tulipa. A palavra persa significa turbante. Todas as flores produzidas são enviadas para o mundo, inclusive para a América Latina. Há tantas variedades de tulipas, que a sociedade Horticultural da Holanda as agrupou em várias especificações, com diferentes tipos. Com aproximadamente cem espécies, as tulipas possuem folhas de diversos formatos. Existem muitas variedades cultivadas com tons matizados, pontas picotadas, cores fortes, dentre outros. Um exemplo diferente de tulipa é a riscada, que teve origem por meio de um vírus. Segundo informações do próprio parque mais de 90% das tulipas plantadas são descartadas graças às variações que as tornam menos “bonitas” para a venda. Para ter uma tulipa no quintal, no Brasil, deve-se fazer um teste de paciência. O primeiro florescer desse gênero ocorre a cada cinco anos. Para vendê-las é preciso aguardar ainda mais, ou seja, elas só podem ir à venda após 25 anos. Embora as tulipas não se adaptem bem ao clima brasileiro, se o desejo for muito grande é possível induzir a planta, simulando as condições climáticas do seu habitat natural para estimular os bolbos a rebrotarem. Siem van Holsteijn é engenheiro ambiental holandês e afirma que em 1637 começou a procura pelas tulipas: “Pessoas na Holanda chegaram a pagar por um bulbo de tulipa mais do que o preço de uma casa!”. Após esse auge, os holandeses começaram a perceber que o clima na holandês é perfeito para o cultivo. Cidades como Hillegom e Lisse, onde fica o Keukenhof, ficam abaixo do nível do mar, facilitando o cultivo de novos tipos de tulipa.

São sete milhões de bulbos plantados à mão no jardim holândes

O Keukenhof abre anualmente durante a primavera para visitação

TURISMO NO PARQUE. O frio não atrai muitas pessoas na época de visitação do Keukenhof, porém ele é ótimo para as plantas. Por isso que as tulipas necessitam ficar seis semanas na geladeira no Brasil, mas na Holanda só é preciso plantar. No parque, funcionários plantam em diferentes períodos para que sempre haja flores de diversas espécies. Eles colocam fertilizantes nas tulipas para que elas cresçam sem parar. Paradoxal por natureza, as tulipas se adequam ao frio com neve e ao verão seco e exigem cuidados. Os bulbos são mecanismos de sobrevivência, ou seja, reservas para períodos desfavoráveis, protegendo do calor e do frio. A base é a natureza, mas o manuseio não deixa de seguir a lógica humana, que busca significados e interesses. É explícito que logo após o posto de reserva natural, o parque significa lucro e turismo para todos os lados. Ainda segundo o holandês Siem, “no parque de Keukenhof são plantadas a cada ano sete milhões de flores. Além de tulipas, há também narcisos e jacintos e os holandeses são bons em marketing. Produzimos tulipas e vendemos mundo afora, porque as tulipas são nosso produto símbolo”. Aproximadamente um milhão de pessoas visitam o parque a cada ano, o que corresponde a quase a população total de Amsterdã, com cerca de 800 mil habitantes. LÍVIA VITALE

Especial Holanda

67


Maria Mudança

68

Revista Esquinas

Por Heloísa d’Angelo


Histรณria completa em quatromarias.com Quadrinhos

69


PROSA

Entre o gozo e o gatilho B

loco de papel ladrão: tira de si o indivíduo que o segura, desavisado. Mera peça em que sua fabricação mata a natureza. E, com a qual, cria-se a natureza: um espaço simbólico, imaginário, que coexiste ao percebido pelo olho humano, viciado na forma-cor uníssona do dia-a-dia. Capa dura, critério para os cuidadosos, que não aceitariam vê-lo estragado, desprezado. Tatear vagarosamente o dedão na capa, enxugando sua superfície suada na textura do bloco, me acalma se escorrego, o redemoinho das digitais de meu polegar; mas me agoniza se deslizo atritosamente e daí colho aspereza, aridez, mais comum em capas velhas e puídas, filhas do sebo e perseguidas pelo bolso vazio. Uma porta é a capa do livro. Olhá-la pela primeira vez, estranha, me soa como um convite: a porta esconde, folhas retangulares empilhadas, cortadas tal-qualmente, brancas, em setenta por cento de cujo espaço hospeda-se uma torre preta de palavras: bloco homogêneo, se não fossem os pontos finais de cada parágrafo do texto, que, a despeito de ser justificado, tem alterada sua regra pressuposta “linha de palavra sobre linha de palavra” e cava espaços em branco na página. O fim do parágrafo suscita o início da seguinte descoberta, cujo fim é justamente manter-me, leitor, à procura de outros fins e começos. E renovar-me, porquanto, quando me permito atingir subitamente, sem medo, pelo o que desconheço, permito, também, que nasçam outros eus em mim. Que eu me assuma múltiplo, em vez de uno. Eu amo muito ler livros. Há complexidade: eu não, simplesmente, amo ler livros: lê-los, apenas passado o tenso choque entre a curiosidade me estimulando ao novo e o medo, dele, me repelindo. Ler um texto cujo foco é a morte de uma pessoa, por exemplo, me remete àquela de quem restou saudade. Passear a córnea marrom dos olhos pela tinta preta que desenha o formato das palavras que dela me relembram me golpeia… é sufocante. Submeto-me a esse risco, porém, ao virar a página fina e seca e escutar o farfalhar da página arranhando o muco viscoso de meus frágeis ouvidos. Por outro lado, pode me infiltrar um gozo encantador: na oralidade de João Ubaldo, na excentricidade de Sabotage, no irmão e na linguagem rica de Chico e na crueza e realismo de Kafka. Quando assim, melindroso é largá-lo, pô-lo de costas à dureza antipática de uma mesa torpe, marrom-nada, insignificante e, de volta à realidade em que me sufoco, tornar a viver sob a supressão da potência dos sentidos, explorados energicamente, de forma única, no ato da leitura. Aguço a respiração até o cheiro de folha seca debochada pelo outono encorpar-se, no meu cérebro, em uma definida imagem, para a qual escolherei uma palavra. Assisto às folhas, as do livro, paradas, uma descansando sobre a outra, e desacelero a euforia do meu corpo, domino a “ofegação”. Descanso eu, também. O cérebro organiza imagens, entrelaçando-as a ideias, e me agrada o lufo assoprado de lucidez, a clareza do que ‘é’ e do que ‘não é’ – pelo menos naquele momento. Satisfeito, arrebato, então, um sobre o outro, os dois blocos de folha que seguro com as mãos, cujos dedos contorcem-se rangendo e estalam um gemido estridente de tanto peso suportado durante a leitura. E o livro fecha. Deixa de ser porta, para o gozo ou o gatilho. Volta a ser livro: um mero bloco de papel. Por Breno Zonta

70

Revista Esquinas


䔀渀挀甀爀琀愀洀漀猀 愀 搀椀猀琀渀挀椀愀 攀渀琀爀攀 漀 挀漀渀栀攀挀椀洀攀渀琀漀 攀 瘀漀挀⸀ 䔀猀琀甀搀愀爀 挀漀洀甀渀椀挀愀漀 ǻ挀漀甀 洀愀椀猀 昀挀椀氀⸀ 䌀漀洀 漀 䌀猀瀀攀爀 䐀椀最椀琀愀氀 瘀漀挀 琀攀洀 ˻攀砀椀戀椀氀椀搀愀搀攀Ⰰ 攀砀挀攀氀渀挀椀愀 攀 椀渀漀瘀愀漀 愀瀀氀椀挀愀搀愀猀 愀漀 攀渀猀椀渀漀 愀 搀椀猀琀渀挀椀愀⸀

준琀椀挀愀 渀愀猀 伀爀最愀渀椀稀愀攀猀  ∠  䄀猀 䴀搀椀愀猀 䐀椀最椀琀愀椀猀 攀 愀猀 刀攀氀愀攀猀 䠀甀洀愀渀愀猀 䔀洀瀀爀攀攀渀搀攀搀漀爀椀猀洀漀 渀漀 䨀漀爀渀愀氀椀猀洀漀  ∠  倀爀漀洀漀漀 攀 䴀攀爀挀栀愀渀搀椀猀椀渀最

椀渀猀挀爀椀攀猀 最爀愀琀甀椀琀愀猀㨀 挀愀猀瀀攀爀氀椀戀攀爀漀⸀攀搀甀⸀戀爀



Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.