Revista Esquinas #61

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ANO 22 | Edição 61 – 2º semestre de 2017 | revistaesquinas.com.br REVISTA-LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA FACULDADE CÁSPER LÍBERO

TRANSCIDADANIA

O programa da Prefeitura de São Paulo que insere travestis e transsexuais na sociedade DOMÉSTICAS no Brasil de hoje • PIXO: vandalismo ou arte?



Editorial 61

Esquinas, revista-laboratório do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero

DEBATE E DIVERSIDADE FACULDADE CÁSPER LÍBERO Diretor Carlos Costa Vice-Diretor Roberto Chiachiri Filho Coordenadora de Jornalismo Helena Jacob ESQUINAS Editor-chefe Márcio Rodrigo Editores Felipe Sakamoto e Paula Calçade Revisão Carolina Moraes e Guto Martini Editor de Arte Guilherme Guerra Diagramação Beatriz Fialho e Giulia Gamba Projeto Gráfico Beatriz Fialho e Guilherme Guerra Participaram desta edição Ana Carolina Navarro, Ana Paula Cerveira, Beatriz Fialho, Beatriz Mammana, Beatriz Moraes, Beatriz Nery, Bruna Miato, Bruno Ascenso, Carolina Cotes, Carolina Moraes, Cecilia Marins, Fábio Penteado, Gabriel Ambrós, Gabriel Nunes, Gabriel Seixas, Gabriela Glette, Gregory Prudenciano, Guilherme Guerra, Igor Brunaldi, Igor de Lima Pinto, Isabela Gomes, Isabela Guiduci, Isabella Barboza, Isabella Câmara, Isabelle Caldeira, Johnny Taira, Júlia Storch, Laís Franklin, Larissa Basílio, Larissa Rosa, Laura Simões, Lia Capecce, Lucas Machado, Marcella Lorente, Maria Luisa Rodrigues, Matheus Moreira, Pamela Malva, Paula Leal, Pedro Caramuru, Pedro Garcia Firmino, Rafael Fernandes, Rafaela Bonilla, Renan Porto, Samantha Nakamura, Sophia Lopes, Thiago Picolo, Vanessa Nagayoshi Imagem de capa Isadora Pinheiro Agradecimentos Arthur Ponzeto, Francisco Sucar, Jefferson Mariano e Victoria Franco Núcleo Editorial de Revistas Avenida Paulista, 900 – 5º andar – Núcleo Editorial de Revistas – CEP: 01310-900 Tel.: (11) 3170-5874/5814 E-mail: revistaesquinas@gmail.com Site: revistaesquinas.com.br facebook.com/eesquinas issuu.com/eesquinas

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Dois fenômenos em escala mundial marcam o ano de 2017: de um lado, o crescimento exponencial das chamadas fake news, ou “notícias falsas”, e a polarização ideológica que atinge não apenas o Brasil, mas boa parte das nações do mundo. Aparentemente desconexos, tais fenômenos encontram na propagação cada vez mais rápida das informações pela internet, especialmente nas redes sociais, seu ponto de convergência. Fazendo arrefecer os debates e afastando as pessoas, as fake news e a polarização acabaram por gerar “bolhas” de opinião e discursos de ódio que, em vez de integrarem as pessoas, intenção original da web, acabou por afastá-las. Neste contexto, o jornalismo de qualidade surge, como sempre, como um meio capaz de deter a propagação de falsas notícias ao mesmo tempo em que estimula o debate, elemento essencial para que as bolhas de ideias polarizadas e de discurso de ódio se não forem superadas, sejam, ao menos, diluídas. Este é, portanto, o objetivo central da edição da Esquinas que agora você tem em mãos. Enquanto a grande imprensa brasileira e as redes sociais transbordam ideias “polarizantes” e denuncismos aos borbotões, que bem pouco vem acrescentado à elucidação de questões centrais que tangem à sociedade, a revista laboratorial dos estudantes de Jornalismo da Cásper Líbero prefere seguir pelo caminho do debate, como maneira de se analisar as principais mudanças que marcam a realidade contemporânea. Localizada em São Paulo desde sua origem, há sete décadas, a Cásper reúne entre seus estudantes um significativo resumo da diversidade. Desta maneira, ao se inclinar ao debate, a única maneira encontrada pela Esquinas para poder praticá-lo de maneira eficaz foi exibindo em suas páginas toda a efervescência social, comportamental e cultural de questões e temas presentes hoje, não apenas na vida da cidade, mas que estão presentes na realidade de todo o País. Desse modo, os jovens repórteres da revista se debruçaram sobre assuntos que estão na ordem do dia e que clamam por discussões livres de preconceitos e estereótipos, traduzindo em reportagens, fotografias, colunas e infográficos toda a complexidade que um momento marcado por tanta diversidade e polarização exige. Das transcidadãs e transcidadãos de São Paulo, que querem ampliar seus direitos adquiridos a partir de projeto de inclusão inaugurado pela gestão passada da Prefeitura, passando pela complexidade da Reforma da Previdência proposta pelo governo federal que envolve a vida dos trabalhadores brasileiros – inclusive a de todas as empregadas domésticas que há menos de dois anos adquiriram direitos trabalhistas mais justos com a aprovação da chamada PEC das Domésticas – a preocupação de Esquinas é traduzir em “bom jornalismo”, como quer o jargão profissional, assuntos que precisam ser debatidos na sociedade. Se a revista vai conseguir furar as “bolhas” marcadas pelo discurso de ódio que circulam pela internet e banir as fake news que hoje dominam o mundo? Claro que não. Mas, certamente, a Esquinas continuará praticando um bom jornalismo. Boa leitura! Por Márcio Rodrigo, editor-chefe

ERRATA Os projetos das hidrelétricas Itaoca e Funil localizam-se no Vale do Ribeira e não no Vale do Paraíba, como exposto na reportagem “De longe” da edição 60 da esquinas.

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Sumário Esquinas, revista-laboratório do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero

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07 Antidepressivo poderoso O poder da corrida no tratamento de doenças psicológicas

08 7x1 sintomático O pesquisador Ary Rocco analisa o legado da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos no Brasil

12 Dossiê Como a Reforma da Previdência poderá afetar a vida de todos os brasileiros

16 Histórias não registradas A realidade de empregadas após a aprovação da PEC das Domésticas, que regulamenta seus direitos trabalhistas

22 Financiamento à deriva Os cortes no Fies e a inadimplência de estudantes que dependem do programa para se formar no Ensino Superior

24 Shopping Metrô Comércio ilegal de ambulantes no Metrô de São Paulo é modo de sustento com a alta do desemprego

26 CAPA A descentralização do programa Transcidadania traz incertezas à vida da população transexual

32 Rainhas e reis A popularização das drag queens e drag kings na capital paulista

34 Do cinza às cores Diversidade e resistência na Parada LGBT de São Paulo

42 Refeição indigesta Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo

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Revista Esquinas


44 Desafios permanentes A rotina de mães de crianças com microcefalia em decorrência do zika vírus

47 Um abrigo para peregrinos forçados CNBB acolhe refugiados por meio da ONG Cáritas

48 Territórios difusos Indígenas na comunidade do Real Parque, em São Paulo

52 Mãe solteira, não! Mulheres que passam pela maternidade sozinhas relatam suas vivências

54 Busca pela naturalidade Formas ancestrais de ginecologia ajudam no redescobrimento do sagrado feminino

56 Ancestralidade, luta e poesia Artistas negras reúnem-se em sarau sobre suas experiências individuais e coletivas em centros culturais

58 Fora de compasso A carreira musical de jovens músicos postos em xeque com cenário de cortes de recursos em São Paulo

59 Para cantar, dançar e atuar Escolas para atores de musicais multiplicam-se em São Paulo

60 Às Próprias Custas S/A Selos independentes incentivam produção musical fora do mainstream

64 As vozes do pixo Esquinas acompanhou pichadores pela noite da capital paulista

68 A cura dos padrões de pensamento Um ritual xamânico transformado em quadrinhos

62 Dançando nas ruas da metrópole Centro de São Paulo é pista para festas de música eletrônica

63 Olha, quantos gibis! Livraria especializada em HQs é destaque no bairro de Pinheiros

SEÇÕES 07 ALI NA ESQUINA 42 INFOGRÁFICO 08 ENTREVISTA 68 HQ 34 FOTORREPORTAGEM 70 POESIA

Sumário

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O mundo neste semestre

Esquinas, revista-laboratório do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero

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esde que assumiu a Presidência da República em maio de 2016, o presidente Michel Temer tem se articulado com sua base aliada no Legislativo para implementar no País um conjunto de reformas que afetarão a vida dos brasileiros. Até a publicação desta edição, duas propostas foram aprovadas pelo Congresso: a PEC do Teto, que estabeleceu um limite de gastos públicos para os próximos 20 anos e a reforma do Ensino Médio, que alterou a Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Os projetos de lei para a Reforma Trabalhista e da Previdência, que têm se mostrado bastante impopulares, ainda estão em processo de tramitação. Apesar dos sucessivos escândalos envolvendo o governo Temer, o presidente comunicou que seguirá “liderando o movimento em favor da aprovação da agenda de reformas”.

Dividindo opiniões O

prefeito de São Paulo João Doria (PSDB) instituiu, logo no início de seu mandato, o Programa Cidade Linda. Trata-se de um projeto de revitalização de áreas degradadas da cidade. Coordenado pela Secretaria de Prefeituras Regionais, o programa teve início no dia 02 de janeiro de 2017 na Avenida Nove de Julho. A proposta é manter as atividades durante os quatro anos da gestão Doria. Ao longo do semestre, as ações do programa levantaram discussões que dividiram a opinião pública. Foi o caso, por exemplo, da retirada dos grafites dos Arcos do Jânio e da Avenida 23 de Maio. A Guarda Civil Metropolitana passou a aumentar suas ações contra camelôs e pichadores, o que levantou acusações de truculência no processo de “embelezamento” da cidade. Veja na reportagem As vozes do pixo.

Liberdade e vigilância L

ogo antes de acabar sua gestão, Barack Obama anulou a pena de 35 anos de Chelsea Manning pelo vazamento de informações confidenciais dos Estados Unidos. E em maio de 2017, a liberação da ex-militar finalmente aconteceu. Depois de sete anos na prisão de Fort Leavenworth, no Kansas, Manning deu sua primeira entrevista e agradeceu ao ex-presidente. No programa britânico Nightlife, declarou: “Todos nós temos responsabilidade. Nós filtramos tudo por meio de fatos, estatísticas, relatórios, datas, horários, locais e, eventualmente, eu parei. Parei de ver estatísticas e informações e comecei a ver pessoas”. Manning foi condenada depois de entregar mais de 700 mil documentos sobre guerras norte-americanas ao Wikileaks. E por falar em Wikileaks, a Suécia encerrou a investigação sobre o fundador da organização, Julian Assange. Ainda assim, o jornalista continua refugiado na Embaixada do Equador em Londres, onde está há cinco anos.

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Revista Esquinas

MÍDIA NINJA

Hora da reforma? D

Marchas revolucionárias E

m pelo menos 55 países, mulheres saíram em marcha no Dia Internacional da Mulher (08 de março) protestando contra a violência e desigualdade de gênero. Em 2017, a Greve Internacional das Mulheres surgiu de dois movimentos em países distantes, mas de lutas semelhantes. O grito “Ni Una a Menos”, que surgiu após o feminicídio da jovem Lucía Perez, na Argentina, ecoou por toda a América Latina depois da articulação das mulheres argentinas para organizar uma greve contra o assassinato. E não à toa: esses países têm um índice elevado de violência de gênero e feminicídio. No Hemisfério Norte, milhares de polonesas paralisaram as atividades por um dia inteiro para pressionar o governo contra o projeto que deixaria ainda mais rígida a legislação sobre interromper a gravidez – que já é, aliás, uma das mais restritivas da Europa. O parlamento da Polônia desistiu da ação. Mas a greve ganhou ainda mais força depois da Marcha das Mulheres de Washington, uma resposta aos pronunciamentos misóginos do recentemente eleito Donald Trump. No Brasil, não foi diferente. Atentas aos últimos acontecimentos políticos que impactam a vida das mulheres, como a Reforma da Previdência, marchas no 08 de março também aconteceram no Brasil. O fortalecimento da conexão mundial entre as mulheres soa como uma resposta ao avanço das manifestações conservadoras nos campos políticos e sociais.

Crise do sistema N

o dia 10 de janeiro, 60 presos foram mortos em Manaus (AM) durante uma rebelião de 17 horas. O episódio foi o primeiro dos três que logo nos primeiros dias de 2017 dimensionariam a crise penitenciária no Brasil. A superlotação é um dos grandes problemas do sistema prisional: dados do Mapa das prisões da ONG Conectas Direitos Humanos mostram que o número de presos cresceu de 294 mil para 574 mil entre 2005 e 2013. Naquela mesma semana, um tumulto em uma penitenciária de Roraima resultou em 33 presos mortos e, no Rio Grande do Norte, em 26 na Penitenciária Estadual de Alcaçuz. As mortes em presídios que estampam os jornais desde o final de 2016, além de expor as raízes dos problemas do sistema carcerário no País, também revelaram as disputas entre facções criminosas presentes no Brasil.


ALI NA ESQUINA

Antidepressivo poderoso Correr pode ser um importante passo no tratamento de doenças psicológicas Texto por Beatriz Fialho

É cada vez mais comum ouvir histórias de pessoas que, durante um tratamento psicológico, acrescentaram em suas rotinas diárias exercício físico, sendo a corrida a mais popularmente indicada pelos médicos para auxiliar na recuperação de doenças como depressão que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais afetará a população mundial nas próximas duas décadas. Para aqueles que se sentem desestimulados ou não gostam de correr sozinhos, a prática em grupo é uma excelente opção. Em São Paulo, muitos grupos de corrida voltam sua atividade para o trabalho coletivo. É o caso do Projeto Vida Corrida, que nasceu para incentivar mulheres e crianças a se movimentarem e, unidas, combaterem os sintomas de doenças psicológicas e reforçarem os laços familiares. A fundadora do Projeto, Marineide dos Santos, decidiu se engajar na corrida após sofrer com a morte de seu esposo, assassinado por policiais militares. Depois da perda, com apenas 18 anos de idade, Santos se envolveu com mulheres da comunidade que buscavam a oportunidade de praticar algum esporte na região do Capão Redondo, na zona sul da capital paulista. Anos depois, seu filho mais velho foi assaltado e morto por um menor de 14 anos. Foi então que a corredora decidiu estender seu projeto às crianças. O Projeto Vida Corrida ajuda mais de 350 pessoas no bairro e conta com uma rede de profissionais e colaboradores que

mantém o projeto em movimento. Os treinos ocorrem no Parque Santos Dias, em horários pré-determinados. Os adultos podem treinar de segunda a sexta, às 7 horas. Já as crianças podem participar as segundas, quartas e sextas-feiras, às 8 e às 15 horas. Em 2016, o Vida Corrida ganhou o 21º prêmio Cláudia, na categoria de Trabalho Social. Ao receber a homenagem, Marineide dos Santos concluiu que tinha “todos os motivos do mundo para se tornar uma pessoa rancorosa”, mas que havia decidido mudar os rumos de sua própria vida. As doenças psicológicas ainda são muito estudadas por não serem doenças pontualmente tratáveis. Por exemplo, para tratar a garganta inflamada sabese que tem que combater a bactéria que causou a inflamação. Mas ainda é difícil para a medicina definir o que, exatamente, causam transtornos psicológicos. O médico e autor do livro Correr, Drauzio Varella, explica em sua obra como a corrida o ajuda a lidar com a ansiedade e com o estresse diário, além de ser um “antidepressivo poderoso”. Um estudo da Universidade Southwestern, no Texas, também mostrou que a corrida pode ser muito eficaz no tratamento dessas doenças. A pesquisa concluiu que pessoas que praticaram corrida durante 30 minutos, de três a cinco vezes por semana, tiveram uma redução de 47% dos seus sintomas depressivos, após três meses.

Segundo Varella, isso acontece porque correr, assim como praticar qualquer exercício físico, libera no sangue uma bomba de hormônios que geram aquele sentimento agradável comumente conhecido como “sensação de dever cumprido”. Serotonina, endorfina, dopamina e outros hormônios atuam no sistema nervoso central e são os responsáveis por essa sensação de prazer e relaxamento. Outra vantagem da corrida é a relação com o ambiente externo e a possibilidade de melhorar o convívio social. “Não tenho paciência de ficar na academia e vou pra rua!”, conta Carmen Silvia, de 34 anos. Após mais de dois anos de crises de depressão, Silva encontrou no exercício físico um “escape para evitar tudo o que já passei”. A nova corredora também mantém uma alimentação saudável e, incluir a corrida no tratamento, ajudou na perda de peso – até agora já emagreceu 17 quilos com os exercícios. Além do Vida Corrida, existem outros grupos de corrida abertos para a população da capital paulista. Para conhecer os grupos que atuam nas diversas regiões de São Paulo, é necessário procurar por um parque próximo e se informar sobre os horários daqueles grupos regulamentados, que são identificados com camisetas, bonés e horário fixo. Outra opção é ficar atento aos eventos nas mídias sociais. É comum que muitos grupos de corrida organizem eventos e disparem convites pelo Facebook.

2º semestre de 2017

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ESPORTE

7x1

é sintomático

Para o pesquisador Ary Rocco, o esporte brasileiro e os megaeventos sediados no país sofrem com a má gestão das confederações

Texto por Matheus Moreira

E

m agosto de 2015, uma reportagem da BBC Brasil questionava os benefícios de sediar os jogos olímpicos no País. No segundo semestre de 2014, ano do “7x1” na Copa do Mundo, o Produto Interno Bruto (PIB) apresentou queda de 0,6% devido a menor produtividade industrial e ao impacto negativo na economia, provenientes das recorrentes paralisações provocadas pelos jogos da seleção e pelos feriados. Dois anos depois, o então prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PMDB), afirmou que os jogos olímpicos iriam movimentar grandes quantias e que sediar o evento seria “uma grande oportunidade de transformação para a cidade”. Nem todos estavam tão animados quanto ele. O ano de 2016 foi um período conturbado para o Brasil, que viu sua presidenta ser destituída por um controverso processo de impeachment. . Um ano após os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, a Esquinas conversou com o pesquisador, especialista em Marketing Esportivo e professor da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (USP), Ary Rocco, para entender qual o legado dos chamados megaeventos esportivos para os setores econômico, social e esportivo brasileiros.

esquinas Entre os argumentos para sediar eventos es-

portivos estão os benefícios econômicos, sociais e esportivos. Porém, um ano após as Olimpíadas, vimos atletas perderem patrocínio e incentivo, além da crise nas contas públicas do Rio de Janeiro. O contexto atual era previsto? Qual sua avaliação para este primeiro ano pós-Olimpíadas? Na realidade do ponto de vista econômico, social e esportivo, o benefício é pífio. O que pudemos ver que do ponto de vista social foi o privilégio a determinadas regiões do Rio de Janeiro, como, por exemplo, a Barra da Tijuca, que recebeu transporte e infraestrutura que não precisava. Não beneficiaram a população carioca como um todo. Do ponto de vista econômico, no momento dos jogos, evidentemente tivemos um boom na economia da cidade, hotéis lotados, movimentação da economia, mas isso já passou e nós não conseguimos, por incapacidade administrativa, aproveitar isso e fazer esse benefício se manter por um período longo após o evento. O contexto atual já era previsto pelos mais catastróficos.

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Revista Esquinas

Eu, na verdade, pensava que poderíamos ter uma situação melhor hoje, mas o grande problema que vemos no Brasil na gestão de esporte, é que a gente não conseguiu de uma certa forma planificar ou planejar adequadamente os jogos para que esse legado pudesse durar bastante tempo e pudesse melhorar a condição de vida das pessoas. esquinas No quesito gestão esportiva então também pode-

mos afirmar que as Olímpiadas foram problemáticas? Do ponto de vista do esporte, os jogos olímpicos não serviram para massificar o esporte no Brasil. Muito pelo contrário, o que vemos hoje é isso a fuga de patrocinadores e a queda do nível de investimento no esporte, porque as marcas e patrocinadores que investiram antes dos jogos o fizeram porque estava na mídia. Agora que não estão mais, e sabemos que a gestão das confederações brasileiras de várias modalidades é ineficiente e até envolvida com corrupção, as marcas deixaram de investir, porque o esporte não é mais pauta de discussão. Então, minha avaliação deste primeiro ano após os jogos olímpicos é que os jogos foram catastróficos para o País. Hoje temos instalações que não sabemos usar, não temos estruturas esportivas para aproveitar tudo que foi construído e não houve planejamento para o uso (posterior) dessas instalações que foram construídas para massificar ou de alguma forma melhorar o esporte no Brasil.

esquinas Em 2014, já se apontava desconfiança quanto

ao Brasil receber a Copa do Mundo e os jogos olímpicos. Com o fim da Copa e a goleada da Alemanha, a desconfiança aumentou. É possível traçar relações e paralelos entre o “7x1” e os resultados econômicos desse um ano de pós-Olimpíada? Por quê? Na verdade, o “7x1” tem um papel simbólico, mas ele reflete o estágio atual da gestão do esporte no Brasil. Primeiro, o País não tem uma política do esporte. O governo não sabe se investe no esporte e educação, esporte e participação, esporte de alto rendimento, então não há uma política de esportes no Brasil. Falando do futebol, especificamente, no País, os clubes são entidades sociais sem fins lucrativos, então não são empresas. Eles surgiram no final do século XIX com uma finalidade


© ROBERTO CASTRO/ BRASIL2016

Segundo o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (IPCA), divulgada em junho de 2017, foram gastos cerca de R$ 41,03 bilhões na Rio 2016

social e incorporaram os esportes. Os dirigentes dessas entidades são dirigentes amadores que trabalham voluntariamente em um negócio que movimenta um alto número de recursos financeiros. Tudo isso estimula a má gestão e a corrupção. esquinas Não sabemos administrar

nosso próprio futebol? Nós administramos mal o nosso melhor produto, o futebol. Administramos de forma amadora e pouco empresarial. Por outro lado, falando de grandes clubes da Europa, eles hoje têm grandes estratégias para o futebol, eles são empresas. Só na Espanha que não são empresas, são clubes associativos, mas a estrutura é toda profissional. O Barcelona tem escolinhas de futebol no Brasil, tem um patrocinador exclusivo para a América Latina, o melhor jogador brasileiro joga no Barcelona, então o clube usa o mercado brasileiro para fazer ativação e levar gente para lá, ou seja, o Barcelona tem estratégias empresariais para o mercado brasileiro. Outros clubes, como Real Madrid, têm estratégias para o mercado brasileiro. Com os meios de comunicação, TV a cabo e internet, é mais fácil a molecada torcer para um time de fora

do que para um time daqui. Consequentemente, pode-se até ter um time daqui, mas a criançada compra camisa do Barcelona e do Real Madrid. Esse mercado movimenta até os camelôs. Esses clubes ocupam nosso espaço e tiram mercado dos nossos clubes e criam abismo financeiro enorme no qual nossos jogadores com 16 e 17 anos já querem jogar lá. O nosso produto futebol passa a ser ruim. Assim, cria-se esse fosso, que é o que reflete o 7 a 1. A tendência é um abismo cada vez maior entre o futebol, enquanto produto, oferecido na Europa e o oferecido aqui no Brasil. esquinas Entre alguns atletas que per-

Minha avaliação deste primeiro ano após os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro é que os jogos foram catastróficos para o País Ary Rocco, pesquisador

deram patrocínio ou parte do incentivo para treinar estão Isaquias Queiroz e Poliana Okimoto. O que motivou esse movimento contrário, visto que alguns são medalhistas? Qual sua avaliação? O que motivou esses medalhistas a não terem patrocínio é a falta de interesse da mídia de falar de canoagem e maratona aquática. Consequentemente, quem patrocinar esses atletas não terá visibilidade midiática. Assim, deixa de ser interessante

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© RAFAEL RIBEIRO/CBF

Segundo Tribunal de Contas da União (TCU), na Copa do Mundo de 2014 foram gastos em R$ 25,5 bilhões

incentivar esses indivíduos porque nós não ligamos a televisão e vemos competições de canoagem, por exemplo. Antes dos jogos era interessante para as marcas, porque os atletas estavam envolvidos nos preparativos, apareciam em séries de reportagens. Houve reportagem sobre o Queiroz e a Okmoto no Jornal Nacional. O momento pré-jogos gerava pauta. Hoje, ninguém quer falar disso. É um problema que não é social, mas tem finalidade econômica, também devido ao momento de crise que o País vive. E neste momento as empresas precisam escolher onde vão investir. Talvez se não estivéssemos vivendo essa crise econômica, talvez, por terem conquistado medalhas, ambos tivessem patrocínio, mas em momento de crise as empresas estabelecem prioridades e estratégias. Alia-se a isso o fato das confederações de canoagem e de esportes aquáticos tem problemas. Por exemplo, o presidente da Confederação Brasileira de Jogos Aquáticos (Coaracy Nunes) está na cadeia, então, que patrocinador que já não tem dinheiro vai querer associar sua marca a essa gestão negativa? esquinas Você poderia explicar um pouco mais a relação

entre esse clima econômico e socialmente “catastrófico”, como você apontou, entre o cenário pós-megaevento e a gestão das confederações? Antes dos jogos tínhamos um cenário mais favorável, com

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empresas querendo investir no esporte porque ele estava em pauta. Quando uma empresa tem mais dinheiro, ela não precisa restringir tanto os investimentos. Com a crise e a redução nas quantias para investir, as empresas vão investir naquilo que geram maior retorno. Se há uma confederação mal administrada, com denúncias de corrupção e você precisa selecionar onde vai investir, você não colocará seu dinheiro nesse lugar, onde o nome da sua empresa pode ser maculado. Todo aquele que for melhor gerenciado e administrado vai levar esse dinheiro. As empresas buscam investir em organizações mais eficientes, o que, infelizmente, quase nunca é o caso. Com os presidentes e gestores de confederações esportivas no Brasil não recebem por isso, porque esse trabalho não é profissionalizado, sendo entidades sem fins lucrativos, esse gestor acaba sendo menos eficiente que gestores de outras empresas. Quando o dinheiro está sobrando, a seleção (feita pelos patrocinadores) é menor, quando está em falta, é maior. Salvo raríssimas exceções como, por exemplo, talvez, o vôlei, todo o restante é muito mal administrado. Essa é a relação. Depois dos jogos, isso ficou muito mais evidente, porque não havia mais pauta para as modalidades que não fossem como as que tinham público e que eram bem administradas. Depois dos jogos, o dinheiro passou a ir apenas para quem é mais eficiente.


Opinião

As amarras da liberdade A polarização para além dos debates políticos NO COMEÇO DE 2017, tive a oportunidade de iniciar algo que foi um grande desafio: dar aulas de redação em um cursinho popular. Em meio a tanta desorganização, própria de uma gestão popular e independente, algo que me incentivou nos sábados em que ali lecionei foi a breve caminhada da estação Portuguesa-Tietê até a escola em questão. Quando comecei a dar aulas, estava lendo Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade, livro da escritora norte-americana bell hooks. Apoiada, sobretudo, no pensamento de Paulo Freire, a autora fala sobre a pedagogia engajada, método em que professor e aluno precisam ser participantes ativos e o aprendizado, que deve ser mútuo, precisa se estender para os vários aspectos da vida, não apenas o intelectual e profissional. Ela define “teoria” da forma mais simples e bonita que já vi: é entender o que está acontecendo. Ter contato com a obra à medida que estava tendo minha primeira experiência como professora fez com que eu refletisse cada vez mais sobre a sala de aula como ambiente em que a liberdade é possível e potente. Certo dia, entregamos aos alunos uma proposta de redação sobre a reforma da Previdência que, por meio da PEC 287/16, propõe mudanças constitucionais no que diz respeito a, entre outras coisas, o direito à aposentadoria. No cursinho, o assunto estava sendo tratado com particular intensidade naquela semana pois, no sábado anterior, alunos, professores e coordenadores se reuniram numa roda de conversa para debatê-lo. Quando pedimos que se manifestassem sobre os conhecimentos prévios que tinham a respeito da reforma, adquiridos sobretudo nessa roda, muitos estudantes falaram, cada um à sua maneira, sobre perda de direitos. Nossa intenção era introduzir o assunto por meio de uma explicação sobre o que é a PEC. Ao questionarmos os alunos, no entanto, percebemos que eles pulavam essa parte, ignorando sua importância e iam direto à opinião. Mas como se forma uma opinião sem conhecimento de causa? Debater sobre o risco de opinar sem conhecer foi tão difícil quanto necessário. À nossa frente, alguns rostos confusos e outros revoltados. Piorou quando dissemos que, junto à proposta de redação, havia um desafio: o texto deveria ser favorável à reforma. “Eu não vou escrever”, “impossível”, “mas eu não acredito nisso”, “eu não concordo com a reforma”.

Após a leitura de um dos textosbase em que um jurista trazia argumentos positivos sobre a PEC, alguns estudantes se mostraram mais flexíveis, mas a maioria se manteve rigidamente em sua posição. Na aula seguinte, pouquíssimas redações foram entregues para correção. O problema, nesse caso, não é a impossibilidade de mudar de opinião uma vez que a sua já esteja formada. O que me intrigou, na verdade, foi a falta de um processo crítico de formação dessa opinião e a dificuldade em simular uma outra. A proposta de que os alunos redigissem um texto dissertativo na defesa de um posicionamento que ia contra aquilo que eles de fato acreditavam não tinha como intenção fazê-los apoiar a PEC. Ao contrário disso, tinha por objetivo incentivar alguns pontos caros à escrita opinativa e, no contexto específico do cursinho, ao vestibular: 1) valorização da estrutura do texto; 2) entendimento sobre a importância da interlocução; 3) reflexão sobre a formação de opinião. O que me chamou a atenção no episódio e me fez querer contá-lo aqui foi a sua recorrência. Casos assim são sintomáticos à medida que apontam para o desenvolvimento de um País cada vez mais polarizado e, por conseguinte, cada vez mais burro. Convicção não é o problema. Mas essa espécie de alergia que estamos criando ao pensamento do outro, e aqui enfatizo os grupos de esquerda – onde toda opinião parece revestida por uma aura de superioridade intelectual –, é danosa à democracia e ao debate público. É danosa, sobretudo, à educação como prática de liberdade – sobre a qual nos fala bell hooks e sobre a qual se baseia a lógica de um cursinho popular. Liberdade não é sobre a reprodução de ideias, mesmo que se trate das ideias mais libertárias, mas sobre entender verdadeiramente o que está acontecendo. Larissa Rosa é casperiana, realizou iniciação científica sobre primeiras-damas e a construção da feminilidade. Para o TCC, analisa o discurso que legitimou o processo de impeachment de Dilma Rousseff

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DOSSIÊ

Retrato distorcido da realidade brasileira Discutir a Reforma da Previdência é repensar o passado, o presente e o futuro do País Texto por Guilherme Guerra

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té 2060, o Brasil terá um terço da população de 218 milhões acima dos 60 anos de idade. As mortes já terão superado os nascimentos e a taxa de fecundidade total será de 1,5 filho por mulher, número semelhante a países como a Alemanha e Suíça. Frente a esse cenário projetado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), não espanta que a Previdência Social esteja novamente em debate. O governo federal busca mudanças com a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 287/2016, conhecida como Reforma da Previdência. As principais medidas incluem aumentar em uma década o tempo de contribuição exigido, estabelecer idade mínima para homens e mulheres e também novas regras para trabalhadores rurais, funcionários públicos federais, policiais e professores. Os militares estão de fora, embora representem 45% do déficit da Previdência Social.

Com a PEC, o objetivo da atual administração – exercida pelo governo Temer até o fechamento desta edição – é conter gastos no orçamento federal. Em 2016, houve prejuízo de 149,2 bilhões de reais no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), quantia equivalente a 2,3% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. Para 2017, o “rombo da Previdência”, como é chamado, é estimado em 182 bilhões de reais. E, de acordo com o governo e economistas, esse número só tende a aumentar caso não sejam feitas mudanças na estrutura previdenciária. Mas há quem discorde. “Segundo nossa interpretação, não existe déficit na previdência”, afirma Fátima Guerra, economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). No início de 2017, o departamento e a Associação Nacional de Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip) elaboraram um

documento-síntese intitulado Reforma da Previdência: reformar para excluir? em que diversos economistas contra-argumentam dados, medidas e propostas defendidas pelo governo e corroboradas por outros especialistas da área. Guerra critica a visão fiscalista do governo e reitera a manutenção do modelo tripartite que compõe a Previdência Social, no qual trabalhadores, empresas e Estado contribuem com a arrecadação. O déficit seria das contribuições que não foram dadas pelo Estado, que se vê endividado e com outros déficits além da Previdência. Os juros com a dívida pública somaram 502 bilhões de reais em 2015, representando 8,5% do PIB. As desonerações fiscais, 280 bilhões de reais, e a sonegação de impostos, 452 bilhões de reais. Enquanto trabalhador e empresa cumprem as obrigações do modelo tripartite, o Estado não paga sua parte.

ARTHUR PONZETO

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Revista Esquinas


Distribuição de aposentadorias emitidas por grupos de espécies dezembro de 2015 Rurais

Urbanos Invalidez 6,8%

Invalidez 23,5%

Por tempo de contribuição 0,3%

Por idade 30,2%

Por idade 92,9%

Por tempo de contribuição 46,3%

Fonte: Dataprev, Sub, Sintese. Elaborado por IBGE

Desde 1988, a nova Constituição Federal prevê uma série de direitos para garantir o bem-estar de aposentados. Inspirada nos modelos do bem-estar social europeu, a Carta Magna garante auxílios que hoje ajudam na redistribuição e complemento de renda de famílias de quase metade da população brasileira. Para Fátima Guerra, ao procurar corrigir as receitas fiscais do orçamento com a Previdência Social, o governo propõe um “desmonte”.

Mas o sistema previdenciário brasileiro é bastante peculiar se comparado ao resto do mundo, a começar pelos gastos. Atualmente, o Brasil gasta 13% do seu PIB com aposentadorias e pensões, utilizada por apenas 8% da nossa população. Em comparação com o México, de estrutura demográfica similar ao Brasil, os gastos não passam de 6%. “Nós gastamos muito com a Previdência”, afirma Luis Eduardo Afonso, professor da Faculdade de Economia e Administração da Uni-

versidade de São Paulo (FEA-USP). Para Afonso, nossos gastos mais onerosos são o longo tempo de benefícios e a alta taxa de reposição, a qual considera “generosa”. Hoje, há duas maneiras de se aposentar: cumprir os benefícios por tempo de contribuição (15 anos) ou atingir a idade de 65 anos para trabalhadores urbanos e 60 anos trabalhadores rurais. Em ambos os casos, há diferenças de público. Quem se aposenta por tempo de contribuição tende a ter renda mais alta, pede a apo-

ARTHUR PONZETO

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População Idosa por PIB gasto em Previdência

Itália

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Grécia França

Brasil

Alemanha

10

Turquia

EUA

5

Japão

Reino Unido

Chile México 0

10

5

15

20

25

30

Dependência demográfica Fonte: OECD (2013), STN e Banco Mundial. Elaborado por Paulo Tafner

sentadoria em torno dos 50 anos de idade e continua no mercado de trabalho para complementar a renda. Já o trabalhador de baixa renda demora a cumprir os 15 anos exigidos devido aos números de desemprego e variadas participações no mercado informal de trabalho – e nesses casos o indivíduo aposenta-se por idade. Com a nova proposta do governo, as duas medidas são agora exigidas. Depois de aposentado, o brasileiro costuma receber um benefício superior a muitos países de primeiro mundo. Valor relativo ao salário recebido antes de pedir a aposentadoria, a taxa de reposição brasileira é de 83%. No México, é de 28% e o Chile, 38%. Em estudo de 2016, o economista Luís Eduardo Afonso afirma: “Quanto menor a renda do segurado, mais elevada será sua taxa de reposição”. Sua pesquisa consistiu em analisar os sistemas de aposentadoria por contribuição e por idade pelos microdados disponibilizados pela Previdência Social. Entre os aposentados por idade, 96% é reposto do salário na aposentadoria, que segue o teto nacional

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Revista Esquinas

de salário mínimo. Nesses casos, quem recebia menos de um salário mínimo ganha mais como aposentado graças à vinculação do salário mínimo à aposentadoria. A aposentadoria integral também é alvo das mudanças propostas pelo governo. A PEC propôs uma exigência de 49 anos de contribuições a homens e mulheres para receber a aposentadoria integral, mas após pressões de setores trabalhistas o número caiu para 40. Se aprovada nessas condições, a lei fará com que o trabalhador se insira no mercado formal de trabalho já aos 25 anos de idade para aposentar-se na velhice com os privilégios integrais. “Empecilhos à aposentadoria podem ser um catalisador muito grande de desconfiança do jovem com o sistema”, diz Fátima Guerra. Segundo a economista, com muitos obstáculos à aposentadoria, o jovem pode deixar de contribuir para investir em uma previdência privada, embora a alternativa não cubra benefícios como licença-maternidade e acidente de trabalho, por exemplo. “É uma reforma que está

sendo feita a curto prazo”, define. “E os impactos serão muito grandes, principalmente para os trabalhadores de baixa qualificação”, observa Guerra. “Previdência não é um tema óbvio”, conclui Luís Eduardo Afonso, que acredita ser necessário pensar a longo prazo para fazer as reformas corretas, ainda que impopulares. Para o economista, discutir o assunto hoje é falar com resultados que acontecerão dentro de 70 anos. Para o jovem que hoje se inicia no mercado de trabalho, é difícil pensar sua situação em 50 anos. Mas uma coisa é certa: tratando-se de aposentadoria, é preciso pensar já.

É uma reforma que está sendo feita a curto prazo Fátima Guerra, economista


Como é a Previdência? O MODELO TRIPARTITE Trabalhadores, empresas e Estado contribuem com a Previdência Social, instituída pela Constituição Federal de 1988 como um direito a todos os brasileiros

A REFORMA VALE PARA QUEM?

O DÉFICIT Em 2016, a Previdência teve um déficit de 150 bilhões de reais

Homens com menos de 50 anos de idade, mulheres com menos de 45 anos, havendo regras de transição para quem for mais velho. Contempla inclusive políticos, professores, trabalhadores rurais e domésticos, funcionários plúblicos e policiais, com exceção de militares

ATUALMENTE

COM A REFORMA

15 anos de contribuição

25 anos de contribuição

65 anos homens, 60 anos mulheres 35 anos homens, 30 mulheres de contribuição

Mínimo de 65 anos para homens e de 62 para mulheres

TETO DE APOSENTADORIA

5.531,31 reais

2.400,00 reais

PROFESSORES

30 anos de contribuição para homens, 25 de contribuição para mulheres

60 anos de idade mínimos, 25 de contribuição

60 anos para homens, 55 anos para mulheres

60 anos de homens, 57 mulheres, 15 anos de contribuição

SERVIDORES PÚBLICOS

65 anos para homens, 60 anos mulheres

65 homens, 62 mulheres, 10 anos de contribuição, 5 anos de cargo efetivo

POLÍTICOS

50 anos, 8 anos de contribuição parlamentar

60 anos, 35 de contribuição

30 anos de contribuição para homens, 25 anos de contribuição para mulheres

60 anos para homens, 57 mulheres, 15 anos de contribuição

TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO APOSENTADORIA POR IDADE APOSENTADORIA INTEGRAL

TRABALHADORES RURAIS

POLICIAIS

40 anos para ambos os sexos

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SOCIEDADE

Histรณrias nรฃo registradas 16

Revista Esquinas


Cinco relatos de empregadas domésticas evidenciam a distância entre a rotina de trabalho e a legislação trabalhista brasileira após quatro anos da “PEC das Domésticas” Texto por Laura Simões e Renan Porto Fotografia por Laura Simões

2º semestre de 2017

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A

Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 2017 aponta que existem seis milhões de trabalhadoras em funções domésticas no País, número que representa cerca de 15% do total de mulheres no mercado de trabalho brasileiro. Esse quadro faz do Brasil o país com o maior número de prestadoras de serviço doméstico do mundo, de acordo com dados coletados, em 2013, pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). No entanto, existe a possibilidade do número ser ainda maior. Há uma dificuldade de tornar preciso a quantidade de trabalhadoras domésticas devido ao caráter informal das relações de trabalho da profissão. Apenas no ano de 1972, a categoria foi reconhecida pela Constituição Federal e, até a aprovação da chamada “PEC das domésticas”, em abril de 2013, alguns direitos garantidos pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) não se estendiam ao serviço doméstico, como o recebimento de, no mínimo, um salário mínimo mensal como salário, hora extra e jornada de trabalho de oito horas diárias. A proposta de emenda constitucional garantia ainda mais 13 direitos às domésticas, como o adicional noturno, a obrigatoriedade do recolhimento do FGTS, seguro-desemprego, salário-família, auxílio-creche e pré-escola, seguro contra acidentes de trabalho e indenização em caso de demissão sem justa causa. Apesar de aprovada pelo Congresso em 2013, a PEC foi regulamentada apenas em junho de 2015. Em 2017, cerca de 70% das funcionárias domésticas trabalhavam sem carteira assinada, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Logo após a sanção da PEC, houve um aumento de mais de 60% no número de funcionários domésticos com o FGTS recolhido, atingindo 1,3 milhão de trabalhadores. Apesar do número ainda ficar aquém das seis milhões de empregadas na categoria, a presidente do Sindicato das Empregadas e Trabalhadores Domésticos da Grande São Paulo (Sindoméstica), Janaína Mariano de Souza, entende o cenário como positivo e acredita na efetividade das determinações da emenda. Para Souza, após anos de luta sindical, a emenda foi capaz de trazer finalmente o devido reconhecimento ao serviço doméstico e equiparou a categoria às demais existentes no País. O jurista Marcos Ciccariano Fantinato, especialista em Direito do Trabalho, percebe o quadro com menos otimismo. Além de considerar que a Lei Complementar 150/2015, resultante da “PEC das Domésticas”, omite direitos indispensáveis como adicional de insalubridade, o jurista é cético quanto à capacidade da nova legislação do trabalho doméstico afetar a vida prática dessas trabalhadoras. De acordo com o jurista, isso fica claro uma vez que, ainda hoje, existem ações trabalhistas questionando o direito a férias, por exemplo. Outra crítica feita por Fantinato é direcionada à plataforma que contempla as obrigações tributárias do empregador, o e-Social. Ficou estabelecido que o recolhimento de encargos, como o FGTS e o seguro desemprego, devem ser realizados pelo contratante por meio do site, porém, devido à burocratização excessiva do sistema, o jurista entende que ele não foi pensado para o empregado doméstico comum e menos ainda para o empregador. “Não é aceitável que o empregador tenha que assistir a 20 vídeos tutoriais para saber manejar o e-Social, o site criou uma experiência muito complexa”, afirma. Fantinato aponta que, garantindo mais direitos, a Lei Complementar 150/2015 tornou o contrato de trabalho menos atraente, mais caro e burocrático e considera uma falha na legislação a ausência de medidas que incentivem a contratação, sobretudo em um momento de crise econômica. Janaína Souza ainda indica que, diante disso, surgiram efeitos colaterais indesejados pelos idealizadores da PEC. Muitas das domésticas que se encontravam desempregadas, por exemplo, acabaram optando pela terceirização, afirma o fundador da empresa Maria Brasileira, Eduardo Pirré. O empresário conta que sua empresa, que presta serviço doméstico

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Revista Esquinas

Patrícia Nascimento, 37 Eu comecei com 19 anos de idade por opção mesmo. Na primeira casa, trabalhei um ano e meio, e já dormia no serviço. Eu sempre dormi. Era puxado, eles davam muito trabalho. Só que quando criança dar trabalho é uma coisa, agora, quando adulto dá trabalho, aí não deu. Meu patrão batia na cachorra. Uma vez, ele saiu correndo com uma faca atrás do sobrinho. Eu liguei pra mãe dele e ela disse “se vira”. Eu falei, “não, não tenho que me virar, eu sou empregada, não sou a mãe dele”. Chegaram até a me prender no quartinho. Só consegui sair porque eu comecei a gritar e a vizinha abriu a porta, se não eu ficaria lá. Eles abusavam de todo jeito, eu era meio bobinha. Não pagavam hora extra, não tinha nada disso. Depois, trabalhei numa outra casa antes de entrar na que eu estou hoje, trabalhei cinco dias. Foram os cinco dias piores da minha vida. Às 6 horas, eu tinha que estar na cozinha e não parava o dia todo. Eu tinha que comer em dez minutos e a minha comida era diferenciada da deles. Eles até trancavam a dispensa. Eu só comia os restos. E eu me lembro de que ela me veio com um pão até mofado. Sabe, dava coisas mofadas, estragadas. Eu lembro que era Semana Santa e ela veio com um peixe, “não, Patrícia, não dá pra você, eu não tenho dinheiro”. Aquilo me deu uma revolta muito grande. Eu levantei, terminei meu serviço e falei, “para mim não dá”. Eu consegui sair por não ter filho, por não pagar aluguel. Na época, morava com meus pais, então eu não precisava passar por aquilo. Eu sempre dou conselho para as meninas lutarem por seus direitos, pelo registro. Mas, quando a pessoa não tem uma escapatória, acaba aceitando. Eu sempre fui registrada. Apesar de tudo, ainda acho que o registro é necessário. Mas se fosse seguir à risca, o registro não funciona. Onde eu trabalho não tem horário, lá não tem ponto, não tem nada. Então é acordo de boca entre a gente. A mulher que eu cuido janta às 21h, para ficar teria que pagar hora extra. Mas qual é a patroa que dá férias duas vezes por ano? Quando tem feriado, alguma coisa, já emenda. Então, uma coisa compensa a outra. Poucas têm essa liberdade. Mas isso também não é tão bom. Às vezes você tem tanta intimidade que perde aquele contato de patrão e empregado. Quando fui pedir aumento fiquei sem jeito por causa disso, acaba misturando. Ela fala direto para eu sentar na mesa para comer com ela. Mas eu sei me colocar no meu lugar. Às vezes, é o momento deles. Eu sei que ela é minha patroa e eu sou a empregada.


Sempre dou conselho para as meninas lutarem pelos seus direitos

Beatriz Silva, 16 Eu comecei com 14 anos. Morava com a minha mãe e já fazia as coisas lá. Eu arrumava a casa, lavava as roupas, fazia tudo e para minha mãe nada estava bom. Ela sempre reclamava comigo e mandava ir morar com o meu pai. Não estava dando. Aí, a minha irmã estava procurando alguém pra olhar o filho dela, de três anos. E pensei que seria melhor. Mas morando com ela vi que não era nada disso. Ela ia me pagar e tudo. Mas não deu certo, porque fui perdendo os dias na escola. Ela ficava me incentivando a faltar. Eu não conseguia estudar direito, tinha que ficar olhando o menino. Achei que eu ia reprovar. Minha irmã não via que ela tinha um filho e tinha que arcar com a responsabilidade dela. Ela chegava tarde e ainda queria sair. Ela me explorava mesmo, sabe? Tinha que ficar olhando ele das duas horas da tarde até a meia noite. E quando chegava, se ela precisasse à noite eu tinha que estar acordada. Então, dormia bem tarde e acabava não indo pra escola. Não tinha hora. Sem falar no dinheiro que ela me combinava, ia me pagar 200 por mês. Eu aceitava porque eu estava morando na casa dela. Daí ela pegava e no dia me dava 100 reais. Isso quando ela não pegava o dinheiro de volta, falava que tinha que pagar não sei o quê. Depois ainda ficava dando risada da minha cara. E se eu reclamasse ela ia me expulsar. Eu não tinha o que fazer. Não ia morar com a minha mãe. Não falava com meu pai. Era lá ou lá. A minha outra irmã também, a mesma coisa. Trabalhei para ela no começo do ano, ia receber o mesmo, 200 reais. Ela ficava ameaçando de me mandar para FEBEM, dizendo que eu era irresponsável e no final nem queria me pagar. Falando assim, a pessoa acha pouco. Mas na prática, você vai passando isso todo dia é horrível, de chorar mesmo. Trabalhar desse jeito não dá. Hoje, eu continuo procurando serviço de doméstica para melhorar de vida. Eu aceito o que vir, com ou sem registro. Falam que sem curso você não consegue emprego, mas sem emprego você não consegue pagar o curso. Não tem o que fazer.

terceirizado, registrou um aumento de quase 40% no número de mulheres entrando em contato em busca da terceirização após a aprovação da PEC das Domésticas. Outro efeito indesejado apontado pela presidente do Sindoméstica é o crescimento do trabalho informal e das demissões. Maria Gomes, de 77 anos, acabou abdicando da funcionária que prestava serviço doméstico há 17 anos em sua residência. A dona de casa conta que o principal motivo da demissão foi o aumento dos encargos trabalhistas decorrentes da nova lei complementar. Vivendo com uma aposentadoria de 2500 reais por mês, Gomes e seu marido destinavam mais da metade da renda para o custeio da funcionária, pagando cerca de 30% em impostos sobre o salário. Desde o ano passado, Gomes assumiu as tarefas domésticas e, com o avançar da idade, teme por sua saúde devido ao desgaste envolvido com as tarefas braçais. “Hoje não é qualquer um que pode manter uma empregada e, se continuar desse jeito, a profissão não vai existir mais”, acredita. A dona de casa alega que sua ex-funcionária ainda não conseguiu um novo emprego e, por esse motivo, teria sido prejudicada pela chamada PEC das Domésticas. “Por mais que o salário não fosse nada de mais, eu pagava em dia e sempre a tratei muito bem. Então, com certeza ela preferia estar trabalhando em casa”. Gomes ainda afirma defender o livre acordo entre patrões e empregados e considera rigorosas muitas das imposições da emenda. Entre elas, o horário de almoço estabelecido em duas horas. Para ela, isso seria adequado a uma empresa, mas não a uma casa de família. Segundo ela, a própria funcionária se negava a acatar a imposição e preferia adiantar o serviço para poder sair mais cedo do trabalho. Maria Gomes também vê problemas na plataforma do e-Social. A dona de casa conta que às vezes empacava e ficava horas tentando entender o funcionamento do sistema, com medo de cometer erros que prejudicassem a funcionária ou a si própria. Hoje, Gomes é procurada a todo momento por sua exfuncionária, que está há quase seis meses esperando seu seguro desemprego devido a um erro em seu número de identificação no Ministério do Trabalho. A dona de casa alega que sua filha teria recorrido a um contador para cuidar dessas questões. Professor titular de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (USP), Sérgio Pinto Martins alerta ainda para a distância que há entre o estabelecido legalmente no ambiente do serviço doméstico e o que acontece na prática. Martins aponta que sempre existiram muitas mulheres ganhando abaixo do salário mínimo, por exemplo, e que isso seria muito difícil de ser coibido. Diante desse quadro, o professor não hesita em afirmar que a Lei Complementar 150/2015 não coloca fim a essas práticas. Ainda é cedo para traçar com exatidão os reais efeitos no mercado de trabalho da atual lei. Contudo, é fundamental refletir sobre como somente medidas legais seriam capazes de transformar na prática o cotidiano dessas trabalhadoras. Os relatos de cinco dessas mulheres sobre suas trajetórias apresentados nessa reportagem, atestam que há ainda um longo caminho a ser percorrido para que essas profissionais sejam livres para trabalhar sob as condições que entenderem como as mais justas e dignas com garantias trabalhistas mínimas que vão além de seus salários.

Ela ficava ameaçando de me mandar pra Febem, dizendo que eu era irresponsável e no final nem queria me pagar 2º semestre de 2017

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Luciana Cabral, 33 Eu devia ter uns 13 anos e comecei para poder comprar uns CD’s da Laura Pausini (risos). Porque meu pai era assim, ele colocava comida na mesa e só. Então tinha aquela frustração de não ter. Aí, uma professora falou, “eu precisava de alguém pra ficar com os meus filhos, mas teria que ficar em casa”. Talvez isso na vivência dela era normal. Mas, hoje, com toda a informação que tenho me pergunto como conseguia. Fazia tudo, cozinhava, lavava, passava, cuidava das crianças. E, cara, eu era uma criança também. Na época não tinha consciência disso. Acabei largando a escola por dois anos, era muito difícil conciliar. Ela até me incentivou, mas o que eu mais ouvia do meu pai era, “aprendeu a escrever o nome já tá bom”. Só que gostava muito de estudar e de escrever. A poesia me salvou de um monte de coisa. Acho que foi uma revolta contra o meu pai. Minha família era ultraconservadora, ultra machista. Mas eu sempre soube que era lésbica. Era muito difícil assumir. Toda vez que estou escrevendo alguma coisa penso “putz, não era só assinar o nome, era algo mais, era entender mesmo o que estava lendo, é sentar com qualquer um e poder conversar sobre tudo, poder ler o mesmo jornal que o filho da patroa e poder falar a mesma língua que ele”. Você diz que é doméstica e a pessoa toma um susto, “eu não acredito que você faz isso, você, uma mulher tão instruída”. O preconceito está no achar que a doméstica não pode estudar. No achar que o sustento que coloco na minha mesa não é digno. É claro que eu já ouvi histórias horríveis. Só que graças a pessoas que encontrei não tenho nada para contar desse tipo. E se você pegar o meu caso entre 30, talvez ele seja o único e aí é que dói. Se eu contar as histórias que minha mãe conta como diarista, que você não podia comer a mesma comida, não podia usar o mesmo banheiro e se você procurar vinte histórias dessa hoje, você encontra. Eu não vejo um lado mais humano, isso é muito triste. “Faz o seu trabalho que eu te pago e pronto”. As pessoas te podam, tem pessoas que nem vão me ouvir se eu disser minha profissão. Toda vez que eu estou falando com alguém, “nossa, você é um achado”, mas não sou. Talvez eles não tenham parado para conhecer as pessoas que trabalham na casa deles. Vai ter gente que vai ver essa matéria e vai pular na hora, porque não quer saber. Esse tipo de coisa não é com PEC, registro, que vai mudar, é complicado. De tudo que a gente vê, a carteira assinada é positiva. Mas se hoje estou sentindo que esse valor retirado pelo INSS vai fazer falta? Sim, porque, com as coisas que vêm acontecendo no país, eu não estou vendo retorno. Se precisar disso no futuro, sei que não vou ter, estou ciente disso. Hoje tenho dois empregos. Trabalho terças e quintas como diarista e segundas, quartas e sextas como registrada. Eu tenho só o sábado e o domingo para me aproximar da minha família. Eu tenho medo que o meu filho passe a me ver apenas como uma provedora daquilo que ele precisa pra sobreviver.

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Revista Esquinas

Pensamentos Detenha o tempo, Segure com toda a força A pressa dos segundos, Pois a menina que mora em minha alma, Garimpa os sonhos, Esquecidos a margem de mim. Detenha o medo, Segure com toda força, A menina que mora em meu coração, Garimpa em busca de conhecimento... me encoraja, me questiona E me arranca da caverna, onde eu me sentia segura... Segure o máximo que puder. Mas a menina que me apressa, grita: “Moça, quanto mais você tenta segurar o tempo, mais ele tende a te deixar para trás!” Luciana Cabral


Rita de Souza, 40

Não é porque trabalho na casa de alguém que vou andar toda esculachada, não é verdade?

Sandra Silva, 42 Comecei com 22 anos, por causa da dificuldade financeira, tendo que sustentar meus filhos pequenos. Aí depois não parei mais. De cara foi um choque. Por mais que eu sabia fazer serviços domésticos, né, você fazer para os outros não é a mesma coisa que fazer para você. No começo não tinha registro, nada. Trabalhei muito tempo assim, 12 anos. Se eu tivesse trabalhado todo esse tempo com carteira assinada, meu Deus do céu! Igual, acabei saindo de uma casa em dezembro, aí meu seguro desemprego tinha meu Fundo de Garantia. E se eu não tivesse? Eu ia sobreviver do quê? Consegui voltar a trabalhar mês passado, graças a Deus. Eu estou de mensalista agora. Só que já dormi muito no serviço. Fui sempre bem tratada, mas sempre no meu lugar. Nunca misturei o pessoal com o profissional, entendeu? Por mais que dormisse, que tivesse aquela liberdade, eu sei a liberdade de patrão até onde vai. Nunca confundi. Não é porque falam, “pode ficar à vontade” que vou lá abrir um suco, um refrigerante. Eu nunca fiz isso. Mas pior que tem umas que não deixam nem comer, tem que levar marmita, sabe? Uma vez a caseira de um lugar onde trabalhei falou, “ó, essa comida de hoje você não pode comer, você tem que comer aquela que tá na geladeira.”. Eu falei que não como comida de quatro dias na minha casa, não seria ali. Quando voltei, eu fui demitida, com certeza ela contou, né (risos). E ainda tem muitos desses maus tratos, né. Tipo assim, os dizeres, “eu estudei e você quer ganhar mais que eu”, “se você não trabalhar aqui você não trabalha em lugar nenhum”, e a pessoa não pode nem falar nada. E não são só os patrões. As pessoas olham com os olhos meio de desfeita. Já aconteceu de falarem “nossa, você nem parece que é doméstica”. Porque sou doméstica você acha que eu tenho que andar como, com uma sacolinha de mercado, com a unha pela metade? Não é porque trabalho na casa de alguém que vou andar toda esculachada, não é verdade? A gente vai dando risada. Não da situação, mas de saber que existem esses absurdos. E tem muitas que passam e não contam por vergonha, né.

A gente morava na roça. Então, desde pequena, levantava cedo, pegando na enxada, capinando. Era muito puxado. Mas o fato de morar na roça ainda era o mais tranquilo. Mas, o meu pai era terrível, qualquer coisinha ele já estava descendo o cacete, batendo. E ele ainda abusava “as” minhas irmãs mais velhas. Sempre quando ele chegava bêbado ele queria porque queria. Aí, meu medo era chegar à idade delas e acontecer comigo também. Eu queria ir embora. Era mais uma forma de fugir de casa do que da roça. Porque na minha cabeça, eu era a próxima. Foi quando a mulher do fazendeiro me chamou para trabalhar na casa dela, na época eu tinha 12 anos. Meu pai não aprovava, né, ele dizia que filho dele não ia lamber prato de rico. Mas acabei indo, fui morar com eles em Vitória da Conquista, na Bahia. Era para tomar conta da neta deles que nasceu. Mas eu fazia tudo, lavava louça e limpava. Era quase a mesma coisa de casa, só não trabalhava na roça, mas o trabalho era o mesmo. Não tinha tempo para nada. Nunca cheguei a sentar e comer, só comia depois que eles comessem. O que sobrasse, né. Eu tinha horário para levantar, mas não tinha horário pra dormir. Tinha que estar pronta para qualquer hora que eles precisassem pra ir fazer o que eles quisessem. Muitas vezes, eu estava lá dormindo, cansada e a pessoa batendo na porta, “ou, vai fazer o leite da criança”. Aí, você tem que levantar, ainda com um sorriso. Por isso eu falo: não tive infância. A minha brincadeira era dar banho numa criança, levar pra escola e ficar com ela o tempo todo, porque se aquela menina caísse, se machucasse, vinha pra cima de você o patrão já reclamando, falando que ia te mandar de volta pra roça. Aí, quando eu tinha uns 15 anos saí de lá. Acabei indo pra umas casas ainda piores. Em uma, a patroa não permitia que eu saísse porque era “de menor”, então eu ficava presa o tempo todo. E tinha o marido dela também, que sempre ficava tentando abusar, tirava roupa e ficava aquela coisa balançando. Aí, acabei pedindo para sair e vim para São Paulo. Cheguei aqui sem conhecer nada e logo fui registrada. Para mim, foi uma vitória enorme. Antes, o que eles davam você tinha que aceitar e tchau. Licença-maternidade eu não tive. Quando minha filha nasceu, a patroa falou, “se você não voltar, eu vou ter que chamar outra pessoa pra ocupar seu lugar”. E tive que voltar, né, eu precisava. Quer dizer, a falta de registro prejudicou bastante. Você não tinha direito a nada. Mas mesmo com o registro, muita gente não respeita o que tá na lei. Com essa nova PEC, por exemplo, as pessoas que converso falam que só mudou a parte do seguro desemprego. Mas referente ao trabalho, elas falam que, infelizmente, não mudou nada. Na prática é assim, as coisas demoram a mudar. Hoje mesmo ainda tem muito. E tem vários elementos para reforça isso. O uniforme, por exemplo, é para mostrar que você é empregada e não ser confundida com uma pessoa da casa. Quando você abre o portão todo mundo sabe, “essa é a empregada”. É horrível. Por isso, falo pra minha filha, “estude, que trabalhar pros outros não é bom, casa de família é só o que sobra pra quem não tem a oportunidade de estudar”.

Editoria

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EDUCAÇÃO

1,9 milhão

é o número de alunos beneficiados pelo Fies entre 2010 e 2014

A única despesa do aluno é um pagamento trimestral dos juros incidentes sobre o financiamento (valor máximo de 150 reais)

41%

dos estudantes de instituições de ensino superior utilizavam o Fies em 2014

98%

dos usuários do Fies são das classes C, D, E

76%

dos estudantes com o Fies em 2014 vieram de escola pública

20% E 100% é a variação da bolsa na mensalidade da instituição de ensino ENTRE

Fonte: MEC/Fies 22

Revista Esquinas


Financiamento à deriva Crise econômica coloca em xeque o Fies e interfere no sonho do diploma de nível superior no Brasil

Para ter direito ao Fies, o aluno precisa:

Texto por Gabriel Ambrós, Isabela Gomes e Thiago Picolo

A

os 40 anos e mãe de duas filhas, a assistente jurídica Flávia de Morais abandonou, em 2012, a carreira em processos gerenciais para cursar Direito na Uniesp de São Roque. Jady Redini, com 17 anos, ingressou na Faculdade São Judas Tadeu no curso de Rádio e TV, mas abandonou a tão sonhada graduação por não conseguir arcar com as despesas da faculdade. O que ambas têm em comum? Em algum momento, recorreram ao Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) para conseguirem estudar. Criado há dezoito anos pelo Ministério da Educação (MEC), na presidência de FHC, o programa proporciona o acesso a faculdades particulares aos alunos que não têm como custear as mensalidades. Assim, é feito um financiamento deste valor, que é quitado após a conclusão do curso. O Fies, porém, vem esbarrando em uma problemática recorrente: a inadimplência. Em 2016, a taxa de inadimplentes chegou a 53%, de acordo com a Controladoria Geral da União, sendo que 27% dos contratos já apresentam atrasos de mais de um ano. Junto a isso, as condições do financiamento pioraram. Em 2015, durante a presidência de Dilma Roussef, sob a justificativa de “fortalecer a sustentabilidade do programa”, o MEC subiu a taxa de juros anuais do Fies de 3,4% para 6,5%. Em meio a isso, o Fies é um programa extremamente burocrático, sobretudo para os alunos. A ex-aluna de Rádio e TV Jady Redini, em seu terceiro ano de graduação, passou a ter problemas com o financiamento. O banco responsável pelo gerenciamento do contrato não depositou um semestre de mensalidade. O valor acumulado se tornou impagável para a estudante, o que a motivou a desistir do curso. Hoje, aos 23 anos, ela voltou ao ensino superior, mas agora cursando Tecnologia da Informação na Universidade Paulista (Unip). Desta vez, a jovem optou por não usar o crédito de financiamento, pois não quer “ficar à mercê do governo”. “Penso que seja melhor eu fazer uma faculdade que eu consiga pagar”, diz. Claudenir Galvani, vice-presidente do Conselho Regional de Economia do Estado de São Paulo, afirma que a sustentabilidade do Fies não depende apenas de mudanças estruturais, mas está relacionada com a economia nacional. O especialista pontuou que os altos índices de inadimplência dialogam diretamente com a empregabilidade do País. “A tendência é que o aluno vá para o mercado de trabalho e não consiga se inserir, aumentando a inadimplência”, explica. Recém-formada em Direito, Flávia de Morais critica o pouco tempo de carência para o início do acerto de pendências com o financiamento. “E se você não arruma emprego até um ano e meio depois?”, diz. Hoje, ela trabalha como assistente jurídica em uma clínica veterinária e tenta aprovação na prova da Organização dos Advogados do Brasil (OAB). Outro reflexo da crise econômica no Fies foi a diminuição da oferta de vagas entre 2014 e 2015, com uma queda aproximada de 400 mil contratos. Na tentativa de amenizar as

Não ter sido beneficiado anteriormente com o Fies Possuir renda familiar mensal bruta de até 3 salários mínimos por pessoa Ter participado do Enem a partir de 2010 Ter obtido, pelo menos, 450 pontos na média das provas e nota acima de zero na redação Não ser beneficiário de bolsa integral do ProUni ou de bolsa parcial do ProUni em curso ou IES distintos Começar a pagar as pendências após o período de carência (18 meses), parceladas ao longo de até três vezes o tempo de duração da graduação

preocupações dos estudantes, o ministro da Educação do governo Temer, Mendonça Filho, afirmou que o financiamento voltará a se aprimorar após passar por uma reforma, mas sem mais detalhes: “Não posso adiantar as medidas que serão tomadas”, disse em um pronunciamento em maio de 2017. Quem mais se beneficia com o Fies são as instituições de nível superior. Em 2014, a Faculdade Anhanguera (do grupo Kroton-Anhanguera) foi o grupo educacional com os maiores repasses de verbas do País ao programa, obtendo 900 milhões de reais. Com isso, a instituição aproveitou o programa de financiamento do MEC para angariar mais alunos e também desenvolveu um próprio, com taxas mais atrativas, o Parcelamento Estudantil Privado (PEP), que possibilita o estudante a pagar até 70% do seu curso só depois de formado. Samir Maluf, superintendente da Faculdade Anhanguera, pontua de forma institucional: “O Brasil precisa de um desenvolvimento econômico, social e ambiental sustentável, e o Fundo de Financiamento Estudantil auxilia essa progressão”. Nesse sentido, o Fies tem como proposta fazer com que o ensino superior seja possível para as classes sociais mais baixas, assim alterando a projeção de um futuro. Jady Pelissari, que teve o sonho interrompido pela crise no Fies, ainda fala com saudades do curso que foi obrigada a abandonar. Relembra que seria a terceira geração da família a seguir em Rádio e TV, ofício que aprendera com o avô, João Pelissari. Mas agora, “com os pés no chão”, explica que precisa seguir uma área cujo retorno financeiro seja mais rápido, mas não descarta a carreira em comunicação como parte dos seus planos futuros. “Vejo que o curso que faço atualmente pode agregar com o pouco conhecimento e a imensa paixão que tenho pela comunicação”, confessa.

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CIDADES

Shopping

metrô Comerciantes ambulantes falam de suas rotinas e dos desafios que enfrentam todos os dias dentro dos vagões dos metrôs em São Paulo Texto por Beatriz Mammana e Bruna Miato Fotografia por Samantha Nakamura


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rimeiramente, bom dia pessoal, desculpa estar atrapalhando a viagem de vocês, mas tenho em minhas mãos o mais novo adaptador para celular que nas lojas vocês vão estar encontrando por 30 reais, mas devido a mega operação dos guardas quem tiver 15 leva não só um, mas dois”. Assim começa o dia de Rafael*, vendedor ambulante dentro dos trens e estações do Metrô de São Paulo. Ele tem uma rotina diária já estabelecida: acorda às 4 da manhã, segue até a estação mais próxima da sua casa, a Itaquaquecetuba da CPTM, e de lá leva duas horas para chegar ao Centro da cidade de São Paulo, onde compra produtos, geralmente eletrônicos, na região da rua 25 de Março e os revende entre as estações Jabaquara e Barra Funda. O jovem comerciante não está sozinho. A maioria dos ambulantes relata que reside em áreas periféricas da capital paulista, locais mais afetados pelos altos índices de desemprego que atingem o Brasil nesse momento. De acordo com a Pesquisa de Emprego e Desemprego da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) de 2017, o índice de desemprego em São Paulo passou de 17% em fevereiro para 18,1% em março. E Cléber*, vendedor ambulante de Santo André, confirma: “Comecei por estar desempregado, porque hoje geral está desempregado, e pra não ter que fazer nada de errado eu optei por trabalhar com o comércio nos vagões, que foi a única coisa que eu consegui buscando trabalho”. Muitos deles também disseram que conheceram o comércio por meio de amigos que já realizavam esse trabalho no Metrô. “Quando eu fiquei desempregado, pela primeira vez comecei a vender bala nos ônibus, mas alguns amigos meus me apresentaram essa opção de trabalhar nos metrôs e foi aí que eu comecei”, afirma Marcos*, do Capão Redondo. Márcia*, uma das poucas mulheres no comércio ambulante dos metrôs, conta: “Eu comecei porque trabalhava registrada e não tava aguentando”. O ambulante Tadeu, seu marido, conta que “durante a manhã é muito ruim trabalhar nos vagões, então preferimos vir só à tarde, depois de deixar nosso filho na escola, e ficamos até às 18, na hora de buscar ele. Assim passamos mais tempo com ele”. Quando perguntado sobre a renda, o casal disse que as vendas compensam, porque muitas vezes o que se ganha no Metrô supera o salário de um emprego registrado, tornando possível o sonho de dar uma vida melhor ao filho. Os “marreteiros”, termo usado entre os ambulantes para se autodenominarem, disseram que, mesmo com os preços baixíssimos pelos quais as mercadorias são vendidas, é possível sustentar suas

famílias: “Eu pago meu aluguel, a prestação da minha moto e compro o leite e as fraldas dos meus filhos”, acrescenta Marcos. Já Leandro* conta que fatura, em média, cem reais diariamente com o comércio nos vagões. CRIMINALIZAÇÃO E VIOLÊNCIA. Embora a rotina de trabalho de Rafael seja muito parecida com a de qualquer outro trabalhador, ele, assim como todos os comerciantes ambulantes, precisa agir de forma clandestina, porque, dentro de um vagão de metrô, sua atividade é considerada ilegal. Segundo o advogado Pedro Thomazini, o comércio dentro dos vagões e dependências dos trens e metrôs é regularizado pelo Decreto n° 1832, de 4 de março de 1996, que, de acordo com seu Art. 40, proíbe a comercialização de qualquer produto dentro dos trens e estações de Metrô. Nesse contexto, o capítulo IV do decreto que diz respeito à segurança, indica que a Administração Ferroviária “pode e deve adotar as medidas de segurança necessárias destinadas a garantir a manutenção da ordem em suas dependências e o cumprimento dos direitos e deveres do usuário, bem como exercer a vigilância em suas dependências”. Essa norma garante ao guarda dos trens e metrôs a apreensão do comerciante e seus produtos e encaminhá-los à subprefeitura mais próxima, na qual as mercadorias apreendidas poderão ser liberadas com a apresentação da nota fiscal e sob o pagamento de uma multa de 154 reais. No entanto, Márcia e Tadeu afirmam que, no momento em que suas mercadorias são apreendidas, os próprios guardas cobram um valor, que varia entre 500 e 700 reais, para devolver os produtos na hora, de forma ilegal. “Eles já partem para a violência, porque aqui dentro eles acham que são polícia”, conta o comerciante Marcos*. Além da vista grossa aos “marreteiros”, Leandro diz que para haver agressão não é nem necessário que os ambulantes reajam “Uma vez um guarda veio apreender minhas mercadorias e eu entreguei, porque, assim como eu estou fazendo meu serviço, ele está fazendo o dele. Mas ele também quis pegar minha mochila e eu falei: ‘você não pode pegar ela porque é minha, eu não estou vendendo’”. O vendedor ambulante alega que o guarda o agrediu e ainda o ameaçou. A administração dos Metrôs alega que, em caso de má conduta dos guardas, eles são punidos e afastados, caso necessário. O número de ações de recolhimento de mercadorias realizadas no sistema em 2016 foi de 12.172 apreensões, refletindo um aumento de 82% em relação a 2015, quando foram realizadas 6.664 ações, de acordo com a assessoria do Metrô de São Paulo.

PELO LADO DO PASSAGEIRO. Por um lado, há a consciência de que vender dentro dos trens é crime, boa parte dos passageiros parece ter reações de incômodo em relação à abordagem dos comerciantes. “Eu acho errado o comércio nos trens porque tudo tem seu lugar certo. Às vezes você está voltando do trabalho, cansada, e eles começam a gritar. Isso incomoda”, comenta Viviana Albuquerque. Para auxiliar o controle das vendas irregulares a instituição conta com um serviço de SMS, onde os usuários podem denunciar esses vendedores pelo celular. “Além disso, a companhia realiza campanhas de conscientização emitindo avisos sonoros nos trens e estações, veiculando vídeos na TV Minuto e posts nos canais oficiais do Metrô nas redes sociais”, garante a assessoria do Metrô. Entretanto, mesmo com as pessoas que se sentem incomodadas com a abordagem, são poucos os que consideram o comércio nos vagões como algo essencialmente errado, como conta Lilian Almeida: “Eu entendo que é uma opção deles de sobrevivência, mas acho injusto com aquelas lojinhas que tem dentro do metrô, porque elas podem existir, né?”. Odair*, que tinha acabado de ter suas mercadorias apreendidas no momento da entrevista, conta “Eu venho de Itaquaquecetuba, levanto todo dia às 8h para trabalhar, pra ganhar meu pão de cada dia no trem porque eu tenho um filho. Aí um guarda à paisana veio e pegou minhas mercadorias e agora eu preciso de ajuda pra poder voltar na doceria e comprar mais doce pra revender”. Os passageiros do Metrô, em sua grande maioria, se solidarizam com os ambulantes e, inevitavelmente, a opinião mais comum dentre todos é que o errado é proibir esse tipo de comércio, já que essa é a forma como eles sustentam a si mesmos e a suas famílias. “Eu sei que é proibido, mas não devia ser um crime. Tem uns aí que vem pra puxar celular, atrasando o pai e a mãe de família. Eu mesmo sou um pai de família e se eu tô aqui não é à toa, é porque eu preciso mesmo. Eu chego aqui às 8h30min e fico vendendo. Vou embora, às vezes, 11 horas da noite pra sustentar minha casa, pra sustentar minha família”, declara Leandro que, apesar das dificuldades, enfrenta os desafios diários do seu trabalho com muita alegria, assim como todos os marreteiros, divertindo em muitas ocasiões a vida dos milhares de pessoas que embarcam nos trens diariamente. “Então é isso pessoal. Quem comprou, comprou. E para mais informações acessem nossa página www.shoppingmetro.com.br e boa viagem a todos!”.

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Os nomes foram trocados para preservar a

identidade dos entrevistados

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CAPA

O QUE SERÁ DE NÓS? A descentralização do programa Transcidadania e a continuidade dos direitos à população transexual Por Marcella Lorente e Pedro Garcia Fotografia por Larissa Basílio e Pedro Garcia

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transfobia é recorrente na vida das mulheres transexuais brasileiras. De acordo com a ong Transgender Europe, organização voltada à defesa do direito de pessoas trans, entre 2008 e 2014, 604 travestis e transexuais foram mortas no País, e, sobretudo, em São Paulo. Por isso, programas como o Transcidada-

nia, pioneiro na orientação e educação de transexuais no Brasil, são tão essenciais perante à nova realidade social que se descortina no País, onde a questão da diversidade sexual e de gênero está cada vez mais presente. O Transcidadania surgiu justamente com o objetivo de mudar essa realidade marcada pelo preconceito, buscando dar novas oportunidades a pessoas trans-

gêneros na cidade de São Paulo. Implementado em 29 de janeiro de 2015 pelo ex-prefeito da capital paulista, Fernando Haddad (PT), foi o primeiro projeto público elaborado para atender especificamente a transexuais e travestis, buscando a inserção dessa população na sociedade por meio da redistribuição de renda, elevação escolar, qualificação profissional e intermediação na busca por trabalho.

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A partir do fim abril de 2017, contudo, um clima de incerteza passou a pairar em torno do futuro do programa Transcidadania. Com a mudança de gestão na Prefeitura de São Paulo, a nova equipe responsável pela Coordenação de Políticas para lgbt, órgão da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, optou por reformular o programa. Questionado em março de 2017 sobre o futuro do Transcidadania, o prefeito João Doria se limitou a responder que continuaria com o projeto, ainda que seja de conhecimento público a diminuição de 65 vagas no programa apenas no início deste ano. Em 2016, o projeto dobrou as vagas de 100 para 200 vagas. Inicialmente, o Transcidadania funcionava da seguinte forma: a ong koino nia era responsável pela formação relativa à cidadania, ministrando palestras e oficinas majoritariamente no Centro de Cidadania LGBT do Arouche. Enquanto a Prefeitura fornecia as aulas de educação tradicional por meio do Centro de Integração de Educação de Jovens e Adultos (EJA), e a bolsa auxílio. Além disso, é importante ressaltar que havia uma equipe específica, designada pela koinonia, para atender as participantes do programa, não só em questões técnicas, mas também visando um acompanhamento mais pessoal e pedagógico, uma vez que as diretrizes originais do programa previam amparo humanizado das meninas, e não simplesmente a preocupação com um desenvolvimento profissional delas. Até mesmo porque, entendia-se que os dois aspectos estavam conectados. De acordo com o novo edital, é desenhada uma descentralização do programa. Não vai haver mais uma equipe específica para acolher essa população. A proposta é realizar um recorte no grupo das beneficiárias, levando-se em consideração o bairro onde vivem. Por exemplo, uma beneficiária que vive no extremo da zona sul vai se dirigir ao Centro de Cidadania LGBT mais próximo de sua residência, em vez de ir até o Centro da cidade. Sendo assim, a nova gestão prevê que haveria uma descentralização, considerando que, com esse novo desenho, as beneficiárias não ficariam todas concentradas no Arouche. REALIDADES DIVERSAS. Para que o novo modelo do Transcidadania seja colocado em prática, as diretrizes do programa terão de ser alteradas. Levando-se em consideração que cada Centro de Cidadania LGBT será administrado por uma nova ONG, e que não vai haver uma equipe específica para gerenciar diretamente o programa, entende-se que as beneficiárias de cada unidade ficarão sujeitas à administração da ONG que cuida do centro para o qual elas foram dirigidas. Não haverá mais homogeneidade nos conteúdos trabalhados.

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As beneficiárias do programa têm aulas e oficinas para inseri-las no mercado de trabalho


O que mudou na nova gestão?

Antes

Depois 6 técnicos em cada centro de cidadania para o público LGBT em geral

3 psicólogos, 3 assistentes sociais 3 pedagogos

2 assistentes sociais, 2 psicólogos, 1 pedagogo e 1 advogado

“É muito diferente a realidade da zona leste para a do Centro. A realidade e as necessidades da população T que vive em cada uma dessas regiões são diferentes também. Quando se descentraliza o Transcidadania, conseguimos avançar no sentido de oferecer uma política mais personalizada”, declara Wanderley Bressan, articulador social do Centro de Cidadania LGBT da zona leste. Também é levantada a questão de economia de tempo e dinheiro com o transporte para o deslocamento até o Centro da cidade. “Além disso, acontece muito de perdemos contato com as meninas que vão para o Arouche. Muitas delas já convivem conosco e chegam até a estabelecer algum vínculo, mas quando são transferidas para o Arouche esse vínculo se perde”, completa o assistente social do Centro LGBT da zona leste, Thiago Aranha, ao defender um posicionamento a favor da descentralização do Programa. Por parte das beneficiárias, as opiniões divergem entre si. Susi Rosário da Silva, de 30 anos, conta que gosta da interação que tinha com as outras participantes do programa durante as aulas e também diz ter aprendido muito com os conteúdos

selecionados. Por outro lado, Chaiany Chinayder afirma nunca ter gostado dessas aulas, dizendo que não via sentido nas dinâmicas realizadas e que nenhuma abordagem feita acrescentou algum conhecimento a ela. A coordenadora da ong koinonia e antiga responsável pelo gerenciamento e execução do Transcidadania, Ester Leite, diz que entende o argumento de que a descentralização pode ser positiva, mas acredita que alguns aspectos são esquecidos, como a questão da locomoção, pois, na sua visão, é importante que as mulheres transexuais utilizem espaços e serviços públicos, como metrô e ônibus. “Além disso, acredito que oferecer um ambiente onde possa haver troca de experiências é bastante rico. É saudável que uma menina que mora na periferia da zona sul converse com a que mora na da norte. Sem falar que, ao descentralizar o programa, também existe a questão da quebra de vínculo com profissionais que a maior parte das meninas já criou laços e desenvolveu confiança e cumplicidade”, replica. Na gestão Haddad, o papel dos Centros de Cidadania LGBT se resumia em prestar assistência à população LGBT do

Fonte: Transcidadania

3 profissionais de cada área, exclusivos para as beneficiárias do programa transcidadania

bairro cujo Centro estava inserido. Sendo assim, tinha o papel de acolher todas as pessoas dessa população em específico, que se encontravam em situação de vulnerabilidade social. A pessoa trans ou travesti interessada no Transcidadania entrava em contato com o Centro mais próximo de sua região e fazia seu cadastro para entrar na lista de espera para participar do programa. Feito isso, quando surgia uma nova vaga, a equipe técnica de todos os centros se reuniam, e estabeleciam um critério para o preenchimento das vagas disponíveis. Depois desse procedimento, era avaliado e decidido quem seria a escolhida como nova beneficiária. Tornando-se participante do projeto, a pessoa passava a se reportar para a equipe do Transcidadania e, somente se necessitasse de suporte jurídico, retomava o contato com a equipe do centro onde realizou o cadastro inicial. A nova gestão, no entanto, entende que o encaminhamento para o Centro LGBT do Arouche, para um trabalho desenvolvido de forma particular com as mulheres, é negativo no sentido de causar uma centralização do Programa. Levanta-se, inclusive, a bandeira de ampliação

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A beneficiária Chaiany Chinayder nos recebe em sua casa para contar sobre sua experiência com o programa e vivência como transexual. Confortavelmente, fala em meio aos relatos do cotidiano no Transcidadania, sobre relações pessoais familiares e amorosas

do Transcidadania por meio da política de descentralização, uma vez que o programa estaria mais disperso dentro da cidade. Ainda assim, para sustentar a ideia de reformulação, as diretrizes do projeto original não poderiam ser utilizadas. OUTRA REALIDADE. Também vale destacar que no edital do programa é dito que ele também é aberto à participação de homens transexuais. Ainda assim, durante o período de apuração desta reportagem não foi encontrado nenhum homem trans participando da iniciativa. Ao se buscar informações sobre a inclusão deles, foi apurado que as inscrições desse tipo são diminutas. Ao ser indagado sobre o porquê de os homens T não procurarem esse tipo de auxílio, Thiago Aranha responde que “a situação de vulnerabilidade social que permeia a vida do homem trans é completamente diferente da que uma mulher trans tem de lidar. A própria questão da prostituição é a prova disso”. Ainda sobre a questão, a exadvogada do Centro de Cidadania LGBT da zona oeste, Iara Matos, completa: “O homem trans geralmente se descobre e ou aceita numa fase mais tardia da vida, depois de ter concluído uma graduação, ou simplesmente após conseguir certa estabilidade”. A respeito da descentralização do Programa, são poucas as certezas. A atmosfera repleta de dúvidas afeta não apenas as equipes dos centros e ONGs, mas também as beneficiárias. Indagações como “O que vai ser de nós?” eram frequentemente feitas durante as aulas finais com

a equipe da antiga gestão. Ainda assim, todo esse clima não afeta as vidas que o Transcidadania já modificou, como Caroline Ferreira da Silva, que atualmente é alfabetizada, e Aline Marques que trabalha na Unidade Móvel de Cidadania LGBT. O NÓ DA EMPREGABILIDADE. Ao longo de seus menos de três anos de existência, o Transcidadania foi alvo de elogios e críticas, sobretudo em relação à questão da empregabilidade. No desenho do projeto, era previsto a oferta de emprego para as beneficiárias, premissa que seria viabilizada por meio do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego

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Não tem como tirar as meninas da rua se não tiver emprego Aline Marques, ex-beneficiária (Pronatec), mas não foi passível de execução devido ao cancelamento do programa. “A ideia do Programa é boa, mas existem muitas questões envolvidas. Não tem como tirar as meninas da rua se não tiver emprego. Eu tive sorte de conseguir trabalhar na Unidade Móvel, mas infelizmente ainda existem muitas meninas que se perdem”, afirma Aline Marques, ex-beneficiária do programa, que hoje trabalha na Unidade Móvel do Centro de Cidadania LGBT da zona leste.

“A koinonia foi excelente em questão de educação, realizou um trabalho de excelência junto às meninas ao se tratar de Direitos Humanos e escolaridade, mas deixou a desejar em relação à empregabilidade. Daí surgem as críticas da nova gestão e até mesmo das beneficiárias, elas mesmas me disseram que sentiram falta disso para sua formação, por isso esse será nosso foco daqui para frente, mas sem esquecer a educação e os Direitos Humanos”, afirma Caio Reina, atual coordenador do Centro LGBT Arouche, funcionário da nova ONG que assumiu o projeto, a Rede Cidadã Multicultural. Quando indagada acerca da questão, Symmy Larrat, ex-coordenadora do Transcidadania, declara: “O ponto é que estamos aplicando um Decreto de Lei de forma generalizada para pessoas que carregam bagagens singulares. Existem meninas que terminaram o ensino fundamental, mas existem outras que nem se quer são alfabetizadas. Como é que em dois anos se consegue alfabetizar uma pessoa e preparar ela para o mercado de trabalho? Ainda mais se tratando de um mercado que não está interessado em absorver essa mão de obra”. De acordo com levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra), em 2013, 90% das mulheres transexuais e travestis se prostituíam no Brasil, apesar de procurarem emprego no mercado formal. Chaiany Chinayder ficou sabendo do Transcidadania por uma amiga e, com o programa, tinha o intuito de se formar no Ensino Médio e poder largar a prostituição, o que ainda não ocorreu. Ela afirma que a bolsa auxílio oferecida


pelo programa cobre apenas o valor do aluguel de sua residência e, sendo assim, ainda existe a necessidade da prostituição – uma vez que o emprego formal para as meninas ainda é um desafio –, para que possa custear alimentação, transporte e outros gastos. Ela deseja fazer um curso técnico de enfermagem, pois afirma ser seu sonho desde a infância. No meio de 2017, teve de abandonar o Transcidadania. Já tinha problemas em manter a frequência pois, como estudava à noite, tinha de faltar ao menos duas vezes por semana para se prostituir. Atualmente, a jovem pretende terminar seus estudos por conta e conseguir realizar seu sonho de se tornar enfermeira. Algumas histórias, contudo, são exceção, como a de Caroline Ferreira da Silva, de 54 anos. “Sou negra, travesti e Ialorixá”. Nascida na Bahia, em Santa Cruz de Cabrália, ela veio para São Paulo e aqui vem travando grandes lutas para conseguir seus direitos como cidadã e também por uma moradia digna. Foi despejada de sua antiga residência e não consegue um aluguel por preço justo e padrões formais,

tudo isso por não conseguir um emprego, devido ao preconceito que sofre diariamente. Apesar dos desafios, Silva não desiste de seus sonhos. Recém-alfabetizada pelo Transcidadania, conseguiu por conta um curso de Cuidador de Idosos e deseja trabalhar na área quando se formar. Em uma oficina sobre empregabilidade na aula de Cidadania ministradas no Centro LGBT do Arouche todo o desenho e metodologia das oficinas fugiam do padrão tradicional, alinhando-se a uma abordagem que faz mais sentido ao universo das participantes, trazendo um padrão de discussão distante do modelo puramente expositivo. Na roda de debate, era possível perceber que as meninas se sentiam à vontade para expor suas opiniões e inseguranças, que enxergavam o centro como um espaço onde estavam acolhidas. O professor que ministrava a oficina, Franklin Felix, funcionário da ONG koinonia, organizou dinâmicas com bexigas, incentivou-as a esclarecerem dúvidas e compartilharem informações relacionadas ao tema, como cursos gratuitos e vagas de emprego sobre as quais tinham conhecimento.

“É comum ouvir profissões como maquiadora, cabelereira ou manicure, que geralmente são carreiras escolhidas por pessoas que vivem numa situação de vulnerabilidade social maior. Mas, em relação às meninas, o que acontece é que elas sentem que não existe outra escolha, como se não fosse permitido a elas ter o desejo de exercerem profissões mais tradicionais, como advocacia e medicina”, explica Ester Leite . “O Transcidadania transformou a forma como as meninas se relacionam com as pessoas. Às vezes, estou atravessando a rua aqui na República e elas me chamam para tomar um café. É muito improvável de imaginar uma mulher trans ou uma travesti convidando uma mulher cisgênero hétero para conversar e participar de um ambiente social onde a maior parte das pessoas não é cis. O Transcidadania acabou com a distância que havia antes, quebrou fronteiras, foi além”, declara Leite. Cabe à nova gestão municipal agora dar continuidade ao programa e inserir as meninas no mercado de trabalho para que elas se tornem, de uma vez por todas, cidadãs.

ISADORA PINHEIRO

As profissões mais lembradas pelas participantes do projeto

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COMPORTAMENTO

A nova geração de drags e a arte dos “kings” em cena Texto por Isabela Guiduci, Maria Luisa Rodrigues e Rafael Fernandes Fotografia por Isabela Guiduci e Maria Luisa Rodrigues

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m frente ao espelho, as estudantes de teatro e artes visuais Bruna Alves e Iara Dias se preparam para a transformação. As maquiagens estão dispostas na mesa de madeira. O primeiro passo é passar cola bastão ou acrilex e talco nas sobrancelhas com o objetivo de escondê-las. Logo depois, vem o uso de bases para uniformizar a pele. As sobrancelhas são redesenhadas. A próxima etapa é a que demanda mais tempo: maquiar os olhos. Segundo Alves, o olhar é a parte que mais chama atenção, por isso é tão importante para a “montação”. Com técnicas de alternância de lápis de tons mais claros e escuros da pele, vão remodelando o formato do nariz e do rosto, deixando os traços mais exagerados, que são tão característicos do movimento. Depois de quatro horas de maquiagem, o cabelo é preso para dar lugar à peruca, o figurino da noite é colocado e a artista finalmente fica pronta para o show. Assim surge a drag queen Ginger Moon, vivida por Alves, e o drag king – ao contrário da queen, se veste de homem – Dom Valentim, criação de Dias. A arte drag se fundamenta justamente no exagero: o artista cria sua própria personagem e se monta com perucas chamativas, maquiagens fortes e roupas extravagantes. Tudo com muita cor e brilho. O intuito é trazer ao público uma figura que “brinque” com o estereótipo de um gênero, que pode ser o feminino ou o masculino. As drag queens se transformam unicamente para o momento da apresentação, diferente de transsexuais que se identificam com gênero feminino ou masculino. A drag e cantora Glória Groove, que despontou na cena musical após ter participado do programa Amor & Sexo da Rede Globo, e lançou o disco O Proceder, conta que o reality show norte-americano R u p a u l’s Drag Race, que promove uma competição entre as queens, foi responsável

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Homens, mulheres, trans: todos podem se montar pela divulgação dessa arte, que antes era apenas conhecida pela comunidade LGBT. Mas alerta que o público precisa apoiar as artistas locais. “Drag é uma coisa que está aí há muito tempo ocultado, marginalizado, colocado nas sombras, como uma coisa que tem que ser vista apenas a noite. E agora, de repente, é legal ser drag. Isso é bom. Mas vamos valorizar as coisas que estavam acontecendo e apoiar quem está fazendo aqui”. Glória Groove também é Daniel Garcia, de 22 anos e diz que é “gay desde que me conheço por gente”. Criado só por mulheres, ele cresceu em um ambiente artístico, na companhia de sua mãe cantora e sua avó circense. Passou a trabalhar com atuação e música desde os seis anos de idade, mas, apesar de se interessar mais pelo canto, nunca se sentiu à vontade para desenvolver uma carreira solo, até conhecer a arte drag. “Pela primeira vez, eu vi em alguma vertente da arte a chance de me sentir realizado. Eu não me sentia à vontade para fazer uma carreira como um cara, achava que a estética não tinha nada a ver comigo”, confessa. ARTE PARA TODOS. “Eu não sabia que mulher podia ser drag”, lembra Ginger. A jovem de 20 anos decidiu em 2015 se entregar a essa arte, mesmo que as mulheres ainda não sejam bem aceitas no mundo drag. O preconceito contra essas artistas que performam, para Ginger, vem do próprio machismo inserido na sociedade. “Mesmo no meio LGBT existe muita misoginia, mas é uma arte e arte é para todo mundo. Ser mulher no meio drag é difícil, sempre vai ter uma olhadinha de lado. Tem bastante drags antigas que não gostam, não aceitam. Mas drag não começou apenas com homens. Tem uma história muito grande por trás”. O fenômeno surgiu nos Estados Unidos nos anos 1980, principalmente nos subúrbios, mas somente a partir de 1990 que a prática se popularizou, com os bailes da população LGBT, como é mostrado no documentário, de Jennie Livingston, Paris Is Burning (1990). As performances geralmente aconteciam em boates ou baladas e, atualmente, podem contar com apresentações de canto, dança ou até stand-up. No Brasil, a cena drag se destaca nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Na capital paulista, a boate Blue Space é considerada o grande palco das drags brasileiras, sendo que, desde 1996, promove shows de drag queen. Ginger participa do grupo Riot Queens, um coletivo voltado para mulheres drag queens que existe há dois anos e tem como objetivo afirmar a presença delas na cena, e abraçar todas as mulheres que também sentem vontade de se montar e não sabem por onde começar. Outro grupo que está crescendo é o dos drag kings, artistas que, assim como as drag queens focam no estereótipo de um gênero, mas dessa vez o masculino, usando da maquiagem para desenhar traços que caracterizem o homem, incluindo barba e o uso de ternos e chapéus. Iara Dias, o Dom Valentim, começou a se montar há um ano e contou com a ajuda de queens para entrar nesse mundo. “Eu fui ao Rio de Janeiro para encontrar alguns kings de lá, mas foi depois que eu conheci a galera drag de São Paulo que eu comecei a ir para festas montada”. O número de kings no Brasil e no mundo não é grande e, por isso, eles não recebem tanta visibilidade quanto as drags, “agora que está começando essa articulação. Tem muitos kings que começam totalmente perdidos porque não conhecem outros”. O futuro das perfomaces parece um mistério, mesmo para as drags queens que fazem sucesso no momento como Glória Groove. “A gente fica insegura de pensar qual vai ser a receptividade. Não dá para saber. Gosto de acreditar que não acaba por aqui.” Mas demonstrando otimismo sobre o futuro do cenário drag, Glória avisa: “A gente tá brotando, viu? De tudo quanto é canto”.

Ginger Moon (à esquerda) e Dom Valentim (à direita) em processo de “montação” 2º semestre de 2017

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FOTORREPORTAGEM

DO CINZA

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CORES Fotorreportagem por Cecilia Marins de Abreu, Gabriel Seixas e Pedro Caramaru Colagem por Beatriz Fialho

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nualmente, acontece em São Paulo a Parada do Orgulho LGBT. Em 18 de junho de 2017, o termômetro de rua na esquina entre a Avenida Paulista e a Brigadeiro Luís Antônio marcava 24 graus célsius. Era aproximadamente meio-dia e a cantora e drag queen Pablo Vittar se apresentava para o público –, em sua maioria, formado por gays, lésbicas, transexuais e simpatizantes. No total, 19 trios elétricos desfilaram juntos na avenida. Até o final do dia, a 21ª Parada do Orgulho LGBT reuniria, segundo a Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo (APOGLBT), três milhões de pessoas. Mil novecentos e noventa e seis foi o primeiro ano do começo de uma agenda de atos por diversos grupos em prol das causas LGBT. Naquele ano, os participantes seguiram o trajeto que começou na Avenida Paulista rumo ao Vale do Anhangabaú. Vinte e um anos depois, a Parada tomou outra forma, não só pelos números, 1.500 vezes maior que o público original, mas pela festa. É nesta reinvenção dupla em que a Parada paulistana é uma dos maiores eventos de rua de São Paulo e um dos mais importantes movimentos pelos direitos LGBT do mundo. Se para alguns a Parada é curtição, para outros é manifestação política. Com o tema “Independente de nossas crenças, nenhuma religião é lei. Todas e todos por um Estado laico”, o evento juntou protestos contra a LGBTfobia na política.

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Revista Esquinas


2ยบ semestre de 2017

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PEDRO CARAMURU

PEDRO CARAMURU

PEDRO CARAMURU

CECÍLIA MARINS DE ABREU

As cores do arco-íris da bandeira LGBT instalam-se sem pedir licença, seja nos guarda-chuvas, nas ruas da cidade, nos cabelos ou nas roupas

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GABRIEL GOMES

Editoria

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PEDRO CARAMURU

CECÍLIA MARINS DE ABREU

CECÍLIA MARINS DE ABREU

CECÍLIA MARINS DE ABREU

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PEDRO CARAMURU PEDRO CARAMURU

Editoria

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PEDRO CARAMURU

O comércio informal na Parada do Orgulho LGBT de São Paulo toma conta das ruas PEDRO CARAMURU

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PEDRO CARAMURU

CECร LIA MARINS DE ABREU PEDRO CARAMURU

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ALIMENTAÇÃO

Refeição

Um panorama do uso de agrotóxicos no Brasil

indigesta A firmar o direito à alimentação com produtos adequados é o argumento central do Guia Alimentar da População Brasileira de 2014, elaborado pelo Ministério da Saúde. E não à toa: a produção de monoculturas e o uso intenso de sementes de agrotóxicos geram preocupação em especialistas em saúde e ambientalistas. O Brasil, um dos maiores produtores agrícolas do mundo, superou os Estados Unidos desde 2008 como o maior consumidor de agrotóxicos do mundo. Segundo o Dossiê da Associação Brasileira de Saúde Coleti-

O Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo desde 2008 (Fonte: Dossiê Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco)

1 3

va (Abrasco), o processo de modernização da agricultura aprofundou ainda mais a concentração histórica de terras e provocou um violento êxodo rural para os centros urbanos mais industrializados. Desde o período do pós-Guerra, o plantio cada vez mais marcado por processos tecnológicos ganhou força. O processo que teve como principal objetivo aumentar a produção de alimentos para acabar com a fome – a chamada Revolução Verde – foi o começo do uso das sementes alteradas biologicamente (transgênicos). O uso de agrotóxicos e a

Revista Esquinas

fertilização química do solo também começaram nesse momento, segundo Carlos Ribeiro, chefe de cozinha e professor da escola Na Cozinha. O Guia Alimentar ainda evidencia que a forma de produção dos alimentos tem consequências para a biodiversidade, a distribuição de renda, a autonomia de pequenos agricultores e, principalmente, o consumo de alimentos saudáveis. A estrutura da produção no Brasil não é uma exceção. O infográfico a seguir traça um panorama de um ponto central dessa produção: agrotóxicos.

#1

A SOJA

#1

utilizou

40%

milhões de litros

do volume total entre herbicidas, inseticidas, fungicidas, acaricidas e outros (adjuvantes surfactantes e reguladores) 900 800 700 600 500 400 300

200 100

2002

2003

2004

2005

2006

2007 2008

2.052

mortes por intoxicação

milhões de litros

milhões de kilos

9.000

900

Segundo o Instituto de Saúde 8.000 Coletiva da Universidade 7.000 2.052 Federal da Bahia, houve óbitos por intoxicação 6.000por agrotóxico entre 2000 e 2009 5.000 no Brasil, sendo 679 (51,9%) 4.000 decorrentes de acidentes 3.000 de trabalho relacionados a 2.000 agrotóxicos (Fonte: Abrasco)

dos alimentos consumidos pelos brasileiros800está contaminado por 700 A análise foi feita agrotóxicos. a partir de 600amostras coletadas nos 26 estados do Brasil e 500 foi realizada pelo Programa 400 de Análise de Resíduos de 300 em Alimentos (Para) Agrotóxicos da Anvisa200(2011)

1.000

100 2002

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Texto por Pamela Malva e Sophia Lopes Infografia por Beatriz Fialho

2003

2004

2005

2006

2007 2008

2009

2010

2011

2009

2010


63%

das amostras analisadas apresentaram contaminação por agrotóxicos

37%

1

dos quais:

Não apresentam contaminação por agrotóxicos

ões ros

28%

#1

milhões de kilos

contém ingredientes ativos não autorizados para aquele cultivo e/ou ultrapassaram os limites máximos de resíduos

9.000

35%

8.000 7.000 6.000

apresentaram contaminação por agrotóxicos, porém dentro desses limites

5.000 4.000 3.000

2002

900

2003

#1

2.000

milhões de litros

milhões de kilos milhões de litros 9.000

1.000 2004

2005

2006

2007 2008

2009

2010

2011

Consumo de agrotóxicos e fertilizantes nas lavouras do Brasil

800 700 600

900 800 700

O aumento do uso de agrotóxicos, segundo o Dossiê Abrasco, está relacionado a fatores como a expansão do plantio da soja transgênica e/ou o aumento de doenças nas lavouras

500 400 300 200 100 2002

2003

2004

2005

2006

2007 2008

2009

2010

600 500

milhões de kilos

8.000

9.000

7.000

8.000

6.000

7.000

5.000

6.000

4.000

5.000

3.000

milhões 400 de litros 2.000

milhões de kilos

300

900

200

9.000

1.000

800

8.000

700

7.000

2011100 600

2002

2003

2004

2005

2006

2007 2008

2009

4.000 3.000 2.000 1.000

6.000 2010 2011

500

5.000

400

4.000 3.000

300 200 100 2002

2003

2004

Segundo o Para, das 12.051 mostras 2.000 analisadas, a laranja é o alimento 1.000 com maior quantidade de resíduos de 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 agrotóxicos em alimentos, com 12,1% de amostras contaminadas. Abacaxi está em segundo lugar, com 5% e couve em terceiro, com 2,5%

No consumo de agrotóxicos por lavoura, a soja está disparado em primeiro lugar, representa 55,6%. O milho vem em segundo lugar, com 8,8%, e cana, com 8,4%. (Fonte: Sindiveg)

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SAÚDE

Desafios permanentes

O fim da epidemia da zika no Brasil não exime o Poder Público de continuar cuidando de crianças nascidas com problemas decorrentes do vírus Texto e fotografia por Beatriz Nery

“O

que você acha de ter uma criança especial?”, foi a primeira pergunta que os médicos fizeram a Alessandra Silva, administradora, depois de horas de um parto de risco, sendo necessário realizar uma cesariana de emergência. As noticias não eram as melhores. O filho dela, Bryan, nasceu estático, sem pulsação e batimentos cardíacos. Foram realizadas massagens cardíacas e aspirações de traqueia para ressuscitá-lo. Silva conta que foi pega de surpresa com aquela pergunta. “Eu sabia que tinha acontecido alguma coisa de grave na sala de parto, via muita movimentação e sussurros dos médicos, mas não estava preparada para isso”. Bryan foi uma das 30 crianças do Estado de São Paulo atingidas pela epidemia do zika vírus que afetou 293 bebês em todo País desde 2015. Em novembro daquele ano, devido a um aumento anormal de casos de microcefalia, o Ministério da Saúde declarou emergência nacional. O ex-diretor de Vigilância das Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde e uma das principais autoridades envolvidas no enfrentamento das doenças causadas pelo Zika vírus,

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Revista Esquinas

Cláudio Maierovitc Pessanha Henriques, conta que esse foi um dos grandes desafios enfrentados por sua gestão. No mesmo mês, houve a confirmação de que a microcefalia tinha relação com o vírus zika. A equipe de Henriques acreditava que no ano seguinte as notificações de casos teriam números superiores ao do final de 2015 o que, felizmente, não aconteceu. Os casos foram caindo progressivamente de 2361 em investigação em dezembro de 2015 para 437 em maio de 2016. Um ano depois, em maio de 2017, o governo federal declarou o fim de emergência nacional por zika, afirmando que continuará investindo na assistência das crianças afetadas, como em centros de reabilitação e na criação de um biobanco nacional de amostras de sangue, urina, saliva, que servirá de suporte para pesquisadores e especialistas, além de investimento na capacitação de profissionais de saúde. O vírus foi descoberto em 1947 em um macaco na Floresta de Zika na Uganda e chegou ao Brasil em meados de 2013, ano em que o país sediou a Copa das Confederações, de acordo com um estudo publicado pela revista Science em março de 2016. O zika pode ser transmitido pelos

mosquitos Aedes, assim com a dengue e a chikungunha, e segundo estudos realizados pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC), há outras formas de contaminação, como por via sexual, transfusional e perinatal, como no caso de Bryan. Silva e Bryan ficaram um mês na UTI-Neonatal do Hospital Sapopemba, na zona leste de São Paulo, entre os exames que o bebê fazia para confirmar o diagnóstico dos médicos. A ressonância concretizou a hipótese: o recém-nascido tinha a Síndrome Congênita do Vírus Zika, que é o conjunto de sintomas provocados nos bebês de mães infectadas antes do nascimento, sendo a microcefalia um desses sinais. A infecção congênita é associada a outras anomalias, como limitação dos movimentos corporais e danos na parte posterior do olho. A mãe relata que não entendia o que os médicos estavam falando e não tinha muitas informações sobre a microcefalia e outros termos utilizados por eles. “Comecei a pesquisar e me arrependi de ter feito isso. Na internet, só encontrava coisas horríveis, colocavam os bebês como aberrações”. Mas com o auxílio de outros médicos e de sua família, ela começou a se


Mãe de Bryan, Alessandra Silva não tinha muitas informações sobre a microcefalia até o nascimento do seu filho

adaptar à nova rotina, saiu do emprego, desistiu da faculdade e passou a se dedicar integralmente aos tratamentos de seu filho. “É uma luta diária”, desabafa. A busca por tratamento tem sido até hoje um dos maiores desafios da administradora, que teve o pedido de Benefício Assistencial ao Idoso e a Pessoa com Deficiência (BPC/ LOAS) aprovado depois de um ano e esperou para começar a receber o auxílio de um salário mínimo para ajudar a suprir suas despesas. Em sua opinião, o valor é insuficiente. “Qualidade de vida com um salário mínimo é impossível”. A antropóloga Débora Diniz, autora do livro Zika: Do sertão nordestino à ameaça global, que relata a descoberta da doença por médicos nordestinos e as consequências para as mães infectadas, observa que os critérios utilizados pelo governo federal para a inclusão no BPC/LOAS se movem a partir do tamanho reduzido da cabeça da criança, o que não ocorre

em todos os casos de microcefalia. “O que acontece com as crianças que não tem o perímetro encefálico alterado, o que se faz com elas?”, questiona. Diniz revela que visitou alguns centros do Nordeste e para ela tais locais “não comportavam nem as crianças que já eram atendidas, e agora têm nova demanda”. A antropóloga ainda fala do despreparo do sistema de saúde público brasileiro, lembrando que, muitas vezes, as crianças não têm acesso ao transporte para se deslocar até consulta, o que é assegurado pela regra do Sistema Único de Saúde (SUS), além de medicamentos e outros utensílios que não são oferecidos, como fraldas, leite e vitaminas. Diniz conclui que “o despreparo do governo quanto à assistência para essas mães torna a vida com um filho com deficiência muito difícil”. Nos primeiros meses de vida do Bryan, Silva conseguiu tratamento no Centro

Especializado em Reabilitação de Sapopemba, em São Paulo, uma das unidades voltadas ao atendimento especializado a pessoas com deficiência, que necessitam de tratamento oferecido pelo governo do Estado de São Paulo. O centro conta com uma equipe multiprofissional de médicos que tem a missão de desenvolver o potencial físico e psicossocial dessas crianças. A assistência é gratuita e integral a pacientes do SUS. O Brasil possui atualmente 52 novas unidades desses centros, cinco delas acabaram de ser inauguradas em São Paulo com um investimento de 9,1 milhões de reais, atendendo 80% dos casos registrados na cidade. No entanto, Alessandra Silva nota que sentia que os profissionais não estavam preparados para lidar com o caso de seu filho. “Crianças assim precisam de mais cuidado, ficam doentes com muita facilidade, acho que um centro especializado em paralisia cerebral e microcefalia seria mais viável”.

2º semestre de 2017

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O vírus Zika no Brasil

NORTE 47

casos confirmados

nordeste

12 unidades de atendimento especializado na região

100 casos confirmados

30 unidades de atendimento especializado na região

centro-oeste 50 casos confirmados 10

unidades de atendimento especializado na região

SUDESTE

SUl 8 4

casos confirmados

unidades de atendimento especializado na região

Silva começou a procurar outro atendimento e conseguiu uma vaga na Associação Cruz Verde, principal referência no País por ser o único hospital especializado no tratamento de pessoas com paralisia cerebral, incluindo microcefalia. Bryan realiza, às terças-feiras, fisioterapia e terapia ocupacional e a cada 15 dias passa por um fonoaudiólogo. “Ele necessita de mais sessões, mas como não tem lugar para realizar, faço alguns exercícios com ele em casa”. Também no Hospital das Clínicas, Bryan faz consultas com uma neurologista

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Revista Esquinas

a cada mês. Com quase dois anos de idade, ele ainda sofre com o déficit auditivo e visual, espasmos ao longo do dia, dificuldade para comer e imunidade baixa. A neuropediatra Cristiane Aguiar afirma que essa assistência deve acontecer no mínimo nos três primeiros anos de vida, já que é nessa fase que mais ocorrem as alterações neurológicas e as crianças estão vulneráveis. De acordo com Aguiar, “é de extrema importância não deixar esses casos desamparados, por exemplo, se não houve fisioterapia os músculos atrofiam e não há

88 casos confirmados 5

unidades de atendimento especializado na região

como reverter o quadro posteriormente”. A mãe de Bryan revela que durante os primeiros meses se sentiu sozinha. As pessoas tratavam seu filho com indiferença e ninguém a chamava para festinhas de crianças ou ia visitá-la após o nascimento de seu filho. “O que me chateava mais era o olhar piedoso para ele, não são coitadinhos como muitos pensam”. Hoje, Silva não se incomoda mais, passa a semana com o filho entre consultas e terapias, conhece outras mães que estão na mesma situação, o que gera trocas de experiências.


CNBB acolhe refugiados no Brasil por meio da ONG Cáritas Texto por Gabriela Glete e Júlia Storch Fotografia por Gabriela Glete

A

maior crise migratória desde a Segunda Guerra inseriu o tema dos refugiados na agenda política, inclusive no Brasil. De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), em 2016, o número de refugiados no País subiu 9% e o de pedidos de refúgio cresceu 23% em comparação a 2015. O Brasil tinha 8.863 refugiados. Em 2016, o número saltou para 9.689. Já o total de pedidos de refúgio passou de 28.670 para 35.464 em um ano. A ex-presidenta, Dilma Rousseff, anunciou, em 2015, que o País estava de portas abertas para receber os refugiados e aprovou a Medida Provisória 697, liberando 15 milhões reais para o investimento em programas de assistência e acolhimento aos refugiados. Em 2016, no entanto, o presidente Michel Temer rompeu com as negociações com a Organização das Nações Unidas para receber famílias de refugiados, sancionando com vetos, em maio de 2017, a Lei da Migração.

Nesse cenário político incerto, mas com um total de 65,6 milhões de pessoas refugiadas no mundo atualmente, organizações não governamentais surgem frequentemente para auxiliar os refugiados recém-chegados em países estrangeiros. No Brasil, a situação não tem sido diferente. Pessoas físicas, coletivos, igrejas e mesquitas ajudam por conta própria, oferecendo roupas, alimentos e suporte. A Cáritas Brasileira, uma ONG da Igreja Católica, gerida pela Conferência Nacional dos Bispos no Brasil (CNBB), é uma dessas instituições. PERDAS AFETIVAS. Alika* é nigeriana e veio sozinha ao Brasil. Sua família está em Benin, país na África Ocidental. Ela ainda espera por seus documentos brasileiros para que possa trazer seus filhos ao País. Na África, era professora universitária de Relações Internacionais, Marketing e Administração, mas começou a ser perseguida por ser contrária ao grupo extremista islâmico Boko Haram.

A ONG Cáritas auxilia refugiados em mais de 450 municípios do Brasil

Para chegar ao Brasil, passou por momentos difíceis. Saiu da Nigéria e chegou em Benin correndo, durante a noite em meio à escuridão. “Eles implantam bombas nos ônibus, ir a pé me salvou”, revela. Alika recebe doações e visita regularmente a sede da Cáritas Brasileira, na Barra Funda, zona oeste de São Paulo. Em 2015, ano que Alika saiu da Nigéria, o país teve o maior número de mortes já registradas, com mais 5.662 pessoas mortas, um aumento de 300% em relação ao ano anterior, segundo a ONU. Vinte e três por cento das mortes em território nigeriano, em 2014, foram por terrorismo, sendo 81% provocadas pelo Boko Haram. Emerike Benedict também nasceu na Nigéria. Está no Brasil há um ano e afirma que conseguiu um visto antes de embarcar. Ele considera o País mais fácil do que a Europa em tempos de crise, que pode restringir duramente a entrada de refugiados, mas se entristece quando pensa na família que deixou na África e se apavora em pensar que sua mulher e seus filhos correm perigo devido ao grupo terrorista. O nigeriano, que atualmente está à procura de um emprego, diz que trabalhava como comerciante em seu país, mas que está disposto a aceitar qualquer trabalho para juntar dinheiro e trazer sua família. Começou a fazer aulas de português com a ajuda da Cáritas, que seleciona brasileiros voluntários para dar aulas. Para Andres Ramirez, representante do Acnur no Brasil, as pessoas quando decidem sair de seus países em busca de refúgio, como Alika e Benedict, já não encontram mais alternativas de viver com dignidade em seus locais de nascimento. “Essa pessoa ou família não vai ter apenas perdas materiais, mas muitas perdas afetivas. Eles saem em busca da sobrevivência. Por isso, o mínimo que se pode fazer é acolher essas pessoas com solidariedade”. A Cáritas Brasileira mantém um convênio com o Acnur e com o Ministério da Justiça para acolher os solicitantes de refúgio e exilados que chegam ao Brasil. “Buscamos formar uma rede de apoio que possibilite a concretização dos objetivos primordiais que são o acolhimento, a proteção legal e a integração local desse contingente de pessoas”, explica Aline Thuller, coordenadora do Programa de Atendimento a Refugiados da Cáritas. A sobrevivência e a renúncia de uma realidade complicada fazem parte da vida de um refugiado. Mohamed Saidúku também compartilha das tragédias de Emerike Benedict e Alika. Alegre, alto e sorridente é de Serra Leoa e veio para o Brasil fugindo da epidemia de ebola. Assim como outros acolhidos pela Cátiras, procura uma oportunidade de trabalhar em terras brasileiras.

*

DIREITOS HUMANOS

Um abrigo para peregrinos forçados

O nome foi trocado para preservar a identidade

do entrevistado

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GEOPOLÍTICA

Territórios Difusos O cotidiano, os rituais e as questões dos índios Pankararu que vivem no Real Parque, zona sul de São Paulo Texto e Fotografia por Bruno Ascenso e Igor de Lima

“H

oje sou eletricista, formado pela vida”, conta o senhor pernambucano de 63 anos, que veio para a capital paulista nos anos 1970. Vinte anos antes, começou um movimento de migração de indígenas que, expulsos por posseiros, vinham para São Paulo para trabalhar na construção do Estádio do Morumbi e do Palácio dos Bandeirantes, na zona sul da cidade. Isso é o que diz o índio descendente da aldeia Pankararu, Cícero Antônio dos Santos. Os Pankararu vivem em vários estados do Brasil: São Paulo, Minas Gerais, Alagoas e Pernambuco, e somando possuem mais de cinco mil indígenas espalhados pelo país, de acordo com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde. A história dessas pessoas remete à falta de políticas públicas para demarcação de terras, que tramitam no Congresso Nacional sem aprovação. Recostado a um poste na comunidade Real Parque, na zona sul de São Paulo,

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Revista Esquinas

o morador Fernando Araújo, que cresceu próximo à aldeia, conta que também saiu de sua terra natal diversas vezes para garantir sustento para a família. Assistindo ao filho jogar bola, lembra como casou com sua mulher, índia Pankararu, quando tinha 18 anos, na Bahia. Para ele, antigamente os índios eram vistos com um olhar generalizado e preconceituoso. Hoje, são reconhecidos por órgãos públicos, mas a ideia de que são uma massa uniforme de pessoas semelhantes, sem distinção de aldeias, raízes históricas e cultura, ainda persiste. Araújo fala também sobre os preconceitos que sofrem os Pankararu, assunto já em pauta há décadas. Há registros de que índios omitiam suas raízes para conseguir emprego, com medo de discriminação. Na capital paulista, apenas um terço dos índios residentes trabalhava e geralmente disputavam empregos de baixa remuneração, segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai). Parte do povo Pankaruru desenvolveu o Projeto Casulo, uma organização

da sociedade civil que estimula atividades de entretenimento, cultura e interação comunitária para os residentes do Real Parque e do Jardim Panorama. “Criaram a associação para dar mais visibilidade para os indígenas”, conta Selma Gomes, uma das lideranças da Associação Indígena S.O.S. Comunidade Indígena Pankararu. Em seu trabalho como assistente social, Gomes luta pela garantia de seus direitos e o respaldo pela dignidade cultural do grupo e confirma o que diz o eletricista Cícero dos Santos sobre o passado dos Pankararu. “Muitos se alojaram no Real Parque justamente pela proximidade a essas obras. Há Pankararus espalhados por toda a cidade, mas a comunidade daqui já se tornou sólida”. A líder indígena conta que um dos grandes motivos para a migração acontecer é a perda de terra indígena decorrente da disputa com os grileiros e o desmatamento massivo, que já ultrapassa os 45% da vegetação da Caatinga na região Nordeste, segundo o Instituto Nacional de


ARTHUR PONZETO

PERUS

TREMEMBÉ-JAÇANÃ

PIRITUBA FREGUESIA DO Ó

População auto-declarada indígena na cidade de São Paulo Grande parte da população indígena de São Paulo que vive fora das terras indígenas é oriunda da região nordeste: São comunidades indígenas dos povos Pankararu, Fulni-ô, Pankararé, Atikum, Karirixocó, Xucuru, Potiguara e Pataxó. Em termos de quantidade, o povo Pankararu é o mais populoso, além de estar no Morumbi, há diversas famílias em outros distritos como Grajaú (341) pessoas), Capão Redondo (288) e Campo Limpo (282)

ERMELINO MATARAZZO

SANTANA CASA VERDE

Vila Leopoldina

SÃO MIGUEL PAULISTA

VILA MARIA

LAPA

ITAIM PAULISTA

PENHA GUAIANASES

MOOCA ARICANDUVAFORMOSA

ITAQUERA

PINHEIROS

CIDADE TIRADENTES

BUTANTÃ VILA MARIANA

VILA PRUDENTE IPIRANGA SÃO MATEUS

JABAQUARA CAMPO LIMPO

SANTO AMARO

CIDADE ADEMAR

M'BOI MIRIM

Distribuição da população indígena por distrito

16 CAPELA DO SOCORRO

16 - 55 55 - 71 71 - 84 84 - 113 113 - 140 140 - 243 243 - 341 341 - 583 583 - 1002

PARELHEIROS

Pesquisas Espaciais (INPE) em 2015. Isso ocasiona a transferência deles para terras menos propícias para o plantio, improdutivas e agravadas pela seca. Marco Antônio Silva dos Santos está passeando com sua filha na comunidade. Ele é médico formado pela Universidade de São Paulo (USP) e especializado em Saúde Indígena pela Unesp, trabalha no posto de saúde que fica dentro da Real Parque e atende os Pankararu. Ele conta que existe um sistema diferenciado para atendimento médico indígena: há um pajé no posto que atua nas especificidades da medicina indígena, composta por rituais repletos de rezas, cantos e banhos. “A tradução e compreensão culturais são necessárias”. O médico afirma que não se deve tomar os costumes medicinais dos

indígenas como primitivos. Outro método é o uso de remédios naturais para tratar os pacientes, como o procedimento com a casca de quixabeira, que é deixada por um dia submersa em um copo d’água e usada como antiinflamatório. Além de respeitar o tempo de ação e recuperação espirituais que suas culturas implicam. LUTA PELO RESGATE. O Sarau Casulo acontece todo mês de abril na Escola Municipal de Ensino Fundamental José de Alcântara Machado Filho no dia 29 de abril, e foi organizado pela Associação Indígena S.O.S Comunidade Indígena Pankararu. O evento quer resgatar a cultura tradicional que pode ser perdida dentro da cidade grande, além de lutar pela demarcação de suas terras. Estavam

Fonte: IBGE - Censo 2010. Elaborado pelo Instituto Sócio Ambiental

presentes membros das aldeias Pankararu de São Paulo e Kariri-Xocó de Alagoas. Depois de uma partida de futebol entre os Pankararu, a quadra foi o palco das apresentações, como a dança dos praiás, em que os participantes usam um grande saiote de palha e uma máscara. Cada um possui símbolos e cores específicas, cujos significados não são revelados para quem não é do povo. Alguns jovens e crianças dançam sem a vestimenta, porém com desenhos de tinta branca no rosto e torso. Três indígenas conduziam o grupo. Eles cantam e manuseiam o chocalho que traz musicalidade à apresentação. O restante permanece em um movimento giratório pela quadra. A dança terminou numa reunião para todos os Pankararu. Apesar da cerimônia dos Pankararu ter sido realizada em São Paulo, os rituais

2º semestre de 2017

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O avanço dos fazendeiros nas florestas causa perda média de 984 mil hectares por ano, segundo a FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação). A demarcação mostra-se necessária para que os indígenas possam continuar realizando seus cultos, impraticáveis na cidade

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Revista Esquinas

indígenas, em geral, são escassos na cidade, pelo desconforto e risco de discriminação dos índios. Segundo Qaueanqa, indígena da tribo Kariri Xocó, que retorna à sua aldeia de 15 em 15 dias para ver o restante da tribo. Warudza, também nativo da Kariri Xocó, conta que além do preconceito, a maior parte dos rituais necessita do pajé e do espaço da mata para acontecer. Alguns costumes são a Festa e Colheita do Murici e a Corrida do Imbú, ambos relacionados a frutos típicos da região da aldeia. Tanto o espaço para realizar esses eventos quanto o atendimento médico diferenciado foram conquistados por meio da luta desses e de outros indígenas. No Sarau Casulo houve um momento onde todos se reuniram com placas pedindo a demarcação de terras para os índios, fato que ainda pode ser adiado por tempo indeterminado já que a Funai os considera “índios desaldeiados” por viverem longe de suas respectivas terras. Junto a esse cenário negativo, o governo federal extinguiu cerca de 90 cargos na Fundação Nacional do Índio em 2017 e cortou 50% dos fundos destinados à ela, de acordo com o Instituto Socioambiental (ISA). Os Pankararu e outros indígenas esperam impactos negativos, já que a Funai operava apenas com 36% da capacidade total de pessoas e demonstrava lentidão no processo de demarcação de terras e de garantir os direitos específicos dos indígenas, a exemplo da PEC 215, que pretende alterar a Constituição para transferir ao Congresso a decisão de demarcar as terras indígenas, que tramita há mais de 16 anos no Congresso e ainda não foi aprovada. Em volta das pessoas que se encontram sentadas no chão há um cartaz inclinado na parede: “Demarcação-Já! Nação Pankararu”. O desenrolar da história dessa tribo e de muitas outras em semelhantes condições continua.


Opinião

A prova do líder João Doria transformou o dia a dia da Prefeitura de São Paulo num enorme reality show PARE E PENSE: quem foi o vencedor da décima primeira edição do Big Brother Brasil? Praticamente impossível lembrar, é verdade. O reality show mais famoso do País é também o mais longevo - a 17ª temporada foi ao ar este ano -, de forma que é bem improvável que um cidadão comum não seja atingido por algum conteúdo ligado ao programa, o que se deve também à sua robusta audiência. Mas se os brasileiros perderam o entretenimento orwelliano no ano passado, ainda em janeiro ganharam um outro reality: a gestão acelerada do prefeito tucano João Doria, ou JoãoTrabalhador para os mais íntimos. Deixando de lado a comunicação modorrenta típica da política paulistana, o “neotucano” imprimiu um ritmo alucinante à cobertura cotidiana da Prefeitura. Desde janeiro, são raros os dias em que Doria não tem o nome impresso na capa de um dos grandes jornais de São Paulo. A habilidade do prefeito para criar conteúdo viral por meio de sua página no Facebook com quase 2,8 milhões de seguidores, por exemplo, faz lembrar os diretores de programas como o BBB, que transformam picuinhas corriqueiras em vídeos de grande audiência. João Doria, assim como o Big Brother, foi parar na boca do povo. Conquistando fãs e detratores, alcançou o objetivo de qualquer estrategista de comunicação: pautar das conversas de bar às grandes redações. A linguagem é direta, típica de youtuber; sempre olhando para a câmera, como quem conversa com o espectador, Doria aparece limpando avenidas com sua “inseparável” indumentária de gari, conversando com milionários no Oriente Médio, provocando - ou respondendo a provocações - petistas, fazendo visitas-surpresa a subprefeituras periféricas, jactando-se de começar a trabalhar cedo e de dormir tarde. Assim, cria a sensação de um “prefeito-zelador” onipresente, um herói da iniciativa privada contra a burocracia, o marasmo e a preguiça do funcionalismo público. No entanto, por mais que se venda novidade, o “jeito Doria” de influenciar a opinião pública cheira à naftalina. O presidente norte-americano Franklin Roosevelt ganhou notoriedade com seus programas de rádio no estilo de quem conversa com a população - dar um google em “fireside chats” - no começo da década de 1930,

prática que se espalhou pelo mundo. A narrativa do homem do povo que venceu por mérito próprio e que tem no trabalho seu valor principal faz eco a figuras históricas do populismo brasileiro. Antes de haver em Doria um pouco de Trump, há nele um pouco de Jânio Quadros, outro tanto de Getúlio Vargas e, pasme, até um pouco de Lula. Lula, aliás, é importante demais para Doria. Em tempos de classe política desmoralizada, apresentar-se na mídia como legítimo herdeiro do antilulismo é um ativo político e tanto, ainda mais para quem sonha em ser residente no Palácio do Planalto. Doria aposta que o caminho mais curto para Brasília é trilhado pela rejeição à “política tradicional”. Nas eleições pós Lava-Jato, nada é mais eficientemente político do que se dizer não-político. Ao escolher a internet como canal primordial de interlocução com os eleitores, João Doria feriu o ego do Quarto Poder. Se a estratégia é boa ou não, saberemos no futuro. O fato é que ficou a impressão de que Doria vive melhor sem a imprensa tradicional do que o contrário. Aí reside a maior semelhança entre o tucano e o presidente norte-americano Donald Trump: eles são uma bênção para uma imprensa ávida por audiência e vítima de modelo de negócios claudicante ao impulsionar acessos e venda de jornais e revistas. Apesar disso, o prefeito de São Paulo não demonstra ser suscetível às críticas tecidas pelos jornalistas. O mesmo não se pode dizer, no entanto, da opinião popular. Quando algo é mal visto por uma parcela importante da população, o tucano tende a ponderar, como quando reconheceu erros na cinzenta ação de apagar grafites pela cidade. “Reconhecer os próprios erros não é humildade, não. Reconhecer e aprender com os próprios erros, é ambição”. A frase talvez revele boa parte da estratégia de comunicação - e assim, da política - de João Doria. Não à toa, foi dita por Pedro Bial e não pelo alcaide. Gregory Prudenciano é casperiano do 2º ano de jornalismo, tem 24 anos, é ex-seminarista (foi expulso) e produtor de conteúdo na Record TV

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COMPORTAMENTO

Mãe solteira,

não!

Mulheres que criam seus filhos sozinhas relatam como lidam com a maternidade Por Carolina Cotes e Isabella Câmara

O

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que 40,5% dos domicílios brasileiros são chefiadas apenas por mulheres. Isso equivale a aproximadamente 57 milhões de lares, conforme dados de 2015. Apesar de ser uma situação bastante comum e recorrente no País, que também pode refletir uma escolha da mulher, ser uma “mãe solo” ainda é um grande desafio para muitas brasileiras. De acordo com Thaiz Leão, criadora da página do Facebook Mãe Solo, que faz quadrinhos sobre situações da maternidade, o que não falta é preconceito. A designer engravidou enquanto estava no terceiro ano da faculdade e, de início contou com o apoio do pai da criança, um amigo com quem mantinha uma relação casual. Mas logo o relacionamento acabou e o pai não manteve contato com seu filho. Leão lembra que encarou de cara o julgamento da sociedade. E ele vinha de todos os lados. Uma das maiores dificuldades para a designer foi encontrar uma casa para morararem. Nesse ponto, a confiabilidade da mulher era colocada em cheque pelos corretores e proprietários. “Mesmo que eu tivesse dinheiro e cumprisse todos Thaiz Leão criou a “Mãe Solo” em maio de 2014, depois do nascimento de seu filho, Vicente. A página conta com mais de 70 mil curtidas

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os requisitos da casa, tinha gente que me negava aluguel. ‘Já que não conseguiu segurar o marido, vai conseguir segurar a casa?’, era o que eles deveriam pensar”, conta Leão. Letícia Carvalho, podóloga na zona leste de São Paulo, tem uma filha de dois anos, fruto de um relacionamento casual com um amigo. A criança viu o pai apenas duas vezes. Carvalho conta que as dificuldades enfrentadas para criar a filha sozinha contribuíram para o seu crescimento pessoal, mas tem receio de que, no futuro, sua filha possa sofrer com o abandono do pai. A podóloga ainda afirma ainda ter sido excluída na escola da filha. “Eu senti dificuldade em ser aceita pelo grupo de pais. Eles sempre me excluíam e a minha filha de qualquer confraternização fora do ambiente escolar. Nós nunca éramos chamadas em festinhas de amiguinhos, por exemplo”. A dificuldade em ser aceita não ficou somente no âmbito social. O mercado de trabalho também é um problema para as mães solo. Marcela*, estudante de Enfermagem, foi obrigada a se afastar do pai de seu filho após sofrer uma série de ameaças. Quando começou a procurar um estágio, a estudante ouviu de diversas recrutadoras que a prioridade das empresas era contratar mulheres sem filhos. “Nunca é fácil, mas com as mães solo fica ainda mais difícil. Os patrões sabem que caso aconteça algum problema, nós seremos as únicas responsáveis”. O julgamento é uma das maiores barreiras que uma mãe solo pode enfrentar. O medo começou logo no início para Francine* que, por receio da reação da família, postergou a verdade. Sem saber quem era o pai da criança, a estudante de Odontologia contou para seus pais sobre a gravidez apenas quando estava completando sete meses de gestação. Mas, para sua surpresa, recebeu apoio. Para a estudante, dói ver como o julgamento vem de todos, inclusive de outras mulheres, parentes e amigos. Umas das perguntas que Francine* mais ouvia de suas amigas eram “Onde está o pai da criança?” ou “Tão nova e já é mãe solteira?”. Perguntas aparentemente ingênuas, mas que se tornam incômodas e muito recorrentes. Existem diversos estigmas nas mães que tem um filho, mas não são casadas ou não tem um companheiro. A imagem de uma mulher divorciada é um pouco menos impactante do que a de uma que teve um filho fora de uma relação. Na opinião de Thaiz Leão, essa diferença se deve pela instauração do divórcio na família tradicional. “Hoje é mais fácil de se lidar com uma mãe que já foi casada e agora está sozinha, do que com uma que teve um filho totalmente fora de uma relação ideal”, afirma. Fernanda Texeira conta que os relacionamentos com homens também

podem ser difíceis. Na maioria dos casos, na sua opinião, eles as subjugam e deixaram claro que estão “fazendo um favor” em se relacionar com elas, estabelecendo uma série de critérios para manter a relação. Para ela, outro fator que atrapalha o relacionamento de uma mãe solo é o imaginário dos homens. Muitos acreditam que por se relacionar com uma mãe se tornarão automaticamente pais da criança de sua nova companheira. “Isso é muito usado contra a gente. Eles não conseguem separar maternidade, sexualidade e vida afetiva. É óbvio

que ele terá contato com o meu filho, mas isso não significa que ele será o pai”, desabafa. Ela ainda revela que se relacionou com um colega de classe logo após a separação. Mas como esperado, a relação não foi duradora. O relacionamento era complicado e ele não mantinha nenhum compromisso sério, afirma. Com o passar do tempo, o rapaz revelou que não poderia manter uma relação com ela. O motivo? Novamente a maternidade. Teixeira conta que na época o novo parceiro confessou que não a apresentaria para os pais, pois ela era mãe.

*

Os nomes foram trocados para preservar a

identidade das entrevistadas

Ser mãe não é um estado civil. O termo “mãe solo” define mulheres que, por opção ou não, criam seus filhos sozinhas

2º semestre de 2017

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MEDICINA ISADORA PINHEIRO

A busca pela naturalidade do feminino Mulheres “redescobrem” seus próprios corpos e buscam caminhos para uma vida física e emocional mais harmônica Por Isabelle Caldeira

N

o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo, Marina Criscuolo, aguardava ouvir seu nome. A médica ginecologista, que não estava usando jaleco, chamou-a para entrar e se sentar em um sofá. Lá, a jornalista passou trinta minutos tendo todas suas dúvidas respondidas. Eram perguntas sobre menstruação, aplicativos e métodos para acompanhar o período fértil, além de dúvidas sobre exames e sabonetes íntimos. Depois de decepções em consultas a ginecologistas, Criscuolo finalmente sentiu-se ouvida por uma “profissional incrível”, como descreve. As dúvidas acumuladas com o tempo foram sanadas calma e didaticamente pela médica que a atendeu. “Depois disso, ela ainda me mostrou a representação de um útero, um diafragma e até como colocar um Dispositivo Intrauterino (DIU). Em seguida, me ensinou a fazer o exame de mamas, me deu um instrumento para eu fazer o meu próprio Papanicolau e um espelho para eu ver como está tudo lá dentro”. Esse tipo de consulta pretende aproximar a mulher de seu corpo, algo considerado difícil nas consultas da “medicina convencional”. É algo ancestral e profundo. Iniciativas como A Mandala Lunar 2017, um diário para mulheres feito pelas artistas Chana de Moura e Victoria Campello, propõe o autoconhecimento. “O processo de emancipação feminina consiste em curar as feridas profundas criadas por nossa cultura. Valores que aprendemos a internalizar e que apoia-

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Revista Esquinas

mos e reproduzimos inconscientemente”, escrevem as autoras do projeto. Esse é o Sagrado Feminino, crença que está diretamente relacionada a uma ginecologia mais natural pelo qual Criscuolo foi atendida, responsável por dar a base para que a mulher possa se reconhecer sem muitas intervenções médicas. Gailesh Bruna, uma das fundadoras da empresa de produtos ecológicos para mulheres Pachamama, define o Sagrado Feminino como “o resgate de viver com naturalidade o seu feminino”. A empreendedora afirma que existem mulheres que criam maior conexão com as plantas e com a transmissão do conhecimento, mas que isso é só uma parte do autoconhecimento. Para ela, o importante, dentro desses rituais, é reencontrar o equilíbrio da identidade feminina livre de imposições sociais e culturais. A cultura da Ginecologia Natural tem origem em povos tradicionais da América Latina e resgata os ritos das mulheres em seus cuidados íntimos, segundo Bruna. As questões femininas são tratadas com amorosidade e paciência, o que cria uma relação de confiança. A troca de experiências, conhecimentos e formas de curas levam ao apoio mútuo, fazendo, aos poucos, com que a mulher não sinta vergonha da sua vagina, de se tocar, de descobrir o que é uma vulva e o que é um ovário, por exemplo. Mais do que isso, desconstrói a padronização da saúde feminina, na visão da empreendedora. A psicóloga e doula Luciana Rocha estuda há mais de quinze anos os ciclos femininos da maternidade, entre eles

a infertilidade, as demandas emocionais que envolvem a gestação, o parir e o “maternar”, e ressalta que a principal imposição social às mulheres é a maternidade. “Embora tenhamos um movimento que tem se fortalecido pela luta feminista, ainda vemos de maneira muito forte essa cobrança. E isso é fácil de perceber: a mulher entra em um relacionamento, é cobrada para o casamento e a partir do momento que se casa, é cobrada para a procriação. Depois do primeiro filho, cobram o segundo. Além disso, são induzidas a terem partos cesarianos e pouco se conectam ao seu corpo”, afirma. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o recomendável é que 1,5 a cada dez partos sejam cesarianos. No Brasil, em 2016, esse número era cinco vezes maior do que o recomendável: 8,5 em cada dez partos. Gailesh Bruna aponta para a banalização da cesariana como algo invasivo, que pode acabar com a conexão da mulher com o próprio ciclo maternal. Ela destaca que esse tipo de decisão se tornou cultural, uma vez que pode ser tomada de acordo com os interesses financeiros da área da saúde. Na Ginecologia Natural são usados métodos que mesclam ervas, chás, aromaterapia e alimentação orgânica. “As medicinas ancestrais são usadas desde o início da humanidade, as ervas e plantas, inclusive, produzem os remédios. Sinto que dá para termos um cuidado com a saúde que seja mais preventivo do que remediador. Para a mulher, esse tipo de medicina é muito importante, é poderoso”, pontua Bruna.


Opinião

Identidade e apropriação O uso do turbante como forma de preservação da luta negra “EU POSSO USAR TURBANTE?” Já ouvi variações dessas perguntas muitas vezes por mulheres e amigas brancas e confesso que nunca tive uma resposta pronta para isso. Eu, que sou mulher negra, tenho bem “escurecido” que turbante é muito mais do que uma tira de pano enrolada na cabeça e falar sobre ele levanta uma discussão que esbarra em questões de identidade que extrapolam o indivíduo. Turbante é um símbolo cultural que não possui um único ponto de origem. Há dados históricos desse símbolo em várias religiões africanas e orientais. O problema está na cultura europeia dominante que dissemina seu uso apenas no quesito estético, reduzindo o turbante a um mero acessório de cabelo. Esse distanciamento simbólico é fruto de uma apropriação que deixa de lado o significado original dessa indumentária. É preciso falar também sobre espaço. Usar um turbante no Brasil é diferente de usar em Bangladesh, e que também é diferente do Quênia. Cada lugar possui relações sociais específicas. Aqui, o turbante possui forte valor simbólico e ajuda a compor o imaginário da população negra. Ser negro e usar turbante no Brasil é um ato político. O turbante é pertencimento e faz

uma ligação com as tradições africanas que, desde o começo da história desse País, foram massivamente repreendidos e marginalizados. Em 2017, dois fatos fizeram reacender o debate de apropriação cultural no País. Muitos devem lembrar sobre o caso da Thauane Cordeiro, jovem branca curitibana que estava usando turbante no metrô e encontrou um grupo de meninas negras que se sentiu incomodado com o fato dela estar usando turbante. Thauane então tirou seu turbante e mostrou que era careca, que tinha câncer e, por isso, sentia-se representada pelo uso. Teve textão no Facebook com a #VaiTerBrancaDeTurbanteSim, teve um acúmulo de likes e compartilhamentos, exposição na mídia, nos jornais, nas revistas, nas rádios. Thauane, que é branca, virou notícia. Dois meses depois, Dandara Tonantzin, que é negra, estava numa festa de formatura de Engenharia Civil em Uberlândia e foi hostilizada por outro jovem, branco, que arrancou seu turbante e o atirou no chão, enquanto jogava cerveja nela. Dandara também se incomodou com a situação: teve textão no Facebook, não tiveram tantos compartilhamentos, não houve tanta exposição, Dandara não foi notícia nos meios tradicionais de mídia. Thauane tirou seu próprio turbante. Dandara teve o seu arrancado. Thauane virou notícia, Dandara não. Falar sobre turbante também é falar sobre racismo e apropriação cultural e falar sobre apropriação cultural não é falar sobre indivíduos, é falar sobre toda sociedade e suas questões estruturais. É falar sobre um objeto que carrega ancestralidade de gerações escravizadas. Turbante é um elo com a nossa ancestralidade. Turbante é resistência. Turbante não é apenas um acessório. Turbante é luta. Laís Franklin é estudante de jornalismo e membra do coletivo Africásper. Descobriu no jornalismo uma outra maneira de se expressar e contar histórias

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CULTURA

C

asa cheia. Maioria negra: mulheres e crianças. As Pretas entram cantando seu hino, ao som do tambor: “Começou o Sarau das Pretas, dá licença, mulher preta vai falar”. Reforçando sua identidade dão início à apresentação. Dança, música e poesia - carregadas de muita reflexão - animam a noite. A apresentação durou quase duas horas, envolveu o público pelas vivências daquelas cinco mulheres que transformam suas experiências de vida em arte: o racismo, a dificuldade de ser mãe solo, a realidade da periferia e a falta de reconhecimento da literatura negra. Numa cidade como São Paulo em que, atualmente, ocorrem mais de mil saraus, menos de 10 protagonizados por mulheres, o que torna o Sarau das Pretas ainda mais importante são as biografias de suas participantes. O grupo é formado por uma assistente social, uma atriz, uma jornalista, uma ex-recepcionista e uma jongueira. O projeto começou com um convite do Sesc Pompeia à escritora Débora Garcia, em março de 2016, para produzir um sarau exclusivo em homenagem ao Dia Internacional das Mulheres. Garcia convidou outras quatro: as poetas Elizandra Souza e Thata Alves, atriz Jô Freitas e Taissol Ziggy, percussionista. Queria trazer diferentes linguagens para o sarau. “Nosso encontro não foi

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Revista Esquinas

Por Lia Capecce

à toa”, afirma a escritora, que convidou outras mulheres antes da formação atual, mas nenhuma pôde participar. Hoje, ela pensa que deu sorte. “Tenho certeza que só teve continuidade porque foi com elas”. Resgatando as mulheres negras que foram relegadas ao esquecimento na história do País - como, por exemplo, as autoras Maria Firmina dos Reis e Carolina Maria de Jesus -, as cinco artistas fizeram sua primeira apresentação no dia 12 de março de 2016 no Sesc Pompeia. Mais de 200 pessoas compareceram. O lugar ficou lotado. O retorno do público foi ótimo e elas foram muito questionadas sobre a próxima apresentação. Um ano e meio depois do que seria a única apresentação do Sarau das Pretas, o projeto continua vivo e crescendo. Propondo reflexões sobre o feminino, a cultura e ancestralidade negra, o Sarau das Pretas trabalha com três linguagens: palavra, dança e música. A partir disso, as artistas escolhem as cores do figurino, criam os textos e desenvolvem a apresentação. “A gente também trabalha muito com a mitologia africana, a partir das cores, do batuque e do canto”, conta Freitas. O formato segue um padrão: momentos individuais intercalados com coletivos – no começo, meio e final – que geralmente são rodas de jongo, uma dança brasileira de origem

© FÁBIO PENTEADO

Ancestralidade, luta e poesia

Protagonizado exclusivamente por mulheres negras, o Sarau das Pretas é uma experiência pulsante de arte e resistência

africana praticada ao som de tambores, como o caxambu. Além das unidades do Sesc, elas também se apresentam em centros culturais, como o Aparelha Luzia, um lugar simbólico de resistência de artistas negros no Campos Elíseos, na zona sul de São Paulo, e na Ação Educativa, na Vila Buarque, e escolas. Costumam ser convidadas, ainda, para fazerem shows em lançamentos de livros de autoras negras, como Conceição Evaristo e Noemia de Souza. É um trabalho remunerado. Desde o início, quando resolveram continuar com o projeto, o Sarau das Pretas busca não só um reco-


nhecimento artístico, mas financeiro também. “Quando você começa a fazer uma militância, você quer fazer tudo de graça. Vai para qualquer lugar para levar sua ideia e tira dinheiro do próprio bolso para fazer isso. Eu já fiz muito isso e ainda faço”, conta Garcia. “Hoje eu entendo que saber cobrar um cachê justo pelo seu trabalho também é uma forma de militância”. Mas isso não quer dizer que elas deixaram de fazer a arte de graça. “Também nos apresentamos pela troca e pela parceira. Gostamos de fortalecer um trabalho em que a gente acredita”. As artistas procuram sempre trazer o formato circular para as apresentações, reafirmando a horizontalidade entre elas e com o público, que é convidado a participar do microfone aberto no decorrer da apresentação - geralmente no meio dela. O SHOW É DELAS, MAS O MICROFONE É LIVRE. Quando o microfone é aberto, todo mundo pode participar. O sarau é um espaço democrático - não importa o gênero, a idade nem a etnia. “O nome Sarau das Pretas é para marcar a nossa identidade e a temática com que a gente trabalha. Nós falamos do protagonismo das mulhe-

res negras, mas todos são bem-vindos”, explica Débora Garcia. Mas é preciso usar esse espaço com responsabilidade e entender que o microfone é aberto, mas o espaço de fala é feminino. Os homens podem falar, mas precisam ter consciência de que não é o lugar de fala deles e que podem ser corrigidos. Muitos participam, mas a maioria é feminina. “Quando você recita um poema, você sente a identificação no olhar do público”, afirma Souza. Segundo ela, muita gente diz como foi importante usar aquele espaço para se expressar e é com esses exemplos positivos que elas se fortalecem. “Quando mostramos que saímos da periferia e que passamos pelos mesmos problemas, elas entendem que também podem fazer arte”, conta Alves. Em março de 2017, o Sarau das Pretas comemorou um ano. Organizaram uma grande festa para celebrar do jeito que o grupo merece: com amigos e com o público. Mais de 500 pessoas se reuniram no Aparelha Luzia. Apesar do dia de greve e paralisação no transporte público, o espaço ficou pequeno - muita gente ficou para fora e acompanhou o espetáculo da rua. “Foi um pocket de cada apresentação

que a gente fez no ano passado. Também homenageamos as pessoas que colaboraram com a gente”, conta Garcia. Tássia Reis, uma importante voz feminina no rap, também se apresentou. Uma grande conquista do Sarau das Pretas, segundo a escritora, foi conseguir custear o evento. “Ao longo do ano, concordamos que precisávamos ter um caixa para investir nas coisas que são importantes para a gente. Foi difícil, mas conseguimos”. Hoje, elas sabem que cresceram muito e juntas - desde aquele primeiro convite. “Nós temos que assumir vários papéis dentro desse coletivo - pensar, criar, vender, atuar. Isso tem trazido uma maturidade muito grande para o grupo”, conta Garcia. “Quando completamos um ano, entendemos a força e o potencial desse projeto. Hoje a gente quer dar continuidade e se profissionalizar cada vez mais para aprimorar nosso trabalho. Estamos buscando uma formação intensiva de canto porque a gente canta muito no sarau, mas não somos cantoras. Queremos trabalhar mais isso”, afirma Garcia.

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MÚSICA

Fora de

Mercado de trabalho instável e corte de verbas públicas são desafios para quem quer seguir carreira de músico em São Paulo

compasso D

esde a infância, Camila Cardim não perdia um episódio de programas musicais de calouros na TV. Já muito cedo, aos sete anos, sonhava em ser cantora famosa e ficava fascinada quando ouvia os candidatos cantando músicas românticas como as de Whitney Houston, Celine Dion e Mariah Carey. Começou então a cantar por hobby, mas foi aos 14 anos que começou a investir em uma profissional. Sem condições de pagar uma escola de música, Cardim iniciou seus estudos de canto no Projeto Guri Santa Marcelina, mantido pela Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, que oferece aulas gratuitas de música para crianças e adolescentes entre seis e 18 anos. Mais tarde, ela migrou para o Programa Vocacional, uma iniciativa pública da Prefeitura de São Paulo. Hoje, com 22 anos, Cardim estuda música por conta própria. “Estou estudando pelo YouTube e pelo Google. Tudo o que eu quero saber sobre teoria e, principalmente, a prática e a técnica vocal, procuro na internet”, conta. A interrupção dos estudos formais foi causada pelo congelamento de verbas anunciado pela Secretaria de Cultura, que afetou diversas esferas da cultura, dentre elas, a escola onde Camila Cardim estudava. O Programa Vocacional não foi o único a sofrer corte de verbas, além da Prefeitura, o Governo do Estado também realizou contenções. No dia 09 de fevereiro de 2017, a Banda Sinfônica de São Paulo

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Revista Esquinas

Texto e fotografia por Vanessa Nagayoshi

– única banda profissional civil do Brasil e considerada a melhor da América Latina – teve que suspender temporariamente suas atividades por falta de recursos. De acordo com a Lei Orçamentária de 2017, o orçamento da Secretaria da Cultura sofreu diminuição de quase 16%, o que resultou em uma série de suspensões de atividades artísticas. O regente titular e diretor artístico, Marcos Shirakawa, há 16 anos como trombonista da banda e há 7 anos como maestro, ressalta que apenas 0,4% do orçamento total do estado de São Paulo é destinado à cultura. Para ele, a decisão também teve um cunho político que reflete o déficit cultural que se tem no País, “o próprio secretário da Cultura, numa audiência da Assembleia Legislativa em que reivindicávamos a permanência da banda, justificou os cortes dizendo que já existiam muitas bandas no estado de São Paulo”. Segundo a Lei Orçamentária Anual, até 2016 no Brasil a verba destinada à cultura era de dois bilhões trezentos e cinquenta mil reais (0,08% do orçamento total) e no Estado de São Paulo era de 823 milhões de reais (0,4% do orçamento total). A Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo afirma que foram repassados 28 milhões de reais para a Banda Sinfônica e a Orquestra do Theatro São Pedro, após os cortes. Assim, o repasse sofreu queda de 73% no ano de 2016. Além dos cortes, 19 funcionários da Orquestra do Theatro São Pedro foram demitidos sob o argumento da crise econômica que acomete o País.

Por detrás da decisão de cortar o investimento da música por falta de verba atribuída à crise econômica do país, ainda há a falta do reconhecimento da cultura na formação do cidadão. Para a professora de canto e violinista, Luciana Hoerner, não se entende que a música faz parte do processo educativo. “A música ajuda a desenvolver diversas habilidades”, diz. Shirakawa também afirma que a educação musical deveria estar mais presente nas escolas regulares, para despertar o interesse de todos, e não apenas daqueles que querem seguir carreira na área. O desafio da formação é potencializado pela dificuldade de ingressar no mercado de trabalho. Em São Paulo, há apenas três coros profissionais: o Coral Paulistano Mário de Andrade, o Coro Lírico Municipal de São Paulo e o Coro da OSESP e, ao todo, são 240 vagas. Marcelo Liborni, de 21 anos, faz faculdade particular de música na Faculdade das Américas e dá aula de canto. Ele afirma que entrou no mercado já ciente das dificuldades que enfrentaria, “Os professores nunca falaram que seria fácil, que eu sairia já com emprego garantido. E mesmo se saísse, não é um trabalho valorizado. Um músico ou dá aula ou se apresenta e não é sempre que você é chamado para cantar e também não é sempre que as pessoas querem ter aula”. O maestro Skirakaura espera que as novas gerações de músicos lutem por um cenário mais otimista.


ão é a Broadway. Mas o Brasil é o terceiro maior produtor de espetáculos de teatro musical do mundo, de acordo com o ator e produtor cultural Cleto Baccic que já atuou em musicais como Mama Mia e O Homem de la Mancha. Porém, para alcançar tamanha projeção, foi preciso entender o mercado e buscar a profissionalização no segmento para atender a padrões de excelência internacionais. E dentre os desafios para o setor no Brasil, encontrar atores preparados, com formação artística completa era o maior de todos. Se antes eram reduzidas as possibilidades de um ator no país receber uma formação de qualidade para se tornar um performer (nome comercial utilizado para designar o ator que canta e dança e interpreta), hoje escolas de teatro musical proliferam em São Paulo, como a Teen Brodway, 4Act, Estudio Broadway, CP Musical. Todas com um único propósito: ensinar as técnicas necessárias para que o profissional possa atuar em um grande musical. Diversas escolas de teatro surfaram na onda do boom causado pela estreia do musical Les Miserables no Brasil, em 2001. A Casa de Artes Operária é uma delas. O ano era 2003 e, segundo Cristiane Longhi, proprietária da escola, alguns atores e bailarinos que passaram na audição para o musical Chicago não cantavam muito bem. Na época, ela e a atriz Ana Taglianetti se juntaram para oferecer aulas de canto a esses atores. E foi assim que a Operária iniciou suas atividades. Hoje, a escola oferece uma variedade de cursos livres, além do canto para quem deseja se profissionalizar na área. Com uma proposta diferente, a Escola de Teatro CP Musical, que atua há cinco anos no mercado artístico, oferece

TEATRO

Para cantar, dançar e atuar N

Escolas de preparação de atores para o teatro musical ganham espaço com o crescimento de montagens do gênero em São Paulo

um curso profissionalizante com duração de trinta meses. Após o cumprimento da carga horária, o aluno recebe um certificado e já pode solicitar o registro para exercer a profissão de ator, conhecido como DRT. A escola, de acordo com o proprietário Fábio Singillo, tem uma estrutura pedagógica com intuito não somente de formar um ator musical completo. Fazem parte da grade de ensino do curso profissionalizante aulas de história do teatro e fundamentos da interpretação teatral, além das aulas de canto, dança e interpretação. Nessa mesma linha, outras escolas também oferecem cursos profissionalizantes, como a 4act e o SESI. O ator Cleto Baccic considera o curso do SESI, com três anos de duração, que ele idealizou e ajudou a criar em 2013, o primeiro curso técnico de atuação em teatro musical (necessário ter o ensino médio completo) no Brasil. “Faltava um curso técnico que formasse atores completos, artistas que pudessem corresponder à demanda de mercado”. Baccic conta que antes de 2001, os atores que apenas atuavam e queriam entrar no teatro musical tinham formação fragmentada, pois não era possível encontrar todas as modalidades em um só local. “E creio que foi assim que a esmagadora maioria se preparou. Ia fazer uma aula de canto em um lugar, dança em outro. O mercado absorvia esse tipo de profissional, sem a devida qualificação acadêmica, teórica e prática. O ator tinha que aprender na raça”. EXPECTATIVAS DO MERCADO. Fazer um curso profissionalizante de teatro musical de dois a três anos de duração deve ser encarado apenas como um primeiro passo para a carreira. Como lembra a professo-

Texto por Paula Leal Mascaro

ra de dança Alexa Gomes, que trabalha há mais de 30 anos no mercado, é preciso “investir em cursos de aperfeiçoamento, pois o corpo é ferramenta de trabalho”. A nova geração já esboça sinais de que entendeu a importância de investir na profissão. Valéria Luizetti, atriz e bailarina, conta que começou a ter aulas de dança aos seis anos de idade. Ainda hoje, aos vinte e dois anos, a jovem continua se aperfeiçoando com aulas de canto e dança. Mas ressalta que o custo para se manter atualizada neste mercado é caro. “Uma aula com um bom professor de canto custa, em média, 150 reais por hora”. Ela conta ainda que as chances de frustação são grandes. “É muita gente querendo e poucas vagas disponíveis”. Além do crescimento das escolas de teatro musical, o segmento não influencia apenas no trabalho de atores. Para Christiane Longhi, os grandes musicais aquecem o mercado de trabalho e dão oportunidade para muitos profissionais – técnicos em luz e som, figurinistas, visagistas, maquiadores, costureiras, músicos. Se o mercado conseguirá absorver os novos atores que estão se formando nessas escolas, só o tempo dirá. As adaptações da Broadway parecem agradar cada vez mais o público brasileiro que lota teatros e chancela a arte em que a dança, a música, o canto e a interpretação se misturam para dar vida às mais diversas histórias. Singillo acredita que empresas como a Time 4 Fun garantem a consolidação do segmento no Brasil, e, portanto, os grandes musicais devem perdurar. Para Paula Capovilla, atriz que atuou em musicais como Mamma Mia e Chaplin, “a fórmula norte-americana de musicais continuará a fazer sucesso por aqui, pois o gênero agrada muito o público brasileiro”.

Cleto Baccic em O Homem de La Mancha: “Antes de 2001, os atores apenas atuavam e não tinham formação complementar”

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EMPREENDEDORISMO

Às Próprias Custas S/A

A cena independente paulistana e o reflexo da produção musical nacional

Texto por Gabriel Nunes

“S

ó a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”. Com a frase, Oswald de Andrade dá início ao Manifesto Antropófago, conhecido por ditar as atitudes estéticas da geração modernista brasileira dos anos 1920. Publicado originalmente em 1928, o texto contrapunha e assimilava as vanguardas europeias à arte nacional. Dessa forma, estabelecia-se uma terceira margem do fazer artístico brasileiro: nem europeizado, nem ufanista. Ou, como poetizou Antonio Candido, construía-se “um outro mundo, o das utopias”. Apesar da longevidade do texto, seu fantasma ainda ronda o imaginário da produção criativa nacional. Uma das diversas linguagens das artes que melhor representa a nossa capacidade de ressignificar estrangeirismos é a da música. Mais especificamente, a música que se alimenta às margens do mercado cultural e a que se dá o rótulo de “independente”. Inspirados pelas pequenas gravadoras norte-americanas, bem como pela lógica punk do do it yourself (“faça você mesmo”), cada vez mais artistas despontam no panorama musical brasileiro. Em São Paulo, o cenário não é diferente. “Comparando com várias épocas, a música aqui no Brasil está no seu melhor momento”, declara o músico Kiko Dinucci. Nascido em Guarulhos (SP), o guitarrista integra os grupos Passo Torto e Metá Metá, de MPB e jazz, respectivamente, e tocou em

obras substanciais para o cenário musical brasileiro dos últimos anos, como A Mulher do Fim do Mundo (Elza Soares, 2015) e Nó Na Orelha (Criolo, 2011). Gravados de maneira independente, ambos foram alçados ao mainstream como novos cânones da MPB. “Nunca se viu tanto disco independente sendo lançado, tanta gente nova surgindo por aqui. Quando toco lá fora, com o Metá Metá, tenho a percepção de que existe uma crise; como se tudo [em termos sonoros] já tivesse sido esgotado. Mas aqui não. Aqui a gente tem nosso jeitinho específico de fazer [música], que ainda tem muito a ser explorado.” A “independência” na música ainda é uma questão controversa. Para Thiago Galletta, autor do livro A Cena Musical Paulistana dos anos 2010 (Editora Annablume), a discussão nasce a partir do que se entende por “produção independente” e “música independente”. “Ser independente implica ter liberdade em relação às majors”, diz o DJ e pesquisador, citando grandes conglomerados de distribuição fonográfica como Warner Music, Sony Music Entertainment e Universal Music. No entanto, se os músicos fogem do “grande mercado” a fim de conquistarem maior independência criativa, é necessário que eles atuem como empreendedores de si mesmos. Alguns optam pelo auxílio dos editais de patrocínio, como é o caso da Natura Musical e o da Oi Música. Tais empresas estabelecem, segundo Galletta, “contratos de parcerias com muitos dos artistas independentes, oferecendo suporte e promoção aos seus trabalhos ao mesmo tempo em que valorizam suas marcas e imagem social”. Outra saída é por meio dos selos independentes, procurados como intermediadores entre bandas e mercado cultural. Em São Paulo, um dos principais nomes que se projetam nessa cena é o da Balaclava. Fundado em 2012 pelos músicos e sócios Fernando Dotta e Rafael Farah, o selo foi criado para lançar o disco Unrest, do grupo Single Parents o qual integram desde 2009. “Naquela época, os selos por aqui ainda não eram tão fortes”, relembra Dotta. “No começo, queríamos reunir bandas que tinham a ver com nós. Não necessariamente pelo som, mas pelo ideal. Queríamos correr atrás de bandas que precisavam de ajuda, fosse na distribuição dos discos, para fazer uma ponte com a imprensa, ou até mesmo na parte de divulgação final do trabalho”. Com a capitalização dessa cena musical, o fazer artístico e criativo acaba inevitavelmente apropriado pela indústria cultural. É neste ponto que os termos “produção independente” e “música independente” divergem. Tanto para Galletta, quanto para Dotta, a noção do que é ser independente transcende a esfera mercadológica, podendo ser considerada uma questão estética e identitária. “Somos uma cena forte nos festivais e em alguns veículos especializados, mas ainda não temos o reconhecimen-

Thiago Galletta é DJ e autor do livro A Cena Musical Paulistana

Revista Esquinas

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O festival Sêla é uma iniciativa criada por mulheres para aumentar a representatividade feminina na música

to das rádios”, afirma o coidealizador da Balaclava. Para o pesquisador, a complexidade do mercado dificulta a distinção entre o que é mainstream e o que é independente. “Existem associações bastante intrincadas entre um universo e outro. A independência se reflete na possibilidade do artista ter um controle maior sobre o seu projeto”, arremata Galletta. VANGUARDA. Em São Paulo, grande parte da nova linhagem de músicos considerados independentes descende esteticamente do movimento artístico que ficou conhecido como Vanguarda Paulista. Consagrado pelo lirismo contestador e pelo experimentalismo sonoro, o grupo revelou nomes como Itamar Assumpção e Tetê Espíndola. Originário nos derradeiros anos da década de 1970, o coletivo foi responsável pelo “primeiro boom independente”, como aponta Thiago Galletta em um artigo divulgado pela publicação eletrônica Música Popular em Revista. Embora o Brasil já tivesse vislumbrado experiências independentes anteriores – como em 1972, com o lançamento do LP Paêbirú, de Zé Ramalho e Lula Côrtes, pela gravadora pernambucana Rozenblit – era a primeira vez em que se falava de uma “articulação coletiva de uma geração de artistas em torno da discussão e viabilização da produção fonográfica independente”, como afirma Galletta. Segundo o pesquisador, a capacidade de “articulação coletiva” aperfeiçou-se ao longo dos anos com a “democratização da internet”. Graças ao fortalecimento das redes sociais, o intercâmbio entre trabalhos independentes torna-se mais re-

corrente, e a troca de informações, mais rápida. “As novas condições técnicas possibilitam o manejo direto e simultâneo das esferas de produção, reprodução e distribuição musical, por parte tanto de pequenas gravadoras e selos, quanto dos próprios artistas individualmente”, escreve no artigo Para Além das Grandes Gravadoras: Percursos históricos, imaginários e práticas do “independente” no Brasil. Ainda de acordo com ele, cada vez mais artistas recorrem à cena independente não como uma estratégia transitória – isto é, como propulsor capaz de alçá-los a uma gravadora de grande ou médio porte. Conforme Galletta relata, baseado em um relatório divulgado pelo Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Acesso à Informação da USP (Gpopai-USP), os músicos e bandas têm buscado com maior ocorrência “sobreviver nela [cena independente] de forma continuada”. A necessidade de estar imerso na cena surge pontualmente nos trabalhos do “Clube da Encruza”. Brincadeira com o nome do consagrado Clube da Esquina, a “versão paulistana” do grupo de músicos mineiros traz uma veia sonora mais urbana e caótica. Formado por gente como Juçara Marçal, Rodrigo Campos, Rômulo Fróes e Kiko Dinucci, o “núcleo”, como também é conhecido, vem ganhando respaldo da crítica especializada desde a segunda metade dos anos 2000. Outro exemplo de articulação coletiva na cena independente paulistana é o Sêla. Idealizado pela cantora e compositora Camila Garófalo, o coletivo é também integrado pelas publicitárias Laíza Negrão e Fernanda Malaco, pela produtora cultural

Marina Coelho, pela jornalista Flora Miguel e pela designer Fernanda Martinez. Segundo Miguel, essa “aliança de profissionais de diversas áreas” surgiu de um sentimento generalizado da falta de protagonismo feminino na cena musical. “A mulher na música é muito estigmatizada”, afirma, ressaltando ainda o fato de a curadoria de alguns festivais valorizarem somente músicos homens. “Sentíamos falta de um evento que fosse conduzido por nós e que mostrasse que o espaço da mulher na música já existe e que ele é nosso”. Pensando em uma forma de unificar e dar evidência às mulheres na cena musical, a aliança organizou, em São Paulo, o primeiro festival Sêla. Realizado entre 1º e 5 de fevereiro de 2017, o evento reuniu nomes como As Bahias e A Cozinha Mineira, Tássia Reis, Tiê e Luana Hansen. Além dos shows, o festival contou com DJ sets e rodas de debates protagonizados e produzidos por mulheres. “As mulheres estão na música, assim como os homens, mas é um espaço que fica meio difuso e que precisa ser ocupado e evidenciado”, declara Flora. “Tem muito homem no mercado [musical], isso é uma questão estrutural do patriarcado. Desde cedo os homens são incentivados à música, a tocar algum instrumento. Já a mulher é incentivada a outras coisas. Quando nós nos juntamos nessa aliança, ganhamos unidade, uma força maior”. Licença poética à parte, pensando na vitalidade da cena paulistana, talvez seria necessário a adição de mais um advérbio à linha inicial do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade. “Só a antropofagia nos une. Musicalmente”.

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CIDADES

Dançando

ajudou os artistas e produtores a se prepararem para se tornar algo mais fixo na cidade”. Sem próxima edição prevista, o festival fica apenas na memória. O também produtor cultural e cientista social Marcio Black marca presença ativa na organização das festas de rua em São Paulo com o coletivo Sistema Negro. Ele destaca que as ações da gestão petista não foram um fator determinante, mas com certeza deram apoio para o desenvolvimento desses eventos. “A gestão Haddad era mais permissiva, facilitando a autorização para que acontecessem ou ainda ignorando as que aconteciam sem autorização, o que fez com que as festas crescessem muito”. Ainda que as iniciativas como a lei, o festival e a criação de uma cartilha de arte de rua disponibilizada pela Secretaria Municipal de Cultura tenham desburocratizado a dinâmica dos eventos culturais independentes, atualmente ainda existem brechas. Na mudança para a gestão de João Doria, nenhuma melhora o fim da no cenário foi incluída. “A tarde de questão agora é que com um sáa gestão Dória tem havido bado, no uma grande repressão e Centro da cidade de um processo de dificultar a São Paulo, uma cena concessão das autorizações se destaca: mesa e para que elas ocorram”, diz caixas de som são Black. montadas em frente Sem uma organização ao coreto da Praça estruturada, relatos de truda República. Jovens culência na ação policial e com vestimentas prefalta de apoio da Secretaria tas em estilo punk, de Cultura, esse movimento meia arrastão, coturno e sobretudos comecultural pode estar perdençam a se aproximar, do força. Gabriel Rodrigues trazendo consigo é frequentador assíduo das garrafas de Catuaba festas livres há cerca de três Selvagem e cigarros anos e diz sentir uma baixa enrolados à mão. Ao considerável na quantidade cair da noite, a múside eventos. “Geralmente, ca eletrônica anima o aconteciam de duas a três público. É a Vampire festas ao mês, quase todo Haus que está toman- Vampire Haus é uma das festas de música eletrônica gratuita ao ar livre fim de semana”. Muitas fesdo corpo, uma festa ao ar livre gratuita, a necessidade de ocupar a cidade. Para tas voltaram a procurar clubes pela neque reúne um público “soturno” numa Farina, tomar as ruas com manifestações cessidade de ganhar dinheiro e o público autodeclarada “experiência sonora e vi- artísticas traz não só mais tranquilidade que podia pagar acompanhou. Na visão sual”. De acordo com a organização da e segurança para o espaço público, mas de Farina, “a cena de rua se tornou mais festa, que acontece há dois anos em es- também “ressignifica” a relação das pes- elitista do que democrática, pois com as paços públicos do Centro da capital pau- soas com a cidade. dificuldades e diminuição dos eventos as lista, edições anteriores na Praça Ramos Exemplo dessa tentativa de ocupar e pessoas aceitaram pagar a entrada nos chegaram a aglomerar três mil pessoas. “ressignificar” o uso do espaço público clubes, mas a periferia continuou organiA Lei do Artista de Rua (Lei em São Paulo foi o Festival de Cultura zando festas locais e menores”. 15.776/13), implementada em maio de Independente SP na Rua que aconteceu Apesar disso, Black não acredita que 2013 pela Prefeitura de São Paulo, per- em setembro de 2015 e reuniu festas e co- as festas venham a desaparecer de fato, mite a realização de apresentações ar- letivos urbanos para uma noite de inter- mas que assumirão outro formato, mais tísticas – maiores como a Vampire Haus venções artísticas na região central, aos alinhado ao perfil da gestão atual da ou menores como a presença de estátuas moldes da Virada Cultural. Apesar de ter Prefeitura: “É possível que as festas convivas e artesões – desde que se cumpram sido importante para articular os organi- tinuem acontecendo patrocinadas por certas normas, como a gratuidade para zadores de festas, para Mauro Farina, que marcas, que possuem uma relação meos espectadores, a desobstrução do trân- participou do evento com a Free Beats, a lhor com a Prefeitura e podem articular sito de pedestres e a finalização do even- curadoria pecou em não incentivar que os estes eventos com mais facilidade”. Até o to até às 22 horas. Esse incentivo serviu coletivos se organizassem de forma mais fechamento desta edição, a atual gestão para fomentar o surgimento de outras sólida. “O SP na Rua foi bem importan- da Prefeitura de São Paulo não respondeu festas de rua no centro histórico de São te, mas se tornou só mais um evento, não à reportagem.

Paulo e coletivos independentes de música e arte que se tornaram famosos no cenário, que trazem uma grande diversidade de sonoridades e atraem o público jovem paulistano. O DJ e produtor cultural Mauro Farina está à frente da organização da festa Free Beats desde 2012 e compõe a primeira geração de agitadores desse movimento. Farina afirma que o conceito deu certo na época, pois os amantes de música eletrônica já estavam saturados do formato antigo dessas festas. “No Brasil é muito caro ir a baladas, se cobra não só pelo consumo, mas também pela entrada e o cachê dos artistas que se apresentam. Os clubes encareceram muito a experiência e o público passou a buscar acesso à música eletrônica nas festas de rua”. Além de funcionar como uma alternativa mais Texto por Ana Carolina Navarro e Ana Paula Cerveira acessível, o movimento de Fotografia por Lucas Machado rua chama a atenção para

nas ruas da

metrópole

O cenário underground contagia espaços públicos e atrai jovens para o Centro da capital paulista

N

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Revista Esquinas


LITERATURA

Livraria especializada em histórias em quadrinhos é espaço peculiar no bairro de Pinheiros, em São Paulo Texto e fotografia por Matheus Moreira

“E

u tenho 67 anos, então a Gibiteria tem uns 60. Eu sou a Gibiteria”, brinca Otávio da Costa, amante dos livros e quadrinhos, e dono de uma livraria especializada em histórias em quadrinhos, na Praça Benedito Calixto, em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo. Todas as semanas, entram curiosos pela pequena porta da loja, escondida no primeiro andar da galeria de fachada laranja. A história da livraria se funde facilmente à história de Costa. “Aos sete anos de idade fiquei doente, tive hepatite na época em que não se tinha conhecimento sobre os vários tipos da doença. Fiquei quatro ou cinco meses de cama. Sabe o que meus pais fizeram para que eu não deixasse o repouso? Me encheram de quadrinhos, do Fantasma e de super-heróis”, relembra o aficionado por gibis para explicar a “origem” de seu negócio. Formalmente, a livraria especializada em HQs existe há sete anos, mas, surpreendentemente, não gera lucro. Apenas um ano foi excepcional, segundo seu proprietário: 2014. Foi nesse ano que filmes hollywoodianos inspirados em quadrinhos icônicos estrearam nos cinemas. Capitão América 2, O espetacular Homem-aranha 2, Sin City 2, Guardiões da Galáxia e X-men: Dias de um futuro esquecido aqueceram o mercado e renderam, pela primeira vez desde a abertura da loja em 2011, algum dinheiro e esperança de viver da venda de quadrinhos para o dono. Os primeiros três anos de existência da livraria foram dedicados a divulgar

Olha,

quantos

gibis!

a “marca” Gibiteria. Nesse período, o amante dos quadrinhos criou a promoção “Gibi das 10”. O sistema era simples: às 10 horas da manhã de um dia qualquer, a loja anunciava em suas redes sociais um quadrinho caro, geralmente acima de 100 reais, mas com descontos que podiam chegar à totalidade da margem de lucro da loja. Quando Otávio da Costa ainda era capaz de sustentar o “Gibi das 10”, vendia a peça ao preço de custo, tudo isso para divulgar sua livraria. A Gibiteria não é grande, mas espaçosa. Os móveis brancos, quadrangulares e repletos de gibis de autores nacionais, que chegam em busca de uma plataforma de divulgação, são planejados para serem deslocados em dias de evento. A única parede sem estantes tem páginas de gibis antigos coladas à mão, uma a uma pela filha de Costa. As outras paredes, disformes, abrigam estantes também planejadas que se adequam a essas variações. O ambiente é diferente de uma livraria qualquer. Se os adultos que frequentam o espaço já se entregam aos sofás para uma rápida leitura, os olhos das crianças brilham com o colorido das paredes azuis e das capas variadas. O dono da loja explica que, mesmo com a dificuldade de lucrar, o trabalho vale a pena. Emocionado, ele conta que certa vez, um garoto subiu as escadas da galeria, à direita para quem está de fora, e se deparou com a loja. “Ele chamou pelo pai, ficou de boca aberta e repetia: ‘Olha quanto gibi, pai, olha!’. Eu quase chorei naquele dia”.

MUDANÇA DE VIDA. Formado em Psicologia, Costa trabalhou muitos anos de sua vida fazendo pesquisas de mercado. Chegou a fazer levantamento de opinião de eleitores sobre políticos. Os salários eram bons, mas a rotina era corrida e estressante, e acabou o levando ao hospital. Teve um infarto. Após sua recuperação, foi convidado por outra empresa para atuar como diretor. Aguentou mais uma vez a rotina durante três anos. Preocupado com a saúde, decidiu abrir sua livraria especializada em histórias em quadrinhos. A fala alegre, quase eufórica, mostra que a paixão pela loja sobrevive. As dificuldades financeiras não o impedem de levar algumas novidades para casa e “descansar” devorando HQs. Leitor ávido, Costa conheceu bibliotecas inspiradoras as quais cita frequentemente. A do pai, do avô e do sogro, todas as coleções contribuíram para o amor aos livros que, somados ao apreço pelos gibis, deu origem à loja. Enquanto concedia entrevista à Esquinas, o dono da Gibiteria almoça. Naquele dia, especialmente, dois clientes apareceram justamente quando ele pretendia comer sua marmita. Logo na segunda garfada, entre a inauguração e o melhor ano da loja, o telefone tocou. Era uma historiadora, aspirante a jornalista, que conheceu pessoalmente uma hora mais tarde, quando veio buscar o último volume, escondido entre tantos gibis nas estantes da livraria, de Capote no Kansas, uma versão em quadrinhos do livro A Sangue Frio, escrito por Truman Capote.

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RUAS

as vozes do

PIXO

Considerado crime em São Paulo, o pixo continua se multiplicando pelos muros da cidade Texto por Johnny Taira e Rafaela Bonilla Fotografia por Rafaela Bonilla

L

ang pixava na Avenida Conceição, local escolhido porque não havia deixado sua marca ali ainda, até que resolveu desviar seu trajeto inicial. Virou à esquerda, descendo uma rua que dá para a Vila Sabrina, na zona norte da capital paulista. Ele quis ir até uma região comercial, talvez pela sensação de maior adrenalina, já que a vigilância é redobrada por seguranças contratados pelos comerciantes para passar as madrugadas nas ruas, protegendo os estabelecimentos. Chegando lá, o pixador observou a rua praticamente vazia. Para confirmar se não havia ninguém, olhou para um lado, para o outro e sacou a lata de spray, chacoalhou e começou a pixar em uma porta de aço de uma loja. Pouco antes de terminar sua pixação, alguém assobiou chamando a sua atenção, indo na direção, a passos rápidos. “Molhou. É segurança de rua”. O jovem comentou que alguns seguranças de rua ou até mesmo pedestres apenas chamam a atenção dele e de outros pixadores, mas há outros que usam abordagens mais violentas, como ameaças e agressão física. “É embaçado isso, mas é um risco que se corre e o pixo existe por isso mesmo, porque é proibido.” Proibição. Adrenalina. Anarquia. São esses os três pilares que levaram Lang a pixar logo quando completou a maioridade. Antes disso, já treinava seus traços em cadernos e lousas de escola. “No meu caso é pela adrenalina mesmo, de fazer algo proibido, subir um muro, fazer escalada”. Hoje, ele evita correr grandes riscos, tem uma filha e uma namorada, além de ser garçom de um restaurante.

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Revista Esquinas

Durante a caminhada pela avenida, Lang comentou que era a primeira vez que pixava em 2017. Após alguns minutos andando, escolheu uma porta de aço branca no outro lado da avenida. Foi meticuloso e se concentrou durante todo o processo de pixação, sem perder a atenção nos movimentos e sons da rua. Quando necessário, interrompia sua pixação para disfarçar, enquanto carros esporadicamente passavam na fria madrugada paulistana. Quando terminou o seu trabalho, o pixador deu um sorriso satisfeito e contemplou por alguns segundos a porta de aço, agora marcada com sua pixação. Pouquíssimos pedestres andavam pela Avenida Conceição às duas horas da madrugada, assim como poucos carros passavam pelas ruas. Após a primeira pixação realizada, Lang revelou evitar pixar residências em más condições. Sente pena em dar prejuízo àqueles que não podem pagar a manutenção da parede pixada. “Mas já aconteceu muitas vezes de vir gente pra cima de mim porque eu estava pixando, sendo que a pessoa nem é dona do imóvel. Aí eu já acho meio nada a ver, porque é só um muro e os caras se importam com isso, com uma coisa que nem é deles”. Para ele, a questão do direito de propriedade não faz sentido, sobretudo dentro da sua ótica anarquista. “’Está certo que vivemos em uma sociedade capitalista, daí tem pessoa que batalha por anos para conseguir uma casa pra dizer que é sua. Mas vejo gente que dá importância muito grande para isso (a pixação), sendo que tem tanto problema aí no mundo que precisa ser solucionado”. Indignação também é a tônica no discurso do pixador

Mateus*, que afirma que a afronta ao sistema é a principal razão que o leva a pixar. “O Estado está pouco se lixando para quem eu sou, o que eu faço da vida, das minhas dificuldades. Desde que eu me conheço como pessoa, já sou um ‘fodido’, então luto contra essa minha condição”. Segundo o pixador, a sociedade o vê em posição similar a de um ladrão ou assassino. Logo no início de seu mandato, o prefeito de São Paulo, João Doria, sancionou o projeto de lei 56/2005 que prevê multa de cinco mil reais para quem for pego pixando e de dez mil reais para quem pixar monumentos e bens tombados.“Se eu faço uma atividade criminosa, considerando a lei atual? Faço, mas eu não mato, nem roubo, nem trafico e todos me veem como alguém que faz isso”, completa Mateus. Em 2017, o Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) da Polícia Civil, especializado em investigar crime organizado, passou a investigar e mapear, também, grupos de pixadores. Lang afirma que há pixadores que lidam até com o crime organizado, mas, segundo ele, a maioria dos que pixam também trabalham, estudam, possuem família e utilizam a pixação para exporem os problemas das suas comunidades. “O pixo, para mim, é isso. É protesto, lutar contra uma sociedade que me julga e um governo que está pouco se “fodendo” comigo e com a minha quebrada, é uma forma de se indignar, porque eu tô com a cabeça a milhão pensando nos problemas, em como nós somos invisíveis na sociedade”.


NO POINT. Um ponto de encontro de pixadores bastante popular nas noites de quinta-feira em São Paulo, a Rua Dom José de Barros, na República, estava mais vazia que o normal naquela noite de 30 de março. Normalmente, os pixadores se encontram nesses points para desenharem seus traços nos cadernos de outros pixadores, de forma a conhecer o trabalho do outro, além de ser um espaço para troca de ideias e reencontro de amigos. Ali, os jovens conversam tranquilamente enquanto bebem, fumam e trocam pixações nos seus cadernos. Entre eles, está Mateus, pixador desde 1987, e seu amigo, Cléber, que não está na “ativa” desde 1999, quando nasceu seu filho e precisou parar de pixar, mas sem deixar de comparecer ao point. Ambos são da zona sul, com suas marcas já espalhadas pela cidade. Já Roma* de 23 anos, morador da Brasilândia, pixa há menos tempo. Afirma que faz isso desde os 15 anos, en-

quanto mostrava a tatuagem com as letras formando a palavra “Roma”, seu apelido. “É minha tag, né, então tatuei em minhas mãos, fora as outras tatuagens que tenho no meu corpo. Curto para caramba esse negócio de tatuagem, acho uma puta arte, um brother meu que fez todas essas tatuagens”. Mateus confirma haver maior repressão por parte da Polícia Militar nessa região. “Experimenta ficar aqui até 10 da noite, para ver se a PM não vem aqui dispersar o nosso ‘rolê’. A gente aqui não está fazendo nada, só estamos trocando ideia, encontrando a galera da velha guarda, os mais novos, e a polícia quer saber de diálogo? Nem quer saber, já chega na violência mesmo”. Nos primeiros cinco meses da gestão Doria na prefeitura de São Paulo, a Guarda Civil Metropolitana (GCM) prendeu 126 pichadores. Lang reforça esse cenário e lembra que já levou um soco de um policial durante uma abordagem, além de ter parado na delegacia, liberado após assinar docu-

mentos. “Antes de sair proibindo, multar, colocar pra prender, a Prefeitura deveria entender os problemas reais da cidade, porque pra mim esse tipo de combate é mais propaganda mesmo”. Para Lang, tal combate é uma forma de silenciar aqueles que lidam diretamente com diversos problemas da cidade e encontram na pixação uma forma de expressar descontentamento. “Enquanto existir essa desigualdade na cidade, ainda vai ter gente protestando e vários encontrarão suas vozes através do pixo”. “PIXAÇÃO É ARTE”. Além de ser uma forma de protesto, Lang considera pixação como um hobby e arte. “É arte da sua forma mais pura, porque ninguém cobra pra pixar, o cara tira do próprio bolso pra poder se expressar”. Durante o encontro no point, Roma diz que a pixação é uma forma dele de se expressar artisticamente. Empolgou-se ao mostrar as pixações fotografadas pela câmera do seu celular.

O pixo, para mim, é isso. É protesto, lutar contra uma sociedade que me julga e um governo que “tá” pouco se “fodendo” comigo e com a minha quebrada Lang, Pixador

*

Os nomes foram trocados para preservar a

identidade dos entrevistados

Lang explica que o pixo “feio”, chamado de bafeado, é decorrente, muitas vezes, da pressa e da inexperiência do pixador

Editoria

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Legenda

“Cada pixador tem um traço único, inconfundível. Tudo bem alguns se parecerem com outros, na forma como a letra é feita, mas cada um que pixa possui a sua própria marca registrada. E é isso que me faz ser pixador, porque é arte na sua forma mais sincera”. Além de pixações, Roma possui diversos bombs ou block styles pixados ao longo da cidade. “Esse aqui, ó, fiz na Barra Funda. É um bomb que eu fiz lá no muro, olha o trem passando no vídeo, fizemos à luz do dia mesmo. E também tem esse aqui, é meu primo fazendo, o moleque está usando spray normal mesmo, só jorrando tinta, tá ligado?”. O aparato, no caso, era completamente caseiro, desde o spray até a pró-

pria tinta. Segundo Roma, o preço da lata de tinta é caro para ele, o que o leva a improvisar. Além disso, a Prefeitura de São Paulo pune com multas de 5 mil reais aos estabelecimentos que venderem tintas do tipo aerossol para menores de 18 anos ou sem identificação do comprador. Roma mostra outros vídeos e fotografias, incluindo fotos pessoais da sua família. “Olha, tem esse grapixo também, fiz lá perto da minha quebrada. Também tem esse vídeo, os moleques lá do bairro aprendendo a pixar, louco né?”. Segundo Lang, a pixação possui diversas referências, dentre elas as letras góticas e capas de disco punk e metal dos anos 1970 e 1980, além de pixadores também usarem

os grafites norte-americanos como fonte para seus traçados. E se tratando de estética, há também pixações bonitas e feias, como afirma Lang. “Olha aquele muro lá, aquilo é um pixo bafeado. O cara não teve noção de tamanho das letras, fez tudo de qualquer jeito, pixo ruim assim pega mal entre os pixadores”. A visão de Lang e Roma contrasta com a justificativa do projeto de lei 56/2005 onde consta que “a grande maioria do patrimônio Municipal encontra-se verdadeiramente transformado em obras primas, de imenso mau gosto, e que de arte não tem nada, pelo contrário, são apenas um acumulado de símbolos e letras pixadas como códigos enigmáticos indecifráveis. O pichador terminou sua pixação, dessa vez um block style. O percurso de Lang chegou ao seu fim em uma rua que cruza a Avenida Roland Garros. Eram três e meia da manhã e ele estava satisfeito por ter pixado pela primeira vez no ano. É comum que seus “rolês” terminem quando as latas de tinta acabam e Lang certamente pixaria um ou outro muro até chegar em sua casa se tivesse mais spray. “Trabalho e tenho uma filha para cuidar, aí fica foda mesmo. Mas quando eu era solteiro, não tinha preocupação, curtia dar rolê aí e pixar, é bom pra trocar ideia com os amigos”. Para ele, a limpeza da pixação é um dos objetivos do programa Cidade Linda de João Doria, que distingue àqueles que produzem arte urbana dos pixadores. Pelo fato da pixação estar sob os holofotes da mídia e da Prefeitura, Lang acredita que isso será um fator que até mesmo incentivará pixadores a continuarem seus trabalhos de tentar dar vida e colocar suas vozes nos muros e paredes da cidade.

Point é o local onde jovens de diferentes regiões e grifes se encontram para conversar e trocar pixações em seus respectivos cadernos

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Bomb style

Influenciado pelos grafites dos Estados Unidos, o Bomb possui um traçado mais redondo e cheio, com o corpo das letras preenchido por cores.

Tag

Uma outra vertente da pixação, com desenhos mais simplificados e menores. Pelo fato de ser mais simples, é a modalidade mais frequentemente encontrada nas escolas, nos muros e portas de estabelecimentos comerciais e residências. É uma espécie de “assinatura” do pixador, pelo seu caráter individual.

Grife

Pixação comum dentro de um grupo grande de pixadores, que representa a identidade visual do mesmo. Há grifes com pixadores espalhados pelo Brasil todo, como por exemplo Os Mais Imundos.

Block style

Também influenciado pelo grafite dos Estados Unidos, o Block possui letras mais cheias igual o Bomb, porém com o contorno mais retilíneo. Tanto o Bomb e o Block possuem semelhanças com o grafite

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POEMAS

Eu nunca sou sexta-feira por Capitubella

Sempre sou o desafogo da segunda estressante A aula chata que você podia faltar na terça O dia de folga que você pediu na quarta Aquela cerveja depois das dez da noite na quinta Mas eu nunca sou sexta-feira. É aquele sábado às seis da manhã, voltando da balada Aquele fim de domingo depois de ir ao churrasco da família Até mesmo segunda de manhã, para começar a semana bem Aquela terça que a outra menina desmarcou Mas eu nunca sou sexta-feira É sempre aquela quarta para a rapidinha A quinta que você chega de madrugada, sabendo que eu tô sozinha Mas eu nunca sou sexta-feira. Hoje é sexta-feira É sexta-feira, meu amor, se você não quer (e você nunca quer) Tem quem queira.

Contratempos por Beatriz Moraes Estamos no fim das palavras E no prelúdio dos gestos, Na sepultura dos fracos, No enterro dos restos E no pé das novas estradas. Saímos das trilhas de ouro Para pisarmos descalços na terra, No chão dos nossos espaços, No doce solo da nossa espera Por um “eterno” mais duradouro. Que haja novos entretempos No curto período desta hora, No longo arrastar destes anos, Para que o nosso tempo de agora Possa enfim ficar mais lento.

Giulia Gamba

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Pois não há melhor passatempo, Para o tempo, Do que passar-se, Nas infinitas corridas Dos seus infinitos contratempos.


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Revista Esquinas


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