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ES QUI NAS ANO 23 | EDIÇÃO 65 2º SEMESTRE DE 2019

REVISTA-LABORATÓRIO DA FACULDADE CÁSPER LÍBERO

UM MUNDO DESCARTÁVEL Dossiê analisa o presente e o futuro do meio ambiente

EM PAUTA Brasil permite a volta do tratamento por eletrochoque

VAI UM CAFÉ? A importância econômica desse hábito nacional


O mercado de trabalho estรก sempre mudando. Vai ficar para trรกs? Os cursos livres presenciais da Faculdade Cรกsper Livre, oferecem uma variedade de temas alinhados com as demandas atuais do mercado de trabalho, num ambiente ideal para conhecer profissionais da รกrea. Conheรงa nossa agenda de cursos vigentes.

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FACULDADE CÁSPER LÍBERO Diretor Welington Andrade Vice-diretor Adalton Diniz Coordenadora de Jornalismo Tatiana Ferraz ESQUINAS Editor-chefe Márcio Rodrigo Editores Pedro Garcia, Rafaela Bonilla e Thiago Bio Revisão Ana Navarro e Paula Leal Mascaro Editor de Arte Henrique Artuni Editora do Site Larissa Basilio Diagramação Larissa Basilio e Luana Jimenez Projeto Gráfico Henrique Artuni e Larissa Basilio Capa Foto de Larissa Basilio Participaram desta edição Amanda Prado, Ana Carolina Idalençio, Ana Carolina Prado, Ana Karoline Silano, Arthur Guimarães, Bárbara Ferreira, Beatriz Calais, Bruno Galvão, Caio Machado, Carolina Ferraz, Carolina Grassmann, Clara Zucateli, Danielle Gracia, Dayana Natale, Eduardo Marini, Fatime Ghandour, Gabriel Assis, Gabriel Herbelha, Gabriel Jordão, Gabriela Del Carmen, Íris Chadi, Isabella Gomes, Isabella Juventino, Isabelle Colina, Julia Palmieri, Júlia Sassettoli, Larissa Rangel, Laura Slobodeicov Ribeiro, Leonardo Godoy, Luísa Cerne, Maê Montagno, Marcelo Roubicek, Maria Antônia Anacleto, Maria Carolina Moura, Maria Eloisa Barbosa, Mariana Galvão, Marina Sakai, Matheus Fernandes, Natália Bastos, Nicoly Bastos, Pedro Alvarez, Pedro Figueiredo, Pedro Garcia, Pedro Marinelli, Pedro Moura, Pedro Paulo Furlan, Pedro Zanatta, Rafael Lara, Stephanie Cid, Tiago Tortella, Thiago Bio, Vanessa Nagayoshi, Victor Bianconi, Vitor Correia e Yasmin Luara NÚCLEO EDITORIAL DE REVISTAS Avenida Paulista, 900 – 5º andar 01310-940 – São Paulo – SP Tel.: (11) 3170-5874/5814

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SUSTENTABILIDADE PERDIDA DESDE QUE A COMISSÃO MUNDIAL sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU usou pela primeira vez o conceito de “desenvolvimento sustentável”, em abril de 1987, a palavra “sustentabilidade” gradativamente se difundiu junto à opinião pública global, associada às questões de ecologia e sobrevivência da fauna e da flora. Ocorre que, como explica o próprio relatório da ONU, “desenvolvimento sustentável é o desenvolvimento que encontra as necessidades atuais sem comprometer a habilidade das futuras gerações de atender suas próprias necessidades”. Logo, tal noção se estende para outras áreas, impactando em todos os setores da vida da sociedade interconectada em que vivemos atualmente. ESQUINAS investigou a fundo tais questões e, inspirando-se no conceito de sustentabilidade mais amplo surgido com o relatório da ONU, discute no dossiê desta edição caminhos possíveis para se pensar tais problemas, com reportagens mais aprofundadas do que as habitualmente apresentadas pela imprensa brasileira. A preocupação com o futuro, antevista pela ONU já em 1987, marca

também reportagens que extrapolam os limites do dossiê. Discutem a condição da vida humana em um País em que o eletrochoque voltou a ser autorizado como tratamento para pessoas com problemas de saúde mental e uma legião de desalentados lotam albergues da maior metrópole brasileira. Enquanto isso, instituições artísticas tentam preservar acervos históricos para que as próximas gerações tenham ao menos a esperança de encontrar um mundo minimamente habitável e civilizado em um tempo não muito distante. Por último, mas não menos importante, a partir desta edição, ESQUINAS traz um design gráfico novo. Privilegiando as imagens, as cores e a leveza visual em cada uma de suas páginas, a publicação laboratorial da Cásper tem design assinado por Henrique Artuni e Larissa Basilio, da equipe de arte do Núcleo Editorial. A dupla criou também um novo logotipo para a publicação que resume com precisão e elegância aquilo que a revista almeja desde sua criação em 1995: exibir com liberdade o que acontece em São Paulo, no Brasil e mundo afora. Boa leitura!

MÁRCIO RODRIGO, EDITOR-CHEFE ES QUI NAS

Esta revista é feita em creative commons por atribuição, uma licença livre que permite a reprodução de textos, imagens e vídeos em materiais de uso comercial e não-comercial desde que sejam citados os nomes dos repórteres e de esquinas. Caso queira utilizar algum material de esquinas em seu veículo, acesse nosso Flickr para as imagens, nosso site para os textos ou contate nosso e-mail! Os materiais protegidos por direito autoral não poderão ser reproduzidos e serão representados pelo símbolo de ©.

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Padrões comportamentais de “como ser homem” passam a ser questionados

ROUPAS INCLUSIVAS

A moda abre os olhos para produtos voltados a pessoas com deficiência física

CENTRO DE SÃO PAULO

Projetos de revitalização não saem com eficiência do papel há décadas

VIDA ANIMAL

CARLOS NADER / ZOOLÓGICO DE SÃO PAULO

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MASCULINIDADE

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DOSSIÊ

A importância de buscar caminhos rumo à sustentabilidade do planeta

Conheça a tamanduá Laura e o trabalho de conservação ambiental do Zoológico de São Paulo

MARIA ANTÔNIA ANACLETO

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BRÁS, BIXIGA E BARRA FUNDA Bairros italianos do século passado são redescobertos


MUSEU DA IMAGEM E DO SOM DE SÃO PAULO / DIVULGAÇÃO

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MUSEUS Com dificuldades financeiras, instituições enfrentam a deteriorização do tempo em seus acervos MUSEU DO CAFÉ / GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

CAFÉ

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PACAEMBU O histórico estádio sofre diante de sua privatização e esquecimento

PERFIL Mesmo reconhecida no mercado de HQs, Bianca Pinheiro luta para vender suas obras

ENTREVISTA

Ana Carolina Schwan, defensora pública, discute maioridade penal

EDUCAÇÃO

Famílias e professores debatem melhor método para ensino de crianças surdas

MACONHA

Um dos compostos da droga é uma opção no auxílio ao tratamento de doenças

ALBERGUES Moradores de rua relatam a árdua jornada nos centros de acolhimento da cidade LUIZ ALFREDO

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O grão de ouro dos anos 1910 e 1920 ainda tem forte presença na balança comercial brasileira

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SAÚDE MENTAL

Eletroconvulsoterapia gera debates quanto ao seu uso pela comunidade médica 2º semestre de 2019

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INÍCIO CONTURBADO O governo do presidente Jair Bolsonaro, que tomou posse neste ano, começou tumultuado. De cara, houve trocas de ministros, demissão em cargos públicos e paralisação de recursos para a educação. Bolsonaro sofreu com os piores índices de rejeição para um presidente em início de mandato: segundo pesquisa do Ibope de abril, a taxa de aprovação é de 35%. Com dificuldades em buscar apoio político e para a Reforma da Previdência, à qual é favorável, foi o presidente que menos aprovou medidas provisórias desde 2003. Brasil e mundo afora, busca alianças com governos conservadores de direita. Em março, visitou o norte-americano Donald Trump e demonstrou admiração pelo republicano. Esse primeiro semestre ainda foi marcado por tweets polêmicos, como o “golden shower” no Carnaval e o de comemoração do golpe militar de 1964.

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PAULO PINTO / FOTOS PÚBLICAS

CAROLINA ANTUNES / PR

LGBTFOBIA AGORA É CRIME No país onde um LGBT morre a cada 19 horas, segundo levantamento do Grupo Gay da Bahia, violências contra essa população agora serão punidas. A votação no Supremo Tribunal Federal (STF), em junho de 2019, incluiu crimes de discriminação por orientação sexual e identidade de gênero dentro da Lei do Racismo, de 1989. A decisão progressista gerou críticas, especialmente da bancada evangélica do Congresso, e aumentou desentendimentos entre o Legislativo e o Judiciário.

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A ONDA DA EXTREMA-DIREITA No cenário de crise migratória, de questionamento da identidade nacional e de desconfiança das instituições, forças de extrema-direita ressurgem na Europa. Alemanha, Espanha, França, Hungria e Itália já entraram nesse barco. Nesses países, fortes lideranças conservadoras se utilizam da retórica anti-imigração para reestruturar a política europeia. Em julho de 2019, o Reino Unido entrou para essa lista com a eleição de Boris Johnson para primeiro-ministro, conhecido por suas falas xenofóbicas e por querer retirar o país da União Europeia.


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TRADIÇÕES DO IMAGINÁRIO BRASILEIRO Lira dos Autos leva cultura popular aos palcos de Osasco e do estado de São Paulo

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POR THIAGO BIO

oupas coloridas estampadas, saias de renda comprida, maquiagem cintilante no rosto e panos pendurados pelo cenário de madeira. Acontece ali naquele palco a apresentação de tradições populares de um grupo de 19 anos de estrada, o Lira dos Autos. Inspirados nas histórias orais de norte a sul do Brasil, os espetáculos levam ao público manifestações folclóricas nacionais. Instalado na Escola de Artes César Antonio Salvi, no Centro de Osasco, cidade da Região Metropolitana de São Paulo, o grupo nasceu em 2000 a partir da iniciativa de Genivaldo de José. “Desde que eu entrei no teatro com 17 anos eu já vivia com a cultura popular”, diz, relembrando da juventude nas cidades de Arcoverde e Ibimirim, no sertão de Pernambuco. A primeira apresentação foi um Auto de Natal no calçadão da cidade. Em Ibimirim, onde “não tinha nem luz elétrica”, José vivia da tradição local e dos ciclos da cultura popular – folguedos de São João, Semana Santa, Natal, quadrilhas, entre tantas outras manifestações populares. “Meu pai reunia todo aquele povo e começava a contar história de trancoso, de malassombro [assombração]”, recorda. Mas não é somente de lendas quase esquecidas de curupira, sereia, boitatá e mula sem cabeça que vive o Lira. “Quando você fala de folclore você só olha para esse lado das histórias. Ele é muito abrangente, desde a forma de as pessoas acordarem, a comida até a tradição nossa de cada dia”. Elson Leite, representante jurídico e coreógrafo do grupo desde 2005, explica que o folclore passa pela oralidade, “só de boca”. “A gente trabalha com danças mais específicas, sempre do folclore. A gente chama de danças populares brasileiras”, diz. A equipe – que já teve 30 componentes e hoje possui 16 – quer se transformar em um grupo de pesquisa. “A gente encara o Lira dos Autos como um trabalho mesmo, porque isso é trabalho, sim”, defende Leite. Mas o maior problema para os integrantes é a arrecadação de dinheiro para sustentar o grupo. “Nosso grande desafio é a monetização, infeliz-

SESC BIRIGUI / DIVULGAÇÃO

mente”, lamenta o produtor Márcio Peres. “É muito difícil a gente tirar do nosso bolso, porque todos precisam pagar suas contas”, comenta Leite. Em cada projeto, é guardada uma parte dos lucros para o seguinte. Além disso, algumas roupas e cenários são produzidos a partir de doações de fantasias de escolas e blocos de Carnaval e de tecidos das lojas de vestido de noiva que ficam nos quarteirões ao redor da Escola de Artes de Osasco. Com apresentações na região e em cidades do interior de São Paulo, o Lira dos Autos leva essas tradições para todos os públicos. “Dentro da cultura popular existe muita coisa para ser mostrada. No país tem muita coisa para ser explorada”, aponta José. Os espetáculos partem das suas ideias levando uma mistura de costumes do País. Independentes, os artistas do Lira apresentam nos palcos e ruas paulistas tradições do imaginário brasileiro, muito além das lendas perdidas no dia a dia de cada um.

Costumes e histórias brasileiros são o foco do grupo, que tem 19 anos de estrada

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MACHO COM ‘M’ MINÚSCULO Especialistas explicam a importância de desconstruir padrões tóxicos e repensar o que é ser homem POR EDUARDO MARINI, MAÊ MONTAGNO, MATHEUS FERNANDES E PEDRO FIGUEIREDO

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les têm medo de serem confundidos com mulheres”. Foi assim que Fábio Mariano, professor do curso de Masculinidade Contemporânea na PUC-SP, explicou como o status quo da masculinidade reflete no inconsciente das pessoas. A partir do machismo, o homem é visto como livre para ser e fazer o que quiser. Para embasar essa premissa, cria-se a ideia de um “sexo frágil”, o feminino, que está sujeito a julgamentos. Entretanto, não existem códigos escritos sobre como ser homem. Mas no início dos anos 1980, o termo “man box”, “caixa do homem” em tradução livre, foi criado por Paul Kivel e o Projeto de Homens de Oakland, com o desafio de definir os aspectos que determinariam esse ser – como não demonstrar emoções, apenas raiva. Apesar de existirem regras não ditas, o homem tenta transmitir um ar de independência e emancipação. Mas será mesmo que os homens são livres de padrões? É preciso uma visão crítica para enxergar as amarras que os prendem. Estar na caixa do homem pode causar uma sensação de aprisionamento, revelando uma masculinidade frágil, contrária à noção de virilidade e liberdade. O processo de desconstrução é um dos focos do site PrazerEle. Claudio Serva, criador da página, ressalta que os movimentos feministas são as principais causas que levam o homem a refletir sobre questões que antes não faziam parte do seu repertório sóciocultural. “Quando a mulher encontra seu lugar de potência, o homem fica perdido e descobre que

as características que o definiam como masculino eram limitantes”, esclarece Serva. Quem critica e desconstrói padrões, para Fábio Mariano, é o homem contemporâneo. Se o diálogo não for provocado, a aceitação desses códigos se torna natural. “Os homens têm que se educar para serem livres de tudo aquilo que seja condicionante”, afirma. No momento em que os padrões se tornam naturais, estes podem ser levados de geração a geração. “Não se nasce homem, torna-se homem”, diz Mariano, reformulando a famosa frase da filósofa feminista Simone de Beauvoir. Segundo a psicóloga Bárbara da Cunha, a infância é uma fase importante para a construção do indivíduo. “A criança nasce sem nenhum registro e aprende observando o meio em que vive. A capacidade de demonstrar sentimento, por exemplo, é uma construção social”, explica. Se as características não vêm de nascença e é possível construir uma “masculinidade saudável”, como defende Serva, o que impede os homens de mudarem? O jornalista Nathan Fernandes responde que a chave para abrir a caixa do homem é o questionamento. “Você não precisa inventar a roda todo dia, mas tem que questionar e não aceitar os conceitos como verdades absolutas, porque talvez elas nem existam”. Este texto inicia a primeira série de reportagens múltimidia de ESQUINAS. Acesse revistaesquinas.casperlibero.edu.br para ver o conteúdo completo


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DONO DO MEU ARMÁRIO O relato de uma pessoa não-binária no caminho da autoexpressão por meio da moda

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lhar-se no espelho. Uma ação que parece tão banal pode criar muitos questionamentos. Pelo menos foi o que aconteceu comigo. Por muito tempo, ao ficar na frente da minha imagem, eu mal conseguia me ver. As camisetas de super-heróis, bermudas e roupas masculinas só mostravam alguém com quem minha mente não concordava mais, se é que algum dia ela concordou. Atualmente, identifico-me satisfatoriamente como não-binário – pessoa que não se encaixa em estereótipos de um gênero definido –, e o jeito de me vestir reflete toda minha própria identidade. A mudança começou em 2016, no primeiro ano do ensino médio. Após dizer que era pansexual para algumas amigas, encontrei-me em um dilema. Podia continuar me escondendo ou revelar – mesmo que não verbalmente – para mais pessoas. Escolhi a segunda opção. A moda foi onde eu rapidamente encontrei um refúgio. O sentimento se tornou diferente a partir daí. Depois de tanto tempo em uma vida na qual eu não me encaixava, ficou simples escolher looks com que eu me identificava. Com alguma ajuda da internet para buscar inspirações, eu estava indo em uma direção a facilitar a casual olhadela no espelho. Comecei com pequenos passos, calças cintura alta, chokers, anéis, colares e camisas mais chamativas – ou espalhafatosas para muitos. No ano passado, comecei a me questionar sobre meu gênero. A ideia de um masculino ou um feminino tão fixa me deixava sufocado e aquela leve mudança nas roupas já não era o

PEDRO PAULO FURLAN é aluno do 1º ano do curso de Jornalismo. Pretende se especializar em jornalismo de moda

bastante. Foi uma época de uma grande reviravolta no meu armário, de metamorfose. Lembro da primeira vez que provei algo da ala feminina, era uma jaqueta jeans, nada particularmente “feminino”, exceto sua localização naquela seção da loja. Foi estranho como algo tão pequeno e comum como uma etiqueta, especificamente a coleção planejada para outro gênero, fez-me sentir tão livre. Crescer no interior de São Paulo, na cidade de Vinhedo, e ter frequentado uma escola evangélica criaram em mim vários medos e uma certa homofobia internalizada. Mas no momento da compra, tudo isso não importou mais. Aquela jaqueta me mostrou a trivialidade das divisões por gênero na moda. Mas enquanto uma pessoa não-binária, aquela decisão foi um grande passo no caminho da autoexpressão. Hoje minha identidade se expressa pelas roupas que uso. Incorporo aspectos que são considerados somente femininos pela sociedade hétero e cis, como esmalte e maquiagem, enraizados na androginia da comunidade queer. Mesmo que eu sofra com a homofobia diária (hoje me entendo como gay) de encaradas no Metrô e xingamentos sussurrados, tudo parece valer a pena quando, ao olhar no espelho, as perguntas que antigamente me chacoalhavam não surgem mais. Finalmente sei como é ser dono do meu armário.


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ESTILO PARA TODOS Com falta de opções, roupas e calçados inclusivos chegam para melhorar a vida de pessoas com deficiência POR BÁRBARA FERREIRA, BEATRIZ CALAIS E CAROLINA FERRAZ

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ARIA MODA INCLUSIVA/ REPROUÇÃO

Velcro é um dos materiais usados para facilitar a vida dos clientes

estir calças sozinho é algo desafiador para Alessandro Fernandes. Após sofrer um acidente de motocicleta, em 2006, hoje depende da cadeira de rodas. Paraplégico, com perda do movimento e da sensibilidade da cintura para baixo, Fernandes sonha em ter um jeans pensado para ele. Além de ter dificuldade em utilizar peças de roupa que são vendidas no comércio, não frequenta lojas de departamento por existirem poucos provadores adaptados para sua cadeira de rodas. São situações como essa que a moda inclusiva busca contornar. Com o objetivo de facilitar o dia a dia da pessoa com deficiência, as peças são pensadas para cada tipo de corpo e podem utilizar materiais diferentes como velcro, zíper e tecido elástico. A história de Fernandes parece um caso pontual, mas, segundo dados de 2018 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 6,7% da população brasileira é composta por pessoas com nenhuma ou pouca mobilidade. Caso o universo da moda não apresente diversidade, 14 milhões de pessoas vão ter a independência de suas vidas colocada como meta distante. O campo da moda inclusiva está se expandindo aos poucos. A estilista Silvana Louro, após trabalhar por 20 anos com modelos e desfiles, sentiu que sua


função havia perdido significado. Em 2011, ao acompanhar as dificuldades de atletas paraolímpicos que se queixavam da falta de praticidade e conforto de suas roupas, decidiu desbravar o mundo da inclusão, fazendo o primeiro uniforme adaptado do mundo. Em 2015, a roupa foi utilizada pela delegação fluminense nas Paraolimpíadas Escolares. “Eu nunca mais consegui parar”, revela a designer, que abriu em 2011 a loja de moda inclusiva Equal. Louro não é a única exploradora. Driélli Valério, formada em Moda, foi introduzida ao tema pelo seu Trabalho de Conclusão de Curso em 2012. Ao perceber que o mercado oferecia pouco para esse público, sentiu que poderia criar algo para ajudar pessoas e ir além do seu projeto de faculdade, abrindo a loja online de moda inclusiva Aria. Facilitar o ato de se vestir é algo que a moda inclusiva tem cumprido. Louro conta a história de uma criança portadora de paralisia cerebral que atendeu. Suas articulações eram enrijecidas e sentia muita dor ao se mexer. A empresária fez roupas que se encaixavam com ajuda de zíperes. “Pela primeira vez ele se vestiu sem chorar”, lembra Louro. Além da praticidade e conforto, o visual das vestes também é um ponto essencial. O apelo estético fortalece a autoestima, porém, mesmo com o esforço das lojas, não há grande variedade. Com a pequena procura, o mundo da moda inclusiva passa por obstáculos, o que dificulta investimentos em novas ideias e produções. Um dos motivos da pequena procura está relacionado à falta de informações sobre o assunto. Assim como Alessandro Fernandes, Vânia Martins, portadora da doença degenerativa Distrofia Muscular de Duchenne, nunca teve contato com moda inclusiva. “No atendimento, as pessoas ainda se assustam com uma pessoa deficiente”, desabafa. Apaixonada pelo mundo da beleza, ela fundou o canal de YouTube Rampa de Acesso, para dar dicas sobre estilo e autoestima. Quando o tema é divulgação da moda inclusiva, as empresárias das lojas Equal e Aria acreditam que o trabalho é de “formiguinha”. Atualmente, Louro e Valério utilizam as redes sociais e a clientela fiel para disseminar seus trabalhos. Em relação aos custos, os preços variam na média de 80 a 200 reais. Para melhorar a relação de preço e lucro, a proprietária da Equal destaca vender peças tanto adaptadas como comuns, afim de diluir o valor mais alto da confecção em toda a produção. Esse é um desafio passado também por Valério. “Te-

mos o propósito de tornar as peças acessíveis comparadas ao mercado fast fashion atual. Você pagará em uma peça nossa um valor semelhante a um grande magazine”, diz. A intenção das lojas é que a moda seja acessível também no quesito financeiro. SAPATO TAMBÉM É MODA. Para pessoas com defici-

ência nos membros inferiores que querem unir conforto, estilo e preço acessível, a contratação de sapateiros muitas vezes é uma opção. Para Aline Antunes, dona da Escola Arte do Calçado, em Perdizes, na zona oeste de São Paulo, os sapatos especiais oferecidos em lojas não são bonitos e o atendimento, precário. De produção caseira, levando em conta os gostos e necessidades de cada indivíduo, Antunes oferece cursos e focos de produção voltados para esse público. Além de uma confecção primorosa, espera que seus alunos saibam como atender uma pessoa com deficiência. A empresária conta que a ideia surgiu ao perceber que o mercado não oferecia serviço de qualidade para esse setor. “Quero fazer uso da minha ferramenta de inclusão: a moda”, declara. Conforto e estilo há, mas o preço não é dos mais baratos. A média por par é de 300 reais. Os sapatos especiais exigem mais cuidado e conhecimento técnico específico, o que encarece o produto. O orçamento também pode variar conforme o tipo de serviço que é prestado. Transporte, complexidade do modelo e materiais utilizados são fatores levados em consideração na hora de determinar o preço. Outra questão que afeta o bolso de algumas pessoas com deficiência é a falta de distinção que o mercado tradicional faz de membros inferiores. Amputados e pessoas com pés com numerações distintas não são levados em consideração, o que dificulta que esse público faça compras em lojas convencionais. Nelas, são obrigados a comprar o par do mesmo tamanho, o que os leva a gastar o dobro, levando para casa sapatos que não usarão. Mas ainda há esperança. Em 2014, o deputado Pedro Uczai (PT-SC) apresentou o projeto de lei 7246 que defende a obrigatoriedade de comercialização de apenas uma unidade de calçado e de pares de calçados constituídos por unidades com numerações diferentes a pessoas com deficiência. Porém, o projeto ainda espera votação na Câmara. Com o crescimento de projetos inclusivos, a hora é de mudanças para o setor de moda. “Estamos em um momento em que devemos nos apoiar para a moda passar a ter um propósito”, reforça Louro.

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BARRACAS PLURAIS Diversidade e resistência marcam a história da feira de artesanatos da Praça da República

POR CAIO MACHADO, DANIELLE GRACIA E ISABELLA GOMES

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ntre cinemas eróticos, prédios históricos, hotéis decadentes e agências bancárias antigas do Centro de São Paulo, está a Praça da República. A feira de artesanato que ocorre ali todo domingo é uma expressão da pluralidade e diversidade da metrópole. Desde sua formalização em 1968, tornou-se parada obrigatória de turistas e residentes da cidade, apesar de poucos a conhecerem. Uma das feirantes é Kirna Rivas, chilena que reside no Brasil há 32 anos e trabalha na feira faz três décadas. “Eu vim para a feira porque eu tinha uma amiga que trabalhava aqui e que vendia muito”, recorda. “Meu marido trabalhava, e eu ficava sozinha. Vi que ela ganhava bem, tirei a licença e comecei a ganhar dinheiro e independência econômica”. Rivas vende placas artesanais, chaveiros, estatuetas, abridores de garrafa e afins, a maioria com o Brasil como tema. Em novembro de 1956, muito antes de Rivas, o colecionador J. L. Barros Pimentel chegou na praça a fim de trocar selos com outros simpatizantes da filatelia. Artesãos, músicos e outros artistas, conhecidos em seu meio ou anônimos tentando ganhar na vida, também passaram a se reunir todo domingo para vender seus produtos. Mas o grupo era malvisto pela burguesia local. Os boêmios da República encontraram salvação em uma figura do meio militar: o prefeito José Vicente de Faria Lima, membro da Força Aérea nacional. Mais aberto ao mundo moderno, em 1968, Faria Lima baixou um decreto que autorizava a Feira de Arte da Praça da República aos fins de semana. 12

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Entretanto, aqueles que estão lá desde a sua oficialização não a veem mais como antes. “Comecei a vender aqui porque artista tem que mostrar os seus trabalhos, uma coisa que você quer mostrar para o pessoal”, comenta o pintor autodidata Waldir Ribeiro. “Só o fato de a pessoa gostar já é grande coisa”. Ele é um dos que sente a diminuição dos frequentadores da feira, que hoje ocupa apenas metade da calçada da praça. Organização é a palavra de ordem na Feira da República. Com a ajuda da Prefeitura de São Paulo, os vendedores realizam uma eleição de dois em dois anos para definir seu coordenador, responsável por definir a articulação do evento, como será a divisão de barracas, em qual área os feirantes ficam, entre outras ações. São separadas quatro seções: o artesanato é maioria e tem barracas de lona branca; as pedrarias, lonas verdes; os itens colecionáveis (como notas, moedas e selos) ficam em barracas beges; por fim, as pinturas não possuem barraca própria, ficam expostas ao ar livre. “Essa organização garante uma atuação mais harmoniosa dos vendedores”, explica a vendedora de bolsas Cida Silva. “Mas as barracas misturadas dariam mais diversidade para os clientes”, critica. Os feirantes desembolsam parte de seus lucros para que as barracas sejam erguidas, desmontadas e guardadas em um galpão nos arredores da praça. Também contratam seguranças particulares para manter a ordem no lugar, o que diminui a incidência de pequenos roubos. “Sem os seguranças, nós estamos fritos. Se você chegar aqui às 17h30, pode prestar atenção, os ‘noinhas’ passam aqui e ficam olhando. Se bobear, eles levam em-

A Feira da República leva produtos para os mais variados públicos, desde bolsas, chaveiros e incensos até bolas de cristal, consulta de tarô e caricaturas


ISABELLA GOMES

bora”, acusa Osório Silva, atual coordenador e casado com a vendedora Cida. Quase 30 anos após a inauguração da feira, o então prefeito Celso Pitta decretou seu fim. “A República se tornou ponto de tráfico de drogas e de acúmulo de sujeira”, alegava Pitta, segundo a edição de 24 de novembro de 1997 do jornal Folha de S.Paulo. Osório Silva era o coordenador da feira à época também, e Cida lembra que pessoas tiveram problemas de saúde causados pelo estresse da época. “O Pitta vetou a feira. É uma parte triste da nossa história, muita gente acabou enfartando, morrendo. Muitos pegaram seus quadros e começaram a destruir seus trabalhos”, relata a feirante. Não durou muito para se reunirem em assembleias, organizarem um abaixo-assinado – com adesão da maioria dos feirantes – para que a feira não acabasse de fato e reconquistarem seu espaço de comércio.

Para ter o seu ponto de venda na feira, é necessária uma licença dada pela Prefeitura. “Eu tenho mais de 300 nomes de artesãos em uma lista de quem quer começar a trabalhar aqui”, diz Osório. Os mais antigos dizem que a retirada da autorização foi fácil, enquanto os mais novos comentam problemas na liberação. “Trabalho na feira há um ano, mas esperei cinco para conseguir a licença”, afirma Nilton Marques, vendedor de dinheiro colecionável. No comando da feira há 20 anos em sequência, Osório afirma que o local passa por uma situação de descaso e queda de visitantes. A ampla diversidade cultural e artesanal de seus vendedores não basta para retomar a antiga referência de lazer dos domingos paulistanos que um dia o local oferecia. “Agora está abandonada. Antes era cheia, não tinha espaço nem para você andar nem para expor sua arte”, lamenta Waldir Ribeiro, incerto do futuro da Feira da República.

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IDEIAS NUNCA CONCRETIZADAS Em meio a inúmeros projetos de revitalização, o Centro de São Paulo arrasta problemas que perduram há décadas

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POR ISABELLA JUVENTINO

programa mais recente de revitalização do Centro de São Paulo foi anunciado no final de 2018 pelo prefeito Bruno Covas (PSDB). Conforme informa a Prefeitura da cidade, a iniciativa, batizada de o Triângulo SP e criada pela Secretaria Municipal de Turismo, visa “qualificar o espaço público, configurando-o como um produto turístico internacional, aumentando a circulação de pessoas e a demanda por comércios e serviços, principalmente à noite e durante os fins de semana, incrementando as rotas e atrativos turísticos, em um ambiente convidativo e seguro para a população”. A partir de um repasse de 30 milhões de reais do governo, o projeto é a nova promessa para o Centro. A ideia de revitalizar a região, todavia, não é nova. Quando Caetano Veloso eternizou o sedutor

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cruzamento da Avenida Ipiranga com a São João, no final da década de 1970, planos para o Centro da capital paulista já eram pensados. Um dos projetos mais ambiciosos daquela época foi proposto pela gestão de Jânio Quadros, em meados dos anos 1980, para reurbanizar bairros da região. A metrópole, segundo ele, seria remodelada pelo ilustre arquiteto Oscar Niemeyer. O plano, contudo, nunca saiu do papel. Com o decorrer do tempo, o poder público fez outras tentativas. Em 1995, na presidência da República de Fernando Henrique Cardoso, o Programa Monumenta foi criado. Com uma proposta federal ousada de recuperar e preservar o patrimônio histórico de 26 cidades brasileiras, a capital paulista teve a região da Luz revitalizada com recursos da iniciativa. Encerrado em 2010, no final do mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, foram investidos no total 149 milhões de reais no País.


O então coordenador do Monumenta, Pedro Taddei, em entrevista à Folha de S. Paulo em 1999, afirmou que o objetivo do programa era conferir sustentabilidade às regiões, para que não fosse necessário restaurá-las depois. A previsão de Taddei, no entanto, não foi concretizada. O Centro de São Paulo, apesar de receber investimentos tanto do Monumenta quanto da iniciativa privada no período, seguiu sua espiral de degradação que trouxe à região problemas como a Cracolândia, ao lado da região da Luz, justamente a que recebeu recursos para a construção de iniciativas como a Sala São Paulo de música erudita. Para Carolina Bortolozzo, mestre em Urbanismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, o Centro tem uma ocupação nem sempre integral. “Durante o dia é muito movimentado, mas à noite é um local subutilizado”, explica. Para Bortolozzo, é difícil acompanhar as propostas da região. “Parece uma dança das cadeiras e, no fim, ninguém cuida de nada”. Sobre o mais recente projeto anunciado, Americo Sampaio, sociólogo coordenador da Rede Nossa São Paulo (RNSP) – associação civil que visa pressionar o poder público com ações inclusivas – comenta que “o Triângulo SP é um projeto fraco e furado, que na prática vai botar mais viaturas da GCM na rua, pavimentar calçada, abrir o Martinelli e pronto”. Segundo Sampaio, a transformação do Centro não está sob comando do poder público, mas da própria dinâmica da cidade. Ele cita o aumento da especulação imobiliária e o perfil demográfico como motivos que modificam a região.

“A gente tem visto uma transformação com uma população mais jovem, de classe média e alternativa [indo morar ali], e o setor imobiliário lançando mais imóveis para um público específico”, afirma o sociólogo. O Triângulo SP, que compreende as ruas Benjamin Constant, Boa Vista e Líbero Badaró, pode beneficiar essas pessoas com ações para impulsionar a vida noturna, aumentar a segurança, recuperar o Vale do Anhangabaú e conceder o terraço do Edifício Martinelli, um dos cartões-postais mais famosos da cidade, para a exploração comercial da iniciativa privada, conforme anunciado em março de 2019. Apesar de iniciativas como o Triângulo, o número de pessoas em situação de rua não para de aumentar na capital paulista. Segundo dados da Prefeitura de 2017, há entre 20 mil a 25 mil pessoas vivendo nas vias públicas paulistanas. Para Sampaio, é necessário focar também nesse público. “Para requalificar o Centro não tem varinha mágica, você precisa dar casa para as pessoas”, diz. ESQUINAS questionou o secretário municipal de turismo, Orlando Faria, sobre os fatores que diferenciam o Triângulo SP dos demais e qual público visa atingir, considerando a taxa de pessoas em situação de rua na região. No entanto, não obteve respostas até o fechamento desta reportagem. Em meio a anúncios e incertezas e projetos que mudam conforme o governo da ocasião, o Centro segue pulsando. A capital paulista vê circular as mais diversas pessoas e demandas por suas artérias, e a necessidade de revitalização segue constante.

LUANA JIMENEZ


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GABRIEL ASSIS

SEGUNDA CASA ATÉ QUANDO? Cartão-postal paulistano, o Estádio do Pacaembu vive dias de incerteza enquanto assiste à sua privatização

O

POR GABRIEL ASSIS, GABRIEL HERBELHA E PEDRO MOURA

s dizeres do locutor oficial do Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho, Edson Sorriso, podem não ser mais ouvidos. “O seu, o meu, o nosso Pacaembu”. A Prefeitura de São Paulo negou realizar obras no sistema de iluminação do estádio para atender o determinado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), o que impede que jogos do Campeonato Brasileiro aconteçam ali neste ano – com exceção do período que o Morumbi e a Arena Corinthians ficaram ocupados pela Copa América. A justificativa veio em nota da Secretaria de Esportes e Lazer. “O investimento da troca demandaria um gasto que aumentaria o valor comercial da proposta e implicaria no cancelamento do processo [de concessão]”, afirma.

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esquinas

Atualmente, o Complexo Pacaembu – soma das áreas do estádio, do clube social e do Museu do Futebol – passa por um momento de indefinição. O Consórcio Patrimônio SP conquistou no início de fevereiro de 2019 a administração do estádio pelos próximos 35 anos por 111 milhões de reais. Questionada se o preço da concessão não foi baixo, tendo em vista a duração do contrato (cerca de 262 mil reais por mês de gerência), a Secretaria Municipal de Desestatização e Parcerias ressalta que o montante foi muito acima dos 37 milhões estabelecidos pela Prefeitura como mínimo. O prefeito de São Paulo, Bruno Covas, prevê arrecadar para a cidade quase seis vezes o valor da cessão, visto que a modernização tende a aumentar a receita do estádio.

O lugar foi tombado em 1998 por seu estilo de arquitetura geometrizado, característica do art déco


Entretanto, a possibilidade de demolição do Tobogã – setor do estádio com valor mais acessível atrás do gol contrário à entrada principal – e a limitação de horas de uso semanais para os sócios do clube são preocupações diante da privatização. Por outro lado, a Secretaria Desestatização e Parcerias amenizou tais preocupações. “A Prefeitura está ciente das normas [de áreas de tombamento] e as respeitará”, declarou em nota. Histórias não faltam para o estádio que já recebeu mais de três mil jogos de futebol e comporta quase 40 mil pessoas. Na estreia de Ronaldo Fenômeno no Pacaembu pelo Corinthians em 2009, por exemplo, o torcedor Lucas Strabko entrou em campo de mão dada com o jogador antes da partida. “Minha tática era única: ‘sou filho de fulano’. Dava certo”, relembra. “O Paca é a segunda casa dos quatro times de São Paulo. É como casa da vó”. O que resta é saber se esses torcedores viverão apenas do passado ou se o estádio continuará proporcionando novas alegrias. WERNER HABERKORN / ACERVO DO MUSEU PAULISTA DA USP

O processo de concessão foi liberado novamente no dia 29 de março de 2019, após uma desarticulação judicial. A Associação Viva Pacaembu dos moradores do bairro questionava oito pontos do edital de licitação que feriam as leis do município. “O estádio tem 79 anos e precisa de uma reforma, mas que seja cem por cento dentro da lei”, defende Rodrigo Mauro, presidente do grupo. A juíza responsável pelo caso, Maria Gabriella Spaolonzi, ressalta que os recursos arrecadados pela privatização devem ser destinados à conservação do estádio. “Não há qualquer limitação para que a Prefeitura não possa transferir o potencial construtivo ao vencedor da licitação”, contesta. O Pacaembu, construído a partir de 1936, pretendia ser uma praça multiuso que provaria a força do estado paulista, idealizada pela Prefeitura de São Paulo. Era o maior estádio da América Latina. “Durante a cerimônia de inauguração [em 1940], o time do São Paulo foi aplaudido por desfilar com o uniforme nas cores da bandeira estadual”, conta Plácido Berci, jornalista e diretor do documentário Pacaembu: o Gigante sem Dono (2012). O fato ocorreu três anos depois de o presidente Getúlio Vargas promover uma queima de bandeiras estaduais em praça pública e apoiar um discurso de adoração ao governo federal. Um Palestra Itália x Coritiba foi a primeira partida no Pacaembu, que terminou em vitória de 6 a 2 para o alviverde paulista. A partida valia a Taça Cidade São Paulo, realizada para inaugurar o estádio, e dada aos mesmos palestrinos. Com o título, o Palestra se tornou o primeiro – e mais tarde o maior, com 27 conquistas – campeão do Paulo Machado. Ainda uma criança de 10 anos, o “Paca” foi a sede paulistana na Copa do Mundo de 1950. Ao final daquela década, foi construída uma relação de amor entre o estádio mais querido da cidade e seu maior artilheiro. Pelé marcou 115 gols no Pacaembu e se despediu do Santos em uma vitória de 1 a 0 contra o Corinthians no Campeonato Paulista de 1974. Mesmo após a aposentadoria do Rei do Futebol, o Municipal continuou sendo palco de histórias, como a final do Brasileirão de 1994 entre Corinthians e Palmeiras e os títulos da Libertadores de Santos (2011) e Corinthians (2012), memoráveis entre os torcedores. Para Berci, um dos momentos-chave do estádio foi o show da banda de rock americana Pearl Jam em 2005 – o último realizado ali antes de a Viva Pacaembu conseguir a liminar que proibia a organização de shows no local. “Qualquer evento no Complexo não pode gerar distúrbios, assim como flanelinhas e uso de drogas”, explica Rodrigo Mauro.

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dos

siê

O FUTURO EM DECOMPOSIÇÃO O

Com o planeta em crise ambiental, Brasil tem urgência de repensar saídas sustentáveis

bserve sua rotina. Quanto de lixo você produz diariamente? A Organização das Nações Unidas (ONU) aponta que 99% do que compramos é jogado fora dentro de seis meses – e muito disso é plástico, que tem consequências graves para o meio ambiente. Da mesma maneira, equipamentos eletrônicos são descartados indiscriminadamente e seria necessária 70% de outra Terra para acomodar esse consumo, diz a ONU. Também é preciso pesar o prato nosso de cada dia frente a empresas alimentícias que ultraprocessam seus produtos. Nesse cenário complexo, ESQUINAS traz a seguir um dossiê para refletir sobre nossos padrões de vida e de consumo.

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PIXABAY


Um dos produtos mais revolucionários do século XX ameaça o futuro da humanidade POR LEONARDO GODOY E TIAGO TORTELLA

T

PIXABAY

DILEMAS DE UM MUNDO DE PLÁSTICO

odo o plástico já produzido pelo ser humano ainda está por aí. Isso porque essa substância demora cerca de 400 anos para se decompor, podendo variar de acordo com a sua espessura. Proveniente do petróleo, recurso natural não renovável, é um dos materiais mais utilizados no mundo atual, bastando olhar ao redor para perceber isso. Segundo relatório de 2018 publicado pela multinacional do setor de energia British Petroleum (BP), o petróleo se esgotará da face da Terra em 53 anos. Como a sociedade sobreviveria, portanto, sem matéria-prima para a produção de plástico e sem um descarte consciente deste? O plástico sintético surgiu em 1907 como alternativa para outros materiais. Desde então, é produzido

em grande escala e sua demanda só cresce. Em 2017, foram produzidas mais de 340 milhões de toneladas pelo planeta, de acordo com a federação europeia Plastics Europe. Só de garrafas plásticas, um milhão foi compradas por minuto no mesmo ano. A brusca transição entre o abandono de outras matérias-primas para a incorporação do polímero – material à base de petróleo de onde se origina o plástico – foi mal pensada e executada. Não se planejou o que fazer com seu descarte. Segundo um relatório publicado em março deste ano pela ONG World Wide Fund for Nature (WWF), o Brasil é o quarto país que mais gera lixo plástico no mundo. São cerca de 11,3 milhões de toneladas ao ano, o correspondente a cerca de um quilo por semana para cada brasileiro. Pior: apenas

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1,28% desse montante – aproximadamente 145 mil toneladas de plástico – é de fato reciclado. Metade dos itens plásticos produzidos no mundo tem vida útil de menos de três anos. Desses, 40% são de uso único, como mostra o estudo da WWF. A má qualidade do produto também faz com que 60% do que é coletado não seja incinerado. “Talvez o caminho seja o inverso, que o material seja de melhor qualidade, pois será mais facilmente reciclado. Sacolinha plástica é praticamente impossível de se reciclar. A ideia é trabalhar com o design das embalagens para que sejam melhor reutilizadas”, comenta Caio Salles, criador do Projeto Verde Mar, instituição voltada para a educação ambiental e conscientização sobre o lixo marinho. Segundo o relatório da PlasticsEurope, mais de 8,4 milhões de toneladas de embalagens plásticas foram coletadas para reciclagem em 2016. O problema é o quanto desse montante está apto para o reuso, visto que, quando descartado irregularmente e sem planejamento, esse material é contaminado e não pode ser transformado em um produto secundário devido a normas de saúde e segurança. Outro fator que fomenta a criação de mais “plástico virgem” em vez da compra de produtos secundários é a queda no valor do petróleo. O preço da reciclagem em grande escala ainda não é vantajoso. A WWF calcula um custo operacional de cerca de 924 euros (pouco mais de 4.025 reais, segundo cotação de junho de 2019) por tonelada métrica. O retorno com o produto é de apenas 540 euros (2.352 reais) por tonelada métrica. O preço também é alto porque a coleta seletiva é um processo muito custoso. Nela se deve evitar o

PXHERE

NÃO HÁ UMA SOLUÇÃO SIMPLES PARA UM PROBLEMA TÃO COMPLEXO EDUARDO DE CASTRO, SECRETÁRIO DO MEIO AMBIENTE DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO

contato com substâncias tóxicas. O relatório da WWF aponta que 75% de todo o plástico produzido no mundo desde sua invenção já virou lixo. Anualmente, dez milhões de toneladas do polímero vão parar no oceano, o que agrava, entre outros problemas, a contaminação dos mares por microplástico, conforme se pode ler na próxima reportagem. “Vivemos em uma sociedade de muita desorganização. Qualquer falha na cadeia faz o material ir para o mar”, explica Alexander Turra, professor do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP). Para ele, é necessário investir na economia circular, na qual um produto é coletado, reutilizado e transformado em algo novo. O pesquisador explica ainda que um desestímulo para a reciclagem é a dupla taxação: a primeira quando o objeto é criado e a segunda ao ser revendido. Isso mostra a necessidade de uma legislação que incentive a reciclagem embasada cientificamente. Gás

Nafta

Produz polímeros, como o polietileno das garrafas de refrigerante

Gasolina Querosene Petróleo

Por sua fácil moldagem e baixo custo, o plástico sintético surgiu em 1907 como alternativa para o uso de materiais como marfim, obtido com a caça de elefantes e rinocerontes 20

esquinas

Óleo diesel Óleo lubrificante Óleo combustível

Destilação fracionada

Asfalto

Pelo processo de aquecimento e resfriamento do petróleo, as moléculas mais densas são separadas das mais leves, obtendo-se subprodutos, dentre eles a nafta, matériaprima do plástico


Global 2000 da revista Forbes –, anunciou a criação de um centro de pesquisa para redução de danos. O Nestlé Institute of Packaging Sciences pretende fazer com que todos os produtos da marca sejam feitos de materiais recicláveis ou reutilizáveis até 2025. No Brasil, o Nescau Prontinho já é vendido sem canudinhos plásticos desde fevereiro deste ano. OS GOVERNOS TAMBÉM SÃO FUNDAMENTAIS no com-

Os tipos mais comuns de plástico encontrados nos oceanos são polietileno (PE), polipropileno (PP), policloreto de vinila (PVC) e politereftalato de etileno (PET)

Países ricos produzem dez vezes mais resíduos que países de baixa renda, porém ainda não reciclam o suficiente em relação ao que geram. Os Estados Unidos, por exemplo, é o país que mais produz lixo plástico, mas só recicla 37% de tudo que fabrica. A WWF determina que esse índice chegue em 60% no mínimo para que o processo de reciclagem tenha impactos ambientais minimamente satisfatórios. ESTIMA-SE QUE ATÉ 2030 a poluição plástica dobre

no planeta. Só nos oceanos, esse número corresponderá a 300 milhões de toneladas métricas. Milhares de animais silvestres morrem todos os dias pelas complicações causadas pelo contato ou ingestão com o lixo. Ainda segundo a WWF, mais de 270 espécies de mamíferos, répteis, aves e peixes sofrem com o enredamento, presas em redes plásticas. Ao mesmo tempo, mais de 240 espécies foram encontradas com o polímero no estômago. Confundido com comida, o material pode causar úlceras, enforcamento e bloquear o trato digestivo, matando vários tipos de animais de fome. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), a poluição por plástico gera mais de oito bilhões de dólares de prejuízo à economia global. Os setores mais afetados são o pesqueiro, comércio marítimo e turismo. Paraísos naturais como Fernando de Noronha cogitam proibir a entrada de plásticos descartáveis. O arquipélago não possui um sistema de coleta seletiva. Principais responsáveis pela distribuição de plástico no mundo pelas embalagens de seus produtos, grandes empresas do ramo alimentício se sentiram na obrigação de diminuir os impactos do polímero. Em dezembro de 2018, a Nestlé – uma das maiores processadoras de alimentos do mundo, segundo ranking

bate à poluição. Tanto a União Europeia quanto as cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo proibiram canudos plásticos. Entretanto, os países desenvolvidos exportam cerca de 25% desse tipo de lixo para os pobres. A fim de evitar que o material chegue aos que não têm sistemas de coleta e reciclagem desenvolvidos, foi firmada em março de 2019 a Convenção da Basileia. Nela, fica acordado que os 187 países signatários não podem receber lixo plástico sem consentimento de seus governos. Antes, países em desenvolvimento recebiam, via empresas privadas, lixo plástico de menor qualidade indiscriminadamente. O Brasil foi um dos que não aceitaram a resolução. “Essa é uma decisão do governo brasileiro que contrapõe os princípios baseados na lógica e na ciência”, afirma Alexander Turra, do IO. Uma tentativa de resolução federal é a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), instituída pela lei federal 12.305, de 2010, que tenta reduzir a geração de resíduos. Caio Salles, do Projeto Verde Mar, e Turra concordam que a poluição é um dos principais problemas enfrentados pela humanidade atualmente. “É necessário repensar o nosso modelo de sociedade, repensar os nossos padrões de consumo. Nada é sustentável da maneira como consumimos, como produzimos resíduos”, afirma Salles. Em São Paulo, por exemplo, o governo estadual atribuiu à Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente (Sima) a aplicação dessa política federal. Marcos Penido, responsável pelo órgão, informou algumas diretrizes a serem seguidas. “[Vamos] apoiar medidas para adequar as instalações irregulares de disposição final de resíduos sólidos; incentivar a pesquisa e desenvolvimento, de novas tecnologias para o tratamento e destinação final dos resíduos sólidos; apoiar a melhoria das atividades de coleta seletiva, reuso e reciclagem dos resíduos sólidos e fomentar a transição para uma economia circular”, explica à reportagem de ESQUINAS. UMA SOLUÇÃO POSSÍVEL PARA O PROBLEMA é a im-

plementação do plástico biodegradável, que se de-

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País

Total de lixo plástico gerado*

Total incinerado*

Total reciclado*

Relação produção e reciclagem

EUA

70,78

9,06

24,49

34,60%

CHINA

54,74

11,98

12

21,92%

ÍNDIA

19,31

14,54

1,10

5,73%

BRASIL

11,35

0

0,14

1,28%

INDONÉSIA

9,88

0

0,36

3,66%

RÚSSIA

8,94

0

0,32

3,58%

Fonte: WWF/Banco Mundial

grada em gás carbônico e água na natureza. Caio Salles alerta que ainda é necessária mais pesquisa acerca do polímero. “Plástico biodegradável na maior parte dos casos é uma enganação”, critica. “Se for um oxibiodegradável, o nome mais correto seria biofragmentável. O que acontece é que ele se fragmenta mais facilmente, mas o plástico ainda está lá, o polímero ainda está lá, vira microplástico mais rápido. Para ser biodegradável, ele precisa ser cem por cento orgânico”. Já há pesquisas quanto à utilização da fécula da mandioca e de alimentos que possuem amido em sua composição, como milho. Em outubro de 2018, a estudante de 16 anos Maria Pennachin desenvolveu um canudo à base de inhame que é biodegradável e comestível. A aluna do Colégio Estadual Culto à Ciência, em Campinas, expõe a descoberta em uma feira de ciências em Abu Dhabi em setembro deste ano. Ao ser questionado sobre um possível fim do uso de plásticos da maneira como é feito atualmente, o secretário do Meio Ambiente do município de São Paulo, Eduardo de Castro, afirma que houve vantagens com a adoção do plástico. “Ele trouxe muitos benefícios, por exemplo em higiene nos serviços de saúde. Mas seu descarte como resíduo não aproveitado, precisa de medidas que impeçam a poluição que causam”, observa. Ele ainda reconhece que, apesar de enxergar os problemas do plástico e seu descarte, o ideal não seria deixar de usá-lo por completo. Isso traria de volta rejeitos inutilizados da indústria do petróleo. “Podemos voltar ao tempo do vidro, como usado antigamente para o leite, para o caso dos vasilhames que podem ser retornáveis. Também podemos evitar 22

esquinas

*Quantidades em milhões de toneladas

a aquisição de materiais com excesso de embalagem, optar por alimentos vendidos a granel [sem a embalagem] e, quando necessário, substituí-lo por versões feitas em outros materiais”, propõe o secretário. Miguel Bahiense, diretor da Plastivida, ONG paulistana especializada em pesquisas para a educação ambiental, cita o caso dos copos únicos, em escritórios, estádios de futebol e shows, mesmo que feitos de plástico. “Quando você pega um copo de vidro, cerâmica ou mesmo de plástico reutilizável, no momento da lavagem, é gasto mais água do que a capacidade daquele copo tem de te servir”, ressalta. Um estudo realizado pela ONG mostra que, para lavar um copo reutilizável de 200 mililitros, gasta-se 1.700 mililitros de água. “É difícil ter essa relação de consumir um volume ‘X’ de água sendo que se gasta muito mais para lavar aquele produto, é um cuidado que precisaríamos ter”. O plástico é uma das mais importantes invenções da humanidade. Revolucionou todas as indústrias e alterou o padrão de vida de toda a população. Porém, já passou da hora de repensar as relações de consumo com esse material. O que foi criado para ser uma alternativa se tornou também um problema a partir do momento que passou a ser utilizado indiscriminadamente e em grandes escalas. “Não há uma solução simples para um problema tão complexo, já que muitas variáveis precisam ser contempladas. Cada tipo de utilização de plástico implica um diferente tipo de solução”, diz Castro. Em sustentabilidade ambiental, muito se fala dos “três erres” – reduzir, reutilizar e reciclar –, mas os métodos para enfrentar a problemática do plástico estão longe da efetividade necessária.


PROBLEMA INVISÍVEL Efeitos nocivos do microplástico ainda não estão suficientemente esclarecidos POR LEONARDO GODOY E TIAGO TORTELLA

M

A sociedade está cada vez mais imersa na plasticultura, sendo o plástico utilizado em praticamente todos os setores da sociedade. “O que falta é um trabalho de conscientização do povo por parte de políticos e empresas”, afirma João Ortiz, proprietário da Aditive Plásticos, empresa que atua nesse mercado há cerca de 20 anos. Para ele, ao futuro está destinado o plástico biodegradável, que utiliza microrganismos para decompor o material em um determinado período de tempo. Em junho de 2018, um estudo feito por cientistas das universidades da Califórnia e Georgia junto à Sea Education Association e publicado na revista Science mostrou que apenas 9% de todo o lixo plástico no mundo é reciclado. “A reciclagem no Brasil, infelizmente, não é muito incentivada. Deveria ser estimula-

PXHERE

ais de dez milhões de toneladas de plástico são lançadas no oceano por ano. Esse número expressivo, publicado em um estudo da ONG World Wide Fund for Nature (WWF) de março de 2019, é o equivalente ao peso de 569.250 ônibus descartados nos mares. Seguindo esse ritmo, espera-se que até 2050 haja mais peso de plástico na água do que de criaturas marinhas. Esse material pode demorar cerca de 400 anos para se decompor, o que significa que o resíduo da garrafa que você esqueceu no parque ainda pode estar lá em 2419. Durante a decomposição desse plástico, são liberadas pequenas partículas nocivas ao ambiente, com menos de cinco milímetros de comprimento, que recebem o nome de microplásticos.

As partículas soltas pelo plástico podem ser encontradas na sua refeição, apontam especialistas

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da pelas empresas de reciclagem”, propõe Ortiz. Para agravar a situação, de tudo o que é produzido com o material, 40% é de uso único, ou seja, a embalagem daquele lanche natural, dos frios do supermercado, a proteção do livro que nunca mais será reutilizada. Segundo João Almeida, da World Animal Protection – organização internacional fundada em 1950 e que atua no Brasil pela proteção da fauna marinha há 30 anos –, outro problema além da falta de reciclagem é a existência de redes fantasmas nos mares, abandonadas por pescadores ilegais. “Em torno de 10% do lixo plástico que entra nos mares todos os anos é apetrecho de pesca fantasma”, afirma Almeida. O microplástico está intimamente ligado aos materiais de pesca perdidos nos oceanos, que, degradados, se transformam em microplástico e são um risco para animais marinhos e a própria atividade pesqueira. A lavagem de roupas de poliéster também libera as partículas, que não são barradas pelos filtros das máquinas de lavar. Como mostra a dissertação de Flavia Cesa, mestra em Ciência Ambiental pelo Programa Têxtil e Moda da Universidade de São Paulo (USP), estima-se que cerca de 21,5 mil toneladas de fibras sintéticas sejam liberadas em efluentes de esgoto por ano no mundo. Animais menores, como os plânctons, confundem o lixo com comida. Eles não possuem enzimas para degradar o material, o que bloqueia seu trato digestivo e os leva à morte por inanição, segundo Daniel Rittschof, PhD pela Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, especialista do efeito de plástico no oceano. Quando outros animais se alimentam desses menores contaminados, ingerem o microplástico junto. Para piorar a situação, uma pesquisa feita pela Universidade de Medicina de Viena, divulgada na United European Gastroenterology Week Vienna em outubro de 2018, verificou a existência de microplásticos em fezes humanas. Essas micropartículas também podem absorver outros produtos tóxicos, como o mercúrio e pesticidas. “Seres vivos podem desenvolver problemas no fígado, rim, sistema nervoso e diminuição da taxa de reprodução”, comenta Rittschof, preocupado. “Quimicamente, muitas coisas ainda não estudadas podem acontecer”. De acordo com uma publicação do Greenpeace na revista científica Environmental Science & Technology, de outubro de 2018, foram testadas 39 amostras de sal de 21 países da África, América, Ásia e Europa. Apenas em Taiwan, China e França não foram encontrados microplásticos em sua compo24

esquinas

Costa contaminada Locais do mar brasileiro onde já foram encontradas partículas de microplástico

Fernando de Noronha PE

Abrolhos BA Baía de Guanabara RJ Praia de Paranapuã SP

Materiais que liberam microplástico

Copos de café

Mamadeiras de plástico

Pneus liberam 20g de microplástico a cada 100km rodados As camisetas de poliéster soltam cerca de 1.900 fibras com microplástico por lavagem

Recipientes plásticos para marmita

sição. No Brasil, a substância foi identificada em locais como São Vicente (SP), Baía de Guanabara (RJ), Abrolhos (BA) e Fernando de Noronha (PE). O descarte desmedido de plástico obriga que a sociedade adote soluções para amenizar seus impactos, como a criação de compostos biodegradáveis e investimentos em reciclagem, conforme relatado na reportagem inicial deste dossiê. Como afirma o dono da Aditive Plásticos, a humanidade virou dependente desse produto. “É impossível viver sem plástico no mundo de hoje”, declara. Se as atitudes em relação ao plástico não forem repensadas, a vida no planeta corre sérios riscos.

Fonte: Flavia Cesa


PXHERE / HENRIQUE ARTUNI

CONSUMO COM PEGADA ECOLÓGICA Mudanças nos padrões de produção e compra incentivam um discurso em prol do meio ambiente

S

POR CLARA ZUCATELI, MARIANA GALVÃO E NATÁLIA BASTOS

er sustentável é adequar o estilo de vida para que o consumo seja o mais próximo do zero sem degradar o meio ambiente. Não é sinônimo de consumo “verde”, focado em produtos diferenciados que visam o crescimento na área ambiental. Um dos grandes problemas no comércio é a busca do equilíbrio entre um desenvolvimento que acompanhe as necessidades sociais e a preservação ambiental. Embora o crescimento sustentável seja uma alternativa considerável para o setor industrial, há empresas que praticam greenwashing, um discurso meramente comercial que visa atrair os consumidores sensíveis à causa ambiental. Para Miguel Bortoletto, engenheiro ambiental da Universidade de São Paulo (USP), as pessoas se engajam em discursos de marketing sem refletirem sobre o assunto. “Precisamos repensar nossos comportamentos enquanto sociedade. Ainda estamos desenvolvendo as ditas práticas sustentáveis, o que é uma mudança difícil e que exige uma quebra de paradigmas”, afirma. Um dos termos que se popularizou dentro do debate ambiental foi o da “pegada ecológica”. “É uma metodologia de contabilidade ambiental que avalia a pressão do consumo das populações humanas sobre os recursos naturais”, explica o site da ONG World Wide Fund for Nature (WWF). Ela permite diferenciar padrões de consumo entre nações de acordo com a capacidade ecológica do planeta. Basicamente, diz se a quantidade de recursos naturais que o ser humano retira da natureza é equivalente ao que ela pode repor. Mas isso está longe de ser uma realidade. O ser humano consome mais do que precisa, passando a extrair mais do que o planeta consegue restituir. O atual cenário mundial reflete um padrão de consumo nada sustentável. De acordo com a organização norte-americana Global Footprint Network, em 1961, a biocapacidade do planeta era

de pouco mais de 9,5 bilhões de hectares globais, enquanto a pegada ecológica girava em torno da casa dos sete bilhões, o que garantia certa reserva ambiental. Cinquenta e cinco anos depois, em 2016, a capacidade biológica cresceu somente 2,5 bilhões de hectares globais e o consumo da população humana sobre os recursos naturais subiu 13,4 bilhões, extrapolando a quantidade que a Terra aguenta. Para o professor de Microeconomia do Meio Ambiente da Universidade Federal do ABC, Tiago Fonseca, uma mudança dos padrões de consumo não partirá somente das decisões dos consumidores. “Eles são tomadores de um padrão de consumo definido pelas corporações e veiculado pela grande mídia”, explica. “Daí a necessidade de impor limites ao impacto ambiental”. No Brasil, especialistas concordam que o consumo não é sustentável – nem do ponto de vista ecológico nem econômico. O problema brasileiro está na falta de informação e de iniciativa das empresas de fazer produtos com menor impacto ambiental. O professor de Economia da FEA-USP, José Afonso Mazzon, vê a questão em um espectro maior. “Temos índice de desemprego elevado, problemas na economia e altíssimo endividamento, o que prejudica a questão de sustentabilidade”, critica. Bortoletto, por sua vez, enxerga uma evolução e uma maior atenção a consequências socioambientais do mercado brasileiro. Apesar de algumas empresas se aproveitarem do discurso ambiental, “o movimento em prol de produtos sustentáveis é uma demonstração de que o discurso da preocupação ambiental passa a sair da forma e se transforma na prática da temática ecológica”. As mudanças de comportamento da população pressionam a indústria a rever seus hábitos de produção para obter produtos mais responsáveis com a natureza e um futuro mais promissor e verde.

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STATUS E

DESCASO TOTAL Crescimento gradativo do lixo eletrônico preocupa especialistas enquanto a sociedade ainda não se mobiliza de maneira efetiva para combatê-lo POR ISABELLE COLINA E PEDRO ZANATTA

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entre os tipos de lixo existentes em nossa sociedade, o eletrônico tem provocado bastante receio entre a comunidade científica. A Plataforma de Aceleração da Economia Circular (Pace) divulgou seu primeiro relatório em janeiro de 2019, no Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça. A Pace é um grupo que combina esforços das Nações Unidas, do Fórum Econômico Mundial e do Conselho Empresarial Mundial para o Desenvolvimento Sustentável. Ela calculou que o valor do e-lixo – nome utilizado para se referir ao lixo proveniente de smartphones, tablets, notebooks, carregadores – descartado no mundo até a divulgação do relatório ultrapassava 62,5 bilhões dólares, três vezes mais que a renda anual de todas as minas de prata do mundo e maior que o PIB da maioria dos países. “O e-lixo é o fluxo de resíduos que cresce mais rápido no mundo”, diz o relatório. Estima-se que esse fluxo atingiu 48,5 milhões de toneladas em 2018, o equivalente a 4.500 Torres Eiffel. Geralmente não-biodegradável, ele possui em seus componentes materiais tóxicos como chumbo, que podem acarretar em danos à saúde caso sejam reciclados ou desmontados da forma errada. Outro estudo que traz dados preocupantes para a questão dos smartphones é a 29ª Pesquisa Anual de Administração e Uso de Tecnologia da Informação nas Empresas, realizada pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). O relatório, divulgado em abril de 2019, apresenta um Brasil que atinge a marca de 230 milhões de celulares inteligentes em uso no país. Somados a eles, estão 324 milhões de note-

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books e tablets. Números impressionantes para um país cuja população nacional é de 209,8 milhões – 37,8% do total de equipamentos. Existem alternativas que dão novos rumos a esse tipo de lixo e tentam amenizar seus efeitos ambientais. Uma delas é a ONG Ecodigital, instalada na Vila Maria, zona norte de São Paulo. Com 14 anos de existência, a organização traça projetos que dão uma ressignificação para o lixo. Um deles é o Museu da Informática, localizado na própria ONG e criado a partir da coleta de computadores antigos, rádios, relógios digitais, câmeras fotográficas e telefones. A iniciativa tem enfrentado dificuldades, como relatou Edivan Jesus de Souza, responsável pelo atendimento ao cliente. Ele lamenta a falta de incentivo por parte do Estado na questão do lixo eletrônico. “Quem ISABELLE COLINA


ISABELLE COLINA

A ONG Ecodigital reutiliza peças de equipamentos eletrônicos descartados para restaurar e produzir novos aparelhos

nos procura [para realizar parcerias] são sempre as empresas privadas. Não existe nenhum tipo de verba vinda do Estado para ajudar nosso trabalho. Recentemente tivemos que suspender as atividades de nosso museu por falta de estrutura”, revela Souza. A assessoria da Secretaria do Meio Ambiente de São Paulo informa que a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) aprovou uma Decisão de Diretoria em abril de 2018, obrigando os fabricantes de produtos eletroeletrônicos de uso doméstico – como televisores, celulares e geladeiras – e de seus componentes a implementar um sistema de reutilização e reciclagem do lixo produzido, chamado de Plano de Logística Reversa. “Os resíduos coletados vão para tratamento e destinação ambientalmente adequada, preferencialmente a reciclagem”, escreve. Um dos critérios exigidos e avaliados nos planos de cada empresa são as campanhas de divulgação e orientação do consumidor sobre o descarte consciente dos produtos. “A Decisão de Diretoria da Cetesb trouxe diretrizes aos empreendimentos que não se adequarem ao sistema de logística reversa, que estarão sujeitos a sanções administrativas, no âmbito do licenciamento”, explica a assessoria. A engenheira ambiental Nadia Valério Vitti reitera a importância do trabalho que tem sido realizado por ONGs como a Ecodigital, mas reforça que não é somente delas o papel de arcar com esse ônus. “Já estamos em vias de mudança, mas ainda convivemos com perfis de consumidor, poder público e fabricante

que ficam esperando a solução partir do outro”, critica. Vitti afirma também a importância do trabalho conjunto entre as engenharias. “Elas têm papel essencial para o gerenciamento dos resíduos eletroeletrônicos, pois o caminho está em abordagens multidisciplinares”. É um problema que envolve, portanto, engenharia ambiental, eletrônica e mecatrônica. Ainda podemos ser esperançosos para o futuro mesmo com um presente incerto. A Pace da ONU representa uma preocupação e uma abordagem global para o problema. A população mundial também realiza protestos ao redor do planeta em defesa do meio ambiente. Um deles é o Fridays for Future (“Sextas pelo Futuro”, em tradução livre), movimento estudantil sueco iniciado em agosto de 2018, quando Greta Thunberg, à época com 16 anos, decidiu protestar toda sexta-feira em frente a sua escola com o intuito de defender o meio ambiente e alertar os governos sobre as mudanças climáticas. Em 24 de maio de 2019, 128 países – inclusive o Brasil – mobilizaram uma megamanifestação ao redor do globo pela causa ambiental. A contagem inicial do movimento apontou que 300 mil jovens aderiram à paralisação, número que mais tarde cresceu com mais manifestantes nas Américas. Outra greve mundial está programada para o dia 20 de setembro. O que não parecia algo tão sério 75 anos atrás, antes da invenção dos computadores e celulares, hoje é motivo de preocupação. Não se esperava que o futuro do meio ambiente estaria naquilo que hoje vive constantemente em nossas mãos.

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A NOVA ONDA

ALIMENTAR

Pratos mais saudáveis são o grande desafio do nosso tempo POR GABRIEL JORDÃO, LARISSA RANGEL E LAURA SLOBODEICOV RIBEIRO

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Especialistas apontam que as mudanças na indústria alimentícia provêm do maior acesso à informação, da busca por um corpo idealizado e de consumidores mais atentos a ingredientes in natura e pouco processados

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ipócrates, o pai da Medicina, já dizia na Grécia Antiga: “Que teu alimento seja teu remédio e que teu remédio seja teu alimento”. Problemas de saúde, como o crescimento da obesidade, tornam cada vez mais necessária a busca por uma alimentação mais saudável. Um levantamento feito em 2018 pela agência de consultoria Kantar Worldpanel apontou um crescimento de 27% no consumo de alimentos saudáveis (como verduras e hortaliças) nos lares brasileiros em relação ao ano anterior. Um outro dado, publicado em 2017 pela empresa de pesquisas britânica Euromotor International, revela um aumento de 12,3% no consumo de alimentos e bebidas saudáveis (como sucos naturais) em relação aos cinco anos anteriores.

De acordo com Marta Regina Spinace, técnica e professora de Nutrição e Dietética na Etec Benedito Storani em Jundiaí, interior de São Paulo, a globalização permitiu um acesso maior às informações nutricionais dos alimentos que consomem, como quantidade de calorias e métodos de produção. “Outro fator que influencia muito as pessoas a mudarem de comportamento é a aparência pessoal, a conquista de um corpo ideal”, complementa. Spinace trabalhava em uma Unidade de Alimentação e Nutrição (UAN) no Hospital Paulo Sacramento, também em Jundiaí, onde selecionava os alimentos para refeições balanceadas para seus clientes. “O trabalho de um nutricionista ali é o de cuidar da saúde dos trabalhadores, com o intuito de melhoria contínua


PEPSICO / DIVULGAÇÃO

da satisfação destes, o que se reflete em aumento de produtividade”, explica. “Comer, onde quer que estejamos, deve ser sempre um prazer”. Marcia Aparecida Chilio é diretora da consultoria paulista GS&Libbra, especializada na oferta de serviços de refeições para as pessoas comerem fora de casa (foodservice). “De um lado, há os que querem tudo o mais natural possível. De outro, há os que exigem que a indústria seja transparente e informe em detalhes a origem de seus produtos: de onde vem o frango? O animal é criado solto? Injetam ou não antibiótico?”, explica Chilio. Ela reforça que as grandes indústrias tendem a seguir esse caminho de produção pela questão de mercado – no caso, a procura cada vez maior por esse tipo de alimento. “Há os que querem comer menos açúcar, os que decidiram parar de beber leite de vaca para evitar intolerância à lactose, os que fogem do glúten, os que optaram por não comer nada de origem animal, os que seguem tudo isso ou parte disso só porque está na moda”, menciona. A diretora comenta que os consumidores, despertos e bem informados, buscam inovação, que “as mudanças precisam acontecer na velocidade em que o mundo vem se transformando”. As grandes corporações do ramo estão compromissadas com esses avanços. A Pepsico, maior empresa alimentícia do mundo, possui o projeto “Performance with Purpose” (performance com propósito), que consiste em uma série de ações no mundo inteiro de conscientização para um uso menor de açúcar, sais e gorduras em seus alimentos. Uma das ações de destaque é ter fechado 2017 com 43% do volume de seu portfólio de bebidas com 100 calorias ou menos de açúcares adicionadas por porção de 355 mililitros. No ano anterior, eram 40%. Por sua vez, a concorrente Coca-Cola publica anualmente relatórios de suas ações ecológicas. O de 2017, o último até o fechamento desta edição, mostrou que a empresa está diretamente envolvida na produção de 29,8% de suco natural no Brasil. UMA PESQUISA DO MINISTÉRIO DA SAÚDE mostra

que, de 2006 a 2016, a obesidade da população brasileira cresceu 60%. Ainda segundo o Ministério, o excesso de peso subiu de 42,6% para 53,8% no mesmo intervalo, ou seja, mais da metade dos brasileiros está acima do peso e se alimenta de forma prejudicial ao próprio corpo. Grande parte dessa responsabilidade vem da indústria alimentícia, mas um pensamento entranhado na vida dos brasileiros também tem culpa nisso.

Para o economista e agrônomo da Universidade de São Paulo José Eli da Veiga, autor do livro Desenvolvimento Sustentável: o Desafio do Século XXI (2005), a preocupação de alguns grupos sociais com alimentos saudáveis não será o suficiente para criar produtos baratos e nutritivos para regiões que sofrem mais com a fome. Existe, portanto, o desafio de alimentar populações carentes com uma comida que chegue rapidamente a eles sem a ajuda de aditivos e conservantes nocivos. José Antônio Costabeber, presidente da Associação Brasileira de Ecologia (ABE), e Francisco Roberto Caporal, professor na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), relataram no artigo de 2009 Segurança Alimentar e Agricultura Sustentável: uma Perspectiva Agroecológica que mais da metade das produções rurais brasileiras possuem resíduos de agrotóxicos – sendo que cerca de 20% ultrapassa os limites permitidos pela legislação brasileira. De acordo com Marta Spinace, a indústria e o comércio alimentício atual necessitam alterar o foco ou atribuir mais investimento à área, apostando mais nos “alimentos de verdade” – baseados em ingredientes in natura e minimamente processados. Ela acredita que é necessária a criação de políticas públicas com uma legislação correta que possa ser obedecida junto à regularização da propaganda de alimentos. Doutora pela PUC-SP e especializada em gastronomia, culinária e mídia, Helena Jacob acredita que um dos maiores problemas para a indústria alimentícia é a publicidade voltada ao público infantil, capaz de induzir crianças por meio de músicas, desenhos e personagens a comerem alimentos ultraprocessados desde cedo ou mesmo pelo oferecimento de brindes nas embalagens desses produtos. Ela também chama atenção ao fato de que não há cobrança correta de impostos sob os produtos brasileiros e que sua rotulagem não ilustra o verdadeiro conteúdo vendido. “Precisamos muito de políticas públicas”, enfatiza a pesquisadora. “Em alguns países, é adotada a sobretaxação de impostos. Na Inglaterra, por exemplo, os refrigerantes são mais caros, assim como os cigarros, no intuito de que o consumo seja desestimulado”. O grande desafio para a indústria alimentícia nos próximos anos consistirá em atender essa demanda do público imerso em uma sociedade mais atenta ao que come. Ao mesmo tempo, deve buscar alternativas para que o prato da população brasileira seja menos processado, produzido sem agrotóxicos e com menor emissão de poluentes. Os números estão aí para mostrar que o desafio tem que ser aceito se o que a sociedade deseja é um futuro mais verde.

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CASA, COMIDA E PESQUISA Zoológico de São Paulo trabalha com foco na preservação da fauna brasileira e protege animais como Laura, a tamanduá POR PEDRO GARCIA 30

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CARLOS NADER / ZOOLÓGICO DE SÃO PAULO

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ueimadas, perda do habitat e atropelamentos põem tamanduás-bandeiras em risco de extinção. Todos esses motivos levaram Laura a se separar de sua mãe logo cedo, mesmo sendo um animal que precisa do auxílio materno para se locomover e se alimentar durante os primeiros meses de vida. Foi encontrada em 2011 na cidade de Salto, interior de São Paulo, e rapidamente levada para o Zoológico de São Paulo, onde chegou com dois meses de vida e recebeu o nome de batismo. Ali recebeu todos os cuidados necessários: amamentação de madrugada com uma fórmula especial pensada para ela, passou para os alimentos sólidos e foi socializada com Lica, outra tamanduá de mesma espécie e idade nascida no próprio zoológico, e com Julie, uma veado-catingueiro já idosa. As três vivem no mesmo recinto e a rotina de Laura se resume a acordar cedo para dar uma voltinha enquanto a tratadora arruma o espaço. Depois vai dormir novamente, às vezes no sol para ajustar a temperatura corporal. Acorda no fim da tarde para se alimentar e curtir o crepúsculo farejando, arranhando troncos e fazendo outras peripécias comuns a um tamanduá. A bióloga responsável pelos mamíferos no Zoológico de São Paulo, Amanda Alves de Moraes, explica que a maior dificuldade da instituição com os tamanduás é a alimentação. São animais seletivos e cada um prefere sua papa de um jeito – feita de extrato de soja, água, ração de gato, carne de frango, ovo, alguns legumes, fibra e outros complementos. A beterraba é o que dá a cor rosa para a comida. Uma vez por semana, o cardápio inclui um cupinzeiro. O caso do “salvamento” de Laura, a tamanduá, é um exemplo de atividade do zoológico para além da visitação. Algumas pessoas ainda veem o local como

um ambiente que aprisiona e entretém com animais, mas a equipe dali trabalha em outras frentes além do lazer. Mara Marques, bióloga da instituição, explica que o foco da entidade é a preservação ambiental. Esse trabalho é dado pela pesquisa, políticas públicas, educação ambiental e reprodução de espécies. “Nossa exposição não é o meio, mas o fim para onde se quer chegar”, explica Marques. A bióloga ressalta que toda a verba do local vem das visitações, que passaram de um total de 1,3 milhão em 2017. “O visitante que vem aqui está diretamente envolvido em um programa de conservação [da fauna brasileira]”. Laura é um exemplo desse trabalho, que não para por aí: o local é o único do Brasil que reproduz a arara-azul-de-lear, uma das mais raras espécies da ave, e está pronto para reintroduzir jacutingas na natureza, pássaro ameaçado de extinção desde 2010. Marques também pontua que na exibição, por mais que o animal não tenha a liberdade e o espaço da natureza, há o programa de enriquecimento ambiental para que os sentidos do animal sejam estimulados e ele se mantenha saudável de todas as formas possíveis. No caso de Laura, isso é feito com o estímulo olfativo, vegetações para ela se esconder, locais para caçar a comida e os já mencionados troncos para arranhar as garras. A discussão de zoológicos é ampla e envolve do bem-estar animal à preservação ambiental. Laura pode dar uma dimensão de como esses espaços ajudam a fauna e que o animal, mesmo em exibição, pode ter uma boa qualidade de vida. Marques ressalta que nem todos os zoológicos cumprem esse papel e que alguns deles têm que ser fechados por isso. “Nenhum de nós gostaria de ter zoológico, mas a partir do momento que os animais não tem para onde ir, ele pode ser uma alternativa de conservação”, conclui a bióloga.

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EM CRISE COM O SUCESSO

REPRODUÇÃO

Vencedora de quatro “Oscars” das HQs, Bianca Pinheiro discute os desafios de sua profissão POR BRUNO GALVÃO E VICTOR BIANCONI

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carioca Bianca Pinheiro era uma fã de histórias em quadrinhos como tantas outras crianças. Devorava as aventuras da Turma da Mônica de Mauricio de Sousa, desenhava suas próprias histórias e abraçou novos gêneros ao crescer. “Mais velha, eu entrei no mundo dos mangás. Super-herói nunca me chamou a atenção”, conta. A paixão por HQs nunca foi deixada de lado. Decidiu trabalhar com isso: entrou em Artes Gráficas na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, e a família, vendo seu amor pela arte, apoiou a decisão. “Minha mãe me ajudou. Ela que disse qual curso combinava comigo”. Mas hoje Pinheiro já não tem mais tanta certeza sobre seus rumos nesse meio. Antes mesmo de publicar suas obras independentes, a autora pensava que seria desenhista da Mauricio de Sousa Produções (MSP). Talvez por ironia do destino, chegou lá e agora trabalha com a Turma da Mônica. Mas sente que falta algo. A epifania da descoberta de obras independentes veio com a leitura de Retalhos, de Craig Thompson, e Umbigo sem Fundo, de Dash Shaw. Foi seu ponto de virada. Ali viu que quadrinhos 32

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não se restringiam às crianças. Em 2012, Pinheiro surgia como um símbolo da nova geração de quadrinistas brasileiros, ao lado de Vitor e Lucianna Caffagi, Felipe Massafera, Danilo Beyruth, entre outros. É raro o público comum conhecer quadrinistas brasileiros além dos já estabelecidos Mauricio de Sousa e Ziraldo ou, no caso das tiras de jornal, Laerte, Angeli e Glauco. Esse foi o desafio de uma autora completamente desconhecida: ganhar notoriedade. Já na primeira obra, Bear, uma webcomic (quadrinho publicado exclusivamente no meio digital), o traço delicado e a história cativante de uma garotinha e seu urso chamaram a atenção do público. Inclusive, de um editor da MSP, Sidney Gusman, responsável por catapultar novos quadrinistas brasileiros para o mercado editorial com os projetos MSP 50 e Graphic MSP. Comovido pela arte de Bianca Pinheiro, convidou-a para fazer uma ilustração para o álbum de 50 anos da personagem Mônica em 2013.

Desde 2013, a quadrinista trabalha na Mauricio de Sousa Produções


pensar em largar justamente aquilo que ama. Carinho do público e prêmios conquistados não bastam para a felicidade da quadrinista. “Eu sou uma pessoa solitária, muito reservada, acho. Bichinho de ficar em casa. Eu, meu marido e nossos gatos. E eu gosto disso”, explica-se. Relata que ama desenhar suas obras, mas odeia na mesma medida vendê-las. “Ficar dez horas em um evento tentando vender [seus trabalhos] me massacra”, enfatiza. Não é para menos: o país passa por uma crise editorial com o fechamento de livrarias e gráficas e dívidas cada vez mais irreversíveis. O pedido de recuperação judicial da Editora Abril, em agosto de 2018, e também os das livrarias Cultura e Saraiva, em outubro e novembro do mesmo ano, respectivamente, são exemplos de um efeito dominó no mercado de livros e quadrinhos. “Trabalhar com editora, tirando a MSP, e ganhar 10% do valor do preço de capa de um gibi... Talvez não valha a pena ficar insistindo nos quadrinhos. Estátua de gesso não põe comida na mesa”, desabafa a quadrinista. Uma constatação que tem afetado ela e boa parte dos profissionais de HQ na atualidade, infelizmente.

REPRODUÇÃO

Um ano depois, um novo trabalho, agora com o thriller Dora. “A Bianca tem algo que adoro. Ela se desafia e sabe contar histórias”, elogia Gusman. Transitando entre tramas de terror, para o público infantil e surrealismo, a fã de mangás publicou nove obras até 2019. Seus trabalhos renderam quatro prêmios HQMix – o Oscar brasileiro dos quadrinhos – nas categorias Novo Talento, em 2015, Melhor Publicação Infanto-Juvenil, em 2017, e Melhor Publicação Independente e Melhor Publicação Independente Edição Única, ambas em 2018. Nesse meio tempo, voltou às origens, criando duas Graphic MSP justamente com a personagem Mônica. “Além de transitar muito bem entre as cores, os desenhos e os gêneros em suas publicações, adoro como a Bianca é carismática e solícita”, comenta Daniela Utescher, dona e co-fundadora da Ugra Press, editora e expositora paulistana de talentos das HQs nacionais. Poucos artistas conquistaram fama e prestígio em uma escala de tempo tão curta. “Ela tem potencial para outras mídias, não só para os quadrinhos”, enfatiza Gusman. O curioso, entretanto, é Pinheiro

Além de seu trabalho com a personagem Mônica, Bianca tem uma vasta produção autoral

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VITOR CORREIA

A FAVOR DE MEDIDAS PEDAGÓGICAS Defensora pública do Núcleo de Infância e Juventude do Estado de São Paulo, Ana Carolina Schwan acredita que a redução da maioridade penal não trará benefícios ao País POR CAROLINA GRASSMANN E VITOR CORREIA

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o dia 13 de março, o Brasil estremeceu ao acompanhar o massacre na cidade de Suzano, no Estado de São Paulo. Dois adolescentes de 17 anos e um adulto de 25 estiveram envolvidos no atentado que deixou sete mortos na Escola Estadual Raul Brasil. Após a tragédia em Suzano, a redução da maioridade penal voltou a ser discutida pela sociedade e é uma das principais propostas defendidas pelo presidente Jair Bolsonaro. Pela lei, o jovem entre 12 e 18 anos que cometer um crime é detido em Unidades de Internação Provisórias. Entretanto, Propostas de Emenda à Constituição como a PEC 171/93, que visa reduzir a idade de prisão em casos de crime graves, ganham adeptos na política e dividem opiniões. Na entrevista a seguir, Ana Carolina Schwan, que coordenou o atendimento e o acolhimento psicológico das vítimas de Suzano, explica a ESQUINAS quais impactos a redução da maioridade penal pode gerar.

As propostas socioeducativas dependem do regimento de cada estado e têm como objetivo a reinserção do jovem na sociedade

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_Há anos se discute a redução da maioridade penal, porém esse tópico voltou ao debate. O atual presidente da República, Jair Bolsonaro, defende uma diminuição progressiva da idade. Existe diferença de como esse assunto era tratado e como é discutido hoje? Não. A primeira Proposta de Emenda à Constituição sobre este tema é da década de 1990, mas o tema é colocado em segundo plano quando há outro assunto em pauta. Foi um assunto muito presente quando Jair Bolsonaro assumiu a presidência, mas com outros temas como a Reforma da Previdência, a redução da maioridade penal ficam um pouco esquecida. O assunto fica em evidência novamente quando acontece alguma tragédia, como a de Suzano, pois as pessoas procuram alguma medida imediata e punitiva. _Caso fosse aprovada a diminuição, quais seriam os impactos no sistema prisional? Atualmente, o sistema prisional brasileiro não tem capacidade para o número de presos que possui. Existem várias PECs que tratam sobre a redução da maioridade penal. A PEC 171/93 está mais avançada e prevê um terceiro estabelecimento, diferente das unidades de internação e diferente dos presídios. Ou seja, os adolescentes ficariam em uma unidade intermediária. Mas é preciso pensar na questão de gastos públicos: quem vai construir essas unidades? Portanto, caso aprovada a redução da maioridade penal, não sabemos como ela será efetivada. _E a possibilidade de reinserção dos jovens infratores de volta à sociedade? O adolescente que cumpriu medida socioeducativa [em unidades de internação] tem muito mais chance de reinserção na sociedade do que o adulto que cumpriu pena no sistema prisional. As medidas socioeducativas utilizadas hoje em dia, além de terem o objetivo de punir por um ato praticado, também têm como principal finalidade um fim pedagógico. Nas unidades de São Paulo, por

QUANDO OS JOVENS FOREM PARA O PRESÍDIO, TERÃO UMA PENA MUITO MAIOR

exemplo, o adolescente tem aula no Ensino Regular de manhã e durante a tarde participa de cursos profissionalizantes. Além disso, ele e sua família têm acompanhamento de uma equipe de psicólogos e assistentes sociais. A chance dessa medida ter uma finalidade pedagógica é muito maior do que no sistema prisional. _Sessenta e quatro por cento dos presos são negros e 51% possuem Ensino Fundamental incompleto, segundo dados de 2018 do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). A aprovação da redução da maioridade penal acentuaria a desigualdade social no Brasil? Sim, quando os jovens forem para o presídio, terão uma pena muito maior. Muitos deles contribuem com a renda familiar, podendo aumentar a desigualdade pois as famílias perderão a ajuda com a renda mensal. Além disso, a família fica mais estigmatizada. Os irmãos, por exemplo, terão dificuldade para conseguir emprego. _Muito se discute que a diminuição da maioridade penal irá diminuir os índices de violência. Como esse tema é tratado lá fora? Países como a Alemanha e Espanha que reduziram a maioridade penal tiveram efeitos negativos [no índice de violência] e voltaram atrás com a decisão. Mundialmente a média da idade criminal é de 18 anos. Inclusive, a média de responsabilidade juvenil, ou seja, quando o jovem pode ser julgado pela Justiça Juvenil, está abaixo, é de 14 anos, enquanto no Brasil é 12 anos. Isso significa que um adolescente pode começar a responder pelo ato cometido a partir dessa idade.

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reportagem MARIA ANTÔNIA ANACLETO

AVENIDA ÁGUA BRANCA, DÉCADA DE 1920. ARQUIVO NACIONAL. FUNDO FOTOGRAFIAS AVULSAS

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MARIA ANTÔNIA ANACLETO


POR AMANDA PRADO, MARIA ANTÔNIA ANACLETO, PEDRO MARINELLI E YASMIN LUARA

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escritor Alcântara Machado vivenciou o crescimento dos bairros italianos da cidade de São Paulo e produziu, em 1927, o livro Brás, Bexiga e Barra Funda, relatando o dia a dia dos imigrantes que ali moravam. Inspirada pela obra, esta fotorreportagem penetra visualmente nos locais de maior fascínio do cronista. As legendas, por exemplo, são trechos escolhidos a dedo para ilustrar cada região. São Paulo cresceu e se desenvolveu pelas mãos dos imigrantes que chegaram na cidade a partir do século XIX. Fazendo da capital paulista sua nova pátria, os italianos foram um de tantos povos que ajudaram a construir a nação brasileira. Em busca de uma vida melhor, trouxeram seus costumes e cultura, deixando marcas profundas na cidade, como a comida típica das cantinas e a arquitetura que ainda sobrevive no Bixiga. Em bem mais de um século da imigração italiana, muitas mudanças aconteceram. As ruas foram asfaltadas, os bondes saíram de circulação para dar espaço a carros modernos, algumas casas foram demolidas, outras permaneceram e construções modernas foram erguidas, como a Arena Allianz Parque, na Barra Funda, que realiza espetáculos, concertos e partidas de futebol. Uma coisa é certa: dentre tantas modificações, as tradições italianas ainda sobrevivem na agitada São Paulo.

AMANDA PRADO

VIAGEM AO PRETÉRITO

Um passeio no tempo pelos bairros Brás, Bixiga e Barra Funda, dos operários italianos à caótica São Paulo de hoje

MARIA ANTÔNIA ANACLETO

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YASMIN LAURA

ANTÔNIO CÂMARA. AV. RANGEL PESTANA, 1952. ACERVO FOTOGRÁFICO DO MUSEU DA CIDADE DE SÃO PAULO

Em sentido horário, Feirinha da Madrugada no Brás; um cortiço na década de 1940; Rua do Gasômetro; comércio popular no Brás; e Av. Rangel Pestana “O vestido de Carmela coladinho no corpo é de organdi verde. Braços nus, colo nu, joelhos de fora. Sapatinhos verdes. Bago de uva Marengo maduro para os lábios dos amadores. (...) Abre a bolsa e espreita o espelhinho quebrado, que reflete a boca reluzente de carmim primeiro, depois o nariz chumbeva, depois os fiapos de sobrancelha, por último as bolas de metal branco na ponta das orelhas descobertas. Bianca por ser estrábica e feia é a sentinela da companheira”

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SEBASTIÃO DE ASSIS FERREIRA. CORTIÇO, 1942. ACERVO FOTOGRÁFICO DO MUSEU DA CIDADE DE SÃO PAULO

AMANDA PRADO

PEDRO MARINELLI

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MARIA ANTテ年IA ANACLETO

BJ DUARTE. AV. 9 DE JULHO, 1941. ACERVO FOTOGRテ:ICO DO MUSEU DA CIDADE DE Sテグ PAULO MARIA ANTテ年IA ANACLETO

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AUTORIA DESCONHECIDA. RUA 13 DE MAIO, 30/07/1921. DIVISÃO DO AHMWL/DPH/SMC

Em sentido horário, a construção da Rua 13 de Maio, em 1921; Escadaria do Bixiga; Rua 13 de Maio atualmente; vista da Av. 9 de Julho, em 1941; e um dos tradicionais empórios italianos do bairro

MARIA ANTÔNIA ANACLETO

“Mas quando dava na telha do Carlino Pantaleoni, proprietário da Quitanda Bella Toscana, de vir também se reunir ao grupo era uma vez o silêncio. Falava tanto que nem parava na cadeira. Andava de um lado para outro. Com grandes gestos. E era um desgraçado: citava Dante Alighieri e Leonardo da Vinci. Só esses. Mas também sem titubear. E vinte vezes cada dez minutos. Desgraçado. O assunto já sabe: Itália. Itália e mais Itália. Porque a Itália isto, porque a Itália aquilo. E a Itália quer, a Itália faz, a Itália é, a Itália manda”

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AMANDA PRADO

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Em sentido horário, construção da Estação Barra Funda em 1940; o local atualmente; Allianz Parque; e Nacional Atlético Clube

MARIA ANTÔNIA ANACLETO

“Delírio futebolístico no Parque Antártica. Camisas verdes e calções negros corriam, pulavam, chocavam-se, embaralhavam-se, caíam, contorcionavam-se, esfalfavam-se, brigavam. Por causa da bola de couro amarelo que não parava, que não parava um minuto, um segundo. Não parava”

AURÉLIO BECHERINI. ESTAÇÃO BARRA FUNDA, 1940. ACERVO FOTOGRÁFICO DO MUSEU DA CIDADE DE SÃO PAULO

YASMIN LUARA

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E ACERVOS PULSANTES Museus brasileiros realizam processos de conservação e restauro para manterem vivos diversos aspectos culturais da sociedade

POR ANA CAROLINA IDALENÇIO, ÍRIS CHADI E MARIA ELOISA BARBOSA

m setembro de 2018, o bicentenário Museu Nacional, no Rio de Janeiro, ardeu em chamas. O incêndio transformou em cinzas itens históricos que lá se encontravam. Depois dessa tragédia, holofotes se viraram mais uma vez para a preservação dos museus e a conservação de seus acervos, mesmo que outros desastres tenham ocorrido anteriormente, como o fogo do Museu da Língua Portuguesa, em 2015, e o da Cinemateca Brasileira, em 2016, ambos em São Paulo. As chamas também levantaram a questão da visitação a esses pontos de cultura, uma das formas de sustento mais importantes dessas instituições. Em 2017, por exemplo, somente o número de brasileiros que visitaram o Museu do Louvre, na França, foi 50% maior que o número total de visitantes do Museu Nacional, segundo a assessoria de imprensa deste. Sob holofotes erguidos após tragédias ou não, a preservação de obras e da estrutura é uma questão constante nos centros culturais do País.

O ESQUECIDO MUSEU DO IPIRANGA, em São Paulo, é

DIVULGAÇÃO / MUSEU DA IMAGEM E DO SOM DE SÃO PAULO (MIS)

um dos casos que chama atenção. Foi fechado em 2013 devido a problemas estruturais. Paulo Marins, docente da Universidade de São Paulo (USP) e presidente da comissão de pesquisa do museu, relata que existiam atividades de rotina para prevenir catástrofes no edifício, como um possível risco de desabamento. Em uma dessas inspeções, foi revelada uma falha que poderia comprometer a estrutura do museu, demandando obras de recuperação. As paredes do prédio apresentavam diversas rachaduras e estavam se desmanchando. O processo é mais minucioso em relação à conservação de obras. No Ipiranga, há um serviço assim responsável por procedimentos de rotina, que evitam o desgaste das peças do acervo. Além disso, há intervenções mais diretas, como higienizações aprofundadas ou substituições de suportes. Em último caso, há a restauração quando a obra está muito danificada. No Museu da Imagem e do Som (MIS) de São Paulo, por sua vez, a diversidade de itens no acervo – de fotografias a películas de filmes – requer cuidados específicos, feitos em um laboratório no próprio local. Ali, é realizada a conservação preventiva para evitar que os artigos sofram danos, como rasgos. Após o procedimento, os objetos são armazenados em salas com condições de temperatura e umidade controladas. As películas necessitam atenção redobrada: se forem degradadas, liberam ácido acético, que põe em risco os outros filmes.

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TODO CUIDADO NÃO É POUCO. “Estamos falando de

bens culturais que pertencem a todo mundo”, explica Sofia Hennen, conservadora do Museu de Arte de São Paulo (Masp). “O museu é uma infraestrutura que assegura e faz a conservação desses bens, mas tem como missão que as pessoas possam acessá-los. Porque não é um patrimônio do local, é um patrimônio da humanidade”. Grande parte das instituições museológicas têm um acervo que serve de base para pesquisas. Liberar os acervos para o público é permitir o contato entre pesquisadores atuais e artefatos do passado para compreender a sociedade, a história e a população. No MIS, CDs do século passado, por exemplo, falam muito sobre aquela época específica e podem ser um item de estudo. “A importância do nosso trabalho, querendo ou não, é guardar itens históricos e disponibilizá-los para pesquisa”, conclui Jorge D’Angelo, assistente de documentação do MIS. Alguns museus possuem uma equipe própria de restauração de obras danificadas. Outros, por não terem verba suficiente e por nem sempre terem a necessidade de realizar o processo, contratam empresas especializadas, como acontece no MIS-SP. Apesar de ser um processo científico, a prática pode envolver um trabalho subjetivo. Instituições com visões diferentes acerca da arte trabalham com métodos ímpares para preservarem seus patrimônios. O Museu do Ipiranga prefere deixar claro nas restaurações que houve uma mudança na obra já que se considera uma instituição com fins históricos. “Se nós perdermos a leitura daquilo que resta de uma determinada obra a partir de uma confusão da restauração, isso começa a perder a possibilidade de se tornar um documento. Então é sempre importante que a gente consiga distinguir entre o tempo histórico e o da restauração”, opina Marins. Já o Masp, que se considera um museu com fins artísticos, opta por não evidenciar as alterações. “A gente valoriza mais a apreciação do objeto de arte do que a história material”, afirma Sofia Hennen. Em casos como o do incêndio do Museu Nacional – em que 90% do acervo ficou comprometido, segundo a vice-diretora da instituição, Cristiana Serejo –, há uma alternativa. A digitalização de arquivos surge como possibilidade para a conservação da memória do museu. O Nacional tem usado de plataformas como o Google Arts & Culture para reviver por meio de fotos artigos que estavam armazenados ali antes de serem consumidos pelas chamas e de ferramentas de streaming para divul46

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gar áudios imersivos que simulam a experiência do museu e do contato com suas peças. “A obra é a obra. A digitalização é uma representação de um artefato, a gente não pode substituir uma coisa pela outra. Também não pode substituir um item que se perdeu em um incêndio por uma réplica achando que isso é a mesma coisa”, desabafa Paulo Marins. Acervos online também facilitam a pesquisa e preservação de documentos que não podem ser manuseados por serem antigos e frágeis. “A digitalização serve para a preservação do item nesses dois sentidos. Primeiro para facilitar a questão do pesquisador, que pode pesquisar o item previamente em casa. Segundo para preservar o próprio item em si”, afirma Rodrigo da Silva, assistente de documentação do MIS-SP.

Os materiais utilizados na conservação são de alto custo e, geralmente, importados

INSTITUIÇÕES ESBARRAM EM limitações financeiras

mesmo com toda a importância do trabalho que realizam. O Centro Cultural São Paulo (CCSP) se sustenta apenas com financiamentos públicos, o que dificulta a situação econômica do local. “Material de conservação é sempre um material muito caro, JOSÉ ROSAEL / MUSEU PAULISTA

ÍRIS CHADI


ÍRIS CHADI

quase nada é fabricado no Brasil, praticamente tudo é importado”, explica Cláudia Bianchi, conservadora da coleção de arte do local. Para contornar esse déficit, algumas instituições têm buscado suporte da iniciativa privada para se sustentarem economicamente. A saída que o MIS-SP, por exemplo, e outros museus da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo encontraram foi o sistema de organização social. O governo estadual cede a administração a entidades privadas, que recebem uma verba de auxílio do poder público e contratam funcionários, compram materiais e têm a liberdade de fazer uma captação extra de recursos. “A gente faz um malabarismo com verba, procura investimentos e outras coisas”, revela D’Angelo. Museus têm sistemas de parcerias e patrocínios que auxiliam na parte financeira. O Masp, por exemplo, tem o programa de fidelização Amigos do Masp, que arrecada recursos para a instituição e oferece benefícios exclusivos para quem participa, como descontos. Segundo dados do órgão federal Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), o número de visitantes em museus brasileiros tem aumentado a cada ano. Ainda, para 81% dos entrevistados da pesquisa

Narrativas para o Futuro, do grupo Oi Futuro, museus são prédios antigos e de arquitetura clássica e 65% enxergam a função desses lugares como de aprendizagem. Ainda de acordo com o Ibram, no Brasil há hoje 3.793 museus, o equivalente a menos de um museu por município do País. Para a museóloga do Museu de História Natural do Alagoas, Cíntia Nascimento, os brasileiros sempre estiveram conectados com a arte de todos os tipos, mas essas instituições têm atraído mais o público. “Eu penso que a partir de eventos que se tornaram anuais, como a Semana de Museus ou a Primavera de Museus, eles voltaram a popularizar suas ações e a fazer um esforço para chegar ao público”, considera Nascimento. Cláudia Bianchi, do CCSP, confirma essa visão. “Eu acredito que não é só na questão de valorizar esses espaços, mas em criarmos uma ponte de comunicação com as pessoas, para que exista um lugar em que elas possam utilizar”, afirma. Essa conexão é importante para conseguir investimentos: onde há mais pessoas, há mais interesses e, consequentemente, sobrevivência para essas instituições tão importantes no cenário cultural do País.

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POR UMA EDUCAÇÃO INCLUSIVA As dificuldades e os diferentes pontos de vista na alfabetização infantil de surdos no Brasil POR JULIA PALMIERI, MARIA ANTÔNIA ANACLETO E NICOLY BASTOS

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reguiçoso e vagabundo”. Foram as palavras ditas a Neivaldo Zovico, quando criança, por um professor durante seu processo de alfabetização em uma escola para ouvintes. Surdo, hoje Zovico é diretor da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis) e leciona matemática para pessoas como ele. Histórias como essa acontecem há décadas e ilustram os grandes desafios na alfabetização dessas crianças, que se encontram prejudicadas no acesso a uma educação especializada. Até 2015, os cursos de licenciatura e Pedagogia no Brasil deveriam contratar um profissional da Língua Brasileira de Sinais (Libras). Em 2016 entra em vigor a Lei Brasileira de Inclusão, e a discussão da acessibilidade passou a nível Legislativo. Entretanto, a lei não é totalmente aplicada na realidade. A pedagoga especialista em surdos Ana Paula Penesi conta que as aulas não são preparadas para recebê-los. Estas carecem de conteúdo, pedagogias visuais e explicações concretas. Muitas instituições de ensino não oferecem assistência pedagógica, professores preparados e intérpretes disponíveis. O processo de alfabetização também deve ser levado em conta. Com diferentes pontos de vista, familiares, professores e fonoaudiólogos divergem sobre qual seria a melhor metodologia para alfabetizar crianças surdas. Os métodos mais comuns são por meio da oralização ou do ensino de Libras, também podendo existir um meio termo: o ensino bilíngue. Lidiane Florindo, mãe de Gabriel, de 4 anos e nascido surdo, teve dificuldade em achar uma escola que o aceitasse. Ela optou por educá-lo apenas por via da oralização. A decisão foi para melhor inseri-lo na sociedade, diz. “Vou poder dar a ele uma vida inclusiva e

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sem limitações”. Gabriel passa por fonoterapia e está começando a assimilar os sons, mas ainda precisa compreendê-los na íntegra. Pricila Tarifa, mãe de Heitor, de 10 anos, também optou pela oralização. Aos 3 anos, Heitor passou por um procedimento cirúrgico de implantação coclear, que proporciona uma sensação auditiva próxima à real. Tarifa acha que quem escolher pela Libras tem uma vida mais restrita, pois depende de outros que conhecem a língua. “Desde o início fomos instruídos de que deveríamos tratá-lo como ouvinte e colocá-lo numa escola regular para que não o inibisse no desenvolvimento da fala”, relata a mãe. Renata Quagliato, fonoaudióloga especialista em educação inclusiva, ressalta a falta de aceitação dos pais como um motivo prejudicial para a alfabetização. “Muitos optam pela implantação [coclear] e tratam o filho com um viés oralista, fazendo-o falar e oralizar. A criança não compreende e não desenvolve uma linguagem”. Quagliato conta que muitos pacientes chegam a seu consultório com 5 anos de idade sem noções básicas de como se comunicar. Rita de Cássia Freitas trabalha há 30 anos com crianças surdas e é professora de uma das seis escolas bilíngues de São Paulo, a Escola Municipal de Educação Bilíngue para Surdos (Emebs) Helen Keller. “Muitas crianças chegam na escola com 4 ou até 6 anos sem saber a língua deles, Libras. Isso ocorre principalmente por serem crianças surdas de pais ouvintes”, explica. Enquanto familiares e profissionais são contrários a uma educação por meio da Língua de Sinais com medo da criança “perder a fala”, Zovico afirma não ser verdade. Para ele, é importante que a criança conviva com outros surdos e estude em uma escola bilíngue. “Libras é autonomia e liberdade”, explica o educador.

Na ilustração acima, o título da reportagem é traduzido em sinais de Libras


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FANTASIAS PATRIÓTICAS Aos 80 anos, ...E o Vento Levou e O Mágico de Oz continuam fortemente ligados ao pensamento norte-americano atual POR ÍRIS CHADI

termina com Dorothy sussurrando o mantra tão característico do ideal norte-americano: “Não há lugar melhor do que o nosso lar”. Ambos os filmes tratam da questão da terra de origem que, para os espectadores norte-americanos, representa o próprio País. As obras não são marcantes apenas por seus cenários elaborados ou pelas questões técnicas, como o processo de filmagem em cores em Technicolor, considerado uma inovação na época. O que de fato diferencia os longas de Fleming é sua importância para a construção do ideal norte-americano. O saudosismo de uma terra natal idealizada é um forte traço no pensamento do cinema hollywoodiano que se mantem até hoje. As produções de Victor Fleming de 1939 passam uma mensagem sutil, mas que molda o ideal da população em direção ao American way of life e a promessa de que tudo pode ser resolvido a partir da crença que os Estados Unidos são um país poderoso. Apesar das diversas dificuldades, a personagem Scarlett O’Hara também termina o longa com uma esperança sonhadora: “Afinal, amanhã é outro dia”.

Seja no cenário da Guerra de Secessão ou na Terra de Oz, os longas de Victor Fleming exaltam o estilo de vida estadunidense

WARNER BROTHERS / DIVULGAÇÃO

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m 1940, no Ambassador Hotel, em Los Angeles, a 12ª edição do Oscar premiava os melhores filmes do ano anterior. Considerado o ano de ouro de Hollywood, 1939 agraciou a história do cinema com obras como O Mágico de Oz e …E o Vento Levou, os grandes vencedores daquela edição do prêmio, ambos dirigidos por Victor Fleming. Os anos 1930 foram marcados, nos Estados Unidos, pela alta produção e consumo de filmes. Tudo isso devido à catástrofe que arrebatara o país uma década antes, com o crash de 1929. Depois da crise financeira, o cinema na década seguinte serviu para reconstruir o orgulho em ser norte-americano, reforçando o patriotismo e criando narrativas com mensagens de superação. As produções de grandes clássicos da época permanecem até hoje no imaginário de cinéfilos ao redor do mundo. ...E o Vento Levou é a história de Scarlett O´Hara, uma moça de família sulista e rica que é assolada pela Guerra Civil Americana (1861-65). Assim como aconteceu na Grande Depressão, O’Hara e seus parentes também perdem todos seus bens no conflito e chegam ao fundo do poço. A protagonista decide abandonar o papel de moça mimada e batalhar para superar suas tragédias. Apesar de dificuldades tanto no campo político quanto no amoroso, O’Hara diz que sua terra natal é o que lhe dá forças para continuar lutando. Já O Mágico de Oz conta a jornada de Dorothy, uma menina sonhadora do estado do Kansas, que possui uma vida simples ao lado dos tios. Após um tornado em sua cidade, ela acorda em um mundo diferente: o País dos Munchkins. E daí tem início a odisseia de Dorothy de volta para casa. Após finalmente retornar, o filme

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O PESO DO

CAFEZINHO Hรก 90 anos, o mercado cafeeiro foi abalado com a queda da Bolsa de Nova York. Hoje, segue firme como um importante setor do agronegรณcio nacional POR MARCELO ROUBICEK

IMAFLORA / CREATIVE COMMONS

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erça-feira, 29 de outubro de 1929. Sebastião Sampaio, então cônsul geral do Brasil nos Estados Unidos, enviou uma carta à Bolsa do Café em Nova York. No documento, afirmava que a baixa dos preços do café que se instalara nos dias anteriores era artificial. Dizia não ter ligação com a pane financeira que se arrastava desde a quinta-feira anterior. Mal sabia que os anos que dariam sequência àqueles dias turbulentos ficariam conhecidos como “A Grande Depressão”. Por mais que o cônsul brasileiro insistisse em falar que “a posição do café não sofreu absolutamente nenhuma alteração e, por isso, não pode ser influenciada pela atual crise dos mercados financeiros”, a História mostrou que as coisas não foram bem assim. Até aquele ano, o café exercia um protagonismo de proporções hoje inimagináveis na economia brasileira. Além de ser o centro de um complexo produtivo maior, orbitando ao seu redor partes significativas de outros setores – como o bancário, o industrial e o ferroviário –, o grão possuía um papel indispensável para o andamento da macroeconomia nacional. Mas a cultura monoexportadora de café não deixou suas marcas apenas na economia brasileira. Para ser colhido, o chamado “ouro verde” precisou das mãos de imigrantes vindos de outras partes do mundo, como Alemanha, Itália e Japão. Para ser transportado, exigiu a construção de uma malha ferroviária que cobriu boa parte da região Sudeste, em especial o estado de São Paulo. Para ser escoado para o consumo no exterior, demandou uma grande estrutura portuária em Santos que se tornou no início do século XX o maior porto da América Latina. A dependência brasileira do grão chegou a tal ponto que o equilíbrio das contas externas do país se

apoiava essencialmente nesse único produto. O café chegou a representar mais de 75% da receita cambial do Brasil em 1924, por exemplo. Ciente dessa subordinação, o governo nacional se preocupou em nutrir e manter o mercado cafeeiro a pleno vapor. Neste cenário, era impossível que a crise deflagrada em 1929 não sacudisse a estrutura econômica do País. No entanto, segundo Guilherme Grandi, professor do departamento de Economia da FEA-USP, por mais intenso que fosse o abalo financeiro sofrido pelo café, ele não chegou a ser duradouro – já em 1933 o nível da participação do café nas exportações totais estaria restaurado ao que era antes do crash. “A Crise de 1929 acendeu o alerta de que o governo não podia ser tão dependente de um só produto para exportação”, comenta Grandi. “Não à toa, a Era Vargas [vigente de 1930 a 1945] é marcada por ter um viés industrializante”. A partir de 1930, portanto, a recém-instaurada administração Vargas passou a encaminhar o Brasil em direção à industrialização de forma organizada e sistematizada. E foi justamente a indústria que, duas décadas depois, tirou do grão o protagonismo sobre a economia brasileira. O CAFÉ DEIXOU DE SER “a galinha dos ovos de ouro”

do Brasil, mas passa longe de atingir a insignificância. Apesar de hoje ser para a economia nacional um coadjuvante – de luxo, é bem verdade –, o café brasileiro é protagonista no mercado mundial. É o quinto produto agropecuário que mais gera receitas de exportação ao Brasil, atrás apenas de soja, carnes, produtos florestais (papéis, celulose e madeira) e do setor sucroalcooleiro, em ordem, segundo estatísticas do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Movimenta cerca de cinco bilhões de dólares por ano na economia brasileira.

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THEODOR PREISING / MUSEU DO CAFÉ / GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

A posição atual do café não se compara àquela de 90 anos atrás. O Brasil era então um quase-monopolista do mercado cafeeiro mundial: de acordo com o estudo O café no Brasil: produção e mercado mundial na primeira metade do século XX, de Pedro Tosi e Rogério Faleiros, 70% do mercado mundial era dominado pelos grãos brasileiros em 1915. Mesmo sendo o maior exportador mundial do grão hoje (cerca de 35% do mercado, segundo a Organização Internacional do Café), o país enfrenta forte concorrência de diversas nações, em especial Vietnã (24%) e Colômbia (12%). Na prática, o imenso volume das exportações brasileiras – aproximadamente 30 milhões de sacas de 60 quilogramas por ano – não significa que o café do Brasil seja o mais valorizado no mercado internacional. Existe uma questão do tipo do produto brasileiro que é vendido para os outros países. “O Brasil vende bem o café commodity [grão pouco processado], mas não consegue vender o café torrado-moído [de alto grau de processamento]”, explica a professora do departamento de Administração da FEA-USP Maria Sylvia Saes. Outro aspecto que influencia no valor do café brasileiro dentro do mercado internacional é a qualidade do grão. E quando o assunto é qualidade, o mercado tem demandado cada vez mais cuidados com plantio, seleção, torra e distribuição.

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O TÉCNICO EM AGROPECUÁRIA Eduardo Antônio

Santos trabalhou por 25 anos em uma fazenda de café em Pindamonhangaba, a quase 140 quilômetros da capital paulista, na região do Vale do Paraíba – aliás, um dos pontos fortes do cultivo do grão no estado. Para ele, a exigência por um grão mais fino tem aumentado ano a ano. Santos não acredita que seja um fenômeno que ocorre apenas no exterior. “Hoje o público exige um café mais nobre no mercado nacional”, diz, enfatizando que os produtores têm respondido a essa demanda. A preocupação em melhorar o café brasileiro cresce desde a década de 1990. Foi quando diversas iniciativas foram acionadas para o reposicionamento do café brasileiro na economia, principalmente partindo do setor privado. A década de 1990 viu a desregulamentação do mercado cafeeiro no Brasil, marcada pelo fim do Instituto Brasileiro do Café (IBC), durante a presidência de Fernando Collor de Mello. O órgão criado em 1952 e erguido ao redor do grão era responsável por executar a política de defesa do produto, estimulando a pesquisa agronômica e estabelecendo um preço de venda favorável aos fazendeiros locais, entre outras ações. Mas nem por isso o governo deixou de ter sua participação no campo: o Ministério da Economia e o das Relações Exteriores participam do Conselho Deliberativo da Política do Café (CDPC), que administra o Fundo de Defesa da Economia Ca-

Depois de embalado em sacas, o café era levado até o Porto de Santos para ser exportado


MUSEU DO CAFÉ / GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO THEODOR PREISING / MUSEU DO CAFÉ / GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Desde 2009, o Brasil exporta uma média de

30 milhões 60kg de sacas de café de

por ano

O crescimento médio anual do consumo do grão no Brasil, de 2007 a 2017, foi de

2,67%

Em

2018

o volume de café exportado pelo Brasil aumentou

10,4%

em relação ao ano anterior

feeira (Funcafé). Este acumula um financiamento de cooperativas de crédito e de bancos públicos e privados – que chega à casa dos cinco bilhões de reais – para estender linhas de empréstimo aos produtores do grão de café. Outra cadeira no CDPC pertence ao Conselho dos Exportadores de Café do Brasil (Cecafé), no qual atua o diretor técnico Eduardo Heron. Para ele, as perspectivas no mercado são promissoras. “Se olharmos para o consumo mundial de café nos últimos 20 anos, ele é uma linha crescente”, analisa. “Uma vantagem do café em relação a outras commodities é que o consumo de café não para”. E, por certo, o consumo mundial de café não apresenta sinais de desaceleração. Nem mesmo os diferentes ciclos de preço ou crises econômico-financeiras, em especial a iniciada em 2008, foram capazes de tirar o consumo de café de sua trajetória crescente. Segundo a Organização Internacional do Café (OIC), o consumo global da bebida aumenta 1,8% a cada ano. Ainda conforme a OIC, o Brasil sozinho consome cerca de 16% de todo café tomado no mundo – algo em torno de 250 bilhões de xícaras de 50 mililitros. O equivalente a servir três xícaras para cada brasileiro por dia em um ano. Contudo, fato inconteste é que o café nunca voltará a ser o que era para o Brasil há 90 anos. A tendência é que ele continue sendo um produto que não apenas gira um montante relevante de dinheiro, mas que constitui um dos pilares da exportação agropecuária brasileira.

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ROVENA ROSA / AGÊNCIA BRASIL

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COLAPSO

À VISTA

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esde a aprovação da Reforma Trabalhista pelo Congresso Nacional em julho de 2017, durante o governo de Michel Temer, o colapso do modelo sindical vigente no Brasil intensificou-se. A contribuição anual obrigatória – proporcional a um dia de trabalho descontado de todos os trabalhadores registrados formalmente antes das mudanças da lei trabalhista – garantia aos sindicatos existentes no País uma saúde financeira estável. Quando a contribuição passou a ser facultativa, contudo, um futuro inóspito passou a rondar o sindicalismo brasileiro. “Os sindicatos funcionavam como uma instância fora da estrutura da política formal”, explica o professor da PUC-SP Luiz Guilherme Conci. Ele acredita que o futuro desse modelo é incerto e levanta que podem surgir novos tipos de organização que substituam essa função sindical desgastada. Entretanto, o recente movimento da sociedade é de desconfiança e descrédito com o sindicalismo. “Eles acabaram [com a obrigatoriedade do imposto] para pôr fim ao poder que o sindicato tem de mobilização”, critica o deputado federal Vicentinho (PT), um dos líderes sindicais mais conhecidos do País. Sob outra perspectiva, o diretor do Departamento Sindical e de Serviços da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Henrique Schoueri, defende a realização de uma reforma ainda mais profunda, apesar de reconhecer a drenagem das finanças públicas. “A modernização trabalhista foi muito boa para, primeiro, corrigir as distorções do sistema”, afirma. Schoueri acredita que agora deveriam ocorrer outras reformas do mesmo gênero e, inclusive, ainda mais intensas.

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Sindicatos brasileiros entram em crise após a flexibilização da legislação trabalhista no País POR ARTHUR GUIMARÃES

Apesar de reconhecerem a função e o espaço dos sindicatos na sociedade, há trabalhadores que apoiam e se colocam a favor da medida. “Falta diálogo. A gente nem sabe onde fica o sindicato”, afirma o manobrista David Casagrande. A crítica se pauta na incapacidade de essas associações cultivarem relações diretas com o trabalhador. Segundo o IBGE, em 2017 houve uma redução de 3,2% do número de empregados formais sindicalizados no País. Atualmente, apenas 14,4% dos trabalhadores brasileiros são sindicalizados. Os sindicatos perderam seu poder de representação: a Região Norte apresentava entre 2015 e 2016 a taxa mais baixa de trabalhadores sindicalizados (12,6%), enquanto a Sul, a mais alta (16,2%). Todas as regiões do país apresentaram reduções na época, o que se repetiu em 2017. Juliana Salles de Carvalho é diretora da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e secretária de assuntos jurídicos do Sindicato dos Médicos de São Paulo (Simesp). “Ambos estão investindo em campanhas para sindicalizar”, comenta. Há dois anos, o imposto sindical obrigatório arrecadou cerca de 1,98 bilhão de reais, o que decaiu 86% em 2018, arrecadando apenas 277 milhões. Para Carvalho, essa conjuntura é o resultado de fatores econômicos, mas também políticos e sociais. Os sindicatos são instituições que navegam na fluidez dos modelos de trabalho e visam a proteção dos direitos do trabalhador. Enquanto sofrem da perda de credibilidade junto aos trabalhadores, medidas que flexibilizam as normas trabalhistas no País e a diminuição das finanças colocam essas organizações em estado de desalento, situação de risco para sua manutenção e sobrevivência.


NASCER NO BRASIL: UMA AGRESSÃO Decisão do Ministério da Saúde de reconhecer o termo “violência obstétrica” tem implicações nos partos do País

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esde que os homens tomaram o poder da Medicina, o modo de parir foi submetido a mudanças drásticas. O espaço e as posições foram modificados para agradar aos médicos. As intervenções se tornaram maiores, sem necessidade, sob desculpa de ajudar a mulher: acelerar o processo com hormônios sintéticos (como a ocitocina) ou romper a bolsa fazendo manobras agressivas e episiotomias de rotina (cortes na região do períneo), entre outras violências silenciosas. A mulher – que era agente ativa do parto – foi aprisionada em uma cama de hospital enquanto seu corpo foi assombrado por todos esses procedimentos, obrigada a se tornar vítima calada. Práticas que poderiam ser usadas para salvar vidas se transformam em arma de controle e violência. Violência obstétrica. Jamais esquecerei a mulher que, em seu parto, me implorava “não me deixa gritar”, com medo de sofrer ataques da equipe do hospital. Ou então, o médico que gritava “Para de gritar, você não sabe parir”. Esse mesmo médico fez uma episiotomia, sem explicar à gestante, apenas para ensinar a residente que o acompanhava. A gestante gritou durante toda a sutura feita em partes sem anestesia, por erro da residente. Mulheres que foram deixadas banhadas pelo próprio vômito. Mulheres que imploravam para que os exames de toques não fossem feitos no meio da contração – e não foram respeitadas. Mulheres que estavam com ocitocina sintética na veia há horas achando que aquilo era “apenas um sorinho”. Mulheres que

chegavam na sala de parto sem saber o que aconteceria nas próximas horas. Mulheres que imploravam para o parto acabar logo, apenas para pararem de sofrer, e que no fim não queriam sequer ver seus filhos. Mulheres violadas, cansadas e humilhadas. O que vi nos partos do hospital do Sistema Único de Saúde (SUS), onde sou doula voluntária, profissional que assiste a gestante, não é exceção. Nem exclusividade do SUS. A violência obstétrica está presente nas salas de parto e de cesarianas de todo o Brasil. E apagar esse nome do nosso dicionário não fará o problema sumir. O Ministério da Saúde quis abolir o termo “violência obstétrica”, considerado “impróprio” em comunicado lançado em maio de 2019, mas em junho voltou atrás. Se ele negar que temos um problema estrutural enraizado na forma com que os partos são assistidos no Brasil, muitos Felipes vão nascer sob o grito de dor de suas mães. Samuel não será o único a ter o colo negado porque a mãe não tem forças depois de oito horas de tortura. Bárbara não será a única a sentir que seu corpo não lhe pertence após seus gritos de “pare” serem ignorados. Maria será mais uma das mães que choram para que aquilo termine. Estes foram alguns bebês e mães que acompanhei como doula. É preciso eliminar a violência obstétrica no Brasil, sim. Dos hospitais, não do dicionário.

ANA KAROLINE SILANO é estudante do 3° ano de Jornalismo. Doula pelo Instituto Gama, atua no Hospital Geral de Carapicuíba. Futura obstetriz e jornalista especializada em saúde da mulher

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TRATAMENTO

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CHOQUE

Ministério da Saúde autoriza a compra e o uso de aparelhos para eletroconvulsoterapia e reacende debate sobre a eficácia do método POR FATIME GHANDOUR E LUÍSA CERNE

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eletroconvulsoterapia (ECT), popularmente conhecida como eletrochoque, induz o corpo do paciente a convulsionar por meio de impulsos elétricos transmitidos ao indivíduo por eletrodos. Para muitos médicos, é nada mais que uma espécie de reset, uma restauração da atividade cerebral. O tratamento é utilizado em casos de “depressão, ansiedade, esquizofrenia, transtorno afetivo bipolar, transtorno obsessivo-compulsivo, dentre outros”, segundo nota técnica publicada pelo Ministério da Saúde em 4 de fevereiro deste ano. Na data, o órgão federal anunciou que iria financiar a compra desses equipamentos e permitiu o uso pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para pacientes sofrendo com as doenças citadas acima. A simples menção ao tratamento de choque, todavia, gerou uma onda de protestos nas redes sociais. A maior parte das pessoas que reclamavam recordava a relação existente entre a ECT e a tortura no Brasil durante o regime militar. “Esse tratamento é um crime, e eu fui vítima dele”, escreve em caixa alta Filipe Rassi, de 29 anos. O comentário veio em uma publicação de 10 de fevereiro de 2019 na página do Facebook da Associação Brasileira de Eletroconvulsoterapia que anunciava a decisão do Ministério da Saúde. Rassi ainda alegou ter passado pelo procedimento apenas com o aval da família. A eletroconvulsoterapia por eletrochoque transcraniano, que seria o impulso direcionado ao cérebro por cargas elétricas controladas, o mais próximo do que se tem hoje, foi colocada em prática pela primeira vez em 1938 pela dupla de médicos italianos Ugo Cerletti e Lucio Bini. Antes deles, era utilizado um método que aplicava remédios como pentilenotetrazol, cujos efeitos até hoje são incertos. A substância induz crises epilépticas e foi empregada no tratamento desenvolvido pelo psiquiatra húngaro Ladislas von Meduna. Quando convulsões eram provocadas artificialmente pelo uso da medicação, resultavam em uma melhora no quadro do indivíduo, algo benéfico para o médico. Mais tarde, sua teoria foi derrubada, e Cerletti e Bini adicionaram o elemento “eletro” para o que antes era apenas convulsoterapia. Partindo da crença de Meduna, deu-se início aos tratamentos de transfusão de sangue de pessoas epilépticas para as esquizofrênicas, introdução de drogas indutoras da convulsão, insulinoterapia, lobotomia e a própria eletroconvulsoterapia. O eletrochoque era considerado uma técnica mais segura – e até mais humana – que passou a ser utilizada pelas equipes hospitalares ao redor do 58

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mundo como método de acalmar os pacientes agitados demais ou mesmo como forma de punição. Submetendo-os às convulsões sem antes aplicar relaxantes musculares ou anestésicos, esses indivíduos eram expostos à ECT enquanto acordados e recebiam o estímulo diversas vezes ao dia para controlar sua “rebeldia”. A prática também foi utilizada em países com regimes autoritários sob forma de tortura, como aconteceu na ditadura militar brasileira e no nazismo alemão. Rafael de Falco Netto, de 73 anos, foi um dos presos políticos do regime, forçado a vivenciar o lado mais obscuro da ditadura. Entre os métodos aos quais foi submetido, estava o eletrochoque. “A primeira sessão de tortura durou umas 18 horas. Dessas, acho que foram umas quatro horas de eletrochoque, mas era difícil de calcular, principalmente nas condições em que eu estava”, relata. Netto conta que a experiência o deixou com sequelas que não serão esquecidas, tanto sentimentais quanto físicas. Foi vítima de um número extenso de AVCs em um intervalo de quatro anos. “Foram muitos eletrochoques, isso foi. Eles davam choques de 250 volts,


cuja potência era bem maior do que os choques da corrente elétrica”, relembra. Era o efeito pretendido pelos torturadores. De acordo com Netto, eles afirmavam que as torturas não eram apenas para arrancar delações, mas também para que seus efeitos fossem sentidos por muitos anos.

Pessoas consideradas loucas até a década de 1980 eram enviadas para o Hospital Colônia, em Barbacena, onde eram tratadas e isoladas

CINQUENTA ANOS DE PERSEGUIÇÕES aos “loucos” marcam a história de Barbacena, em Minas Gerais, entre as décadas de 1930 e 1980. O saldo: mais de 60 mil mortos. O chamado “vagão dos loucos” levava mais e mais pessoas para o centro psiquiátrico Hospital Colônia de Barbacena, o “Depósito”. O apelido foi dado pela antiga enfermeira do local, Walkiria Monteiro, quando entrevistada para o documentário Holocausto Brasileiro, de 2016, dirigido por Armando Mendz e pela jornalista Daniela Arbex e inspirado no livro homônimo escrito por ela. Em seus corredores, as pessoas eram negligenciadas, vítimas da fome e de doenças – muitas vezes transmitidas por seringas compartilhadas. O eletrochoque era usado quando não havia resposta do paciente aos medicamentos. Ficavam deitados em camas, assistindo cada um convulsionar e temendo a

sua vez. Era comum a quem morava nas redondezas assistir àqueles corpos sendo despejados quando já não tinham mais vida. Os sobreviventes relembram ainda hoje momentos de maus tratos, de dor, de serem abandonados pela família. É compreensível então que a eletroconvulsoterapia seja vista até hoje no Brasil com olhos de medo e considerada um retrocesso. Quando a nota do Ministério da Saúde foi divulgada no início do ano, psiquiatras defenderam que é essencial um processo de conscientização da sociedade para o tratamento. “A gente precisa informar as pessoas e deixar bem claro que é bastante diferente do que aconteceu no passado, do que acontece em outros lugares”, explica o psiquiatra Arthur Penido, da Clínica Reset Prime, especializada em distúrbios mentais. Ele frisa a importância de ser um método feito dentro de uma estrutura hospitalar, sob supervisão médica e indolor. “Não existe dor, o paciente nem vê o que está acontecendo. Acima de tudo, é um tratamento muito eficaz”, explica. A ECT tem resultados confirmados em casos como os de depressão e bipolaridade. É ministrada com anestesia geral, considerado o procedimen-

LUIZ ALFREDO


to mais arriscado do processo. Por ser aplicada uma carga controlada – diferentemente do que acontecia no passado em Barbacena, por exemplo –, o eletrochoque tem menos riscos de causar malefícios ao cérebro ou ao corpo. A convulsão dura de 30 a 60 segundos. O número de sessões varia de acordo com a necessidade do paciente, mas geralmente fica em torno de dez encontros. Para casos mais extremos, em que os remédios não são mais suficientes, é possível recomendar uma quantidade maior de sessões para completar o tratamento. Entre os efeitos colaterais do tratamento estão perda de memória de eventos ocorridos logo antes da aplicação da terapia, algumas lembranças mais antigas podem ficar nebulosas ou correm o risco de serem perdidas por um período de seis meses e, apesar de raro, memórias podem ser apagadas. Além disso, é possível acontecerem náusea e dores musculares e de cabeça, uma vez que são causados movimentos muito bruscos pela convulsão. Todas essas questões devem ser explicitadas pelo médico, que precisa esclarecer como ocorre o tratamento e seus riscos. A imagem da terapia de choque, outro nome popular da ECT, é construída a partir de livros, novelas e filmes, como o já citado Holocausto Brasileiro e Bicho de Sete Cabeças, dirigido por Laís Bodanzky, de 2001. Eles retratam a época em que o método era ministrado sem os cuidados atuais ou como forma de tortura. A psiquiatra Danielle Horoi afirma que o procedimento de hoje quase nada tem de similar ao que era. “Esse tratamento evoluiu muito, ele é feito com anestesia, a voltagem é diferente de antigamente. Para algumas pessoas que a medicação não faz efeito, pode ajudar, e muito”, declara Horoi. A visão dos profissionais em relação à ECT, entretanto, diverge em certos pontos. O consenso é que a terapia deve ser acionada em casos como os de tentativa de suicídio, nos quais a pessoa não pode esperar o tempo necessário para os remédios fazerem efeito (algo em torno de três semanas). Torna-se necessária então uma medida mais efetiva. No entanto, a recomendação do eletrochoque deve ser feita por um psiquiatra, preferencialmente para o tratamento de depressão e esquizofrenia. “Além das ações assistenciais, o Ministério da Saúde também passa a atuar com maior vigor na esfera da prevenção”, escreve na nota de fevereiro de 2019 o órgão, citando os casos de dependência química. Não é certa, entretanto, a eficiência de utilizar a terapia com dependentes de substâncias psicoativas – como álcool, maconha, cocaína e crack. Arthur Penido afir60

esquinas

A GENTE PRECISA INFORMAR AS PESSOAS E DEIXAR BEM CLARO QUE É BASTANTE DIFERENTE DO QUE ACONTECEU NO PASSADO ARTHUR PENIDO, PSIQUIATRA


CREATIVE COMMONS

O aparelho era usado para tratar pacientes com problemas psiconeuróticos. Na foto, um modelo do início do século XX

ma que os estudos com dependência química chegam a ser imprecisos e que não há uma indicação formal, apesar de a terapia de choque apresentar um certo nível de efetividade nesses casos. A psiquiatra Sonia Palma discorda desses usos. “Só é recomendado para dependentes químicos se ele tiver uma depressão associada. A ECT é mais para depressão, risco de suicídio grave e para alguns pacientes psicóticos”, afirma. Palma também reflete sobre o funcionamento do tratamento que antigamente era feito “a seco”, sem o uso de anestesia e sem a realização de exames prévios para verificar a aptidão do paciente. “Primeiro você faz todos os exames de sangue, de arcada dentária, para ver se tem alguma alteração que possa gerar uma irregularidade. É realizado o raio-x de tórax e a análise da parte óssea. Só após essa série de exames, é realizado a ECT, com a presença de um anestesista”, explica. A EFETIVIDADE DO TRATAMENTO não é discutida

apenas entre médicos. “Foi um acréscimo ao que estava sendo realizado para controlar minha bipolaridade”, afirma Ozenilda Amorim, que realizou seis sessões da ECT em um período de três semanas de 2013. Amorim se viu com uma vida completamente diferente após o tratamento. “Não conseguia mais trabalhar, estava de licença médica e nem conseguia cuidar de mim. Com o tratamento as coisas melhoraram muito, embora eu não tenha conseguido voltar

ao trabalho, pois era policial militar, e fui aposentada devido ao problema que tenho”, diz. Contudo, o eletrochoque apresenta seus riscos. Às vezes, o tratamento falha. Filipe Rassi foi um desses casos. Ele afirma que, após as sessões da terapia de choque, esqueceu de livros, filmes, encontros, fatos. “Para quem está em depressão, não é nada legal, pois você começa a se questionar o que fizeram com sua cabeça e quem é você agora”, critica. Rassi fugiu da psiquiatria ocidental e decidiu dar um novo rumo a sua recuperação: largou tudo e virou artista de rua. Oito anos após as sessões, ele é poeta e afirma que agora tem “a plenitude da minha estabilidade mental e emocional”. “O tratamento mais eficiente é aquele que não te dá sequelas, nada que envolva remédios de uso prolongado e eletrochoques”. Após anos de uso da eletroconvulsoterapia pelo mundo, seus efeitos são evidentes apesar das controvérsias que cercam essa terapia. Pessoas impedidas de viver pela sua condição, como depressão ou transtorno bipolar, encararam a ECT e retomaram sua vida. Tratamento de risco, é recomendado apenas nas situações extremas. Resta considerar se os possíveis traumas sociais causados pelo recurso – memórias da tortura do século passado vivida pelos pacientes do Hospital Colônia de Barbacena ou por Rafael de Falco Netto durante os anos de chumbo de ditadura militar brasileira, por exemplo – valem a pena ou não serem revividos.

2º semestre de 2019

61


info

gráfico

ALÍVIO CULTIVADO

Canabidiol para fins terapêuticos gera debate sobre usos da maconha no Brasil POR GABRIELA DEL CARMEN, MARIA CAROLINA MOURA E STEPHANIE CID

A

s mães que viam o sofrimento diário de suas filhas por causa de uma doença que não respondia aos remédios não imaginavam que uma planta de cultivo proibido seria a solução de seus problemas. A maconha foi a alternativa para a filha de Patrícia Rosa, por exemplo, realizar atividades comuns que eram imposibilitadas pelas crises de epilepsia. “A Deborah não conseguia dormir, brincar ou fazer refeições completas”, relembra. Apesar de oferecer muitos benefícios, o tratamento da epilepsia severa com a maconha ainda é difícil. O uso medicinal da planta só pode ser concedido por autorização judicial e, até 2015, apenas com a importa-

ção da substância. Devido à luta de Margarete Brito, primeira mulher a conseguir plantar a maconha em casa legalmente no Brasil para cuidar de sua filha, o cultivo da cannabis para tratamento se tornou possível. Brito comenta que os altos custos e burocracia ainda são os maiores obstáculos para quem necessita da planta. Por a maconha ser vista somente como uma droga recreativa, há certa resistência ao tratamento. Maria Aparecida de Carvalho, mãe de Clárian, sentiu o estigma da cannabis quando aplicou o medicamento na filha, com crises epilépticas. “Eu fui xingada, excluída de grupos. As pessoas falavam que eu era uma maconheira me escondendo atrás da minha filha”.

Os aprovados Apenas 32 pessoas no Brasil receberam autorização da Justiça Federal para o cultivo da maconha em casa

CE

2

RN

3 FÓRMULA DO SUCESSO? Em uma pesquisa interna da Apepi com 66 pacientes com epilepsia, os relatos concluíram 90% de melhoras cognitivas e 70% deles reduziram as crises em mais da metade ou até zeraram.

BA

1

DF

1 MG RJ SP

Fonte: Apoio à Pesquisa e a Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi)

9 PR

62

esquinas

2

11

3

Epilepsia

10

Dor

9

Câncer

3

Depressão/ Ansiedade/ Dependência química

3

Autismo

2

Esclerose

2

Parkinson

2

Artrose

1


Cerca de

3 milhões

COMPOSTO DA MACONHA, o canabidiol (CBD) inibe os

estímulos nos receptores endocanabinóides. Já o tetraidrocanabinol (THC), complexo maléfico da droga, causa o efeito oposto: aumenta a atividade do sistema biológico. A planta adequada para o tratamento é aquela que possui a maior quantidade de CBD e a menor possível de THC, que podem ser medidas em laboratório. A situação ideal seria o uso do canabidiol puro.

de brasileiros possuem epilepsia

30%

dos pacientes continuam a ter crises mesmo com o tratamento convencional

Fonte: Organização Mundial da Saúde (OMS)

Descontrole interior

Como ocorrem as crises epilépticas Normal

Com epilepsia

Impulso elétrico

Impulso anormal

Sinapse

Neurônio emissor

Por semestre, o custo da produção nacional de 400ml de canabidiol é por volta de

R$ 250

Neurotransmissor

Neurônio receptor

O custo de importação de 6g de canabidiol varia entre

R$ 3 e 5 mil

(incluso vaso, terra e extração)

Sem contar frete e impostos, cai para R$ 1 mil

Descargas neuronais excessivas

Em países em que a produção de canabidiol é legalizada, um frasco de 6g custa U$ 240, cerca de

R$ 930

O miligrama do CBD custa R$ 0,16

Fonte: Apepi e Grupo Growroom

ARTE POR HENRIQUE ARTUNI

CURTO-CIRCUITO

SOB CONTROLE

O cérebro é constituído por células cha-

O corpo humano possui um siste-

madas neurônios, cuja principal função

ma

é transmitir informações por meio de

composto de receptores. Esse siste-

impulsos elétricos das sinapses. São

ma tem diversas funções biológicas

eles que permitem ações simples de

importantes. É ele que controla os

movimento do corpo, como balançar

movimentos, apetite, dor e comporta-

um braço. Os neurônios são como fios

mentos sociais, como a ansiedade e a

desencapados. Na condição cerebral

depressão. Durante uma crise convul-

normal, não devem se encostar. No

siva, os receptores do sistema endo-

cérebro de quem tem epilepsia, esses

canabinóide são hiperestimulados. É

fios se encostam e causam espasmos.

aí que entra em ação o CBD, que irá

Esse encontro de células pode ser pon-

inibi-los. Ele atenua os estímulos exa-

tual, com crises mais brandas, ou se

cerbados durante uma crise epiléptica

alastrar por todo o cérebro, quando as

– e tem influência até nas memórias

crises convulsivas são mais severas.

e na resposta imunológica do corpo.

denominado

endocanabinóide,

Fonte: Dr. Manoel Carlos Leonardi de Azevedo Souza, do Hospital Beneficência Portuguesa Mirante 2º semestre de 2019

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direitos

humanos

PEDRO ALVAREZ

LAR OU CÁRCERE? Centros de acolhimento paulistanos destinados a moradores de rua revelam acertos e falhas

N

POR ANA CAROLINA PRADO, PEDRO ALVAREZ E RAFAEL LARA

a cidade de São Paulo, os Centros Temporários de Acolhimento (CTAs) foram criados em 2017 pelo então prefeito João Doria (PSDB), atual governador do Estado. Em teoria, trabalham em conjunto com os demais centros de acolhida do município destinados a darem suporte à população de rua. ESQUINAS visitou albergues e ouviu a voz dos funcionários e moradores desses espaços, revelando detalhes do cotidiano da vida dessas pessoas tão presentes na paisagem paulistana. O Arsenal da Esperança, no bairro da Mooca, é um deles. Recebe 1.200 pessoas diariamente, sen-

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esquinas

do 1.150 em vagas fixas e as demais em rotativas. É considerado exemplo tanto por líderes de pastorais católicas quanto por moradores de rua que frequentam o local. Originário do Servizio Missionario Giovani (Sermig) – que começou suas ações a partir de 1964, em Turim, na Itália, por iniciativa do casal Ernesto Olivero e Maria Cerrato –, o Arsenal foi aberto em São Paulo em 1996, instalando-se na antiga Hospedaria dos Imigrantes, onde está até hoje. Todos são orientados a cooperar para o bom convívio interno. Segundo o líder do local, o padre Simone Bernardi, não portar armas é a regra pri-


mária da casa. Caso algum frequentador do Arsenal seja denunciado por um de seus pares de estar com qualquer tipo de arma – mesmo tesouras sem ponta –, é convidado a se retirar de lá após uma revista atestando tal situação. “A pessoa que vêm aqui tem que ter a segurança de que está dormindo sem se preocupar com um possível ataque da pessoa ao lado”, explica Bernardi. Caso o abrigado cause problemas, ele é avaliado pelo comitê dos funcionários e diretores do albergue e encaminhado a outras casas de acolhimento. O albergue criou um sistema monetário próprio para as transações comerciais internas, o Ar$. Cada cinco Ar$ equivale a dez centavos de real. O residente pode trocar essa moeda por itens do brechó comunitário ou para lavar suas roupas na lavanderia. Uma das maneiras de ganhar Ar$ é recolhendo latinhas ou outro tipo de alumínio na rua, trocando-os no Arsenal pela sua quantia interna. “O intuito principal dessa dinâmica é incentivar o morador a trabalhar, ser recompensado pelo seu esforço e melhorar sua autoestima”, diz Bernardi. Outro assunto que fica evidente no lugar é a política de não uso de drogas e álcool dentro e fora da casa de acolhida. “No Arsenal, se chegar com bafo de cachaça, não entra”, revela o morador Elias da Silva. Contudo, para o padre Bernardi, às vezes a droga não é o pior inimigo dos moradores: não terem o que perder faz a rotina diária deles desanimadora. “Há albergues e albergues. O Arsenal trabalha direitinho, mas isso é raridade aqui em São Paulo. Nos CTAs está cheio de muquirana, pulga, lençol fedido, banheiro horrível. Todos são assim”, complementa Silva, que já passou pelo Arsenal e outros centros da cidade. Atualmente, ele frequenta o CTA Mooca I. Frequentadores dos albergues chegam todas as manhãs na Paróquia São Miguel Arcanjo, entre o Arsenal da Esperança e o CTA Mooca I, em busca de doações de comida e roupas

POPULARMENTE CONHECIDO como CTA Água Rasa,

o Mooca I foi criticado por praticamente todos os moradores de rua entrevistados. No site da Prefeitura de São Paulo, os centros são descritos de maneira utópica: “Os CTAs têm a finalidade de assegurar atendimento e atividades direcionadas para o desenvolvimento de sociabilidades, na perspectiva de fortalecimento de vínculos que oportunizem a construção de novos projetos de vida”. Um discurso que não condiz, todavia, com a denúncia de alguns acolhidos que não quiseram se identificar à reportagem. No Água Rasa, moradores reclamam de um desvio de alimentos por parte de funcionários da casa. Segundo relatos, os próprios abrigados teriam ajudado a descarregar o caminhão com supri-

mentos como mamão, cereal e manteiga, mas não os viram chegar no refeitório. Além disso, haveria uma distinção na forma de tratamento, privilegiando alguns moradores em detrimento de outros. Por exemplo, na hora da distribuição de comida, existiriam pessoas que receberiam uma porção maior do que outras por terem mais “afinidade” com alguns funcionários do local. Em resposta, a Prefeitura esclarece que o mamão da doação foi servido como suco para o almoço dos conviventes em vaga fixa. Quanto a alimentos como os cereais matinais, doação do Programa Mesa Brasil, eles foram servidos por duas semanas para os moradores como lanche da tarde até que acabasse o estoque. Questionada sobre os demais problemas no CTA Mooca I e outros centros de acolhida de São Paulo, a Prefeitura enviou a seguinte nota a ESQUINAS: “A Secretaria Municipal de Assistência

e Desenvolvimento Social (SMADS) informa que o Centro Temporário de Acolhimento Mooca I recebeu visita técnica em 29 de março de 2019 da qual apontou necessidades de manutenção. Entre elas estão os reparos na pintura em dormitórios e banheiros, instalação de grades nas janelas dos dormitórios e recolocação de forro nos locais faltantes do imóvel. As medidas já estão sendo tomadas”. Todas as finalidades a serem cumpridas pelos centros de acolhimento mencionadas anteriormente foram retiradas do portal da SMADS. A questão é se essas metas são, de fato, cumpridas. Problemas ligados a saúde, auxílio na recolocação profissional e familiar seguem sendo rotina nesses centros de acolhimento. A REINSERÇÃO DO MORADOR no mercado de trabalho

é outra preocupação que deveria ocorrer nos alber-

NOS CTAS ESTÁ CHEIO DE MUQUIRANA, PULGA, LENÇOL FEDIDO, BANHEIRO HORRÍVEL. TODOS SÃO ASSIM ELIAS DA SILVA, MORADOR DE RUA 2º semestre de 2019

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No esforço de manter o bom funcionamento do local, diariamente ocorre o serviço de limpeza de roupas no Arsenal da Esperança

gues e CTAs. “Alguns de nossos irmãos já perderam a autoestima, já perderam o vínculo em sociedade por ficarem muito tempo na rua”, diz Antônio Carlos Miranda Ferreira, morador que ganha a vida fazendo malabarismo nos semáforos da metrópole. Existe um preconceito das empresas em geral com esses candidatos às vagas, o que dificulta o reingresso dessa camada da população no mercado de trabalho formal. Um morador reclama de ter distribuído aproximadamente cem currículos em busca de emprego em quatro empresas de São Paulo e a secretaria do Mooca I não o avisar que o responsável de uma dessas empresas ligou por diversas vezes em busca dele. Neste contexto, iniciativas auxiliam na recolocação deles no mercado. O Arsenal da Esperança promove oficinas de construção civil e permite que os residentes trabalhem em áreas da cozinha e lavanderia. Os acolhidos ainda podem ser indicados pela diretoria para trabalhar em outros lugares, reinserindo-os com mais facilidade no mercado. “A oportunidade é para poucos. Se você agarrar, você consegue se restabelecer. Tem muitos ali que conseguem uma pensão, um quarto próprio após sair do albergue. Eu mesmo consegui, e olha que foi na década de 1990. Quando eles veem que você está disposto a recomeçar, eles te ajudam. Mas isso não ocorre em outros lugares”, comenta Wilson Vitalinio, que apesar de tudo, encontra-se hoje em situação de rua. Apenas homens entram é a política do Arsenal. A justificativa, segundo Bernardi, é a falta de recursos PEDRO ALVAREZ

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esquinas

suficientes para abrigar mulheres e crianças. Segundo censo da Fundação do Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) de 2015, 82% da população em situação de rua em São Paulo é composta por homens. As mulheres são encaminhadas para outros abrigos, como o Centro de Acolhida Casa Verde ou Casa de Apoio Maria Maria, no Canindé. Não há casas destinadas a elas nas zonas oeste e sul da cidade. Já as crianças são direcionadas pelo serviço social do Arsenal ao Conselho Tutelar de São Paulo. Famílias que moravam em situações de rua têm que ser separadas para receber auxílio. Rogério Ferreira da Silva e Patrícia Santos da Silva moram na rua por não encontrarem albergues que recebam casais sem filhos na cidade. “A gente é casal e não vai se separar”, defendem-se. Outra reclamação constante por parte dos moradores de rua frequentadores de albergues e CTAs é a da falta de sensibilidade dos locais em relação ao tratamento de saúde oferecido. Um morador que não quis se identificar por medo de represálias afirma que teve uma crise de herpes zóster enquanto estava abrigado no extinto Centro de Acolhimento Emergencial do Brás no inverno de 2018. “Eu gritava de dor e ninguém vinha me ajudar”, relembra. Os relatos desses moradores de rua de São Paulo evidenciam que as políticas públicas oferecidas pela Prefeitura estão longe de serem eficazes e humanitárias. “O sistema, que já era sucateado, ficou mais ainda. Eles criaram os CTAs mais por uma questão de tirar o cara da rua do que de tratá-lo dignamente. A gente depende de centros de doações como este aqui [Paróquia São Miguel Arcanjo] para termos condições básicas de higiene e alimentação”, desabafa Elias da Silva. A paróquia que Silva comenta fica entre o Arsenal e o Mooca I e recolhe doações de comida, roupa e itens de higiene pessoal, depois destinadas diretamente aos moradores de rua, que vão em busca de bolo, leite, chocolate, sapato, camiseta, meia, escova, pasta de dentes e sabonete. A lista não acaba. A sensação que fica ao final é que há uma forte semelhança entre o sistema carcerário brasileiro e a logística estrutural dos albergues em São Paulo. Essa comparação pode ser feita por causa do regime disciplinar que os moradores de rua enfrentam quando precisam se utilizar dessas casas de acolhimento. Do mesmo modo, o projeto arquitetônico desses locais remete à disciplina impessoal dos quartéis militares, em que cada indivíduo deve cuidar do seu próprio nariz. Um cenário distante da utopia descrita pela Prefeitura em seus sites e comunicados oficiais.


nião

opi

A PUNIÇÃO TEM COR Negros representam a maioria dos presidiários no superlotado sistema carcerário brasileiro

S

eletividade penal não é um termo que escuto desde cedo. Quando criança, minha mãe nunca me orientou sobre como um celular mal posicionado na cintura poderia gerar minha morte ou que um guarda-chuva poderia ser confundido com uma arma. Diferentes de mim, outros jovens negros que moram na periferia convivem com o medo diário de serem perseguidos simplesmente pela cor da pele. Ninguém me contou, de fato, o que é seletividade penal, mas ela sempre esteve ali, escondida no meio de tantos acontecimentos do nosso cotidiano. Estava ali quando a modelo Bárbara Querino, em 2017, foi condenada por roubar um carro sem estar na cidade no momento do crime. Estava ali quando Rafael Braga foi preso por carregar Pinho Sol, confundido com um coquetel molotov, e o único condenado nas manifestações de 2013. Estava ali em muitos outros momentos. A eliminação de corpos negros é cada vez mais comum e algo muito mais complexo do que podemos imaginar. O caso do assassinato da vereadora Marielle Franco, em 2018, e os 80 tiros neste ano que mataram o músico Evaldo Santos Rosa falam por si só. Entre negros e ne-

DAYANA NATALE é graduanda do 2º ano de Jornalismo e presidente do Coletivo Africásper, que debate com os casperianos temas sobre a cultura africana e seus descendentes

gras que eu conheço (me incluindo), o medo da repressão de autoridades é enorme. Os casos de pessoas que já sofreram são diversos, mas os acontecimentos corriqueiros me revoltam ainda mais porque me fazem enxergar o privilégio que pessoas brancas têm na sociedade. Tem quem acredite que a lei é para todos, mas a atual população carcerária do Brasil está aí para provar totalmente o contrário. Segundo a pesquisa realizada em 2016 pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), 64% dos presos são negros, enquanto apenas 35% são brancos. As prisões estão superlotadas. Quem acredita que o sistema carcerário beneficia os presidiários ao proporcionar comida grátis, local para dormir e auxílio-reclusão, não conhece a realidade precária das prisões brasileiras. A desumanização dos negros não é de hoje. Está relacionada à escravidão e ao racismo estrutural que temos que enfrentar diariamente. Até quando verei pessoas da minha raça morrendo? Até quando verei a ausência de perspectiva na vida dos jovens negros? Infelizmente, o crime e a seletividade penal têm cor. E se não tiverem, farão de tudo para que tenham.


qua

drinhos

A Fênix POR JÚLIA SASSETTOLI E MARINA SAKAI ARTE DE PEDRO PAULO FURLAN

EU NÃO TENHO ESSA NARRATIVA DE TRANSIÇÃO.

TIVE UMA INFÂNCIA PRIVILEGIADA. FILHA ÚNICA, MUITO AMADA E QUERIDA. SEMPRE FUI UMA MENINA. DURANTE TODA A VIDA ME SENTI E AGI COMO UMA.

QUANDO CRESCI, O MUNDO ME ROTULOU COMO TRAVESTI E FOI ASSIM QUE EU DESCOBRI O QUE EU ERA. TAMBÉM DESCOBRI QUE O MUNDO ODEIA TRAVESTIS.

AOS 14 ANOS, FUI EXPULSA DE CASA E PASSEI A MORAR NA RUA. A PROSTITUIÇÃO FOI A MANEIRA QUE ENCONTREI PARA SOBREVIVER.

FELIPA? MAS ESSE NOME NÃO TEM AXÉ!

68

esquinas

VAI SER ERIKA, ENTÃO. ERIKA HILTON.

MAS NUNCA ADMITI QUE ERA O MEU LUGAR. EU TINHA QUE ACHAR UM JEITO DE ROMPER COM AQUELA MARGINALIDADE. ENCONTREI NA INTERNET PESSOAS IGUAIS A MIM. DESCOBRI A MILITÂNCIA.


NEGARAM O RECONHECIMENTO PELO MEU NOME SOCIAL, NÃO QUERIA SER CONSTRANGIDA PELO QUE ME FOI DADO. FIZ UMA PETIÇÃO ONLINE E GANHEI A MUDANÇA.

QUERIA CRIAR UM TERMO QUE NÃO TIVESSE SIDO CRIADO PELO COLONIZADOR. LIVRE DE ESTEREÓTIPOS, DE SIGNOS E SÍMBOLOS QUE NÃO NOS REPRESENTAM. ASSIM NASCEU O TERMO TRANSVESTIGENERE.

EU NÃO SOU ACEITA. SOU TOLERADA, ENGOLIDA. EU NÃO PRECISARIA ESTAR AQUI SE ESSE LUGAR NÃO PAUTASSE A MINHA VIDA, SE DAQUI NÃO SAÍSSEM AS LEIS QUE ME MATAM.

ME SINTO ORGULHOSA POR NÃO TER ACEITADO A SENTENÇA SOCIAL QUE ME DERAM. SINTO ESPERANÇA DE MUNDOS MELHORES.

ERIKA HILTON tem 24 anos e é uma das nove integrantes da Bancada Ativista, primeiro mandato coletivo com cadeira na Assembleia Legislativa de São Paulo

2º semestre de 2019

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crô

nica

LUZ NA CONSOLAÇÃO POR VANESSA NAGAYOSHI

70

esquinas

HENRIQUE ARTUNI, SOBRE A INCERTEZA DO POETA, GIORGIO DE CHIRICO, 1913 / TATE GALLERY

N

ão haviam me passado o endereço. O nome era Seu Nivaldo e ficava na Consolação. De bar em bar, saí pedindo informação em busca do seu paradeiro. Sem sucesso. Estava perdida nas ruas abarrotadas de gente à procura de litrão barato depois do expediente. O típico boêmio se gaba, em arrotos, de saber de A a Z os melhores e piores bares e um infinito catálogo de nomes de garçons. Mas ninguém sabia do Seu Nivaldo, nem pareciam dar a mínima. Decidi procurar no Google Maps. Resultados: Bar do Seu Góis, Plínio, Geraldo, Romeu, Zé, Romero. Seu Nivaldo: irrastreável. Desisti. Se nem o satélite encontrava... Não passaria Seu Nivaldo de uma lenda urbana? Perdida feito barata tonta, um amigo que já estava lá veio me resgatar. Quando cheguei no dito cujo, me dei conta de que jamais encontraria aquele lugar se estivesse sozinha. É que o bar do Seu Nivaldo, na verdade, era a sua casa e também antiquário. O senhor soteropolitano, de 75 anos, de um farto bigode branco, havia colocado uma única mesa no seu pequeno quintal e decorou com ramos secos de árvore a grade de arame que improvisava o teto. Para dar volume a uma solitária mesinha de plástico, encheu duas caixas de discos, de Alceu Valença a BB King, e a deixou ao lado de um velho radinho preto. A fim de atrair os boêmios da Bela Vista, Seu Nivaldo se tornou irrastreável aos que preferem estrelas dos guias gastronômicos e visível a quem procura aconchego da simplicidade. Naquele dia, estava frio e eu o vi cortando madeira e colocando na churrasqueira para “ficar mais quentinho”. Voltando do banheiro, um amigo comentou estar com vontade de comer certo salgadinho. Pouco depois, Seu Nivaldo entregou para o garoto um pacote cheio deles. Ele não deu de cortesia nem acendeu o fogo para agradar a gente. Não éramos clientes e ali não era um bar, mas um antiquário vivo que acolhe almas desgastadas nas noites de sexta-feira. Seu Nivaldo me levou para fazer um tour pela sua casa e eu achei que ele estava abrindo o seu coração. “Eu vou te mostrar o meu cantinho”, disse. Reparei que em cada canto da casa havia caminhõezinhos

de diversos tamanhos. Desconfiei e acertei: foram feitos por ele – por mãos que carregam histórias de uma vida na siderurgia. O céu de Seu Nivaldo era feito de lustres de todos os modelos e tamanhos que ele construía e consertava. Eu disse que ele era um homem iluminado, e ele deu risada. Não foi piada. Se Seu Nivaldo acendesse todos os lustres que tem em sua casa, chamaria atenção do bairro todo, o quintal ficaria pequeno e seu bolso grande. Mas ele é um senhor que não gosta de extravagâncias. Disse que gostava da gente porque não fazíamos bagunça, éramos pessoas legais, e que não trocaria aconchego por dinheiro. Lembrei do cantor Criolo dizendo que os bares estão cheios de almas tão vazias. Deve ser porque elas nunca conheceram o Seu Nivaldo. Se todos os bares fossem como o dele, ao deitar a cabeça no travesseiro depois de uma noite longa, ninguém se sentiria enjoado. Saindo de lá, eu disse que iria indicar o bar para outros amigos e que sempre que um lustre de casa quebrasse, eu levaria para ele consertar. Nem imaginava que, naquela noite, eu mesma era a lâmpada em busca de um tenro clarão.

“Se Seu Nivaldo acendesse todos os lustres que tem em sua casa, chamaria atenção do bairro todo, o quintal ficaria pequeno e seu bolso grande”


O MUNDO ESTÁ MUDANDO. Nós também.

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