Revista Esquinas #62

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ANO 23 | Edição 62 – 1º semestre de 2018 | revistaesquinas.com.br REVISTA-LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA FACULDADE CÁSPER LÍBERO

Dízimo faz ex-fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus se multiplicarem



Editorial Revista Esquinas, órgão-laboratorial do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero

FACULDADE CÁSPER LÍBERO Diretor Carlos Costa Vice-Diretor Roberto Chiachiri Filho Coordenadora de Jornalismo Helena Jacob ESQUINAS Editor-chefe Márcio Rodrigo Editores Paula Calçade e Pedro Garcia Revisão Guto Martini, Rafaela Artero e Thiago Bio Editor de Arte Guilherme Guerra Diagramação Henrique Artuni e Luana Jimenez Projeto Gráfico Beatriz Fialho e Guilherme Guerra Participaram desta edição Bruna Anielle, Bruno Miliozi, Camilla Millan, Érica Azzellini, Felipe Sakamoto, Fernando Oda, Gabriel Cruz, Giovanna Galvani, Giulia Poltronieri, Guto Martini, Henrique Artuni, Isabella Guiduci, Isabella Molinari, Isabella von Haydin, Isabella Wasser, Larissa Rioja, Laura Andrade, Laura Molinari, Laura Simões, Letícia Giollo, Letícia Sé, Luca Castilho, Luisa Pascoli, Luiza Eltz, Malu Mões, Maria Luisa Rodrigues, Mariana Gonzalez, Marina Bufon, Mattheus Goto, Mauricio Abbade, Milena Alvarez, Paula Calçade, Paula Leal, Pedro Caramuru, Pedro Garcia, Rafael Fernandes, Rafaela Bonilla, Rafaela Morozetti, Raphaella Salomão, Renan Porto, Saulo Tafarelo, Seham Furlam, Teresa Lazarini, Thaís Chaves, Thiago Bio, Vanessa Nagayoshi Imagem de capa Beatriz Fialho Agradecimentos Carolina Moraes, Eduardo Nunomura e Luiza Sansão Núcleo Editorial de Revistas Avenida Paulista, 900 – 5º andar – 01310-940 – São Paulo – SP Tel.: (11) 3170-5874/5814 E-mail: revistaesquinas@gmail.com Site: casperlibero.edu.br/revista-esquinas Errata Na tabela da página 15 da edição 61, os dados corretos para servidores públicos atualmente são de 60 anos para homens e 55 para mulheres. Na fotorreportagem da mesma edição, o nome do repórter é Pedro Caramuru.

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ESCOLHER E RESISTIR Uma onda reacionária tomou conta do Brasil no segundo semestre de 2017. Enquanto exposições são sumariamente fechadas e manifestações artísticas são censuradas por determinados segmentos da sociedade com o apoio do Congresso Nacional, o Brasil aguarda - entre a ansiedade e a perplexidade - as eleições que devem acirrar ainda mais os ânimos conservadores no segundo semestre de 2018. Neste contexto conturbado, só cabe à Esquinas - a mais longeva publicação laboratorial de uma escola de Jornalismo do País - reiterar seu compromisso com a liberdade de imprensa, direito, aliás, assegurado pela Constituição de 1988. Mantendo a tradição de esquadrinhar a metrópole, a revista que agora chega a você visitou de igrejas evangélicas a casas de fetiche para mostrar que São Paulo é uma cidade em que o direito à escolha de ser quem você é continua existindo para além de todo o conservadorismo limitante. É preciso exprimir claramente o que foi apurado nas pautas propostas para que nossos leitores tenham também a liberdade de decidir de que lado se posicionarão. Somente esse desejo de narrar histórias não ficcionais que fujam ao lugar comum pode explicar, numa mesma edição, reportagens como a que conta os dez anos da Ocupação Mauá, na Luz, e outras que mapeiam em fotografias os locais na cidade especializados na conservação e divulgação científica da fauna brasileira. Do mesmo modo, histórias se entrecruzam nas linhas de ônibus da metrópole e na reflexão sobre o futuro das ciências no País e o lugar das mulheres na tecnologia. Esquinas também encontra espaço para questionar os limites e falhas da acessibilidade na Pauliceia e volta aos circos de bairro para lembrar que a velha lona segue se transformando para que a nostalgia se mescle à esperança. Por último, mas não menos importante, a equipe de Esquinas saúda a editora de textos, Paula Calçade, e o editor de arte, Guilherme Guerra. Recém-formados, a dupla encerra um ciclo na revista para começar um outro ainda mais importante: a entrada no mercado de trabalho. Defensores aguerridos da liberdade de expressão, de imprensa e da diversidade, temas que marcaram cada uma das páginas desta edição, mesmo que de maneira não declarada, a dupla atesta - ao contrário do que defendem alguns – que o desejo de se fazer bom jornalismo segue forte entre os jovens. Paula e Guilherme vão agora “sujar sapatos” em outras redações. Aquilo que todo jornalista de verdade, no exercício legítimo de sua profissão, deve fazer e que eles sempre praticaram com personalidade e inteligência no Núcleo Editorial da Cásper. Boa leitura! Por Márcio Rodrigo, editor-chefe

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Sumário Revista Esquinas, órgão-laboratorial do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero

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07 Educação transformadora Como a população transexual foge da marginalização nos estudos

08 O ensino da convivência Escolas municipais de São Paulo criam iniciativas para integrar refugiados e imigrantes

12 A caminho da falência Os cortes de gastos contra as pesquisas científicas brasileiras

14 As mães da programação A trajetória e luta das mulheres no ramo tecnológico

16 CAPA Igreja Universal do Reino de Deus perde devotos insatisfeitos com o dízimo

22 Cartas na mesa Cartomantes marcam presença na era digital

24 Por uma lei mais humanizada O advogado de Rafael Braga, Lucas Sada, fala sobre o caso e a recorrência de processos semelhantes no País

28 “Gosta de literatura?” Paulo Milhan: do seu envolvimento com o tráfico de drogas à profissão de escritor

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30 Se esse prédio fosse nosso Ocupação Mauá, no Centro de São Paulo, completa uma década de resistência

36 Fauna em foco Projetos de conservação ambiental e divulgação científica idealizam um futuro harmonioso entre pessoas e animais

44 O direito de parir Mulheres sofrem com a violência obstétrica durante a gestação, parto e pós-parto

49 Beleza além da pele Modelos com vitiligo questionam os padrões estéticos do mundo da moda

52 A rua é para todos As questões da acessibilidade urbana em São Paulo

56 Meu ponto é o próximo! Histórias vividas pelos passageiros das linhas de ônibus da metrópole

60 O show tem de continuar Circo tradicional sobrevive no Brasil

66 Sacanagem de respeito A Casa Podo agrada ao público fetichista na noite paulistana

SEÇÕES 50 INFOGRÁFICO 68 HQ 70 CRÔNICA Sumário

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O mundo neste semestre

Revista Esquinas, órgão-laboratorial do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero

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Deslocamentos forçados

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uerra na Síria e perseguições étnicas em Mianmar são acontecimentos que ajudam a explicar a crise humanitária que levou uma a cada 113 pessoas no mundo a solicitar refúgio em 2016, segundo a ONU. Os números para os próximos anos só tendem a aumentar.

Favorito?

Estado menos laico

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Rússia sediará a 21ª Copa do Mundo a partir de 14 de junho. Onze cidades receberão o torneio, além da capital russa. O Brasil, primeiro a se classificar para o campeonato, lidera o ranking da Fifa. Desde que Tite entrou no comando do time brasileiro, em junho de 2016, foram 12 vitórias em 18 jogos.

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m setembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o ensino religioso pode entrar na grade curricular das escolas públicas.

Nova Esperança

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ovo medicamento para combater o HIV, chamado Juluca, foi aprovado nos EUA em 2017. Mais simples de usar com apenas dois compostos químicos, o antirretroviral possui menor toxicidade e é uma das grandes apostas para o futuro do tratamento.

Fake news atacam

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guerra do presidente dos EUA, Donald Trump, contra a mídia faz uso maciço da provocação, notícias falsas e inclui uma possível lei da ‘mordaça’. Como resultado, 78% dos seus eleitores estão convencidos de que a mídia publica habitualmente mentiras.

Toda nudez será castigada

Sem direito de escolha

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Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) e Santander Cultural, em Porto Alegre, encerraram exposições com obras sobre a nudez e sobre sexualidade devido a críticas reacionárias nas redes sociais, em 2017.

A Dias de folia

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carnaval de rua de São Paulo é o segundo maior do país, com 3,5 milhões de foliões em 2017. Para 2018 o prefeito João Doria pretende criar um megaevento concentrado na Avenida 23 de Março. 06

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Comissão Especial da Câmara aprovou a criminalização do aborto em gravidezes decorrentes de estupros. O Congresso Nacional segue discutindo a PEC 181 no primeiro semestre de 2018.


RAFAEL JUSTO MORSE

ALI NA ESQUINA

Educação transformadora Cursinho popular em São Paulo prepara população transexual para o Enem Texto por Felipe Sakamoto

RAFAEL JUSTO MORSE

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para seus pais. Eles pensam que ela é um homem homossexual cisgênero – indivíduo que se identifica com o gênero imposto no nascimento. Ela sai de casa sem as roupas que contemplam sua identidade e se troca no caminho para onde estiver indo. Durante a volta para o lar, desmonta o seu visual feminino. Já Luise Fernandes, de 18 anos, fugiu de sua casa em Brasília por causa do preconceito e veio para a capital paulista, em novembro de 2016. Cursando o terceiro ano do ensino médio e se mantendo pela pensão de seu pai, a jovem transexual relata que a escola resistiu em aceitar seu nome social e também a orientaram a usar o banheiro dos funcionários. No Transformação, a realidade é outra. “Hoje, o professor errou o meu pronome por um descuido e depois ficou todo sentimental. Eles têm toda uma delicadeza para falar com a gente. É um lugar de muito acolhimento”, afirma. Considerável parte dos transgêneros vivem marginalizados. Dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), de 2013, mostram que aproximadamente 90% dessa população sobrevive da prostituição e sua expectativa de vida é de 35 anos. A solução encontrada pelos coordenadores do cursinho para tornar possível a permanência dessas pessoas nas salas de aula foi estabelecer uma parceria com o Centro de Referência e Defesa da Diversidade (CRD), garantindo o transporte e a alimentação de quinze participantes. “Para que você lide com a aula de uma maneira mais fechada e objetiva, é preciso que você tenha alguns acessos anteriores que te possibilitem ter essa vivência de imersão em estudo sem se preocupar com outra coisa”, conta a arquiteta Magô Tonhon, que tem como linha de pesquisa de seu mestrado, em Estudos Culturais pela Universidade de São Paulo (USP), a trajetória de pessoas transexuais

Além disso, as alunas e alunos do Coletivo Transformação participam do TRANSarau, espaço de expressão da população LGBT em São Paulo

na educação, tendo como objeto de estudo os estudantes do Transformação. Em seu trabalho, é confirmado que as pessoas trans entrevistadas tiveram uma relação de difícil permanência no ambiente escolar. Dessa forma, a proposta de metodologia do cursinho procura ser diferente do ensino tradicional. De segunda a quinta-feira, são dadas todas as matérias que caem no Enem de forma diferenciada, buscando mesclar o conteúdo ensinado em sala de aula com uma oficina prática. Por exemplo, para aprofundar o conteúdo sobre as obras do autor Machado de Assis, o voluntário Franco Francisco, de 28 anos, realizou um workshop sobre linguagem e arte, indagando o que seria comunicação a partir da HQ do conto “A Cartomante”. “O método de ensino também questiona o modelo atual, por meio de debates e conversas, onde pude esclarecer dúvidas e ganhar conhecimento”, conta Amanda Paschoal, estudante de Gestão de Turismo, no Instituto Federal de São Paulo, e ex-aluna e atual coordenadora do Transformação. Desde 2014, o Enem começou o atendimento pelo nome social. Mas ingressar no ensino superior não é somente a realização de um sonho, mas uma nova batalha. “É desconstruir a ideia de que pessoas trans e travestis só se prostituem”, afirma Rafaella Rodrigues que, no dia da entrevista, resolveu não tirar o batom vermelho, a maquiagem roxa, os brincos e o turbante colorido para retornar a seu lar.

RAFAEL JUSTO MORSE

s papéis coloridos no mural da ONG Ação Educativa, no Centro de São Paulo, indicam o nome e o gênero das pessoas que ocupam aquela sala de aula em busca de aprendizado. Rafaella é ela. Luy é ele. Max é elx. O Cursinho Popular Transformação busca, por meio do acolhimento, preparar travestis e transexuais para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Criado em janeiro de 2015 durante o III Curso de Formação Política LGBT, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), estudantes e ativistas de diversas partes do país discutiram sobre a marginalização da população transexual e travesti na sociedade brasileira, chegando à conclusão de que o acesso e a permanência em espaços de educação formal para essa população representam um dos maiores obstáculos, e ainda corrobora para a ausência de oportunidade no mercado de trabalho. De acordo com o defensor público João Paulo Carvalho Dias, em 2016, 82% da população de trangêneros e travestis deixou a escola. Para Rafaella Rodrigues da Silva, de 28 anos, a sala de aula também não foi fácil, mas “os estudos gritavam mais alto do que essas pessoas que me ofendiam”. A moradora do bairro do Itaim Paulista, na Zona Leste, se descobriu transexual no ano passado. Desde então, vive uma vida dupla, pois ainda não se assumiu

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EDUCAÇÃO

O ensino da convivência Projetos buscam integrar refugiados e imigrantes na rede Municipal de Ensino de São Paulo Texto por Gabriel Cruz e Laura Andrade Fotografia por Gabriel Cruz

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maior onda de refugiados desde a Segunda Guerra Mundial, em 1945, ocorre atualmente. Situações geopolíticas conflituosas e guerras civis são fatores que explicam as redistribuições populacionais pelo globo, geradoras da massa de, segundo o Alto Comissariado da Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), 65,6 milhões de deslocados. O Brasil vem acolhendo cada vez mais pessoas. Entre os anos de 2015 e 2016, houve um aumento de 12% do número total de refugiados em território nacional, sendo eles 9.552 pessoas de 82 diferentes nacionalidades, de acordo com o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare). Dentre as adaptações que os recém-chegados precisam fazer estão o aprendizado da língua e o acesso à educação formal. Em São Paulo, a Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Infante Dom Henrique, no bairro do Canindé, Zona Norte, promove para os recémchegados aulas de Língua Portuguesa. Cláudio Marques da Silva Neto, diretor da EMEF, garante que os êxitos da escola em que trabalha partem de sua abertura à comunidade que está em seu entorno, pois a Infante Dom Henrique se localiza em uma área com grande concentração de imigrantes. A escola inspirou a Secretaria Municipal de Ensino (SME) na construção do curso de Português para Imigrantes. De acordo com a SME, são 3569 unidades educacionais espalhadas por todo o território paulistano. Apenas dez delas foram contempladas com o Projeto de Português para Imigrantes. Nota-se que o esforço do poder público municipal, além de tímido, está no sentido de garantir o acolhimento educacional apenas de imigrantes. “A gente não trabalha com o termo refugiado”, disse Alvara Bianca Teixeira, assessora da Secretaria. Apesar dos termos semelhantes, imigrantes e refugiados não participam sempre do mesmo cenário. Refugiados são pessoas que tiveram que deixar seus países por causa de guerra ou medo de perseguições raciais, religiosas, de nacionalidade ou por fazer parte de um grupo social ou de opinião

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Salas de aula da Escola Municipal de Ensino Fundamental Infante Dom Henrique onde ocorrem aulas de Português para refugiados e imigrantes, além de atividades de integração entre crianças brasileiras e estrangeiras


política contrária ao regime em que se encontram. Por sua vez, imigrantes são pessoas que mudam de país, podendo estar fugindo da pobreza ou estar em busca de melhores oportunidades. O Projeto de Português para Imigrantes é a única política pública da cidade de São Paulo na área de educação voltada para imigrantes. Em 2013, esses estrangeiros representavam 2.448 alunos matriculados na rede municipal de ensino, número que saltou para 4.747 em 2017, segundo a SME. O programa se divide pelas Zonas Norte e Leste de São Paulo, não contemplando as outras regiões, oeste, sul e central. Essa falta de suporte, de acordo com Alvara Bianca Teixeira, ocorre devido à pouca concentração de imigrantes nas outras regiões da cidade. Entretanto, o site Dados Abertos SP mostra uma realidade diferente. É possível notar na região do Butantã e Campo Limpo, Zonas Oeste e Sul, respectivamente, um número significativo de imigrantes. Ao todo são 175 estudantes de diversas nacionalidades como: sírios, togolês, malinês, entre outras. Outra falha da SME parece ser a divulgação do programa. O “boca a boca” é a fonte principal de chegada ao ambiente escolar desses imigrantes, segundo os estudantes e professores. Os canais de comunicação ainda se encontram insuficientes à demanda crescente da cidade. A ausência do poder público paulistano se mostra também na confusão entre quem são os refugiados ou imigrantes. Tal confusão, entretanto, se explica: o critério para definir o que é um refugiado, versus

aquilo que se entende por imigrante não é tão simples. A fala de dois colegas de classe, sentados lado a lado, mostra isso. Louis Abalo, de 46 anos, faz parte do ciclo básico de Português para Imigrantes da escola Infante Dom Henrique e adquire uma feição grave ao ser perguntado sobre os motivos que o levaram a se mudar para São Paulo. Ele responde seco: “Problemas políticos”. Seu país, o Togo, na África, passa por problemas de ordem não apenas financeira, mas também na sua forma governamental. Abalo é um refugiado em São Paulo. Já Mahamadou Kaba, de 24 anos, está há um ano e quatro meses no país. Risonho, o habitante do Mali brinca que veio ao Brasil para ficar rico e achar uma esposa. Apesar de mais próximo da definição de imigrante, Kaba também é um refugiado. Seu país tem intervenções militares recentes da Organização das Nações Unidas (ONU). A professora deles, Helena de Oliveira, relata sobre a experiência do ensino do idioma nacional aos imigrantes. Segundo ela, alguns estrangeiros vêm sem saber absolutamente nada e outros, com a comunicação mais afiada, dificultando a logística do ensino. Além do Português para Imigrantes, a escola ainda abriga outra iniciativa chamada Escola Apropriada. Nesse último esforço, os alunos de primeiro grau do período da manhã se reúnem quinzenalmente e recebem convidados de diferentes países a fim de experimentar no ambiente escolar o contato com outras culturas. O bom resultado dessa luta travada pela sociedade civil está nos olhos dos irmãos sírios, também

Principais nacionalidades de refugiados no Brasil Em 2016, o país reconheceu 9.552 refugiados, totalizando 82 nacionalidades. A maioria vem da Síria (326), seguida pela República Democrática do Congo (189) e Paquistão (98)

refugiados, Mohammed e Mayas Ghazi. Mohammed, menino de 11 anos, está no Brasil há três anos e meio. “Aqui é muito melhor do que lá”, responde ao ser perguntado sobre como era sua vida na Síria em comparação a São Paulo. Já a menina, Mayas, sua irmã, de 7 anos, não fala nada sobre sua experiência aqui. Ela brinca alegremente com os colegas do primeiro ano, estrangeiros e brasileiros, mostrando que é possível a harmonia entre nacionalidades diferentes. A inserção de refugiados no Ensino Municipal da cidade de São Paulo é ainda tímida e carece de maior atenção do poder público. Entretanto, há realizações como a da EMEF Infante Dom Henrique que mostram como a escola pode cumprir um papel formador e de adaptação na vida dos imigrantes e refugiados.

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CIÊNCIA

A batalha das máquinas Estudantes de Engenharia da USP se reúnem para construir robôs e competirem em torneios nacionais e internacionais Texto e fotografia por Vanessa Nagayoshi

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o outro lado do mundo, dois robôs se enfrentam dentro de uma arena feita de policarbonato – vidro à prova de bala. Todo cuidado é pouco quando se trata de batalhas de robôs. Conduzidos por meio de um controle, eles tentam danificar o adversário por meio de uma placa de ferro que gira freneticamente na horizontal ou na vertical até nocauteá-lo. Se, em um determinado tempo, ambos ainda estejam ilesos o critério passa a ser de agressividade e danos. China, Índia e Holanda foram grandes obstáculos para a equipe brasileira de robótica Thunderatz, constituída por alunos de Engenharia da Universidade de São Paulo (USP), conquistar o primeiro e o segundo lugar na competição FMB World Cup 2017 realizada na China, em outubro de 2017. Não foi a primeira vez que o grupo foi convidado para participar do evento. Em abril do mesmo ano, eles se consagraram vencedores na categoria de combate com o robô Armagedrum (13,6 kg), que é campeão nacional. O grupo de robótica se formou em 2001 pelos alunos de Engenharia da Escola Politécnica da USP que desejavam construir robôs em um espaço livre na faculdade. No começo, eram quarenta membros, hoje já são 64 de diversas áreas da Engenharia. Todo processo é feito por eles, desde a idealização do projeto até a montagem e o reparo dos robôs. Os professores ficam apenas nas partes

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burocráticas como na regulamentação do uso do local. O trabalho é totalmente voluntário tanto por não ser remunerado quanto por não ser considerado carga horária oficial da Escola Politécnica. “São pessoas que realmente querem fazer robôs”, diz o estudante do terceiro ano de Engenharia Mecatrônica, Lucas Eder, um dos capitães da equipe. No centro de um enorme espaço labiríntico, separado por salas com diversas ferramentas e máquinas – onde os alunos de Engenharia Mecatrônica praticam o que aprendem em sala de aula – encontra-se a “Gaiola”. Parecida com uma jaula e com aproximadamente quarenta metros quadrados, a oficina é cercada por tramas de arames que substituem as paredes, e é lá que nascem os robôs feitos pela equipe. Os estudantes Vitor Feola e Isabella Bologna foram membros que representaram a equipe na China. Feola cursa o terceiro ano de Engenharia Mecânica e está há dois anos no grupo. Ele é responsável pelo funcionamento geral dos robôs. Já Bologna, estudante do segundo ano de Engenharia Elétrica, é responsável pela locomoção e o funcionamento da arma dos robôs. O que se ganha é a imensa bagagem de conhecimento. “Vamos aperfeiçoando e buscando o melhor. A gente gosta de manter a união, porque sessenta cabeças pensam melhor do que uma, né? ”, afirma Feola. O grupo tem vinte projetos: robôs autônomos, humanóides, de sumô, de inteligência artificial, de rock, de hockey, sendo os de combate o principal. A Thunderatz é uma das maiores equipes do Brasil e está em 2° lugar no ranking nacional, perdendo apenas para o RioBotz, da PUC - RJ. A equipe já conquistou medalha no Japão, Estados Unidos e China, além de competições nacionais. Centenas de medalhas e troféus e até pedaços dos robôs adversários danificados na competição estão expostos no alto das tramas de arame. A principal fonte de renda da equipe é o apoio da escola e do Fundo Patri-

Ratnik é o primeiro robô da equipe e conquistou o primeiro lugar no Campeonato FACE Robótica

monial Amigos da Poli, que conta com a doação financeira de ex-alunos e, atualmente, é a principal fonte de renda da equipe. Além disso, os patrocínios majoritariamente são de produtos e serviços, poucos são em dinheiro. Itens que dificilmente podem ser manipulados dentro da oficina são personalizados pelas indústrias parceiras. “Nossa vida é correr atrás de patrocínio e fazer robô. Seja para fazer o robô, seja para levá-lo para o combate”, afirma Eder. Na competição da China, o evento cobriu inteiramente as despesas. “Fomos muito bem recebidos. É de se impressionar no empenho que tinham em nos deixar o mais confortável possível”, conta Feola. O primeiro lugar deu à equipe um prêmio em dinheiro no valor de quarenta mil yuans (cerca de 15 mil reais), equipamentos robóticos e a classificação para a final. Todo prêmio em dinheiro é reinvestido nos robôs. “Eu diria que a gente mais gasta do que ganha. Ganha com muito conhecimento”, afirma o capitão.


Opinião

Comunicação é ciência A academia vai muito além do que a escola nos ensina É MUITO ESTRANHA a maneira como vemos a ciência. Até não muito tempo – no ensino médio – eu a enxergava como um campo masculino, branco, de físicos, matemáticos e biólogos. Pensando agora, é compreensível: a maneira como a escola trata suas disciplinas curriculares apaga a história e construção das Ciências Humanas. Enquanto nossos ouvidos se acostumam aos nomes dos cientistas de Exatas e de Biológicas ao longo da fase escolar (Pascal, Kelvin, Mendel, entre tantos outros), não construímos o mesmo repertório com as Humanidades. Ao entrar na faculdade, comecei a entender que o mundo acadêmico era muito mais do que imaginei. E tive que lidar com um autoquestionamento que perguntava se a comunicação, campo em que eu começava a entrar, era realmente uma ciência e como era legitimado. Muitos textos e professores me ajudaram nessa jornada. Mostrando-me que, sim, somos cientistas ainda que nosso objeto não seja exato ou biológico. Parece infantil essa reflexão, mas sinto que é importante debatermos o que é ciência, sendo as nossas impressões iniciais um ponto de partida de grande importância nessa experiência. Afinal, eu não estava de todo errada. As ciências, mesmo as Humanas, ainda são majoritariamente guiadas por homens brancos. Talvez por causa disso me interessei pelos textos de Stuart Hall, teórico jamaicano dos Estudos Culturais, e Edward Said, palestino que atuou na mesma linha que Hall, logo no primeiro ano da graduação em Jornalismo. Meu primeiro contato com Estudos Culturais foi no início da graduação, nas aulas de Teoria da Comunicação. Depois, aprofundei minhas leituras na área e participei do Intercom levando um artigo que discutia a representação do árabe no cinema norte-americano. Os povos árabes vêm sendo perseguidos, exterminados, segregados e assistimos a tudo isso com passividade, esvaziando a humanidade dessas pessoas. É aí que mora meu grande interesse pelas questões levantadas pelo orientalismo. A história já nos mostrou que criar um bode expiatório não é uma boa saída para resolvermos nossas crises ocidentais. Mas parecemos esquecer. Acredito que o papel do cientista social, e, principalmente, dos cientistas da comunicação, é de questionar os discursos que criamos por utilizarmos os meios de comunicação como instrumento de trabalho. Agora, no terceiro ano de facul-

dade, concluo minha Iniciação Científica, orientada pela Profa. Dra. Ana Luiza Coiro, sobre mulheres árabes em videoclipes. Fiz uma análise de como certos clipes feitos por mulheres subvertem algumas lógicas do universo de gênero do Oriente Médio. Meu objeto foram dois clipes: o primeiro, de uma rapper síria, Mona Haydar, chamado Dog, e outro de um grupo saudita, Majedalesa, com a música Hawages. Em ambos, vemos mulheres cantando pela igualdade de gênero em contextos específicos relacionados a suas origens. Conversei com mulheres árabes habitantes de São Paulo para entender as questões de identidade que essas representações tocam. E qual a importância de estudar videoclipes? É preciso entender que grande parte do que somos, de nossa identidade, é formada pelas representações que existem de nós - cognitiva e culturalmente. Quando esquecemos que nossa existência humana vai além das questões físicas e biológicas, começamos a questionar se a comunicação é realmente ciência. Penso nisso quando percebo que o videoclipe, assim como outros objetos audiovisuais, é visto com certo desdém no meio acadêmico. Quem somos é formado por complexidades discursivas e a mídia é o meio pelo qual somos (ou não) representados. Se uma grande parte das vidas das pessoas é construída pela comunicação, então por que os acadêmicos da área não seriam legítimos? A Iniciação Científica foi uma experiência academicamente importante porque me mostrou como as vidas das pessoas são construídas por meio dos artefatos midiáticos. A ciência não está distante da vida factual. A comunicação é uma ciência que se constrói a partir de outras e que se legitima pela importância do comunicador na sociedade. Letícia Sé é graduanda do 4º ano de Jornalismo da Cásper Líbero. Seu interesse acadêmico é em estudos culturais, questões de gênero e orientalismo

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DESENVOLVIMENTO

Comprovadamente, a caminho da falência Políticas de cortes de gastos do governo federal geram a pior crise enfrentada pela ciência brasileira em muitas décadas Texto por Giovanna Galvani

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arta para o Presidente da República. Teor altamente formal para que o peso simbólico do papel impresso seja sentido. As assinaturas elevam consideravelmente a importância do conteúdo: são ganhadores do Prêmio Nobel, o máximo reconhecimento mundial por feitos em diversos campos sociais, científicos, econômicos e de importância para a sociedade no geral. Nesse papel, 23 cientistas emprestaram seus importantes sobrenomes para contatarem Michel Temer em setembro de 2017. Período no qual o cenário científico brasileiro já estava sentindo efeitos que podem ser irremediáveis: o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) obteve, em março, um congelamento de mais de dois bilhões de reais em relação ao que havia sido originalmente proposto para 2017 e se viu o menor orçamento da pasta em 12 anos. Desde 2014, os cortes têm sido frequentes e cada vez maiores para a área, sempre baseados na justificativa de que o governo federal deve manter o equilíbrio fiscal. Após a aprovação da PEC 55 (ou PEC do Teto dos Gastos Públicos) em dezembro de 2016, que limitou os gastos federais a aumentos no nível da inflação por 20 anos, o receio é que a precarização continue avançando até a falência do desenvolvimento científico de qualidade no Brasil. Uma amostragem do problema está em como a Revista Nature, a mais importante publicação de divulgação científica do mundo, pautou o setor brasileiro em abril de 2017: pela “paralisia” da ciência, e não mais por trabalhos publicados por pesquisadores do Brasil. A matéria destaca também a chamada “fuga de cérebros”, termo utilizado para cientistas que

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aceitam oportunidades de pesquisa fora do país. “São pessoas formadas por nós, na sua maioria com verba pública, e que estão sendo impossibilitadas de contribuir para o avanço da nossa sociedade”, afirma Adriana Melibeu, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde chefia o laboratório de Neurobiologia do Desenvolvimento. Jennifer Nielsen, bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) na observação da órbita de meteoros pela Universidade do Vale do Paraíba (Univap), também relata um clima de descrença entre seus amigos pesquisadores. “Tive colegas que deixaram a iniciação científica porque não receberam uma bolsa”, conta. “Eu sempre quis ir para fora, e o cenário atual só me deixa com mais vontade”. Órgãos como o CNPq se encontram em situação preocupante pelo efeito cascata inevitavelmente gerado em situações como essa. Corta-se o orçamento, cortam-se projetos. De acordo com dados do site da instituição, que tem como principal objetivo incentivar e subsidiar a formação de pesquisadores brasileiros, a queda no valor de investimento a auxílio à pesquisa, bolsas no exterior e bolsas no país em relação a 2016 ultrapassa 600 milhões de reais. Em setembro de 2017, o CNPq declarou que não teria recursos para pagar mais bolsas e projetos se o orçamento restante não fosse descontingenciado imediatamente pelo governo federal, situação que prejudicaria mais de 100 mil bolsistas e pesquisadores brasileiros. O Novo Regime Fiscal instituiu limites para as despesas de cada um dos Poderes, do Ministério Público e da Defensoria Pública da União. Henrique Meirelles,

ministro da Fazenda, em entrevista ao El País, explica a real necessidade da proposta. “Não é um plano puramente fiscal. É impossível continuar economicamente no Brasil gastando muito mais do que podemos pagar”. LÓGICA IMEDIATISTA. A comunidade científica considera um erro e um atraso os cortes de gastos devido à crise econômica. “Todo país possui investimentos científicos em época de crise, porque a partir disso surgem novas propostas e novas resoluções para o problema. Você acaba gerando um produto sem o custo de adquiri-lo, comprar tecnologia é caríssimo”, afirma Wesley Luzetti, pós-doutorando no Departamento de Parasitologia da Universidade de São Paulo. Como um dos maiores exemplos para o caso, está a Coréia do Sul. Seu investimento foi de mais de 60,5 bilhões de dólares em pesquisa e desenvolvimento em 2014 – o maior do mundo. Para o futuro, o país pretende investir ainda mais nas chamadas “ciências básicas”, aquelas que se baseiam na aquisição de novos conhecimentos e desenvolvimento de teorias. No cenário nacional, a ciência básica acaba por ser a mais prejudicada na lógica imediatista do retorno financeiro. “É uma área que acrescenta às outras, mas não de maneira óbvia – logo, não recebe um dinheiro óbvio”, comenta Luzetti. Para Adriana Melibeu, “a realidade é que a qualidade de vida de uma sociedade, assim como o seu avanço, depende da Ciência”. Como exemplo, ela cita a adição de iodo ao sal de cozinha – simples solução de saúde pública que evita problemas no desenvolvimento fetal e doenças como o bócio.


Investimento do CNPq nos últimos cinco anos Auxílios à pesquisa

Bolsas no exterior

Bolsas no país

Atualizado até julho/2017 Fonte: CNPq

R$ 2,5 bilhões

R$ 2 bilhões

R$ 1,5 bilhão

R$ 1 bilhão

R$ 500 milhões

2012

2013

A GUINADA NECESSÁRIA. Para os pesquisadores, o país precisa seguir necessariamente pela via contrária na qual está insistindo. Luzetti, que acompanhou o processo inicial do projeto Ciências sem Fronteiras em 2011, relata que aquele foi o “o melhor período de verbas destinadas às pesquisas do Brasil”. Na época, o pesquisador estava cursando parte do doutorado no renomado Massachusetts Institute of Technology (MIT), universidade eleita como a melhor do mundo em 2017. Financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), ele conseguiu comparar a produção de cientistas brasileiros com aquela feita pelos norte-americanos: “Estávamos no mesmo nível acadêmico e o financiamento recebido era justo no mesmo nível que os Estados Unidos ofereciam para seus alunos”. Hoje, no entanto, ele percebe sinais de desânimo nos alunos que orienta na Universidade de São Paulo. “Tenho uma aluna terminando o TCC do curso de Biomedicina que vai para a Alemanha. Ela é muito boa e está fugindo muito cedo”, diz.

2014

2015

Atualmente, projetos de relevância internacional como o Sirius, futuro acelerador de partículas que gerará a luz de síncroton, com utilização da engenharia cívil a medicina, líder do mundo e considerado a maior ambição da ciência brasileira até então, correm grandes riscos de verem seus enormes investimentos parados no tempo. O Centro Nacional em Pesquisas e Materiais (Cnpem), conglomerado de quatro importantes laboratórios nacionais – no qual está incluso o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, responsável pelo Sirius -, sobreviveu a 2017 com um orçamento abaixo do necessário para fechar suas contas e o medo do contínuo contingenciamento que os afetou no ano passado. Com a aprovação da PEC 55, o receio é que a precarização continue avançando até a falência do desenvolvimento científico de qualidade no Brasil. Para Melibeu, um mantra das manifestações do setor contra a lógica governamental é: “se vocês pensam que a pesquisa é cara, experimentem a doença”. Para o presidente da República, no entanto, o tópico não parece ser profundamente preocupante.

2016

2017

Orçamento do Ministério da Ciência ANO

Orçamento aproximado (em bilhões de reais)

2005

6,1

2006

5,6

2007

6,2

2008

6,5

2009

6,7

2010

8,6

2011

6,8

2012

7,0

2013

8,4

2014

7,3

2015

6,0

2016

4,3

2017

3,2 Fonte: Governo federal

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TECNOLOGIA

As mães da programação

Mulheres se organizam para retomar seus lugares no mundo dos computadores Texto por Érica Azzellini

I

niciativas lutam por reconhecimento em uma sociedade em que apenas 7% dos desenvolvedores de programa no mundo são mulheres, segundo pesquisa da Stack Overflow. “O computador da minha casa pertencia ao meu irmão e eu jogava nele quando não estava usando ou quando ele me deixava usar”, lembra Iana Chan, co-fundadora da PrograMaria. Jornalista por formação, hoje Iana é uma das protagonistas do crescente movimento feminino em prol da redução da disparidade de gênero na tecnologia. Trata-se da organização de iniciativas que, a partir de ações online e presenciais, incentivam o debate em torno da questão, ao mesmo tempo em que aproximam mulheres das tecnologias na prática. O movimento é uma reação à baixa participação feminina no setor, marcado pelo assédio moral e sexual, salários significantemente menores para elas (mesmo que sejam mais qualificadas) e menos oportunidade de promoção em comparação a homens. Esse domínio masculino da área está relacionado à popularização de computadores pessoais. Logo que passaram a ser comercializados para o grande público no final dos anos 1970, é possível verificar pelas campanhas publicitárias da época que houve a construção de uma narrativa que os vendia como brinquedos para meninos. O anúncio do Apple II de 1979 trazia, por exemplo, a imagem de um homem utilizando o computador sendo admirado por sua esposa da cozinha, assim como uma propaganda da Atari, de 1981, coloca um menino usando o aparelho sendo incentivado por seu pai com olhares de fascinação de sua mãe e irmã, que não chegam a encostar na máquina. Essa falta de representatividade somada à percepção social de que tecnologias são “coisa de menino”, contribuiu para o afastamento de mulheres do setor já em meados dos anos 1980. O curioso é que até a computação se tornar um negócio lucrativo, as mulheres foram responsáveis por grandes contribuições para a área. As líderes de grupos pela redução da disparidade de gênero na tecnologia podem ser vistas em fotos nas redes sociais usando uma camiseta com os dizeres “Lovelace & Hopper & Vaughan & eu”, uma homenagem a Ada Lovelace (1815-1852), primeira pessoa a escrever um algoritmo processado por uma máquina – conhecida também como a “mãe da programação”; almirante Grace Hopper

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Revista Esquinas

U.S. Army Photo

U.S. Army Photo

“Computadoras” trabalhando em 1946 com o primeiro computador digital de grande escala


Somente 7% de desenvolvedores no mundo são mulheres 41% das mulheres desistem do setor de informática enquanto o mesmo ocorre com 17% dos homens Mulheres são apenas 15% das matrículas em cursos vinculados à computação 79% das mulheres desistem da computação no 1º ano FONTES: STACK OVERFLOW, HARVARD BUSINESS REVIEW E PNAD

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O

NS

Ada Lovelace (1815-1852)

WI K

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JOIAS OCULTAS DA INFORMÁTICA

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M

ON

S

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O

Primeira programadora do mundo. Desenvolveu o primeiro algoritmo a ser processado por uma máquina

Joan Clarke (1917-1996) A criptoanalista contribuiu com o projeto Enigma, durante a Segunda Guerra Mundial, auxiliando a decodificar mensagens secretas nazistas. Sua história é contada em O Jogo da Imitação (2014)

WI K

O

IC WI K

(1906-1992), inventora do primeiro compilador para uma linguagem de programação; e Dorothy Johnson Vaughan (1910-2008), primeira afro-americana a liderar uma seção da NASA, cuja história é retratada no filme “Estrelas Além do Tempo” (2016). “A gente não quer ficar olhando só para mulheres no passado ou que estão em países de primeiro mundo com condições muito melhores do que as nossas. Se é para ter mulher na tecnologia, a gente quer fazer isso”, enfatiza Cynthia Zanoni, fundadora do grupo WoMakersCode, durante a abertura do workshop de programação Women Dev Summit para mais de 60 mulheres, realizado no espaço coworking CUBO, em março de 2017. “A gente sonha com o dia em que o nosso projeto vai se tornar inútil porque as mulheres já vão ter conquistado seu espaço na tecnologia”, constata Iana Chan. Hoje, a PrograMaria e outros grupos como Desprograme, MariaLab, Vedetas e WoMakersCode atuam sob o mote do empoderamento feminino pela tecnologia e organizam palestras, workshops e cursos para aproximar as mulheres do mundo da computação. Para Cynthia Zanoni, o empoderamento se dá pelo aprendizado, já que mulheres capacitadas têm mais autonomia diante de cenários restritivos. “O primeiro passo é aprender. Depois, não tem limite”, sintetiza. O debate não é recente. Judy Wajcman, no livro Feminism Confronts Technology, de 1996, aponta que equiparar numericamente homens e mulheres na tecnologia não é tão efetivo para solucionar o problema da falta de diversidade na inovação, já que, muitas vezes, significa que mulheres precisam apagar suas características consideradas femininas para se manter no setor, enquanto que o processo contrário não é socialmente exigido aos homens. A questão é, portanto, fazer com que as empresas, escolas e universidades alterem as estruturas que tornam a tecnologia associada com o masculino. É o trabalho que Carine Roos desenvolve desde 2016 pela UpWit, consultoria de inteligência de gênero e inovação. “Percebemos que precisávamos desse trabalho não só com as mulheres, mas com empresas também”, diz. Para ela, é necessário dialogar diretamente com empresas de forma a auxiliar na transição para uma cultura que visualize na diversidade e inclusão de minorias um vetor de inovação. “Estamos trabalhando em um programa de equidade de gênero que pode ser aplicado em empresas de tecnologia e de outros setores”, explica. Para isso, a UpWit realiza workshops e treinamentos para promover a liderança feminina. É o caso do Woman’s Health Tech Weekend, hackathon realizado em março no Clube Hebraica, no qual foram pensadas colaborativamente soluções tecnológicas voltadas para a saúde da mulher.

M

MO

NS

Dorothy Johnson Vaughan (1910-2008) A matemática foi a primeira mulher negra a chefiar um departamento da NASA. Sua história é contada em Estrelas Além do Tempo (2016)

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CAPA

O preço da fé Ex-fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus se rebelam contra a cobrança de dízimo e o controle de suas vidas pessoais Texto por Renan Porto Colagem por Beatriz Fialho

C

olocando a mão sobre a cabeça de cada um dos fiéis postados frente ao altar, o pastor Michel Ribeiro clama: “Você, espírito maligno, seja arrancado. Você, que trabalha para desgraçar a vida amorosa dessa pessoa, seja acorrentado!”. Os fiéis vibram e repetem, gritando, de olhos fechados e mãos erguidas, “meu Deus, tire de mim o Diabo que me impede de ser amado! Eu vou ser feliz!”. O pastor faz uma ressalva, “se você não fizer a sua parte e não comparecer nesses encontros toda semana, é natural que a sua vida amorosa seja um inferno e seu casamento, destruído”. Por isso, recomenda a todos que façam o mesmo, pedindo aos fiéis que repitam, “eu vou obedecer”.

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Mas a obediência não basta. Para deixar de ser um “fracassado” na vida amorosa, é necessário também que se cumpra um procedimento que consiste em escrever sua meta afetiva em um envelope entregue pelo pastor e devolvê-lo com uma quantia em dinheiro no culto seguinte. “Você vai colocar nesse envelope a melhor oferta que você tem”. Ainda, o pastor sugere aos fiéis, em sua maioria com idades entre 60 e 70 anos, que ofertem valores correspondentes a suas idades. É com esse propósito que Eni, de 49 anos, comparece todas as quintas-feiras à Igreja Universal da Vila Mariana, na Zona Sul de São Paulo, para a reunião do amor. Depois de ter sido deixada pelo marido por causa dos grandes valores que oferecia à Universal, a fiel vê nas reuniões uma nova oportunidade. “Isso aqui é maravilhoso”, comenta Eni. “Eu tive um surto psicótico há um tempo e a Universal tem me ajudado muito na recuperação. Tenho certeza de que vou achar uma pessoa para mim”. A fiel prefere não ser fotografada e hesita em contar sobre sua relação com a Igreja, pois no passado já foi repreendida pelos pastores por esse motivo. De acordo com o pastor Michel Ribeiro, a conduta é aplicada também à cúpula da Igreja. Além de não permitir que fotos sejam feitas dentro do local, o pastor diz ser necessária uma autorização da chefia da Universal para que possa se pronunciar. Alexandre Silva, auxiliar do pastor Michel Ribeiro, alega que esses cuidados precisam ser tomados devido às mentiras que circulam a respeito da Universal. “As pessoas não conhecem a Igreja e o bispo Edir Macedo. Esse homem é ungido no Espírito Santo, ele é maravilhoso”. Entre as histórias de superação que afirma ter presenciado, o ajudante conta a sua. Ao ser acolhido pela Universal, ele estava viciado em drogas. Aos 22 anos, o fiel afir-

O QUE É NEOPENTECOSTAL? Movimento sectário mais recente da religião evangélica, conhecido por ser mais moderno quanto a costumes, mas muito rigoroso em seus dogmas. Seus pastores enfatizam as revelações milagrosas e a conexão direta com Deus. O neopentecostalismoéconhecido pela evangelização massiva

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Quando eu dizia não, os pastores alertavam que eu não estava sendo útil a Deus Daniele da Silva, ex-fiel

ma ter se transformado em outra pessoa devido à Igreja e, hoje, procura ajudar os que chegam desamparados ao templo, onde presta serviços. “Aqui tem dois mil lugares. Em cada banco desses tem uma pessoa que já passou por tanto sofrimento sentimental e espiritual que a gente não faz nem ideia. As pessoas precisam de ajuda”. Ele é voluntário da Igreja. Além de trabalhar como auxiliar de pastor sem receber por isso, o fiel colabora com a limpeza dos banheiros da unidade da Vila Mariana e com o custeio de produtos de higiene para abastecê-los. “Ninguém aqui me obriga a nada, eu faço isso porque quero. É preciso servir a Deus”, afirma. Ex-frequentadora da Igreja Universal localizada no Planalto Paulista, na zona sul de São Paulo, Daniele Silva, de 33 anos, vê os serviços voluntários de outra forma. Tendo sido voluntária desde os 14 anos, no tempo em que frequentava a Igreja, a ex-fiel afirma que há uma pressão psicológica por parte dos pastores que intimida os fiéis. Por mais que não existissem obrigações formais, ameaças subjetivas eram feitas. Ela conta que não conseguia negar por medo. “Quando eu dizia que não, os pastores alertavam que eu não estava sendo útil a Deus”. A ex-fiel revela que chegou a ofertar todo o seu salário e também seu décimo terceiro perante à promessa da solução para seus problemas. “Eu ficava na esperança, mas nada acontecia”. Diz ainda que, quando questionava os pastores a respeito da ineficácia de suas ofertas, ouvia sempre que não havia dado o melhor de si. O MILAGRE DA MULTIPLICAÇÃO. Os questionamentos de uma ex-fiel como Daniele Silva, contudo, apontam para questões bem mais complexas ligadas às práticas religiosas no país. O perfil do fiel cristão mudou no Brasil. Em pesquisa divulgada pelo Datafolha, cerca de 29% dos brasileiros disseram-se evangélicos enquanto 50%, católicos, em 2016. Em 1994, apenas 14% da população intitulava-se evangélica, enquanto 75% dizia-se católica. Na visão do teólogo Luiz Antônio Capriello, essa migração está ligada, por exemplo, ao fato

de as igrejas consideradas neopentecostais – às quais 75% dos evangélicos no país estão vinculados – apresentarem um espectro de aceitação de fiéis mais amplo do que a Igreja Católica. Sob a promessa de uma mudança de vida, igrejas como Assembleia de Deus, Universal do Reino de Deus, Congregação Cristã e Quadrangular procuram acolher dependentes químicos, prostitutas e homossexuais. Esses grupos, como afirma o teólogo, seriam ignorados pela Igreja Católica. Outra característica do movimento neopentecostal seria o culto ao dízimo, prática adotada por todas as igrejas cristãs, mas levada com muito rigor pelas novas instituições religiosas. Nesse contexto, a Igreja Universal do Reino de Deus, uma das maiores neopentecostais do Brasil, é alvo de críticas a respeito do modo como faz a cobrança das ofertas por parte de seus fiéis. Em grupos do Facebook e canais no YouTube, antigos frequentadores militam contra a instituição fundada pelo bispo Edir Macedo. Para eles, a cobrança de dízimos e ofertas, a tentativa de controle sobre as decisões dos fiéis e a coerção política são algumas das principais críticas feitas. Um dos principais fatores que mantêm os fiéis colaborando com os dízimos e as ofertas, segundo Daniele Silva, é a fundamentação bíblica que os pastores utilizam nos discursos. Um dos trechos mais repetidos com esse propósito nos cultos da Universal é o décimo versículo do terceiro capítulo do livro Malaquias (Malaquias 3:10): “Trazei

todos os dízimos à casa

do tesouro, para que haja man-

timento na minha casa, e depois

fazei prova de mim nisto, diz o

Senhor dos Exércitos, se eu não

vos abrir as janelas do céu, e não derramar sobre vós uma bênção tal até que não haja lugar suficiente para a recolherdes.”

(malaquias 3:10) Para o teólogo Luiz Antônio Capriello, por mais que o trecho faça menção ao dízimo, não consta na Bíblia a lógica cultivada no discurso da instituição. “Eles trabalham com o que se chama de


O perfil da Igreja Universal Em 1991, apenas 9% da população se declarava evangélica

20 anos depois, o número saltou para 22,4%

Em 2017, 29% da população se declarava evangélica

A Igreja Universal detém mais de 1,8 milhão de fiéis

A Igreja Universal possui 6 mil templos pelo Brasil

Edir Macedo possui 76 emissoras de rádio e 20 retransmissoras de TV, além da Rede Record

As emissoras da família Macedo chegam a mais de 200 países

Nas eleições de 2014, cinco entre os 20 deputados mais votados pertenciam à Igreja Universal

Entre 2000 e 2010, perdeu 229 mil adeptos, uma queda de mais de 10%

A Igreja possui 2,5 milhões de curtidas no Facebook e 250 mil inscritos no Youtube

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teologia da prosperidade, ou seja, quanto mais você oferece a Deus, mais ele te devolve”. Segundo o teólogo, isso não está claro na Bíblia. Por sua vez, a Igreja Universal alega em seu site oficial que os dízimos e as ofertas são “demonstrações de fidelidade do servo para com seu Senhor” e que, por meio delas, seria obtida uma vida abundante. A Igreja Universal do Reino de Deus conta com mais de seis mil templos, 12 mil pastores e 1,8 milhão de fiéis no Brasil, de acordo com dados de 2017 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Fundada no ano de 1977, a instituição possui hoje 76 emissoras de rádio e mais de 20 retransmissores da TV, entre elas, a Rede Record, uma das maiores emissoras de TV aberta do país. Isso faz da igreja do bispo Edir Macedo a maior detentora de concessões televisivas no Brasil. No exterior, a Universal atua há 20 anos dentro da Índia, disseminando a evangelização em um país majoritaria-

mente hinduísta, e desde 1989 e 1990 em Portugal e na Espanha, respectivamente, além de países da América do Sul como Argentina e Uruguai. Além disso, a instituição possui presença nos meios digitais. Com quase 2,5 milhões de fãs no Facebook, a Igreja Universal oferece em seu website oficial os links para acessar todas as suas redes sociais. São 250 mil inscritos no canal do YouTube, três mil publicações no Instagram e 210 mil seguidores no Twitter. Há passagens bíblicas, vídeos de alguns cultos realizados e ainda uma área para doações online. Fábio Lacerda, doutor pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais (FFLCH/USP), afirma que o alcance da Universal e de igrejas semelhantes seria um dos fatores responsáveis pela grande representatividade dos interesses religiosos no cenário político nacional. Aliado a isso, seria fundamental o modo como elas estão difundidas em unidades por todo o território nacional.

Lacerda constatou que 50% dos candidatos apoiados pela Universal foram eleitos em 2002 para o Congresso Nacional, o que conferiu à instituição uma taxa de eleição superior a de qualquer partido. Tendo em vista que um terço dos brasileiros são evangélicos, Lacerda considera plausível que pessoas se sintam representadas por candidatos evangélicos. Porém, não explica porque elas colocam a religião acima de suas outras características. “A grande maioria das mulheres evangélicas, por exemplo, prefere votar em candidatos evangélicos a votar em candidatas mulheres. Atualmente, a Igreja conta com cerca de 15% de deputados federais ligados ao setor evangélico. Nas eleições de 2014, cinco entre os vinte deputados mais votados pertenciam à instituição, compondo assim a chamada “bancada evangélica”. Um dos principais componentes dessa bancada seria o Partido Republicano Brasileiro (PRB). Fundada em 2006, a sigla

As capitais que mais têm evangélicos pentecostais: Rio Branco (28,43%), Belém (22,99%) e Boa Vista (21,21%) – as três na Região Norte

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teve o apoio da Igreja Universal. Daniele Silva conta que, após cobrança dos pastores, foi voluntária colhendo assinaturas para a obtenção do registro do partido no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). “Eles falavam que o partido ia defender os interesses de Deus. Por isso, todo mundo da Igreja votou nos candidatos que eles indicavam”, afirma. MILITÂNCIA ONLINE. Débora de Castro, de 30 anos, ex-obreira da Universal, recorda que no tempo em que frequentava a unidade do Recreio da Universal, no Rio de Janeiro, campanhas políticas eram feitas dentro da igreja em defesa dos candidatos do PRB. “Era uma apelação. A maioria dos fiéis não tem consciência política. Fica muito mais fácil para eles não ter que pesquisar em quem votar”, observa. Somado à desconfiança a respeito do discurso por detrás das cobranças financeiras, o episódio fez com que Castro se desligasse da Universal. Após passar RENAN PORTO

cinco anos como fiel, ela não percebia mais a igreja da mesma maneira que quando se converteu. “Eu entrei na Universal com a minha mãe. A gente sempre assistia aos programas na Rede Record, em que várias pessoas diziam que tinham mudado de vida. E, por termos uma vida tão difícil, nós estávamos muito depressivas com tudo, então a Universal acabou sendo a promessa de mudança que a gente precisava naquele momento”. Depois de ter se desvinculado da instituição, Castro passou a compartilhar no Facebook mensagens sobre o que acredita ser incoerente na igreja. Atualmente, existem na rede social grupos com essa finalidade. Entre eles estão o Não sou mais a Universal, com 18 mil membros, Por trás do altar da Universal, com 16 mil membros e Eu não faço parte da sujeira Universal, com três mil membros. Esse último é administrado por Miriam Miranda, que conta que frequentou a Igreja Universal em Belo Horizonte durante 15 anos e, com o tempo, passou a desconfiar das cobranças financeiras constantes da Igreja. Acessando por acaso um grupo como esses, Miranda se deparou com várias pessoas expondo os motivos pelos quais haviam deixado a instituição, o que acabou condizendo com suas desconfianças. Inserindo-se nesse cenário de “militância online”, em março de 2016, Natan Silva, ex-bispo da Igreja Universal, criou um canal no YouTube que hoje conta com 35 mil inscritos. Segundo ele, a princípio, o objetivo do canal era mostrar uma outra versão sobre seu desligamento da instituição em 2007. Na ocasião, o bispo ministrava cultos na sede da Igreja Universal Júlio de Castilhos, em Porto Alegre, quando lhe foi designada a missão de recolher 250 mil reais com urgência para o pagamento das parcelas da compra da emissora Record News. “Naquele dia, eu subi no altar e não fiz o que foi pedido. Não porque eu não iria conseguir, mas porque eu não estava ali para essa finalidade. Uma semana depois, eu saí”, conta. De acordo com o ex-bispo, ao se desligar da instituição, a Universal fez um trabalho para macular sua imagem, com medo de que uma dissidência da Igreja fosse criada, podendo atrair outros fiéis da Universal. Silva conta que a cúpula da instituição chegou a tentar convencer sua esposa a buscar o divórcio, oferecendo vários benefícios para que ela continuasse na religião. O ex-bispo conta ainda que foi dito que ele havia roubado a Universal e cometido adultério. Na época, não havia como se defender. Com a ascensão da internet, o agora youtuber conta que viu uma oportunidade de desmentir o que havia sido dito a seu respeito quando

Ex-bispo Natan Silva criou um canal no Youtube para criticar a Igreja Universal

só as redes de televisão da igreja podiam falar sobre o assunto. Silva afirma ainda que o fato de ser bispo não o impedia de ser cerceado a todo tempo pela cúpula da Universal. “Lá, pastor e bispo não têm vida própria. Eu, por exemplo, me submeti a uma vasectomia contra a minha vontade a pedido da Igreja”. O ex-bispo conta que a Universal fechou um “pacote” com uma clínica médica que incluía o procedimento de vasectomia de cinquenta pastores. Tudo, segundo ele, para que esses pastores pudessem ser promovidos ao cargo de bispo, conforme explica o ex-bispo em vídeo publicado em seu canal do Youtube. Entretanto, em seu site oficial, a instituição rebate dizendo que, na verdade, apoia um planejamento familiar e que muitos bispos e pastores da Universal possuem filhos. Por mais que não fosse expressamente uma obrigatoriedade, como conta Silva, aos pastores não caberia o arbítrio sobre essa questão. “Lá você diz sim senhor ou não senhor, sendo que o não senhor representa uma punição”, diz Silva. Com antecedência, esquinas informou à Igreja Universal sobre o teor da reportagem e declarações citadas no texto para que a instituição tivesse a oportunidade de responder as reclamações e questionamentos de seus ex-fiéis. Em e-mail enviado à redação pelo departamento de Comunicação Social e Relações Institucionais (Unicom), a Universal não se pronunciou até a data de fechamento desta edição ocorrida em dezembro de 2017, apenas reiterando durante três semanas que “a demanda seria analisada” e que qualquer manifestação por parte da Igreja seria encaminhada posteriormente.

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COTIDIANO

VE CT EE .C ZY OM

A vida das cartomantes e a leitura de tarô pela internet

Texto por Raphaella Salomão

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ma porta escura em meio à confusão da Avenida Brigadeiro Luís Antônio, na altura do número 2094, exibe anúncios discretos de leitura de tarô e trabalhos espirituais. No topo da escada, descalça e de roupa branca, Regina da Silva, lojista de 58 anos, conta que realiza atendimentos desde os oito anos de idade, após ter a primeira visão quando a mãe estava alugando uma casa. Ela conta que havia uma senhora ao lado do proprietário. “Eu via nitidamente a mulher sorrindo para mim, mas ela já estava morta. O homem era viúvo”, recorda. Dos degraus da entrada até a mesa branca, misturam-se inúmeras estatuetas, pedras, cartas ciganas, velas e búzios. Com um cigarro na mão, Silva explica que a leitura do baralho de tarô é uma relação de perguntas e respostas. Já os búzios trazem um sim ou um não. “Eu jogo os búzios e eles mandam um sinal que volta para mim. Não existem incertezas. A gente não mexe com destino. Destino é destino”, afirma. A três quarteirões da Avenida Paulista, em um sobrado vermelho e gradeado na Rua Silvia, 411, atende outra cartomante, Tereza Stefano, dona de casa de 37 anos. Atrás de uma mesa repleta de imagens de santos de diversas religiões e cartas, em um quarto nos fundos da casa, ela conta que entendeu o seu “dom de sentir” pela primeira vez aos sete anos. “Ainda muito nova, no meio da rua, eu pressenti que precisava passar uma mensagem a uma pessoa completamente estranha que cruzou comigo. Fui tocada no meu coração que eu tinha que ajudar. Não lembro qual era a mensagem, mas lembro da situação em si. Então tudo fez sentido”, relata.

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Stefano lembra que o próximo passo foi procurar orientação espiritual. A cartomante veio do Paraná e atende em casa há 20 anos, sempre em um processo de aperfeiçoamento e crescimento. Ela iniciou os atendimentos por causa de uma cobrança espiritual muito forte e uma necessidade de ajudar as pessoas. “É uma coisa minha, um dom que eu tenho, mas eu não vivo disso. As consultas não podem ser feitas de graça, porque o dinheiro também tem um símbolo na parte espiritual. Então eles pagam a minha força espiritual e com isso eu vou me renovando”, explica. Ela menciona que apenas a primeira consulta é paga, e que o resto do acompanhamento — que pode durar meses, é totalmente gratuito. “As pessoas que precisam de benzimento, de alguma orientação ou trabalho mais forte, acabam vindo aqui uma vez por semana, então nós criamos uma relação de tratamento e ajuda. Eu costumo brincar que o meu trabalho é próximo ao de uma psicóloga espiritual”, completa. Sobre a procura às consultas, Stefano conta que antigamente o público que a procurava era em sua maioria o feminino. “Os homens eram receosos de vir até mim, mas hoje os atendimentos são bem mesclados nesse sentido”, diz. Para outras cartomantes, o local de trabalho é a região central de São Paulo, no Viaduto do Chá. Mãe Dalva, de 60 anos, é uma delas. Ela veio de Cachoeira, na Bahia – uma região fortemente ligada ao candomblé e ao esoterismo, e atende no Viaduto há duas décadas. Dalva fez a primeira leitura aos 12 anos e hoje segue um ritual em suas consultas. “Para jogar os búzios e ler o tarô, é preciso pedir permissão para os orixás”, começa. Ela acende um charuto, se concentra, e assopra a fumaça sete vezes nas mãos do cliente: “é para limpar as energias”, explica. Trata inicialmente do nome e da numerologia por trás da data de nascimento, e depois embaralha as cartas. Separa os montes em cima da sua peneira e pergunta o que especificamente o consulente quer saber: cada um vai trazer as respostas para uma pergunta diferente. Com os búzios o processo é parecido. Ela se concentra, faz perguntas e em seguida joga. É sim ou não. Do outro lado da mesa, procurando ajuda na leitura do tarô, Amanda Ribeiro, professora e empresária de 25 anos, conta que procurou uma cartomante pela primeira vez há dois anos. “Eu tinha um certo bloqueio quanto à cartomancia. Mas, precisava resolver questões importantes da minha vida”, diz. Ela procurou

uma cartomante que atendia em uma loja de artigos religiosos em Catalão, Goiás, e, além das cartas, procurava informações sobre o passado: “Foi uma consulta conturbada. Ela disse coisas que mexeram muito comigo e outras que não fizeram nenhum sentido”. Apesar disso, Ribeiro conta que as consultas trouxeram resultados positivos: “As cartas não mentem, então por mais que seja alguma coisa negativa, você consegue enxergar aquilo de outra forma”. O TARÔ NA INTERNET. Roda da Fortuna. A carta do tarô que representa a reestruturação, uma revolução. Recriar e repensar uma relação também são expressões usadas para significar tal componente do baralho. A Roda da Fortuna é uma boa carta para ilustrar o momento atual das cartomantes, com a internet essas profissionais precisam se adaptar a novos tempos para não ficarem obsoletas. Apesar de preferir os atendimentos presenciais, Stefano possui um site na internet. “Nós somos obrigados a nos atualizar, ou somos deixados para trás. As pessoas me procuram pelo site e também pelo WhatsApp. Como o meu trabalho é muito espiritual, não preciso que o cliente esteja aqui para eu ajudar, vou puxar a energia, a alma, os chakras”. Além disso, seu trabalho é divulgado em jornais, em cartazes, nas redes e, principalmente, no boca a boca. “Uma cliente conta para as amigas e eu já recebo mais 10 pessoas. E isso vai crescendo”, conta. Leonardo Chioda é atualmente um dos especialistas do site Personare, portal voltado para o autoconhecimento e esoterismo. Ele defende que a internet facilita o trabalho de quem faz a leitura de tarô e resolve o problema da distância entre quem lê as cartas e que está interessado na leitura. “A partir de 2010, comecei a atender pela internet, via Skype. É uma ferramenta de extrema praticidade e comodidade”, comenta. Chioda atualmente mora em Veneza e possui consulentes em várias partes do Brasil, dos Estados Unidos e também da Europa. “Toda a minha agenda hoje em dia é baseada nos atendimentos virtuais. A praticidade que o mundo exige não descarta o mergulho que o tarô pressupõe em nós mesmos”, diz. O cartomante despertou para o tarô ainda pequeno. “Meu interesse pelo tarô começou na infância porque uma amiga da minha avó materna vinha em casa ler as cartas para ela”, conta. Logo depois, na adolescência, ele se desafiou a compreender e a aplicar a sabedoria do tarô.

“Comecei a atender em casa, anunciando no boca a boca, por um preço simbólico. Logo participei de diversas feiras esotéricas e nasceu o site Café Tarot, em 2006, em que escrevia minhas impressões e mostrava meus argumentos sobre os símbolos”. Com o tempo seus artigos ganharam espaço e visibilidade nas redes sociais da época, então o blog passou a ser seu laboratório para analogias entre o tarô e a literatura, o cinema e a cultura popular brasileira. “É importante relacionar essas cartas medievais com o que vivemos. É um espelho do que somos e fazemos”, diz. Quando questionado sobre o “dom” vinculado à análise do tarô, Chioda diz acreditar que a leitura das cartas se dá pelo estudo da teoria e pela prática. “Se fosse [um dom], as cartas não necessariamente teriam função”, afirma. Além de administrar o site Café Tarot e de fazer as análises para o Personare, Chioda também ministra cursos online de iniciação ao tarô. O primeiro passo destacado por ele é a verdadeira disposição para conhecer os símbolos e entender a sua dinâmica. “O tarô é um instrumento cultural do homem... Nunca foi um objeto mágico descoberto nas pirâmides do Egito, mas sim um registro visual de uma época e que tem, desde o século XVIII, evoluído esteticamente”. Dada a sua popularidade e resistência ao longo dos séculos e culturas, os oráculos são frequentemente procurados, seja presencialmente, seja na internet, sempre que surgem dúvidas sobre o caminho seguido e o caminho a se seguir. “O ser humano consulta oráculos desde muito antes da Grécia Antiga, sempre com o intuito de clarear os passos e ter noção do que lhe aguarda. É um processo natural que merece estudo e, mais que tudo, respeito”, ressalta Chioda.

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ENTREVISTA Cรณdigo: Cรณd. PF-037575/2006

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Revista Esquinas

Nome: RAFAEL BRAGA VIEIRA


Por uma lei mais humanizada O advogado Lucas Sada fala sobre a situação judicial do catador de lata Rafael Braga e sobre a seletividade penal que assola o País Texto por Isabela Guiduci, Maria Luisa Rodrigues e Rafael Fernandes

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m junho de 2013, durante as manifestações do Rio de Janeiro contra o aumento do preço da passagem do transporte público, Rafael Braga Vieira foi detido por policiais militares. Acusado de estar carregando duas garrafas com líquido inflamável com pequenos pedaços de pano presos ao gargalo, os PMs alegaram que o rapaz teria a intenção de preparar um “coquetel molotov” (arma química caseira para provocar incêndios em manifestações). O caso foi repreendido por parte da população, que afirma a inocência de Braga, alegando que ele foi alvo de racismo e, por isso, incriminado. O Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH) assumiu a defesa em dezembro de 2013. Outra acusação levou Braga para a prisão novamente em 2016. Dessa vez, denunciado por tráfico e incriminado por estar carregando material semelhante a entorpecentes. O réu alega que foi obrigado pelos policiais a carregar uma sacola e que também teriam oferecido a ele cocaína e o ameaçado de estupro. O rapaz foi vítima de tuberculose dentro da prisão e conseguiu, pelo menos durante o tratamento de saúde, a prisão domiciliar em 2017. Um dos advogados que acolheu o caso, membro do DDH, foi Lucas da Silveira Sada. Formado em Direito pela Universidade Cândido Mendes, é especialista em Direito Penal e Criminologia. A esquinas conversou com o advogado.

Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (InfoPen) de 2014, 36% das prisões são provisórias, o que causa uma superlotação de presos, atingindo uma taxa de ocupação de 166% no Rio de Janeiro, por exemplo. O Brasil tem 62% de negros presos e 38% de brancos. Na população geral, 54% são negros e 46%, brancos

Após as manifestações de junho de 2013, Sada começou a trabalhar com Direitos Humanos

esquinas Há quanto tempo você atua no DDH?

O meu contato com a advocacia popular e com direitos humanos veio por meio das manifestações de 2013. Formaram-se coletivos de advogados para prestar auxílio aos manifestantes detidos, arbitrariamente ou não. Nessa época, o DDH já existia, desde 2007. Como já tinha certa institucionalidade, eles não faziam só os atendimentos na delegacia, faziam os pedidos judiciais de habeas corpus. E essa coisa de ir além foi o que me interessou muito.

esquinas Por que o DDH acolheu o caso de Rafael Braga?

Foi uma manifestação muito violenta e muita gente foi detida no dia. Alguns companheiros do departamento foram para a delegacia, atenderam outras pessoas, mas não atenderam o Rafael. O DDH, nessa época, estava com uma equipe reduzida. A gente sabia do caso do Rafael, mas não sentiu condições de atuar no processo. Foi no contexto das manifestações que a gente começou a formar um corpo. Muitas pessoas, como eu, entraram. O tempo foi passando, foram menos de seis meses até a condenação dele. Nesse período a gente formou uma equipe muito maior de voluntários e já havia, de fato, condições de tocar a defesa dele. A sentença do Rafael, de 2013, deixa claro que dentre as motivações está a suposta intenção dele de usar aquilo [garrafas com líquido inflamável e panos] na manifestação, então era um “crime de manifestação”. A gente pegou o caso nesse contexto, a partir desse entendimento de que o caso tinha relação com a nossa atuação das manifestações, que era uma condenação absurda e merecia uma defesa efetiva.

esquinas Os casos que o DDH acolhe são semelhantes

com o caso de Braga, no sentido de condenações consideradas absurdas? Hoje em dia, o nosso projeto tem como foco fazer pedidos de habeas corpus para presos provisórios, com o recorte atual para aqueles acusados de crimes pela Lei de Drogas

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(lei 11.343, de 2006), basicamente por tráfico e associação ao tráfico. Então, é parecido com o Rafael no sentido desse caso atual (2016). A gente já fez vários cursos de formação em direitos humanos em favelas com a lógica de possibilitar a essas pessoas, que estão no território mais submetido às violações, a conhecerem seus direitos, que possam fazer sua defesa direta. Permanecemos ainda com alguns casos de responsabilidade civil contra o Estado por violência policial, inclusive nas manifestações. esquinas O caso de Braga teve dois acontecimentos,

o de 2013 e esse mais recente da prisão por drogas. Você acredita que o caso de 2013 interferiu nas negativas aos pedidos iniciais de habeas corpus, em 2016? Antes de o Rafael ser preso em 2013, ele já tinha sido preso outras duas vezes. Eu diria que tanto essas condenações anteriores quanto a condenação de 2013 certamente infleunciaram na atuação policial, na atuação do Ministério Público e no momento da sentença. As duas passagens anteriores do Rafael eram por tentativa de roubo. Certamente, quando foi detido pelos policiais e levado para a averiguação, o fato de ter condenações anteriores e de ser um “regresso do sistema” foram fatores decisivos para ter sido falsamente incriminado com a posse do suposto “coquetel molotov”. Isso é uma coisa que pesa no olhar que a polícia teve para ele, pesa no momento de se proferir a sentença e no momento de dosar a pena. Do memso jeito, foi um fator importante para essa última condenação.

esquinas Como as condenações anteriores pesaram?

Rafael Braga foi abordado novamente em 2016 e ele estava com uma tornozeleira eletrônica. Foi isso que despertou a atenção dos policiais. A gente chama de estereótipo criminal, que é a imagem socialmente construída do delinquente, que associa ao crime e ao criminoso características estéticas, raciais e sociais. Durante todo o processo, em todas as decisões negativas que a gente teve, o fato de ele ter um histórico com a justiça criminal foi citado recorrentemente. É como se a pessoa que já tem uma passagem pelo sistema penitenciário, pelo sistema de justiça criminal, houvesse contra ela uma reversão da presunção de inocência e ela passasse a ter uma presunção de culpabilidade. Como essa pessoa já foi considerada uma vez criminosa, todas acusações que fazem contra ela parecem caber, parecem se encaixar. Não diria que influencia no sentido de que o juiz o condenou porque o Rafael é um preso político ou algo do tipo, não penso que seja isso. É uma questão normal da justiça criminal de ter um olhar extremamente punitivo sobre os reincidentes.

esquinas Qual argumento utilizado pelo juiz Ricardo

Coronha Pinheiro para negar a liberação de algumas evidências do dia em que Rafael foi preso, como o registro do GPS da tornozeleira eletrônica utilizada por ele e o registro das câmeras da viatura? O caminho do GPS a gente conseguiu, só que o GPS tem uma precisão não muito perfeita. Acabou que não foi tão útil para a tese que a gente queria construir. Até porque essa contradição que houve entre os policiais (no caso de 2016), que poderia ser demonstrada pelo GPS, foi considerada de menor importância pelo juiz. A contradição seria a de que há

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Revista Esquinas

Os fatos que recebem mais atenção têm m um efeito de reproduzir as assimetrias sociais de classe e raça, sobretudo no sistema penal Aline Marques, ex-beneficiária

um policial que diz que ele foi levado direto para a delegacia, outro diz que ele passou pela base da UPP. O que seria muito importante conseguir eram as câmeras da viatura. Mostraria uma cena que aconteceu, sob a qual há uma divergência clara de narrativa entre os policiais e o Rafael, que diz que dentro da viatura ofereceram cocaína para ele. Um diálogo que, se tivesse acontecido, tornaria a prisão ilegal pelo comportamento dos policiais. Essa prova foi pedida na segunda ou terceira das audiências e o juiz basicamente entendeu que era uma prova protelatória, desnecessária. esquinas A mobilização popular, como a campanha

“Libertem Rafael Braga”, influencia o caso? É difícil dizer o quanto influencia. Até dois meses atrás, nunca tinha influenciado, porque a gente perdeu praticamente tudo que se fez no caso do Rafael. A gente só não perdeu no ano da execução penal (2014), conseguiu progredir o Rafael para o regime semiaberto, em dezembro daquele ano, e para o regime aberto, em 2015. Eu não diria que essa decisão em si, da execução penal, tivesse algo a ver com o clamor do caso. Eu acredito que pelo perfil do Ministro da Justiça, é uma decisão que poderia dar em outras situações. Tem uma coisa interessante que é o argumento que a gente utilizou no penúltimo habeas corpus, aquele que buscava a liberdade plena enquanto o processo durasse. A gente alegou que durante muitos anos o Judiciário decretava a prisão de acusados com base no clamor social, na repercussão do fato, na expectativa da sociedade em relação a uma resposta do Judiciário. Se durante muito tempo se utilizou o clamor da sociedade por punição para manter essas pessoas presas, por que não usar esse clamor agora de modo reverso para conceder liberdade? Eu diria que a gente tem expectativa que o clamor social sensibilize os julgadores que vão avaliar a apelação do Rafael, mas eu não conseguiria dizer se isso ajudou ou atrapalhou.

esquinas Vocês percebem um índice maior de casos

relacionados a pessoas negras e/ou de classe social baixa que são prejudicadas quando se trata de seletividade penal ou injustiça judicial? Na nossa visão é que sim. A seletividade é umas das características intrínsecas de qualquer sistema punitivo, porque é impossível punir todos os comportamentos que são etiquetados pela lei como criminosos. O Brasil, atualmente, tem mais de 1600 condutas que são criminalizadas abstratamente, o


LUIZA SANSÃO/ PONTE.ORG

Rafael Braga, catador de latas, tornou-se símbolo da luta contra a seletividade penal

que a gente chama de criminalização primária. É impossível que qualquer sistema de Justiça dê uma resposta a todos esses fatos. É preciso selecionar quais fatos vão receber mais atenção. E é essa seleção que tem um efeito de reproduzir as assimetrias sociais de classe e raça, sobretudo no caso do sistema penal. Então, não é que seja exatamente uma decisão deliberada dos agentes do sistema de justiça criminal de “devemos prender negros e pobres”, mas é toda uma ideologia que condiciona a atuação desses agentes. É mais fácil prender quem está na rua e quem tem poucas defesas para ter acesso aos meios de comunicação para reclamar sua inocência e contestar a versão oficial. Quem estiver mais vulnerável ao sistema penal vai ser alvo prioritário. esquinas É comum o DDH ter conhecimento de presos

que contraem doenças como a tuberculose, que foi o caso de Rafael Braga? A gente tem, em primeiro lugar, um sistema carcerário que é declaradamente inconstitucional. As pessoas que estão privadas de liberdade sofrem desde tortura a condições insalubres, passando por todo tipo de sofrimento ilegal que é imposto aos condenados. Desse cenário de barbárie do sistema carcerário, obviamente advém uma afetação à saúde e à dignidade dos presos. No caso do Rafael, ele foi vítima de tuberculose, e sobre essa doença temos alguns números. Existe um dado de 2015 do Ministério da Saúde que informa que a incidência de tuberculose no sistema carcerário é 28 vezes maior do que na população em geral. Temos um dado recente da Defensoria Pública que mostra que a quantidade de pessoas que estão morrendo no sistema carcerário do Rio

de Janeiro vítimas de doenças tratáveis é enorme. Se eu não me engano, nos primeiros cem dias, morreu um preso por dia nesse sistema de doença relativamente simples de tratamento ou doença tratável. esquinas O que vocês esperam que aconteça após o

final do período de prisão domiciliar, concedido a Rafael para tratar a doença? Entramos com um habeas corpus no Tribunal, pedindo a substituição da preventiva pela domiciliar. Perdemos no Tribunal e conseguimos pelo Supremo Tribunal de Justiça, em uma decisão liminar. Então, temos dois recursos tramitando no STJ, esse habeas corpus da prisão domiciliar, que vai ser confirmado, e outro que vai ter validade e eficácia após esses seis meses (de tratamento), que é um recurso que visa a uma liberdade ampla para Rafael durante o julgamento da apelação, ou até que seja julgada. Esse habeas corpus que está no STJ não é difícil de ser concedido, justamente porque a acusação contra o Rafael não tem nenhuma gravidade específica. Ele foi preso sozinho, sem armas, sem resistir a ação policial e com pequena quantidade de droga. O fato de ele ser reincidente, no entendimento da maior parte dos tribunais brasileiros, é suficiente para mantê-lo preso. É muito difícil dizer se a gente vai ter sucesso ou não em absolver o Rafael nesse recurso. Os tribunais mantêm esse tipo de condenação, por mais contradições e incongruências que os depoimentos de policiais tenham entre si e com a palavra do testemunho de defesa. Normalmente, se dá um crédito muito grande para a fala dos policiais, mesmo quando ela é contraditória. Então, a gente está na tentativa de reverter esse cenário.

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PERFIL

“Gosta de literatura?” Conheça Paulo Milhan: do envolvimento com o tráfico de drogas ao amor pela literatura Texto por Bruno Miliozi e Thiago Bio Fotografia por Isabelly Simoncello

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infância do escritor Paulo Henrique Milhan, hoje com 43 anos, em Andirá no Paraná, resumiu-se a brincadeiras com amigos, os mesmos que se envolveriam com o crime mais tarde. A ambição aumentou na adolescência, quando se separou definitivamente dos caminhos traçados pela família religiosa. “Sempre fui a ovelha negra”, diz. A família não passava por necessidades, mas para

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A Avenida Paulista é uma das principais vias para o escritor divulgar seu trabalho Revista Esquinas

ajudá-la transportava os boias-frias das fazendas nas redondezas por alguns trocados. Enquanto isso, o menino concluía o ensino médio no período noturno. Milhan queria mais. Os rolos eram uma fonte de lucro atrativa. “Comprava um carro e vendia, comprava uma moto e vendia, comprava um terreno e vendia”. Ainda assim, não foi suficiente. Após uma operação policial, o tráfico na sua cidade cessou e,

ali, Milhan viu uma nova oportunidade de lucrar. Entre quantias de lança perfume, cocaína e maconha, o jovem se tornou um dos maiores traficantes de Andirá. Como consequência, acumulou seis prisões na sua conta. Não bastasse ter que pagar 20 mil reais para ser solto em uma delas, não via outra saída a não ser continuar no mundo das drogas. Uma de suas prisões aconteceu em abril de 2002, em Sorocaba. Logo antes


de viajar para a Bolívia, onde pegaria um carregamento de cocaína, Milhan conversou, na rodoviária, com a mulher por quem estava apaixonado, Jackeline de Souza. Os dois decidiram se encontrar para resolver o destino da sua relação. Na mesma noite, talvez por ironia do destino, a polícia invadiu sua casa e o prendeu, sem mesmo que ele conseguisse ver Jackeline. O choque foi grande para a família, que não sabia do envolvimento de Milhan com as drogas. Sua irmã mais nova, Magali Milhan, relembra com tristeza a ocasião. “No primeiro momento pareceu um balde de água fria. Não esperávamos isso dele jamais. Nunca passou pela cabeça que ele pudesse se envolver numa situação daquela”. Por três anos e seis meses, ele permaneceu nos presídios de Sorocaba, Avanhandava e Andradina, todas cidades de São Paulo. Com dois meses de permanência na Penitenciária de Andradina, o jovem recebeu a notícia que mudaria seu rumo: a Funap (Fundação de Amparo ao Preso) organizaria um concurso de poesia dentro do presídio para os detentos colocarem suas habilidades de escrita em prática. Milhan escreveu o que sentia por Jackeline. Era apenas contar a sua história em versos. Para a amada, aquilo foi algo inexplicável. “Fiquei lisonjeada quando descobri”, Jackeline comenta. “É muito bom quando somos lembrados de alguma forma”. O poema fez sucesso entre os colegas de cela, que o pediam emprestado para mandar para suas namoradas e esposas do lado de fora do cárcere. Mas os laços com a escrita ainda não eram firmes o suficiente. Ao sair da cadeia em 2006, Milhan ainda não planejava parar com o tráfico. Voltou para a Bolívia e iniciou o contrabando novamente. Comprou um notebook e, sempre que viajava “a negócios”, escrevia sobre a história que não saía de sua cabeça. Logo que chegou a Sorocaba de uma viagem em que carregava seis quilogramas de cocaína da Bolívia para a cidade, a Polícia Militar o prendeu pela última vez. Daí em diante, conhecendo minimamente a lei, sabia que não havia escapatória. Eram no mínimo três anos de pena. Desolado com a sentença, decidiu: “Nesses três anos, vou me dedicar a escrever. Vou virar escritor agora. Colocar minhas ideias no papel durante todo meu período na cadeia”. Dividindo seu tempo com o serviço na biblioteca da penitenciária, escrevia seu primeiro romance. A assistente social lhe fornecia os cadernos e canetas para escrever suas obras. O agora escritor residiu nos presídios de Sorocaba, mais uma vez, e Itapetininga. Na primeira penitenciária, vivia com quase 20 pessoas numa cela de 18 metros quadrados. Já em Itapetininga, a situação era um pouco melhor: morava no Raio 1, dentre três no total, área geralmente mais

pacífica e estável do lugar. Dentro da cela, cinco presos que dividiam três camas. “O Raio 1 foi ideal para eu poder escrever”, declara satisfeito. Ao iniciar a elaboração do quarto volume, foi solto com três rascunhos em mãos. E dessa vez, ele estava decidido: não voltaria mais para o crime. Ao deixar a cadeia – já com suas obras escritas –, Milhan colocou em prática os planos traçados para seu novo ofício. Mas como ele mesmo afirma: “todo autor é um pouco iludido, quer ser um Paulo Coelho da vida”. E o desejo de ver sua história de vida nas vitrines de livrarias logo parecia a seu alcance. Seduzido por catálogos em grandes livrarias e promessas de exposição, fechou acordo às pressas com a editora particular Baraúna. Entusiasmado e com os livros em mãos, chegou a ser procurado pela Livraria Travessa, do Rio de Janeiro, mas cedo viu suas expectativas desmoronarem. Na tentativa de comunicar a editora sobre o interesse da livraria, foi ignorado. Chegou uma hora que, por conta da demora, a Travessa perdeu o interesse. Da frustração, nasceu a decisão de fundar a sua própria editora, a Editora Milhan, com sede em Sorocaba, em 2013. Sem dinheiro, Milhan foi a Campo Grande (MS), onde ficaria na casa de uma amiga e procuraria trabalho em uma firma qualquer. Não pensou, todavia, que a mancha de ex-presidiário não havia se dissolvido. Não arrumou o emprego e viu aos poucos o dinheiro que lhe restava se esvair. A esperança, mais uma vez, estava nos livros. Lembrou das caixas guardadas em sua casa e pediu ao irmão que lhe enviasse duas delas. Ao todo, 104 exemplares. “Decidi vender livro e, com o único dinheiro que tinha, fui até a rodoviária buscar as caixas”, relembra Milhan orgulhoso. “Apanhei uns 10 livros e tentei vender nos semáforos ali mesmo. Contava minha história e aceitava qualquer valor. Em menos de dez minutos, os livros acabaram”, conta o autor que, entre cédulas de R$ 2,00 e apanhados de moedas, atingiu a meta inicial. No Centro de Campo Grande, a luta continuou. Na Avenida Afonso Pena, fez do muro de um banco sua vitrine e perguntou aos que por ali passavam: “Gosta de literatura?”. Segundo Milhan, gostavam. Em dez dias, livrou-se dos 104 exemplares e arquitetou seu novo plano: São Paulo. Entretanto, o amor pela literatura não o pareceu tão latente por lá. Durante um dia inteiro na Avenida Paulista, apenas uma venda. Afinal, era um iniciante na arte de abordar paulistanos apressados. Até que, em 2015, um “macaco velho” nessa prática, um morador de rua chamado Jorge Carvalho, decidiu o ajudar em frente ao Parque Trianon. Como quem ainda não acredita no que aconteceu, Milhan conta: “Ele me disse que eu estava vendendo errado, que pechinchar não venderia o livro.

De família simples do interior, o paranaense se envolveu com tráfico de drogas e cumpriu seis penas

Falei que o valor era de 30 reais, e ele me sugeriu: ‘se eu vender, quanto você me dá?’. Ofereci ficar com 20 reais e o resto seria dele. Lá foi ele e vendeu por 50 reais”. Parceiros de vendas, Jorge e Paulo criaram um forte laço de amizade. Na rua, ambos passaram por situações similares na vida. Desde as dificuldades diárias até a rejeição das pessoas que passam por eles nas ruas. “Naquele momento, conheci toda sua vida. Nunca vi uma história de superação como a dele. Foi por isso que vendi seus livros pela Avenida Paulista. E ele me auxiliou a sair das ruas”, Carvalho relembra encarecidamente. Agora, além da primeira obra “Tarde Demais Para Acreditar no Amor”, carrega o romance “Amante Virtual”, publicado em 2016. A Editora Milhan atualmente sustenta-se graças ao programa do Sebrae de incentivo ao microempreendedor individual que isenta o pagamento de impostos. O custo da editora gira em torno de 54 reais por mês (INSS). As vendas são todas feitas por Milhan, às vezes recebendo a ajuda de amigos como Carvalho. O autor decidiu não dispor seus romances nas livrarias, por encarar um negócio não tão lucrativo quanto vendê-los por conta própria. Nas ruas é como ele sobrevive. Na cabeça, assim como na prisão, as ideias fervilham. No fim das contas, sempre foi um empreendedor. Como fez durante seu trajeto, atingirá seus anseios. A diferença é que, agora, não são ilegais e exigem bastante esforço. O futuro do autor, porém, ainda deve consistir por um tempo na seguinte frase: “Você gosta de literatura?”.

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URBANISMO

PEDRO CARAMURU

Se esse prédio fosse nosso A história da Ocupação Mauá, no centro de São Paulo, é parte da luta por moradia e disputas com os Poderes Executivo e Judiciário Texto e fotografia por Laura Simões e Pedro Caramuru

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Revista Esquinas


“S

e tirarem a gente de lá, é aqui que a gente vem morar com uma vista belíssima para o Marco Zero da cidade. Aqui será a nossa moradia, um ótimo empreendimento”, anuncia o altofalante na porta do Fórum João Mendes às 43 barracas dispostas na calçada oposta, montadas pela Frente de Luta por Moradia. A reintegração de posse da Ocupação Mauá estava marcada para pouco menos de um mês depois, dia 22 de outubro de 2017. Para protestar contra a ordem de despejo, os moradores do prédio, junto a outros movimentos de luta por moradia em São Paulo, reuniram-se em frente ao tribunal em 02 de outubro de 2017, data que marca mundialmente o dia do sem-teto. Como resultado, a ação de despejo foi adiada em um mês. “Trinta dias passam assim”, observa Nelson da Cruz, estalando os dedos. Ele é, aos 56 anos, uma das lideranças do movimento na luta por moradia na capital paulista. Para a maior parte dos moradores, ir à Ocupação Mauá não foi uma questão de escolha, mas sim de necessidade, e poucos têm uma alternativa caso sejam despejados. É o caso de Maria Carolina, ocupante de 35 anos, que divide o apartamento de menos de vinte metros quadrados com o marido e duas filhas, uma de dez e outra de quatro anos de idade. “Eu acho uma injustiça o que estão fazendo. A gente não tem para onde ir, eu estou desempregada e meu marido é camelô. Se eu não tivesse entrado lá, minhas filhas teriam passado fome”, diz. Segundo dados do Plano Municipal de Habitação da Prefeitura de São Paulo, em 2000, havia cerca de outras

90 mil pessoas em situação similar à de Maria Carolina, vivendo em conjuntos habitacionais precários. O problema da moradia em São Paulo, contudo, é muito maior. Já em 2010, o número de pessoas em áreas precárias atingia cerca de quatro milhões de pessoas, quase um terço da população da capital paulista. A cidade ocupa o segundo lugar no ranking de metros quadrados mais caros do Brasil. De acordo com o Departamento de Controle da Função Social da Propriedade da Prefeitura, a capital paulista possui mais de dois milhões de metros quadrados distribuídos em imóveis “subutilizados”, “não utilizados” ou “não edificados”. “QUEM NÃO LUTA ESTÁ MORTO”. A Ocupação Mauá foi batizada com o nome da rua em que se localiza. Lá, no número 340, a frase “Quem não luta está morto” estampa, junto das cores vermelho e branco, os poucos metros de um muro que delimita a porta de entrada. De frente para a Estação da Luz, comprimida por uma lanchonete à direita e por uma loja de roupas à esquerda, a Mauá se integra a um conjunto comercial composto por dezenas de pequenos estabelecimentos comerciais no quarteirão. No século XX, a Estação da Luz foi porta de entrada para milhares de migrantes que chegavam a São Paulo sonhando com uma vida melhor. Por causa disso, no seu entorno se construíram diversos quartos para aluguel. Hoje, muitos deles foram abandonados ou servem de hospedagem barata para a prostituição e o consumo de crack. Esse não é, no entanto, nem de longe o caso da Ocupação Mauá. Originalmente também um hotel, o

prédio ainda guarda alguns dos traços originais como os quartos pequenos e grandes áreas comuns, mas, principalmente, serve de abrigo para centenas de famílias. A portaria gradeada já não é mais a mesma. Assim como muitos prédios modernos, ao adentrar a antiga hospedaria, os visitantes devem se identificar com os documentos em mãos e os horários de entrada e saída são avisados. Passando pelo portão de ferro, o corredor leva à uma escadaria em caracol, que dá acesso aos apartamentos das mais de duzentas famílias, e ao vão central da construção. Ao final da assembleia do dia 27 de setembro de 2017, uma das coordenadoras do levante, Ivaneti Araújo, declarou: “Se a comunidade Mauá cair, não fica nenhuma ocupação no Centro da cidade. Vai ser um efeito dominó”. Esse cenário pode muito bem se tornar realidade. A Mauá é uma das mais antigas e consolidadas ocupações da capital paulista, com mais de dez anos contínuos de existência. Recentemente, a área da plantação nos fundos da construção foi destinada à construção de casas para habitação, onde hoje moram 14 famílias que foram despejadas de outra ocupação. Analice Silva dos Santos, de 61 anos, vive em um desses quartos. “Morei nas casinhas do Brás durante um ano. Lá, fiquei toda marcada, olha”, diz, mostrando as marcas de mordida de insetos em seu colo. “Os percevejos dormiam comigo. Aqui, eu limpo minha casinha todo dia. Levanto logo cedo e vou cuidar”. Os moradores participam dos mutirões de limpeza periodicamente, além de estabelecerem regras para o uso dos cômodos comuns e faxina dos andares. PEDRO CARAMURU

Mulheres da Frente de Luta por Moradia protestam em frente ao Fórum João Mendes contra a reintegração de posse do Prédio Mauá

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LAURA SIMÕES

Meninos moradores da Ocupação Mauá brincam na parte de trás da construção

“CHAPÉU ALHEIO”. A data, segundo boletim de ocorrência, em que os atuais moradores passaram a viver no prédio da Rua Mauá é 26 de março de 2007. Foi em 16 de março de 2012, dez dias antes da celebração do quinto ano consecutivo de ocupação, que os herdeiros do local iniciaram a ação de reintegração de posse do prédio. A data de celebração em questão era uma marca importante para os ocupantes: nesse dia poderia ser dado início ao processo de usucapião, modo de aquisição de bens ou direitos pela posse prolongada. A advogada da Associação Comunitária na Luta por Justiça aponta, em carta enviada à Corregedoria Nacional de Justiça, LAURA SIMÕES

assinada por Rosângela Rivelli, a rapidez do sistema judiciário em julgar o caso em 54 dias, muito abaixo da média nacional de quatro anos e quatro meses, de acordo com relatório “Justiça em Números” de 2016, publicado pelo Conselho Nacional de Justiça. Ainda de acordo com a advogada, os autores do processo contra os moradores não realizaram o pagamento das custas processuais, o que poderia acarretar pena de extinção do processo. O pagamento não foi feito, o processo não foi extinto e, no dia 07 de maio de 2012, o juiz Carlos Eduardo Borges Fantacini, da 26ª Vara Cível Central da Capital, julgou procedente o pedido de

Aqui eu limpo minha casinha todo dia. Levanto logo cedo e vou cuidar Analice da Silva dos Santos, moradora da ocupação mauá

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reintegração de posse, dando consolidada a posse do imóvel em favor dos herdeiros Mesmo que a Constituição Brasileira, no Artigo 3°, inciso III, diga que seja objetivo fundamental da República erradicar a pobreza e a marginalização, além de reduzir as desigualdades sociais e regionais, para o juiz na sentença proferida, “no Estado democrático de direito, onde assegurada a propriedade privada, não está o Judiciário autorizado a intervir na ordem econômico-social vigente”, pois, ainda segundo ele, “ao Executivo cabe assegurar o direito de moradia, obviamente não às custas dos particulares (como diz o sábio ditado popular ‘não se pode fazer caridade com o chapéu alheio’)”. Os moradores da Ocupação Mauá deram entrada com o pedido de recurso da decisão. Ao mesmo tempo, a Companhia Metropolitana de Habitação (Cohab/SP) iniciou um processo de desapropriação do imóvel, contra os proprietários, para a finalidade de construir habitações populares. Enquanto o recurso dos moradores foi negado, o processo movido pela Cohab continuava. Isso porque, em 2013, o então prefeito Fernando Haddad assinou o decreto de nº 54.113 que autoriza a Cohab a dar seguimento ao projeto reformulado da Nova Luz, criado e iniciado em 2009 na gestão de Gilberto Kassab.

engavetado e reformulado pela gestão Haddad que, pelos altos custos de investimento, não via uma aplicação financeira viável da forma como ele foi concebido. Até a semana anterior ao dia da reintegração de posse, o processo estava certo e seria conduzido pela Polícia Militar, despejando as 237 famílias do prédio. Porém, no dia 16 de novembro de 2017, a Prefeitura de São Paulo entrou em acordo com os proprietários do imóvel. Pelo edifício, será paga a quantia de vinte milhões de reais em virtude da desapropriação. “É importante dizer que a pior luta é aquela que não se faz, e quem não luta está morto. Viva a Mauá.”, afirmou a líder Ivaneti Araújo em um vídeo gravado para a página da ocupação no Facebook, no qual declarava a vitória dessa luta judicial. Embora esse seja apenas um caso, para os moradores da Mauá, o acordo será o recomeço de uma história com casa própria e possibilidade de construir uma moradia digna. À esquerda, moradores da Mauá reúnemse no vão do prédio em assembleia para discutir a situação do processo de reintegração. À direita, menina estuda em corredor do prédio da Mauá

LAURA SIMÕES

PROJETO AMBICIOSO. O Projeto Nova Luz foi idealizado, originalmente, como um projeto urbanístico feito pela Prefeitura de São Paulo a fim de ampliar os espaços

de moradia e reformar os aparelhos urbanos de convívio social na região, além de restaurar a arquitetura, que é única na capital paulista. Inicialmente, a ação previa para 2025 a criação de uma zona habitacional integrada ao comércio da região, ampliando o uso que os cidadãos fazem da área, além da preservação e recuperação do patrimônio histórico. Quarenta e cinco quadras ao longo das ruas Vitória e Santa Efigênia, respectivamente, seriam reorganizadas. Ações como a redução do fluxo de trânsito, a demarcação de ciclovias, a eliminação do estacionamento ao meio-fio e plantio de árvores. Pela proximidade com a Estação da Luz, o quarteirão em que hoje se localiza o prédio da ocupação Mauá seria completamente demolido para dar lugar a um centro de entretenimento, aberto 24 horas por dia, com cafés, restaurantes e cinemas. “Do ponto de vista urbanístico, é bom o projeto. Ele foi bem-feito, mas tinha problemas. Era muito grande e faltou diálogo com a comunidade. Tinha que ter montado um conselho com os moradores e vendedores da região desde o começo, o que só foi feito depois”, explica Elisabete França, diretora de Planejamento e Projetos da Companhia de Habitação e Desenvolvimento Urbano do Estado de São Paulo (CDHU/ SP). O projeto foi, em janeiro de 2013,

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FOTORREPORTAGEM

FAUNA EM FOCO

MAURICIO ABBADE

Projetos no estado de São Paulo visam preservar a biodiversidade em harmonia com a natureza Texto e Fotografia por Mauricio Abbade e Rafaela Bonilla Colaboração de Pedro Caramuru O ser humano habita a Terra há 200 mil anos. Desde o início, os animais têm uma participação importante em nossas vidas, para a alimentação, companhia ou transporte. O Antigo Egito, por exemplo, foi marcado por uma forte relação entre humanos e animais. Eles eram mumificados e enterrados juntos aos seus donos. Hoje, por causa da devastação do planeta causada pelas atividades antrópicas, a exploração desenfreada dos solos e a contaminação da água e ar, as relações construídas nesses milênios estão em perigo e a biodiversidade está ameaçada. Para diminuir o impacto da perda da diversidade, medidas, como a educação ambiental e preservação do meio ambiente, precisam ser tomadas. Nesta fotorreportagem foram retratadas três instituições no estado de São Paulo que promovem o que foi dito anteriormente: o Museu Catavento, local educativo que conta com um borboletário e um notável acervo sobre fauna e flora; a Reserva Florestal do Instituto Butantan e seu programa de observação e proteção de pássaros, o “Vem Passarinhar”; e o Centro de Reabilitação e Conservação de Animais da Associação Mata Ciliar em Jundiaí, a 57 quilômetros da capital paulista, que resgata animais maltratados por tráfico, caça, desmatamentos, entre outros. Todos os três projetos têm a mesma base comum. Prevalecem o respeito pelos animais, visando a conservação da biodiversidade, e o relacionamento animal-humano para as próximas gerações.

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MAURICIO ABBADE

Traficantes costumam arrancar os olhos de aves para que os animais não enxerguem a luz do sol e, portanto, não cantem, evitando chamar a atenção da fiscalização ambiental

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MATA CILIAR

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Implementada no ano de 1997, a Associação Mata Ciliar, de Jundiaí, tem como objetivo receber animais silvestres, prestar atendimento veterinário e, após o processo de reabilitação, realizar a reintrodução deles para seu ambiente natural. A maior parte dos animais chega por meio da Guarda Municipal, Polícia Ambiental, Corpo de Bombeiros e Defesa Civil, sendo vítimas de atropelamento, eletrocussão, queimada, caça, tráfico, entre outros acidentes em decorrência da devastação de seus habitats. Entretanto, a total recuperação desses animais nem sempre é possível. Alguns, em razão de sequelas físicas e/ou psicológicas, necessitam permanecer sob os cuidados da ONG - atualmente, mantendo cerca de 700 animais, desde pequenas aves até grandes mamíferos. Nessas três décadas de existência, em torno de 20 mil animais passaram pela Associação. Apenas 7 mil desses conseguiram seu retorno à natureza já que grande parte deles, por causa da situação que chegam, não conseguem sobreviver.

A cada ano, um número incalculável de filhotes é retirado das matas para serem vendidos como mercadoria

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MAURICIO ABBADE

O Brasil é o maior contrabandeador de animais silvestres, de acordo com a WWF-Brasil

O negócio movimenta mais de 2 bilhões de dólares e comercializa em torno de 12 milhões de animais anualmente


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No cativeiro, os animais passam por um período de reabilitação e observação. Nesse processo, exercitam seus músculos, treinam voo, caçam e são estimulados a desenvolver o comportamento natural da espécie, fornecendo dados científicos para a conservação da espécie

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MAURICIO ABBADE MAURICIO ABBADE MAURICIO ABBADE

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O Museu Catavento promove a aproximação entre peixes e borboletas com seres humanos


MUSEU CATAVENTO

Aberto de terça a domingo, das 9h às 16h, o Museu Catavento Cultural é o mais visitado do Estado de São Paulo. Um dos departamentos do local é dedicado à biologia. Com o objetivo que uma vivência e uma aproximação do conhecimento científico a respeito da fauna e da flora ocorra, no local se encontra um aquário de água salgada e um borboletário. Os monitores dessa seção são os responsáveis pela explicação de dados e divulgação de informações técnicas para aqueles que estão apenas de passagem pelo museu. Um recinto onde as pessoas possam observar borboletas, voando e se alimentando, para que entendam e vivam o mundo desses insetos é a razão da existência do borboletário. Enquanto o aquário cumpre a missão de ser um pedaço de mar no centro de São Paulo. Localizado no Brás, bairro de São Paulo, o museu foi criado para ser um espaço interativo que apresenta a ciência de forma instigante para crianças, jovens e adultos. Aproximar crianças e jovens do mundo científico é algo de extrema importância para a conservação ambiental, e esse é o dever do Museu Catavento Cultural.

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Entre muitas práticas, o Museu Catavento recebe grupos escolares para a educação ambiental e científica

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RAFAELA BONILLA

INSTITUTO BUTANTAN

Luciano Moreira Lima é ornitólogo e coordena o primeiro observatório de aves do país. A prática existe no mundo inteiro e é comum no exterior, ganhando, aos poucos, espaço no Brasil. À 15 minutos do metrô, no meio da Zona Oeste de São Paulo, existe uma mata cheia de diversidade, a Floresta do Instituto Butantan, onde os pesquisadores do observatório de aves organizam mensalmente um encontro aberto ao público, o “Vem Passarinhar!”. Tanto crianças quanto adultos de 80 anos participam do evento. O Observatório de Aves do Instituto Butantan, além de fazer o monitoramento populacional de aves, tem o objetivo de promover a conservação e a educação a partir da aproximação do público com a natureza. Fazendo com que as pessoas contemplem a biodiversidade que está no dia a dia ao redor delas, começando com as aves. São entre 30 mil a 50 mil observadores de pássaros no Brasil, e esse número vem crescendo. Considerado mais do que um estilo de vida, a observação vem cativando tanto pesquisadores acadêmicos a curiosos. “É como colecionar figurinhas, só que estão vivas e espalhadas pelo mundo”, confessa.

Luciano reproduz o canto dos pássaros com um aplicativo de celular para atrair as aves

PEDRO CARAMURU

RAFAELA BONILLA

Entre elas está o bem-te-vi rajado, ave migratória que passa o inverno na Amazônia e verão em São Paulo

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Durante as caminhadas educativas no Butantan, é possível identificar mais de trinta espécies de pássaros diferentes

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Binóculos e enciclopédias de aves são fornecidos gratuitamente no “Vem Passarinhar!” para que os observadores acompanhem melhor o trajeto

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DIREITOS HUMANOS

O direito de parir Sem legislação específica sobre o assunto no País, mulheres brasileiras sofrem com a violência obstétrica Texto por Bruna Anielle, Giulia Poltronieri, Isabella Wasser e Larissa Rioja

“O

médico colocou uma sonda na minha uretra, porque disse que eu havia sofrido uma laceração. O instrumento, nesses casos, é usado por 24 horas por causa do risco de infecção, mas em mim ele deixou por cinco dias”, conta a advogada Ruth Rodrigues sobre sua experiência de parto em um hospital particular de Brasília. Ela não está sozinha: uma entre quatro mulheres sofre violência obstétrica no Brasil, segundo pesquisa feita pela Fundação Perseu Abramo no ano de 2010. Trata-se de uma agressão física ou verbal cometida por profissionais de saúde contra mulheres durante o período gestacional, o parto ou o pós-parto. As ocorrências vão do estímulo à gestante a optar pela cesárea sem necessidade comprovada para o procedimento até negar o atendimento médico a mulheres que sofreram um aborto espontâneo ou induzido. No país, ainda não existe tipificação para esse tipo de crime na legislação vigente, o que contribui para a sua recorrência e desconhecimento. “Os médicos são vistos como quase deuses, por isso muitas mulheres têm dificuldade de entender a violência. Elas pensam: ‘Mas ele falou que era assim, estudou para isso’”, afirma Giovanna Balogh, doula e autora do site Mães de Peito, criado para dar apoio a mulheres que passam por dificuldades no período gestacional e durante os primeiros anos da maternidade. A pesquisa “Nascer no Brasil”, realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em 2014, aponta o peso da opinião

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médica e a falta de interesse desse profissional pelo parto natural como motivo da desinformação das mães e pais sobre o tema, podendo aumentar o risco de procedimentos desnecessários e de perigos para a gestante. O Brasil é líder mundial em cesáreas com quase 90% dos partos cesarianos em hospitais particulares enquanto a recomendação é 15%, segundo relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS). “Para alguns, o parto é visto como doença. Perdeu-se a consciência de que é um acontecimento normal do corpo e que assim deve ser tratado”, conta Ruth Rodrigues, que fez uma especialização jurídica em violência obstétrica depois que foi vítima da agressão. “Os planos de saúde pagam uma merreca para os obstetras, que ganham entre 300 e 400 reais por parto. Além disso, eles não querem ser surpreendidos pelo compromisso de realizar um parto na noite de Ano Novo, por exemplo. É mais conveniente marcar todas as cesárias em um único dia e quando desejarem”, afirma Giovanna Balogh. Ela acrescenta que, em São Paulo, a diferença de valores entre parto normal e cesariana é mínima ou inexistente, tanto na rede pública quanto na privada. Assim, um profissional de saúde recebe quase a mesma quantia para fazer a cirurgia, que dura cerca de três horas, e um parto normal, que pode passar de 12 horas. Mas, o parto por cirurgia pode salvar vidas se prescrito corretamente. “Se a criança defecar na bolsa amniótica, por exemplo, indica sofrimento fetal e, por isso, a cesariana deve ser feita com urgên-

cia. A mulher tem que ser sempre monitorada para poder ser encaminhada ao centro cirúrgico se necessário”, esclarece a pediatra Cristina Pismel. O grande problema no quadro de partos brasileiros é o excesso do número de cirurgias, que extrapola o recomendável. “Ninguém é menos mãe por passar por uma cesariana. A gente não está discutindo nível de maternidade, mas uma questão de saúde pública. No Brasil, a diferença é gritante”, acrescenta Giovanna Balogh. Diante desse grande número de cesáreas e do crescimento de movimentos a favor do parto natural, novas regras do Conselho Federal de Medicina foram estabelecidas em 2015 com o objetivo de reduzir essas intervenções cirúrgicas desnecessárias. Médicos só poderão realizar cesarianas agendadas a pedido da gestante a partir da 39ª semana de gestação. Nesse caso, elas devem assinar um termo de consentimento em que afirmam que estão cientes de todos os riscos dessa decisão. PARA ALÉM DO PARTO. A violência obstétrica não se resume ao momento do parto. Ao contar sobre sua segunda gravidez, Ruth Rodrigues lembra que, apesar de ter realizado o sonho de ter sua filha em casa, com a supervisão e o auxílio de uma doula – assistente de parto, sem necessariamente formação médica –, precisou ir a um hospital particular em Brasília,


Como identificar a violência obstétrica durante a gestação, o parto e o pós-parto: • Negar atendimento à mulher • Comentários constrangedores à mulher, por sua raça, idade, religião, condição econômica, estado civil etc. • Cesárea sem recomendação baseada em evidências científicas • Impedir a entrada de acompanhante escolhido pela mulher • Impedir ou retardar o contato da mulher com o bebê • Procedimentos que causem dor ou dano físico, como soro de ocitocina, exames de toque excessivos, privação de alimentos, episiotomia e imobilização

onde mora, para retirar a placenta. No centro cirúrgico, a lei do acompanhante foi violada, pois não permitiram que sua irmã entrasse para acompanhar o procedimento. Além de ter sido obrigada pelo cirurgião a permanecer com a sonda por cinco dias, a advogada foi agredida verbalmente por ele. “Quando o médico me perguntou sobre o trabalho de parto e eu contei a ele, tive que ouvir ‘essas mulheres inventam de fazer parto domiciliar e a gente que tem que resolver as merdas que acontecem’ e ‘se tivesse feito um parto decente, não estaria assim’. Eu me senti completamente desrespeitada!”, conta. Rodrigues acredita que casos como o dela acontecem porque os médicos subjugam as mulheres e seguem um protocolo desnecessário e desatualizado do hospital. Ao questionar o motivo de não poder dar banho em sua filha, o que era feito apenas pelas enfermeiras, recebeu como resposta de uma delas: “Mãe, a partir do momento que você entra aqui, você vira propriedade do hospital”. A ginecologista e obstetra Otília Revollo Alarcon explica que determinados procedimentos comumente realizados no parto e são agressivos ao corpo da mulher podem ser evitados na maioria dos casos. Exemplos disso são a episiotomia, corte feito no período da pré-expulsão para poder ter uma maior abertura para a saída do bebê e evitar rupturas

na região do períneo, e o uso de soro com ocitocina, medicamento que acelera as contrações uterinas. “Essas práticas são muito antigas. Hoje já se sabe que elas só são necessárias em casos extremos, quando o corpo da mulher não está preparado para parir em virtude de alguma outra complicação mais séria”. A médica destaca também que eles podem causar graves consequências à mãe ou ao bebê. “A Manobra de Kristeller, por exemplo, na qual é realizada uma pressão na região abdominal da mulher para facilitar e acelerar a expulsão do bebê, é extremamente perigosa. Pode causar dificuldades fecais e urinárias na gestante e muitos traumas na criança”, afirma. Hoje, três anos após ter sofrido violência obstétrica, a advogada Ruth Rodrigues utilizou os conhecimentos obtidos no curso de capacitação jurídica e conseguiu dar entrada no processo contra os médicos e o hospital envolvidos no seu caso. “A violência obstétrica não tem tipificação no código penal; não é considerada um crime no Brasil. Mas, mesmo assim, ela deve ser denunciada. Casos desse tipo devem chegar aos juízes para que ganhem visibilidade e passem a ser entendidos como crime”. Segundo o Ministério Público Federal, a vítima deve realizar primeiro uma denúncia no CRM, com uma cópia integral do prontuário médico digitalizado, que é direito de qualquer cidadão e deve ser guardado pelo hospital por no mínimo 10 anos. Por não existir uma tipificação para esse tipo de crime, pode ser enquadrado em processos como danos

morais, violência psicológica, lesão corporal ou ameaça e, por isso, a punição varia muito de acordo com o julgamento de cada caso. “No estado de Santa Catarina foi sancionado em fevereiro de 2017 um projeto de lei (Lei 17.097/2017), que tipifica a violência obstétrica, mas é uma lei estadual. Ainda precisa ser expandida para todo o Brasil”, afirma a advogada. Para Giovanna Balogh, acesso a informação também é um dos caminhos para lutar contra a crescente onda de violência obstétrica. “A mulherada precisa se informar e ir atrás dos seus direitos. Isso é o que eu prego bastante e tento fazer no meu site: dar informação para a mulher”. A ONG Artemis, comprometida com a prevenção e a erradicação de todas as formas de violência contra as mulheres, disponibiliza em seu site uma seção dedicada somente a esse tipo de ocorrência, com espaço para orientar a denúncia e escrever o próprio relato. Ela também criou o “kit judiciário”, um relatório com todas as informações básicas sobre esse tipo de violência, que foi enviado para 101 instituições-chave do judiciário brasileiro, com o objetivo de informar e conscientizar defensores, juízes, procuradores e advogados a respeito do tema e fornecer instrumento para o melhor julgamento das ações que receberem.

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COMPORTAMENTO

Mito ou verdade?

A moda da água alcalina divide a opinião de pesquisadores e profissionais da saúde Texto por Paula Leal Mascaro

O

Ácido

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Neutro

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Além disso, quem defende a bandeira qualidade da água da Sabesp, identificado da água com pH acima de 7 garante que na resposta por Facebook apenas como os benefícios são muitos, desde que ingeri- responsável pelo departamento de quada diariamente na quantidade adequada: lidade da água, “o parâmetro do pH não possui propriedades digestivas, ajudando a tem nenhuma significância sanitária, por prevenir problemas gástricos; aumento da isso não é exigido na legislação que define a imunidade, uma vez que vírus e bactérias potabilidade da água, conforme a Portaria precisam de um meio ácido para sobreviver. 2914/11. O que existe é uma recomendaUm estudo publicado em julho de 2016 pela ção de que o pH esteja entre 6,0 e 9,5 no biblioteca Nacional de Medicina dos Esta- ponto de entrega”. Existem águas que naturalmente são dos Unidos revela a redução de um melanoma em ratos após a ingestão de água alca- alcalinas, ou seja, nascem direto da fonte lina. Os cientistas autores do experimento e apresentam um pH maior que 7. Filtros concluem o trabalho dizendo que o teste especiais também podem ser encontrados pode ser considerado uma nova abordagem no mercado para tornar a água alcalina, por processo de ionização (reação químipara esse tipo de doença. No time dos descrentes, que acreditam ca que ocorre entre as moléculas de água, que a tendência da água alcalina é pura separando-as em ácidas e alcalinas). Sem estratégia de marketing, Rogério Feliso- consenso na comunidade científica, o asni, presidente do Controle Hídrico de São sunto segue dividindo opiniões. Paulo (Cohesp), condena a recomendação de consumo Conheça o pH de algumas de água com pH alcalino águas no mercado promoção da saúde. “Essa Lembre-se de que o pH é informação é absurda, mensempre medido a 25ºC tirosa e sem nenhum fundamento. O ambiente estoma14 cal de uma pessoa normal A Sabesp tem pH na faixa de 2,5 a 3,0 recomenda que quando se toma água com o pH da água pH alcalino a sua influência esteja entre 6,0 sobre o pH do estômago é e 9,5 no ponto Ibirá praticamente nenhuma em de entrega, mas 10,15 razão da ‘força’ do ácido estonão vê nenhuma macal”, afirma o engenheiro significância no blog da Cohesp. Minalba sanitária neste Para Tarissa Petry, en8,10 parâmetro docrinologista no Hospital Alemão Oswaldo Cruz, “neCristal nhum estudo científico em 7 O sangue 7,37 seres humanos demonstrou apresenta um um benefício real do conpH em torno sumo de água alcalina para Bonafont de 7,35 e a saúde”. Para a médica, o 6,17 7,45. Segundo organismo tem muitos meDaniella Horn, canismos para a manutenção S. Lourenço beber água com de um pH adequado através pH acima de 7 é 5,34 dos rins e da respiração, por essencial para o exemplo, não havendo nebom equilíbrio cessidade de consumir água da acidez alcalina para isso. sanguínea De acordo com o respon0 sável pelo departamento de

Alcalino

consumo de dois litros diários de água é recomendação conhecida de quem se preocupa com a saúde. Afinal esse líquido não apenas hidrata, mas também funciona como um nutriente para o organismo. Há aproximadamente três anos, além das características que toda boa água deve ter – insípida, inodora e incolor, um outro indicador está ganhando a atenção da galera antenada em novidades “fit”: o pH ou potencial hidrogeniônico. Uma água se diferencia de outra pelo teor de sais e diversos elementos como cálcio, magnésio e potássio. O pH é uma escala logarítmica que mede o grau de acidez, neutralidade ou alcalinidade de determinada solução. A escala de pH varia de 0 a 14, sendo que o valor mínimo 0 corresponde a acidez máxima, o valor 14 significa que a solução é altamente alcalina/básica e a neutralidade é representada pelo pH = 7. O nutrólogo Lair Ribeiro é um grande defensor do consumo de água alcalina no Brasil. “95% dos casos de câncer só se desenvolvem em ambientes ácidos. Ao ingerir água alcalina, você contribuiria para manter o organismo com um pH básico”, afirma. A blogueira fitness Gabriela Pugliese, com mais de 3,5 milhões de seguidores, postou em seu blog um artigo da nutricionista Daniella Horn recomendando o consumo de água alcalina. A blogueira preferiu não se manifestar sobre o asssunto. Thalita Posella, frequentadora de academias cinco vezes por semana, conta que um dos cuidados que tem com a saúde é a escolha de uma água de qualidade. Incentivada por amigos e por sua nutricionista, ela é adepta do consumo de água alcalina há quatro anos e desde então se diz mais disposta e com energia. “Quando tomo uma água muito ácida meu estômago não reage bem”, acrescenta Posella. “O sangue humano apresenta um pH em torno de 7,35 e 7,45. Beber água com um pH acima de 7, ou seja, alcalino, é essencial para o bom equilíbrio da acidez sanguínea”, diz Horn em seu artigo. E explica que o consumo de água alcalina ajuda a neutralizar os efeitos do consumo de alimentos ácidos, contribuindo para a redução dos sintomas de distúrbios digestivos.


SAÚDE

Cicatrizes BARBARA INK

que contam

histórias Histórias de mulheres que lutaram contra o câncer de mama e as alternativas no processo de recuperação Texto por Mauricio Abbade e Raphaella Salomão

A tatuadora Bárbara Ink faz micropigmentação nos seios de mulheres

“M

inha autoestima sempre foi super baixa, e depois do câncer, embora eu tenha ficado sem peito, cheia de cicatriz e tendo engordado mais de 30 kg no período de tratamento e pós-tratamento, eu me sinto muito mais mulher do que era antes. Não sabia que era forte desse jeito”, conta Tatiana Fadel, professora de redação de 44 anos. Ela foi uma dentre as 1,7 milhão de mulheres diagnosticadas com câncer de mama no Brasil em 2012. Apesar de ser um dos tipos de câncer mais incidentes nas mulheres, atingindo 25% das pacientes com essa doença, diagnósticos feitos no primeiro estágio da doença garantem em média 88% de sobrevida, segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA). A advogada Regina Gregório, de 55 anos, descobriu um câncer no início de 2016. “É um tratamento muito longo, cansativo e invasivo. Ficar sem cabelo, com o corpo inchado, não conseguir andar direito e ter dores no corpo é muito limitante. Muda tudo, é muito difícil. Mas depois da cirurgia passei a me sentir melhor. Tem cura”, conta. Exames regulares, observação constante e acompanhamento médico comprovadamente aumentam as chances de vida, afirma Gustavo Zucca, oncologista do Hospital do Câncer de Barretos. “Quanto mais precoce é feito o diagnóstico, menor a chance de a lesão invadir vasos sanguíneos ou linfáticos e enviar células para outras partes do corpo, ou seja, metastizar”. O tratamento depende do estágio e do tipo do câncer, podendo envolver quimioterapia, radioterapia e processos cirúrgicos. Esses procedimentos médicos têm

diversos efeitos colaterais, como queda de cabelo, náuseas, dores, fadiga e a perda da mama em si. E parece ser nessa etapa que cada paciente sente realmente possuir sua própria e única experiência. Protocolo universal, o Ministério da Saúde indica a reconstrução da mama logo após sua retirada, por acreditar que as cicatrizes ou a ausência da mama possa gerar um choque muito grande na mulher operada. Porém, a escolha de colocar uma prótese após a mastectomia, assim como realizar cirurgias plásticas reconstrutivas, cabe somente a mulher sob tratamento. Silvana Bighetto, de 50 anos, que descobriu um câncer em 2010, fez a cirurgia de retirada e ficou por um ano com um expansor, suporte que fica embaixo da pele e é preenchido de quinze em quinze dias para dar o formato do seio. A sua pele, porém, rompeu e inflamou com a prótese, então Silvana escolheu retirá-la, “eu preferi ficar viva do que sofrer com isso”. Uma alternativa de recuperação de autoestima é a tatuagem de reconstrução de aréolas mamárias. O processo de cobrir a cicatriz com uma tatuagem é praticamente o mesmo de uma tatuagem comum, com algumas ressalvas, como a necessidade de um cuidado maior com agulhas e técnicas específicas e de que a velocidade do aparelho seja menor do que a de um aparelho de tatuagem comum. Miquelangelo do Carmo, que realiza esse trabalho de forma gratuita há dez anos, conta que a técnica da tatuagem em 3D consiste na utilização de sombras e luminosidades diferentes para dar um efeito que o tatuador afirma ser muito semelhante à realidade, entretanto, não é a única forma de criar relevo

já que no momento da cirurgia plástica para implementação da prótese de silicone, é comum que mulheres peçam para que o médico faça um pequeno “nó” para simular o mamilo. A economista Ana Tereza Trevisan, de 67 anos, descobriu um câncer em 1996. Ela é a quinta mulher de sua família a receber o diagnóstico e, após sessões de radioterapia e acompanhamento médico, recuperou-se até que, em 2013, durante uma mamografia, ela descobriu um novo nódulo no mesmo seio. Após seis meses da operação de retirada da mama, realizou uma cirurgia para refazer o mamilo, mas para ela, o seio ficou sem cor, uniforme e sem aréola. “Eu realmente queria ter a minha mama com um aspecto mais normal”, conta. Trevisan começou a procurar por tatuadores que realizavam o processo de micropigmentação. “A tatuagem me devolveu a autoestima. O resultado é muito realista e eu realmente fiquei feliz com ele”. Além de todo o cuidado, é também necessário um laudo médico que explique qual era o tipo de câncer e por qual tipo de cirurgia essa mulher passou. Bárbara Ink, tatuadora curitibana que realiza esse projeto voluntário há dois anos, conta que esse processo demora em torno de quatro a cinco horas e meia, relativamente mais do que o tempo de duração de uma tatuagem normal. Ink reserva suas segundas-feiras para realizar o trabalho e ressalta que as mulheres se emocionam ao perceberem que estão na etapa final do tratamento. “É uma mistura de choque com surpresa, pois elas não imaginam que vá ficar tão real, e fica” afirma a tatuadora.

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JHONY ARAI

ESTILO DE VIDA

Casa de barro

A bioconstrução se transforma em uma alternativa à vida em meio ao concreto Texto por Paula Calçade

O

Sítio Pau D’Água tem sua própria beleza. Uma casa térrea ampla abriga um espaço com mesas, sofás, livros, discos, som e televisão espalhados pelo local, iluminado pelas janelas e portas sempre abertas, que irradiam luz. É um centro cultural para os “novos rurais”, jovens que se cansaram do cotidiano urbano, como define o bioconstrutor e primeiro homem a erguer o sítio em Piracaia, no interior de São Paulo, Edilson Cazeloto. Não é dono ou proprietário, como ele mesmo enfatiza, o espaço é de todos que por ali passarem e quiserem contribuir com a construção de uma vida fora da lógica acelerada das cidades. Todas as construções do sítio, o centro cultural, o alojamento para os visitantes e a casa de Cazeloto, que foi arquitetada para suas necessidades básicas, resume-se a um pequeno quarto, foram bioconstruídas e a futura casa coletiva, onde viverão três famílias imersas em uma rotina comunitária, também acompanhará tal modelo. Isso significa que essas moradias seguiram o molde de trabalho respeitoso ao ambiente e às relações humanas para suas construções. “Bioconstruir é ser arrebatado pela vida”, afirma Cazeloto, explicando que utilizar as matérias-primas dis-

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poníveis nas proximidades, como barro, esterco e palha, investindo em mão de obra qualificada e próxima são os pilares dessa forma antiga de se construir casas. Roberta Figueiredo é bióloga e mora na região central da capital paulista, mas decidiu que estava cansada da rotina urbana. Junto com seu namorado, planeja morar em uma ecovila, comunidades que tem a intenção de integrar uma vida social harmônica a um estilo de vida sustentável. “Descobrir que é possível construir com minhas próprias mãos, por mais que leve mais tempo, foi transformador”, descreve Figueiredo ao participar do curso de bioconstrução oferecido pelo Sítio Pau D’água. A relação de cada pessoa que passa pela proximidade do sítio com a bioconstrução é única e mutável, mas parece ser sempre consciente. Jhony Arai é assessor de imprensa e comprou um terreno na Ecovila Clareando, vizinha ao Sítio Pau D’Água, com a intenção de construir algo sustentável. “Desse desejo que nasce minha investigação sobre o que é sustentabilidade”, afirma. O universo da bioconstrução tem crescido no Brasil. Existem vídeos no Youtube ensinando técnicas e oficinas são divulgadas nas redes sociais. Mas, uma tendência

já é observada tanto por Cazeloto quanto Arai, o perfil das pessoas que participam dessas oficinas têm sido marcado pelo gênero feminino: 70% dos que participam são mulheres. “E muitos homens que chegam são trazidos por elas”, afirma Arai. Parece que elas estão na vanguarda dos processos de sustentabilidade, pelo menos na pequena Piracaia. Para começar a bioconstruir no sítio, basta seguir o lema de Cazeloto e se entrosar: “Se não for divertido, não é sustentável”.

As técnicas de bioconstrução variam, utilizando palha, barro, bambu e esterco


BEM-ESTAR

Saúde galopante Técnica medicinal da época de Hipócrates, a equoterapia passa a ser utilizada no Brasil para o tratamento de pessoas com distúrbios mentais, psicossociais e genéticos Texto por Isabella Molinari e Teresa Lazarini Fotografia por Isabella Molinari

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menino magro de 16 anos não conseguia completar frases. Gestos e palavras soltas eram as únicas alternativas que Isaac da Silva tinha para se comunicar com os outros. Os pais do garoto não conseguiram investir financeiramente em um tratamento reabilitador para o filho, que nasceu com microcefalia. Os efeitos retardadores se instalaram gradualmente no corpo de Isaac, dificultando sua locomoção e comunicação. Até que, no início de 2017, Isaac montou em um cavalo pela primeira vez para testar um tratamento que desafiaria suas limitações. A psicomotricista Lilian Chateau implementou o volteio interativo, ou seja, a prática da equoterapia em grupo. O tratamento que ocorre semanalmente na Hípica Paulista, no bairro Cidade Monções, na zona sul de São Paulo, segue os mesmos objetivos da terapia reconhecida desde 1997 pelo Conselho Federal de medicina: a reabilitação de movimentos físicos e as propriedades de reintegração social e psicológica com a ajuda de cavalos. Para encabeçar o projeto, Chateau buscou o apoio do presidente da Hípica Paulista, Romeu Ferreira, que disponi-

bilizou verba suficiente para que o projeto fosse uma iniciativa gratuita para crianças que frequentam a Associação Evangélica Beneficente, instituição de reabilitação para pessoas em condições vulneráveis. Por se tratar de um projeto piloto, um dos pré-requisitos para a seleção dos alunos foi a existência de uma limitação cognitiva que não interferisse no entendimento de comandos simples. Ao final do processo de seleção, cinco meninos foram escolhidos para iniciar o tratamento na hípica. A psicóloga especializada em tratamento com animais Márcia Gallo se alegra com a transformação que o projeto proporciona aos meninos ao longo desses três meses. Um caso é o de Guilherme Santos de 14 anos, que nasceu com microcefalia e quase desistiu de fazer as aulas de volteio depois do primeiro dia na hípica. O cavalo Zig lhe dava medo e o adolescente nem conseguia tocar no animal. “Ele sempre teve pavor de qualquer bicho, mas agora não tem mais medo; passa a mão no cavalo e brinca com os cachorros”, conta Rosângela da Fonseca, mãe de Guilherme. “Depois das aulas ele ganhou tanta autoconfiança e

postura que sobe escadas sem nem pedir minha ajuda”, completa. Além da evolução motora, o volteio também proporciona e incentiva a sociabilidade por ser uma atividade em grupo. O autismo de Gabriel Sarmento condicionou o menino de 12 anos a ser tímido e a evitar contato social, afetando também sua postura corporal, que antes das aulas era contraída e corcunda. Agora, o menino é quem tem a melhor postura do grupo. Com o peito inflado e as mãos na cintura, Gabriel consegue se manter perfeitamente ereto em cima do cavalo enquanto ele galopa. A equoterapia vem ganhando tanta demanda que o projeto de lei sobre a implementação do tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, foi aprovada em julho de 2017. Entretanto, ainda não há previsão do início das sessões no SUS. Enquanto políticas efetivas do método não são implementadas na rede pública, iniciativas como a de Lilian Chateau e do Regimento 9 de Julho amparam aqueles que encontram no cavalo uma possibilidade de melhoria em sua qualidade de vida.

No Regimento 9 de Julho, pacientes interagem com cavalos em sessões de equoterapia

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LITERATURA

Fora dos padrões Entre uma história e outra, Larissa Siriani trabalha o empoderamento de pessoas gordas Texto por Letícia Giollo

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paulistana Larissa Siriani começou a escrever ainda criança, com pequenos contos que foram dando lugar a enredos cada vez maiores. Nunca se sentiu representada por nenhuma das histórias que lia. A mensagem transmitida era a de que ser gorda era algo feio e vergonhoso. A autora só teve a ideia de mudar a situação em meados de 2012, quando percebeu a falta que lhe fez não ter um exemplo de corpo parecido com o seu na literatura. A reflexão deu origem ao seu primeiro livro “Amor Plus Size”. A luta da autora contra a balança começou ainda na época do colégio e ficou mais intensa no período da adolescência. Siriani conta que entre os seus 15 e 20 anos, ela não usava shorts, não ia à praia e não usava biquíni, privando-se de várias experiências, porque tinha vergonha do seu corpo. Pensava em maneiras de se encaixar nos padrões de beleza e, a partir disso, começaram as dietas, os remédios, os procedimentos estéticos e a compulsão por emagrecer. Foi durante uma sessão com a esteticista na qual levava vinte injeções na barriga que decidiu mudar sua relação com o corpo. Pediu para a profissional parar, levantou-se e não voltou ao local. “Nunca mais iria fazer nenhum tratamento que exigisse que maltratasse meu corpo para perder peso. Eu precisava entender que ser gorda não é uma doença”, explica. A mudança começou a fluir e, aos poucos, Siriani não fugia mais do próprio reflexo, não escolhia mais roupas largas para esconder o corpo e começou a achar coisas de que gostava em si mesma. Enquanto o processo de aceitação evoluía, uma ideia crescia na mente da autora. Segundo ela, durante muito tempo, a literatura retratou apenas o que era considerado belo e utópico. Siriani conta nunca ter visto uma personagem gorda, apenas retratos de pessoas sem autoestima regrando seus pesos por tudo, mas ninguém que se assemelhasse a sua personalidade e corpo. Foi quando começou a pensar: “Eu não sou a exceção. Eu sou a regra. Ninguém é perfeito e essa ilusão de que só tem gente magra no mundo é absurda”. Siriani começou a imaginar um pequeno universo em que os personagens seriam como pessoas da vida real: imperfeitos e inseguros, nascendo assim o “Amor Plus Size”.

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Aos 25 anos, Siriani deseja transformar a vida das leitoras ao espalhar mensagens de empoderamento

O segundo livro da autora, lançado em fevereiro de 2017, “Princesas GPower”, nasceu com a intenção de mostrar a importância da representatividade na literatura. Para Siriani, o tema escolhido para selar os contos – princesas – é fantástico, pois desconstrói a imagem historicamente padronizada. No livro, as meninas frágeis, magrinhas e idênticas dão lugar a protagonistas decididas e diversas. Com a mensagem de que serem gordas não as impede de viverem aventuras incríveis, Larissa Siriani, Thati Machado, Janaína Rico e Mila Wander são as coautoras responsáveis pela obra, falando respectivamente das conhecidas histórias da Bela Adormecida, Malévola, Cinderela e Pequena Sereia, mas significando-as de um jeito diferente do usual. A percepção da gordofobia, combatida pelas autoras no livro, popularizou-se recentemente, mas para elas esse sempre foi um preconceito existente na sociedade. “Precisamos entender que diariamente pessoas gordas sofrem não por serem gordas, mas por não serem aceitas. Por serem menosprezadas e diminuídas no ambiente escolar, profissional e até mesmo familiar”, afirma Thati Machado. Mesmo com a evolução do mercado editorial,

existem poucos livros que abordam esse tema e, segundo a autora, isso acontece pelo fato de que as pessoas acima do peso ainda estão no processo de encontrar sua voz e de não se calar diante dos estereótipos constantemente impostos. Por ser algo relativamente novo, Machado acredita que o tema ainda é um tabu e trabalhar para que ele seja quebrado é um processo lento de desconstrução. Além disso, Larissa Siriani afirma que as pessoas não compreendem como a gordofobia funciona, pois remetem o termo apenas a ofensas, mas é preciso ter em mente um sistema de exclusão. São pequenas atitudes diárias “invisíveis” aos olhos da população – como entrar numa loja e ser mal recebida, porque seu manequim é maior do que 40 – que compõem o significado de gordofobia para a autora. Mesmo passando por essas situações e tendo um histórico de negação com seu próprio corpo, Siriani hoje entende que não há nada de errado com ele e passou a aceitá-lo da forma que é. Embora, segundo ela, há muito caminho a ser percorrido, conta que em 2017 foi à praia e usou, pela primeira vez, o biquíni que tanto a assustava. “Ter consciência de que ainda preciso trabalhar os momentos maus como qualquer indivíduo é o ponto-chave. Situações que antes eu preferia esconder e fingir que não estavam acontecendo, hoje as encaro de frente, juntamente com os meus leitores”, conclui, sorrindo.


MODA

Beleza além da pele Modelos com vitiligo surgem no cenário da moda e fomentam mudanças no padrão de beleza

Texto por Mattheus Goto e Saulo Tafarelo um boletim da diversidade, no qual é possível analisar o aumento de modelos que fogem do padrão tradicional de beleza, jovens, brancos e magros. Na coleção da primavera de 2015, em Nova York, 20,9% dos modelos eram negros, já na de outono de 2016 a porcentagem cresceu 11%. “O mercado da moda em si é muito aberto para alguma coisa que você tem em especial”, pontua Lica Kohlrausch, empresária da agência de modelos L’equipe Agence. A empresária acredita no papel da moda de representante de ideias existentes na sociedade. “Ela é uma mensageira e também dá voz para as pessoas”, afirma. Com isso, a moda seria capaz de ajudar a espalhar informação sobre a vitiligo e trazer visibilidade para o assunto, como é o caso de Vital. Até agosto de 2017, o Sistema Único de Saúde (SUS) atendeu em sua rede quase 28, 5 mil pessoas com vitiligo. De acordo com a clínica geral Hérica Campos, não existe uma explicação consistente para o desenvolvimento do vitiligo. A doença é diagnosticada como autoimune e é comum sua aparição ocorrer em momentos de estresse e ansiedade intensos, como foi para o modelo cearense, não necessariamente em umas faixa etária específica. A maioria dos pacientes de vitiligo não manifesta qualquer sintoma além do surgimento das manchas. Segundo ainda o Ministério da Saúde, uma grande preocupação são as manifestações emocionais que podem se desenvolver. As pessoas com vitiligo podem ter a vida social e profissional prejudicadas pelo estigma preconceituoso que as cercam, com isso ficam mais estressadas e deprimidas, o que piora a imunidade e agrava os desdobramentos da doença. Por isso, recomenda-se o acompanhamento psicológico que pode ter efeitos bastante positivos nos resultados do tratamento. Com o atendimento profissional e a fotografia como hobby, Vital recobrou o amor por seu corpo e ainda encontrou uma profissão. “Eu não me vejo sem vitiligo, ele é parte de quem eu sou. A doença me fez enxergar a quebra de preconceitos em mim mesmo, encarar a vida de maneira mais natural”, conta. Dessa forma, o modelo ajuda a construir representatividade e inclusão na moda, agindo como referencial. Com coragem, João Vital abre espaço no mundo da moda

FELYPE JOHN

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s mudanças nos padrões de beleza têm avançado na sociedade e a moda representa essas transformações, visíveis quando estilistas trazem um quadro diversificado de modelos. Como na edição de inverno 2017 da São Paulo Fashion Week, em que Gloria Coelho trouxe mulheres jovens e idosas desfilando juntas e Ronaldo Fraga pessoas com corpos dos mais variados, baixos, altos, magros, gordos para seu desfile. São muitas transformações, como a que questiona o mito da “pele perfeita”, que vem sendo afrontado no Brasil e internacionalmente, por modelos com vitiligo, doença caracterizada pelo surgimento de manchas brancas pelo corpo. O cearense João Vital, de 23 anos, é um modelo que coloca em xeque tais padrões. O jovem convive com a vitiligo desde sua adolescência. Crises com a família e revelação de sua homossexualidade para parentes e amigos fizeram com que ele mudasse seu comportamento. “Tornei-me uma pessoa raivosa, isolada”, relembra. Vital conta que um dos passos para a autoaceitação foi a fotografia, uma de suas válvulas de escape, com a qual acabou desenvolvendo aptidão para também posar na frente das câmeras. No exterior, o nome da moda associado ao vitiligo é o da modelo Winnie Harlow, que já foi capa de revistas como a Elle e estrelou o videoclipe “Lemonade”, da cantora Beyoncé. Mesmo assim, a representatividade ainda é pouca. Harlow é a única modelo de destaque internacional com a doença dermatológica. Já em cenário nacional, o modelo Sam Gonçalves foi a única pessoa com vitiligo a desfilar na semana de moda paulistana em outubro de 2016. O caminho para a representatividade é longo, mas demonstra avanços. “A moda tem se tornado cada vez mais democrática, palco para a valorização de todos os tipos de beleza”, define a editora-chefe da revista digital para profissionais da moda WorldFashion, Eleni Kronka. Cada vez mais, ela dá a possibilidade de expressar sua diversidade nas atitudes, nas roupas e até na pele dos modelos. Para ela, a moda pode ser uma boa escapatória para o mundo impregnado de ódio e preconceito. O site americano The Fashion Spot lança a cada edição das semanas de moda

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ESPORTE

É falta grave! Problema antigo no futebol, racismo ainda é pouco denunciado por entidades e jogadores no Brasil Texto por Luca Castilho

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internet em 2017. Um número muito maior ao ano anterior, que foi de 25 casos. O Observatório utiliza como base os casos apresentados na imprensa brasileira e denúncias enviadas por torcedores nas redes sociais. O Código Brasileiro de Justiça Desportiva determina no Art. 243-G que quem “praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência” está sujeito à “suspensão de cinco a dez partidas, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, e suspensão pelo prazo de 120 a 360 dias, se praticada por qualquer outra pessoa submetida a este Código, além de multa, de 100 a 100.000 (cem mil reais)”. Apesar de o código penal ser severo e enfático nas punições e no que considera um ato racista, poucos são os casos que realmente vão para a Justiça. De acordo com o Supremo Tribunal de Justiça Desportiva (STJD,) foram julgados dois casos em 2016 e, em 2017, nenhum caso de injúria racial foi sequer analisado. O ex-jogador Sergio Chulapa, atacante negro e maior artilheiro da história do São Paulo e grande ídolo do Santos, afirma que “nunca viu alguém tomar uma atitude, e nem nunca viu nin-

DIVULGAÇÃO/SANTOS FC

ano é 1914 e o tradicional time do bairro das Laranjeiras no Rio de Janeiro, o Fluminense, contrata o jovem jogador Carlos Alberto. Pelo preconceito de ser o único negro no time, a mando do clube, o jogador começou a passar pó de arroz no rosto antes das partidas. Porém, ele foi reconhecido pela torcida do seu ex-clube, o América-RJ, durante uma partida e seu disfarce acabou. Os torcedores do América passaram a apelidar a torcida do Fluminense de pó de arroz, alcunha que continua até os dias atuais. Agora, o ano é 2014 e a equipe paulista do Santos vai a Porto Alegre enfrentar o Grêmio na Arena do clube pelas oitavas de final da Copa do Brasil. Enquanto a partida acontece, o goleiro do time do Santos, Mário Lúcio Duarte Costa, mais conhecido como Aranha, é alvo de ofensas racistas por parte dos torcedores gaúchos. O clube do Rio Grande do Sul foi excluído da competição. Embora separadas por cem anos, infelizmente, o racismo é algo que coincide em ambas as histórias. Segundo o Observatório da Discriminação Racial no Futebol, órgão que analisa supostas ocorrências de racismo e que combate essa prática, 41 casos foram registrados no Brasil tanto nos estádios quanto na

Em 2014, durante um jogo entre Santos e Grêmio, o torcedor gremista insulta o goleiro Aranha, tornando-se o caso mais emblemático de racismo dos últimos anos

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guém preso por racismo”. Para ele, não há saída, se não a prisão para quem comete esses atos. SOMOS IGUAIS. O preparador de goleiros do Santos, Arzul, completa a fala de Chulapa e afirma que quando chegava nas partidas, especialmente por ser goleiro, escutava muitas ofensas racistas, mas como não tinha o que fazer, apenas ignorava. Ele diz que “esse foi o nosso mal. Nas décadas de 1990, era uma coisa bem natural, e a gente não fazia nada, infelizmente”. Os processos são julgados em primeira e segunda instâncias pelo Tribunal de Justiça Desportiva (TJD), e se houver recurso, chega ao Supremo. A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) pouco tem feito para reverter esse grave quadro no futebol nacional. A campanha “Somos Iguais”, idealizada pela Confederação, tem como intuito diminuir os casos, mas na prática, pelos números apresentados pelo Observatório, surtiu pouco efeito. A entidade costuma ser criticada por não se pronunciar mais sobre o assunto e pelo pouco posicionamento sobre a causa. A Fifa também apresenta em seu Código Disciplinar que “um clube ou seleção pode ser punido e até mesmo afastado de competições caso seus torcedores, dirigentes, jogadores, árbitros ou demais membros manifestem-se de forma racista ou discriminatória”. Outro ponto é a imprensa, que noticia o ocorrido na hora, mas pouco se solidariza pelo atleta e trata o caso como mais um no âmbito esportivo. Alberto Helena, jornalista esportivo da TV Gazeta, diz que há sempre uma ponderação formal da imprensa, mas não há uma campanha ou posição permanente de indignação contra isso. A imprensa, para ele, deveria se envolver com a causa e combatê-la de todas as formas possíveis. O goleiro Aranha também responsabiliza a classe de jogadores brasileiros. “Não vejo interesse em jogadores de futebol sobre o assunto, sua história, o que acontece” e afirma que o seu caso repercutiu “porque conheço meu povo, minha história, e como já tinha uma projeção na mídia, a história apareceu, além de ter o que falar, tinha um discurso a ser falado”.


Opinião

Ainda somos o país do futebol? Não sei, mas meu coração ainda diz que sim BEM AMIGOS DO FUTEBOL CLUBE, abram-se as cortinas e comece o espetáculo! É disso que o povo gosta: “ripa na chulipa e pimba na gorduchinha”, como já dizia Osmar Santos. Porém, “pelas barbas do profeta, não, não é isso que você está pensando”! Estou falando da bola trazida por Charles Miller ao Brasil em 1894 e, com ela, o esporte mais popular e amado do país, o futebol. Apesar de não podermos generalizar nada, há de se concordar que esse esporte é amado no Brasil e, não à toa, somos o “país do futebol”. São criadas teorias aos montes para explicar essa paixão: 1) uma manifestação cultural, como defendem alguns sociólogos; 2) atua como alienação aos problemas nacionais, pegando como exemplo o apoio de Getúlio Vargas à profissionalização do esporte – o que era conquistado em campo, então, era uma conquista da pátria, diziam na ditadura militar; 3) é “talento natural” do povo brasileiro, como defendia Gilberto Freyre. Enfim, são muitas as razões para se perguntar por que o Brasil seria o tal escolhido. Copas: 1958, 1962, 70, 1994, 2002 e, de repente, 2014: gol da Alemanha. E isso por mais seis vezes. TVs desligadas, gritos entalados na garganta, risos de rivais, estádio calado. A Copa foi no Brasil e o Brasil não foi o futebol, foi vexame. Nós somos ainda o país do futebol? “É e sempre será”, disse o meia alemão Podolski após o 7x1, mas era fácil, eles tinham sido campeões em cima da Amarelinha e nada apagaria uma das maiores goleadas da história das Copas – ficamos atrás por 3 gols do recorde 10x1 da Hungria em cima de El Salvador, em 1982. Somos pentacampeões do mundo e, mesmo assim, as conquistas se apagaram e, em campo, não jogaram as taças, jogaram os homens. Falharam feio como falhou a Alemanha de 1954, quando perdeu de 8x3 para a mesma Hungria massacrante do 10x1, mas, pasmem, a campeã naquele ano foi a mesma Alemanha. Não de 7, o placar foi 3x2. Depois disso, a Alemanha foi campeã em 1974, 1990 e no doloroso 2014. O que o Brasil tem a ver com isso? De 2014 para cá, muitas modificações aconteceram. Primeiro na política e na economia, depois nos resquícios de uma Copa mal-sucedida (no esporte e fora dele). Em 2016, chegaram as Olimpíadas. “Pentacampeão do mundo e nenhuma medalha de ouro nos Jogos Olímpicos”, os inquisidores disseram. Rogério Micale, criticado como qualquer técnico que não tem segurança profissional no Brasil, teve que

segurar a bucha da camisa destratada, do desgosto nacional que era a Seleção Brasileira, mesmo que fosse a Seleção Olímpica. Mas o “improvável” aconteceu. O goleiro alemão Horn para a direita, bola chutada pelo atacante Neymar na esquerda. Brasil campeão. Os meninos estavam de volta e, contra quem? Eles mesmos, os alemães. A seleção era olímpica, diferente da do 7x1, mas o sentimento que nunca saiu do coração machucado pelas travas da chuteira amarela, vermelha e preta da bandeira alemã estava ali: lágrimas no Rio de Janeiro, dentro e fora dos gramados, circundando sorrisos tímidos de quem sempre acredita. “Eu estou aqui”, disse Neymar logo após a cobrança de falta nessa final. E todos nós também estávamos. Isso resgatou o nosso amor pela camisa? Não, não pode ser resgatado aquilo que nunca foi perdido. Prova disso são os estádios, o lucro dos clubes e arenas, as camisas vendidas e a máquina que é o futebol no Brasil. Pode ser o seu time ou o meu, mas o futebol é uma das raízes mais sinceras, um dos choros mais doídos, o único amor inexplicável. “Cego é aquele que só vê a bola”, disse Nelson Rodrigues, e excetuando todos os problemas que envolvem o futebol, como a corrupção e a violência, a pelota é o que menos importa. Fui esses tempos ao Museu do Futebol, no Pacaembu, e perguntei, no Dia das Crianças, a um menino que via tristemente ao vídeo da Copa de 1950, quando os uruguaios calaram o Maracanã, se o hexa vinha. A resposta dele? “Não sei, mas meu coração diz que sim”. Não sabemos, não há como saber. Podem criar teorias para o exato, mas quando o assunto envolve paixão, pode ter um Uruguai campeão em 1950, um Brasil bicampeão de Pelé e Garrincha eliminado na primeira fase na Copa em 1966, ou a eliminação nas oitavas frente à Argentina “batizada” de Maradona em 1990. Todos esses foram 7x1. E o que houve? Nada, pois meu coração também diz que sim. Seguimos, país do futebol ou não, amando aquilo que é nossa dor… E é também cura.

Marina Bufon Nunes é linguista formada pela Unicamp, pós-graduada pelo Mackenzie e agora no segundo ano de jornalismo na Cásper. Não ama futebol, porque não se pode nomear aquilo que não tem explicação

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DOSSIÊ

A rua é para todos Acessar a capital paulista pode ser um desafio para pessoas com deficiência, mas iniciativas mudam, aos poucos, essa realidade Texto por Camilla Millan, Luiza Eltz e Seham Furlan

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luta por acessibilidade está em todos os cantos da cidade de São Paulo, que acaba não sendo apropriada por todos devido a obstáculos físicos e políticos que ainda excluem alguns de sair às ruas com segurança e de ter acesso a direitos básicos. As conquistas caminham a passos lentos, e retrocessos e avanços são observados de perto pelos cidadãos com deficiência da capital paulista. A redução de atrações acessíveis na edição de 2017 da Virada Cultural em relação ao ano anterior é um símbolo do desânimo com a órgãos governamentais, que demoram a implementar políticas públicas permanentes nesse setor. O Censo da Educação Superior 2016 mostra que a evasão é de 86% entre os estudantes surdos no Brasil, enfatizando que o problema é de todas as instâncias do governo e, na maior metrópole do país, toma proporções gigantescas. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há no Brasil cerca de 6,5 milhões de brasileiros com deficiência visual, sendo que 38,4% estão na região Sudeste, por exemplo. Mas a mudança vem aos poucos e o ensinamento pode vir de diversas formas, inclusive pelo toque. Como ocorre nas aulas de balé para pessoas com deficiência visual da Associação Fernanda Bianchini - Cia Ballet de Cegos. O aprendizado também contempla outras áreas da vida como o esporte, no qual pessoas têm de desafiar seus limites para poder praticá-lo. E o desafio trouxe resultados. Um deles foi o fato de ter sido um brasiliero o segundo cadeirante no mundo a dar um salto mortal, além de o Brasil ter alcançado a oitava posição nas Paralimpíadas de 2016. Poder praticar um esporte e ainda competir em torneios sendo um atleta com deficiência é possível graças ao desenvolvimento de tecnologias adaptadas à acessibilidade. Lúcio Oliveto Alves, diretor comercial da empresa Kit Livre, projetou uma ferramenta

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que se acopla às cadeiras de rodas, deixando-as capazes de manobras radicais. Outro desenvolvimento tecnológico aliado dessa população é o teclado acessível do cientista da computação Gleison de Faria, que torna fácil a digitação para quem tem os movimentos das mãos limitado. O acesso à cultura também é um direito, mas ouvir as obras de arte é uma novidade. A audiodescrição auxilia as pessoas cegas a visitar museus de São Paulo de forma integral graças às narrativas descritivas adicionais, e pessoas cegas podem, assim, participar das interações com as produções artísticas e discussões nesses ambientes, que antes as excluia ou não as contemplava. O som e o tato que fazem enxergar também devem estar do lado de fora. Percebe-se que as ruas não foram planejadas levando em conta as necessidades de pessoas com deficiência visual ou motora. Com 53 mil habitantes cegos, a capital paulistatem apenas oito semáforos sonoros, sendo que a metade deles está na região do Aeroporto de Congonhas, na Zona Sul. Entre os que estão nas ruas, nenhum equipamento funciona na totalidade da travessia. Somente com uma cidade acessível, pessoas com deficiência podem se tornar agentes protagonistas de São Paulo. Jefferson Figueira faz parte do grupo de Pintores com as Bocas e Pés, produz quadros autorais e os vende em exposições. A iniciativa também estimula outras 900 pessoas com deficiência motora a serem os artistas que são, tornando possíveis a autonomia financeira e o desenvolvimento artístico desses cidadãos. A seguir, algumas das principais questões e problemáticas da acessibilidade na cidade de São Paulo e em todo o país. As histórias dos projetos e iniciativas que mudam, aos poucos, a realidade de pessoas com diversos tipos de deficiência nas ruas, museus, empresas, competições e salas de aula. – esquinas


DIVULGAÇÃO

A urgência em ouvir os surdos O TEMA da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2017 impulsionou uma reflexão ao abordar os desafios da formação educacional dos surdos. A discussão envolve a necessidade da educação bilíngue para pessoas com deficiência auditiva, em Português e na Linguagem Brasileira de Sinais (Libras), e pauta o alcance ao ensino superior e a permanência nele. Segundo o Censo da Educação Superior 2016, apenas 14% dos estudantes surdos concluíram seu curso. A Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), com a crise econômica, precisou cortar gastos, incluindo o salário dos intérpretes. De maio a setembro de 2017, os discentes surdos tiveram aulas sem os profissionais, o que para Fernanda

Aprendizado pelo toque FERNANDA BIANCHINI SAAD fundou a Associação Fernanda Bianchini e Cia Ballet de Cegos. O projeto começou na Vila Mariana, em São Paulo, com cinco alunos e, hoje, conta com mais de 300, que usam a dança para aprimorar a memória, foco e entendimento corporal. Saad desenvolveu um método de ensino por meio do toque. Enquanto a professora realiza os movimentos, as alunas a tateiam para saber a posição exata das mãos e pernas. A aluna Marina Guimarães diz que a dança traz autoconfiança, superação, disciplina e foco para pessoas com deficiência ou

EVASÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA AUDITIVA NO ENSINO SUPEIOR

Veloso, aluna de Odontologia, foi desastroso, pois ela não conseguiu passar para o terceiro semestre. “Pelo jeito, o professor queria que eu me adaptasse. Mas não consigo acompanhar a explicação”, desabafou. Sobre o quesito de estrutura, a Universidade Metodista de São Paulo oferece uma série de adaptações. No caso das pessoas com deficiência auditiva, é fornecido um intérprete em todas as aulas, assim como o auxílio dele fora do período, sem contar uma orientação prévia dada aos professores. A dificuldade encontrada pela aluna de Psicologia Fernanda Galvão é a interação social. Quando o número de pessoas em uma conversa aumenta, a leitura labial é dificultada e os assuntos se limitam à academia.

CEGOS TÊM AULAS DE BALÉ DE MANEIRA INOVADORA

não. Guimarães conheceu o balé no Instituto de Cegos Padre Chico, no Ipiranga, onde estudava, lugar no qual Saad começou a ensinar pessoas com deficiência visual. Apesar de não saber o que era balé anteriormente, aceitou o convite para fazer as aulas e nunca mais parou. Todas as alunas do grupo cursam as aulas de forma gratuita. Dessa forma, dependem da verba proveniente dos espetáculos, como o que ocorreu no dia 12 de outubro de 2017 no Teatro Municipal de São Paulo, e também de doações e do programa “Adote uma Bailarina”, em que uma madrinha arca com os custos de um aluna.

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Um som que aguça a percepção “CONSEGUIMOS entender no mesmo nível de quem vê. A narração se encaixa bem entre as cenas e não atrapalha”, afirma Marco Antonio Bertolli, possuidor de baixa visão, que estava acompanhado da colega Kátia Chimabokuro, portadora de deficiência visual, a apresentação de balé da Associação Fernanda Bianchini - Cia Ballet de Cegos. Ambos utilizam o recurso há mais de 10 anos. Chimabokuro afirma que a narração feita é bastante informativa e se contenta ao dizer que, finalmente, consegue prestigiar espetáculos de ópera, antes impossível sem o recurso. A audiodescrição usa a mesma lógica da tradução simultânea, auxiliando a pessoa com deficiência visual a construir, por meio de uma narrativa descritiva adicional, cenas ou situações antes acessíveis somente pela visão. Ela beneficia além de pessoas

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PANORAMA DA AUDIODESCRIÇÃO NO BRASIL

com deficência visual, pessoas com deficiência intelectual, autistas, disléxicos, pessoas com déficit de atenção e até mesmo idosos. No campo audiovisual, a Agência Nacional do Cinema (Ancine), entidade vinculada ao Ministério da Cultura, possui, desde dezembro de 2014, norma que estabelece que todos os projetos de produção audiovisual financiados com recursos públicos federais geridos pela agência deverão contemplar nos seus orçamentos serviços de legendagem descritiva, audiodescrição e Libras e enviar uma cópia para a Cinemateca Brasileira para ser documentada. A Ancine também editou a Instrução Normativa nº128/2016, em setembro de 2016, que atenta para a necessidade da apresentação de obras nacionais e estrangeiras da audiodescrição e de Libras em salas de cinema.

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Dois toques, infinitas possibilidades GLEISON FERNANDES DE FARIA tem paralisia cerebral. Quando cursava Ciências da Computação tinha que usar um recurso apelidado de Tamanduá para digitar no computador. A ferramenta, que é presa à cabeça e possui uma haste longa e curvada, é incômoda e não é de fácil manejo. Dessa maneira, Faria teve a ideia de criar um teclado inteligente que facilita a digitação de quem tem limitações com as mãos. A Geraes Tecnologia Assistiva gostou da ideia e decidiu fabricá-lo, nomeando-o de TiX, um teclado combinatório e sensível ao toque que realiza todas as funções necessárias ao usar um computador, do mouse ao teclado. O teclado custa dois mil e quinhentos reais, sendo útil para pessoas que teCAMILLA MILLAN

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CRIADOR COM DEFICIÊNCIA DESENVOLVE TECLADO ACESSÍVEL

nham paralisia cerebral, traumas medulares, Parkinson e outras limitações motoras. Adriano Rabelo, colaborador da Geraes Tecnologia, explica que o teclado, composto por 11 teclas coloridas, funciona a partir de uma lógica combinatória: para digitar, basta tocar duas teclas seguidas, sendo que o próprio painel indica todas as sequências. Por exemplo, para digitar a letra “A”, basta apertar a tecla azul seguida da amarela, havendo ainda um preditor de texto para economizar toques. Mais do que isso, o teclado pode ser usado apenas com o piscar dos olhos. Por meio de um óculos com sensores de pálpebra a-blinX, a pessoa com deficiência motora severa consegue controlar o computador sem precisar tocar nas teclas.


As cores da inclusão TINTAS VIBRANTES florescem nas pinturas de Jefferson Figueira. Um cenário, aos poucos, é delineado com maestria por meio do pincel conduzido pela boca. Após ter reagido a um assalto, o atual pintor levou um tiro no pescoço e sofreu uma lesão medular, que o tornou tetraplégico. Hoje, Figueira faz parte do grupo de Pintores com a Boca e os Pés, que possui mais de 900 artistas com deficiência motora espalhados pelo mundo inteiro. A sede da instituição fica na Suíça, para onde são enviados diversos quadros a serem avaliados por especialistas. Assim, os escolhidos são transformados em cartões-postais, quadros,

Cidade sem sinalização CAPITAL PAULISTA INACESSÍVEL

canecas, dentre outras peças decorativas para venda. “Temos que comprovar a qualidade de nosso trabalho, é preciso avaliar a arte pela arte. Não para causar comoção”, afirma o pintor que conheceu o grupo por meio de um colega de trabalho. Figueira completa que expor as obras é de suma importância, uma vez que assim se torna possível levar para outras pessoas, com ou sem deficiência, o conhecimento sobre a atividade. Ele também destaca que é por meio da exposição e venda dos produtos confeccionados que os artistas adquirem sua independência, já que, ao participar do grupo, eles têm direito a um salário.

Rodas Radicais LÚCIO OLIVETO ALVES, diretor comercial do Kit Livre, conta que a empresa surgiu a partir da dissertação de mestrado de Engenharia Mecânica de seu irmão em 2014. O projeto era uma ferramenta que, acoplada à cadeira de rodas, aumentava a mobilidade, transformando-a em um triciclo. Segundo ele, o triciclo proporciona mais autonomia e liberdade ao cadeirante, trazendo um novo conceito de cadeira de rodas. Pedro Henrique, o Pedrinho BackFlip, mudou sua maneira de locomoção com o Kit Livre. Ele perdeu a movimentação dos membros inferiores após um acidente de moto, mas definiu para si que não pararia de realizar as atividades que fazia antes do acidente, assim como sua faculdade de Educação Física. Orgulhoso de ser o segundo

CAMILlA MILLAN

ACESSO A ESPORTES RADICAIS POR MEIO DE FERRAMENTAS ACOPLADAS

cadeirante no mundo a dar um backflip (mortal), o skatista pratica diversas manobras em cadeira de rodas na pista de skate, além de utilizar o Kit Livre em atividades radicais, trilhas e locomoção pela cidade. Os modelos custam de cinco mil a 12 mil reais, possibilitando uma locomoção de até 50 quilômetros por hora. Há modelos desenvolvidos majoritariamente para o uso esportivo, como no Radcross, esporte que envolve obstáculos e velocidade para cadeirantes. Além disso, cada triciclo pode ser adaptado de acordo com a necessidade do cadeirante, como para Eduardo Júnior, que também não mexe totalmente as mãos e que, com o Kit Livre ,admite: “Agora vou para todo lugar, para a faculdade, pulo rampa e até já fiz trilha de 70 quilômetros ”.

CAMILlA MILLAN

EM SÃO PAULO, só existem oito semáforos sonoros disponíveis. O arquiteto da Prefeitura e Secretário Executivo da Comissão Permanente da Acessibilidade (CPA), João Carlos da Silva, conta que o projeto de semáforos sonoros está em estado de pesquisa há dois anos. O secretário também revela que a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) e a Secretaria da Pessoa com Deficiência buscam soluções para as falhas de tais semáforos. Por meio do uso de modelos-teste, diferentes entre si, espalhados pelo Centro da cidade (Largo do Patriarca, 25 de Março, Barra Funda) foram chamadas várias pessoas com deficiência visual para fazerem uma avaliação por grupo para definir qual o melhor modelo para a cidade. A conclusão foi a de que nenhum dos modelos atendia a todas as demandas. Para Valmir de Souza, criador do aplicativo Biomob e Conselheiro Municipal de Transporte e Trânsito de São Paulo, “a sociedade ainda não se conscientizou sobre as minorias e para quem tem dificuldade”. Ele completa que muitos municípios impõem barreiras por acharem que o som do semáforo irá incomodar, como fazer um som estridente durante a madrugada. Com a intenção de melhorar a acessibilidade, Souza criou o app que encontra estabelecimentos com acessibilidade por meio do transporte público. O criador do Biomob, disponível na Apple Store e Google Play gratuitamente, ainda completa que no Brasil, um país com 13 milhões de cadeirantes, não são as pessoas que possuem deficiência, mas as cidades.

PRODUÇÃO ARTÍSTICA POR PESSOAS COM DEFICIÊNCIA FÍSICA

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TRANSPORTE

Meu ponto é o próximo! Andar de ônibus em uma cidade como São Paulo é ter a certeza de que há diferentes histórias que se cruzam sem parar nas frenéticas vias da metrópole Texto por Malu Mões e Thaís Chaves

–B

oa tarde! – cumprimenta o motorista com um sotaque nordestino puxado. O aceno corriqueiro do condutor anônimo avisa que você está embarcando em um ônibus da linha 175P (Santana – Ana Rosa) que, diariamente, percorre importantes ruas e avenidas de São Paulo. Partindo do lado da Estação Santana do Metrô, na Zona Norte, o coletivo passa pela Casa Verde, atravessa o rio Tietê até a Barra Funda, onde um grande número de passageiros embarca, incluindo uma jovem negra dos cabelos cor-de-rosa. Jaqueline Sales, de 30 anos, faz esse trajeto e atravessa diariamente a cidade: parte de Arthur Alvim, na Zona Leste, onde mora, em direção a seu trabalho, um salão de beleza em Perdizes, Zona Oeste da cidade. A falta de iniciativa dos passageiros em oferecer lugar àqueles que necessitam é o que mais incomoda a jovem. Sales, sentada no banco preferencial, explica que está grávida de sete meses e durante esse período apenas duas pessoas ofereceram-lhe o lugar. “Mas eu também não costumo pedir. Trabalho o dia inteiro em pé, então já estou acostumada”, contou sem muitos alardes. Porém, o que a jovem não sabe é que dos 128 assentos de um micro-ônibus ou 155 dos articulados, 22 assentos, ou 56 assentos, respectivamente, são reservados como preferenciais. O ônibus continua sua trajetória pela Rua Cardoso de Almeida, local onde Sales trabalha. Então, o 175P segue pela Avenida Dr. Arnaldo, até chegar na Avenida Paulista, quando um jovem de cabelos cacheados que se escondia em uma touca azul e um headphone prateado entra timidamente no ônibus. Guilherme Casagrande tem 24 anos e trancou a faculdade de Ciências da Computação no 5º semestre e culpa, inclusive, a dificuldade de locomoção em pontos extremos da cidade como uma das razões por não ter conseguido prosseguir com o curso. “Entre trabalhar para me sustentar e fazer faculdade, o tempo que se passa no transporte entre esses destinos é muito grande, tira meu tempo de estudo que é precioso em um curso como o que eu fazia”, conta o moço, sem esperanças, afirmando ter vários colegas que passam por situações parecidas nos malabarismos entre estudos, trabalho e locomoção. “Até é vazio, então dá para ver série no celular tranquilamente”, conta espontaneamente outro rapaz ao embarcar no ônibus. O coletivo que pega até a Estação Butantã, entretanto,

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costuma ser cheio e, com o trânsito, leva de quarenta a cinquenta minutos, para chegar ao metrô e ainda o rapaz atravessa mais quinze estações e uma baldeação. Guilherme, antes de sofrer uma lesão, usava a bicicleta como meio de transporte de casa até o trabalho. Se para muitos, há mais conveniência em usar o transporte público do que pedalar os 20 km de ida e 20 km de volta que ligam o jovem da Rodovia Raposo Tavares, na Zona Oeste, até às imediações da Estação Santa Cruz, na Zona Sul, para ele, há vantagens, já que gasta com o trajeto 30 minutos a mais do que se o percorresse de bicicleta. O rapaz critica a falta de interação do transporte público com os ciclistas. Diz nunca ter conseguido pegar o ônibus estando com a bike. “No metrô há horários, estações e vagões específicos para isso, todos ainda são muito limitados”, ele aponta. A CPTM é a que mais oferece integração entre os transportes, tendo mais bicicletários, sendo 19 estações comparadas às 15 do Metrô, que é bastante limitado, que garantiu apenas a possibilidade de usar a bicicleta aos sábados, a partir das 14hs; nos dias úteis a partir das 20h30; e o dia todo aos domingos e feriados. Guilherme deixa, então, o 175P transportá-lo até o ponto final. Outra linha com trajeto pela Avenida Paulista é a 669A. O ônibus parte lotado do agitado Terminal Santo Amaro, na Zona Sul. O trajeto passa pela estação Largo 13 (Linha 5 – Lilás do Metrô), percorrendo a Avenida Adolfo Pinheiro até ingressar na Avenida Santo Amaro, via que compõe a maior parte da trajetória da linha. Dalva Rodrigues passa nove horas de seu dia sentada nesse ônibus como cobradora. Os 21 quilômetros que compõem a linha não são um grande problema, segundo ela, mesmo em horários de pico de seu turno que é das 6 às 15 horas. Mas se hoje o maior de seus problemas é aguentar o mau-humor de seus passageiros com o trânsito constante, não foi bem assim quando ela começou a trabalhar como cobradora, 12 anos atrás, recém-chegada de Salvador (BA), sua terra-natal. Ela conta que, logo em seus primeiros meses na profissão, sofreu cinco assaltos à mão-armada, todos em um período de dois meses. Tranquila, no entanto, ao relatar os casos, Rodrigues recorda que no primeiro assalto, os rapazes carregavam um revólver. “Se era de brinquedo ou não, não sei”. Mas que para intimidá-la a dar todo o dinheiro, os ladrões lhe agarraram os peitos. “Todo


Entre trabalhar para me sustentar e fazer faculdade, o tempo que se passa no transporte entre esses destinos é muito grande Guilherme Casagrande, técnico de tecnologia da informação

PERFIL DOS PASSAGEIROS A maior parte de que anda de ônibus (25,8%) ganha de 1 a 1,5 salário mínimo Aproximadamente 40% dos passageiros considera o conforto, segurança, rapidez, confiança, tempo de espera e acessibilidade dos ônibus como regulares Em outubro de 2017, foram transportados 246.581.324 passageiros Há um total de 1.336 linhas de ônibus em operação Até outubro de 2017 havia 14.425 veículos cadastrados para operação

mundo sabia que naquela região tinha uma galera assim”, diz a cobradora ao explicar que a situação acontecia no mesmo local e sempre era na parte da noite. Quando questionada se fica tensa toda vez que faz um turno à noite, com traumas das situações, ela responde sem alardes que o medo acabou. Se essa foi a saudação que a cidade lhe deu, não é de se esperar que Dalva Rodrigues não seja a maior fã da metrópole. “É uma cidade só para trabalhar”, ela critica. Mas, apesar do comentário, Rodrigues possui um sonho que envolve as ruas paulistanas. Seja como uma forma de ganhar independência ou de ter mais controle da situação após o que lhe ocorreu, ela conta – com os olhos brilhando – que quer logo tirar sua carteira de motorista. “Às vezes as mulheres dirigem melhor do que os homens. Acho chique mulher que dirige. Quero ser uma”, comenta. Mesmo não percorrendo o usual trajeto das periferias aos centros nos horários de pico, são muitos os ônibus que, além de partirem da Estação Santo Amaro, também recebem uma enorme quantidade de passageiros. Esse é o caso da Terezinha de Souza de Oliveira, de 63 anos, que faz diariamente o trajeto do Ipiranga (Zona Sul) ao Brooklin (Zona Oeste), sendo sua maior parte na linha 467A-10 (Ipiranga – Santo Amaro). Algumas pessoas não se importam com as grosserias diárias que ocorrem na maior parte do tempo nos ônibus paulistanos, mas ela não é uma delas. Dona Terezinha faz questão de reclamar da ausência de empatia no transporte, “meu hábito no ônibus é esse. ‘Bom dia, motorista’, ‘bom dia, cobrador’, peço licença, sabe? ”. Segundo ela, o pior dia para se andar de ônibus pela cidade é a sexta-feira, em que todo mundo quer sair antes do trabalho para aproveitar o final de semana, e o melhor dia é o sábado. “Ele até demora pra vir, mas quando vem, é rapidinho”, conta dona Terezinha que, por ser empregada doméstica, trabalha aos finais de semana e em muitos feriados. Por causa desse grande vínculo com o trabalho, ela explica que não tem muito tempo para o lazer. Ela, que é cearense de Fortaleza, elogia sua terra natal por sua facilidade de mobilidade e diversidade de passeios gratuitos. Enquanto isso, admite que o Metrô é uma alternativa de que gosta, mas afirma não utilizá-lo muito porque não passa nos trajetos que faz. No entanto, dona Terezinha comenta que ficou feliz, ao passar a usar este ônibus, porque ainda não conhecia o Aeroporto (de Congonhas), na Zona Sul. “Eu passo e fico…”, diz ela, sem completar a frase, com a expressão de quem se lembrava da primeira vez que viu os aviões ali pousarem e decolarem. Com os olhos ainda emocionados, lembra-se de 17 de julho de 2007. “Fez 10 anos do acidente que aconteceu”, referindo-se ao desastre que abalou a nação, do voo TAM 3054 que perdeu o controle ao tentar pousar em Congonhas e matou os 199 passageiros a bordo. Ao ser questionada se não tinha medo de passar ali, com os aviões tão pertinho, ela afirma com serenidade no rosto: “Não, eu ‘tô’ olhando bem que é pra mim (sic) tomar coragem que no final do ano é minha vez”. Entre percursos, paradas e sonhos, torna-se evidente as singulares histórias de vida de cada passageiro e de como muitas delas se encontram, seja na relação afetiva com os locais que diariamente transitam ou como o que representa para cada uma dessas personagens transitar pelas ruas da metrópole. O tempo urge. A cidade também. – Ô motorista, meu ponto é o próximo!

Fonte: SPTrans

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INFOGRAFIA

A vida na estação Metrô de São Paulo transporta todos os dias quatro milhões de passageiros Texto por Mariana Gonzalez Infografia por Henrique Artuni

O perfil do passageiro Por sexo, de 2001 para 2016 Masculino

54%

44%

Feminino

46%

56%

Por idade, em 2016 até 17 anos de 18 a 24 anos de 25 a 34 anos de 35 a 44 anos de 45 a 54 anos de 55 anos e mais

2% 23% 31% 19% 12% 13%

Empregados Total: 9.752 (empregados + aprendiz Senai) Jovem Cidadão: 225 Estagiários: 110

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As linhas mais movimentadas por dia Linha 3-Vermelha: 1,40 mi Linha 1-Azul: 1,37 mi Linha 2-Verde: 651,9 mil Linha 5-Lilás: 260 mil Linha 15-Prata: 13,7 mil

Cinco estações mais movimentadas por dia:

Cinco estações menos movimentadas por dia:

1° Sé (594.000) 2° Palmeiras-Barra Funda (417.000) 3° Luz (342.000) 4° República (304.000) 5° Consolação (274.000)

1° Chácara Klabin (14.000) 2° Vila das Belezas (21.000) 3° Adolfo Pinheiro (23.000) 4° Santuário N. Sra. de Fátima-Sumaré (30.000) 5° Carandiru (31.000)

70 60 50

Renda familiar até 4sm + de 4 até 8sm + de 8 até 15sm + de 15 até 30sm + de 30sm

Renda individual até 4sm + de 4 até 8sm + de 8 até 15sm + de 15 até 30sm + de 30sm

40 30 20 10 0

2001 2003 2005 2006 2008 2010 2012 2014 2016

ha

Lin

1

ha

Lin

2

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Lin

3

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Lin

5

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Lin

15 Média de

2016

100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0

2001 2003

2005 2006 2008

2010 2012 2014 2016

ha

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1

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Fonte: Metrô 1º semestre de 2018

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CULTURA MAURICIO ABBADE

O show tem de continuar Arte secular, o circo tradicional brasileiro se reinventa para manter as portas abertas Texto por Mauricio Abbade Fotografia por Isabella von Haydin e Mauricio Abbade

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ISABELLA VON HAYDIN ISABELLA VON HAYDIN

E

m uma era de transformações o ambiente circense não está imune a mudanças. Enquanto alguns circos tradicionais têm de apagar as luzes e deixar o picadeiro para trás por não atrair mais o público, outros, se esforçam para adaptar a forma tradicional de se fazer circo no Brasil com os padrões internacionais, como trazer teatro musical para suas apresentações. Um exemplo de sucesso nessa transição é o Circo dos Sonhos que há meses vem trazendo inovações em seus espetáculos. Na semicircunferência, 700 bancos se organizam em volta do picadeiro. No alto da cortina, uma placa com as palavras “Circo dos Sonhos” em luzes brilhantes. O Circo dos Sonhos esteve sobre asfalto no estacionamento do Hipermercado Extra do Morumbi, na zona sul de São Paulo, de setembro a novembro de 2017. Logo na entrada do estacionamento, dois homens de maquiagem de palhaço e traje a rigor param os carros para informar a presença de um circo no local - e, aproveitando a situação, tentam vender brinquedos e balões. Os ingressos custam entre R$40 e R$60 e o orçamento vindo da bilheteria e da venda de pipoca e brinquedos é como o circo se sustenta. As cortinas azuis se abrem. A produção e encenação do primeiro número se parece com a abertura de um musical da Broadway: com todos os artistas entrando em cena e dando uma prévia do que está por vir. A narrativa que o espetáculo conta é

a história da menina Ly que, durante uma visita a biblioteca, é surpreendida por Alan, que surge como em um passe de mágica e lhe entrega um livro especial, retirando o tablet de suas mãos. Por causa disso, a personagem principal se aventura por um mundo fantástico ao qual as palavras escritas por tinta podem levá-la. Marcelo Ramos é coreógrafo e cuida da dinâmica dos bastidores. Ele conta que introduzir o universo do teatro e musical aos artistas foi complicado, pois grande parte deles, vindos de circos tradicionais, não possuíam proximidade com esses espetáculos, mas a inovação era necessária. O seu objetivo era criar algo com referências no contemporâneo, como o Cirque du Soleil, mas sem desrespeitar as tradições circenses. Os modos de fazer circo têm sofrido transformações, Mario Bolognesi, professor de artes cênicas aposentado da Unesp, observa, em seu artigo intitulado de “Circo e teatro: aproximação e conflito”, que no circo contemporâneo existe a introdução das artes dramáticas – ocorrendo uma abdicação do fator “épico” e comunicativo do espetáculo para investir no aspecto “dramático” e expressivo –, o objetivo de alçar o espetáculo à condição de “belo” e a abolição da presença do apresentador no espetáculo. Ele também afirma que, desde seus passos juvenis, o circo sempre dialogou e incorporou as inovações dramáticas e teatrais, entretanto, “o espetáculo circense, no século XX, aprofundou no

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CONTORCIONISMOS. Os desafios permanentes de quem vive se deslocando, contudo, não desanima quem trabalha no picadeiro. A dedicação intensa é algo necessário para todos os artistas que irão participar do “maior espetáculo da Terra”. Thiago Nogueira, por exemplo, precisa começar a se alongar antes de seus colegas de trabalho. Exaustivamente, o contorcionista treina todo dia para colocar o corpo em posições inimagináveis. Ele estudou em uma escola de circo e está pela primeira vez na vida itinerante, morando em trailers e afastado de sua família. Diz, enquanto se alonga para o espetáculo que está por vir, ser a experiência mais gratificante de sua vida pois “a melhor parte do circo é conviver com pessoas que conseguem realizar coisas tão surpreendentes quanto as que você faz”. Diferente de artistas vindos de escolas-circo, Thaina Rabelo e Janalice Turini são artistas que vieram de famílias tradicionalmente circenses. Rabelo – ao contrário de Turini, que diz nunca ter pensando em sair do ambiente circense – já tentou viver longe do circo por um ano.

CIRCO GARCIA/FERNANDA PRADO

fato acrobático e feérico”, diz o professor. Porém, nos dias de hoje, essa aproximação voltou ao picadeiro. Introduzir os moldes do circo internacional para o brasileiro é um desafio para o Circo dos Sonhos, que reservou seis meses apenas para a primeira montagem do espetáculo, que continua sendo aprimorado. Por exemplo, na primeira semana de lona montada em São Paulo, a corda bamba não estava presente, e hoje ela arranca suspiros da plateia. Parte dos artistas, como o contorcionista Thiago Nogueira, passaram por um processo seletivo para participar do elenco. Todos foram pré-selecionados por vídeo, e depois os de maior destaque chamados para uma audição presencial. O espetáculo foi montado pela junção do que os idealizadores estavam procurando com as habilidades singulares que encontraram nos artistas.

O Circo Garcia foi uma das lonas mais importantes para o cenário circense brasileiro

A experiência não teve sucesso. “Senti falta do meu lugar de berço”, afirma. Por coincidência, as duas nasceram no mesmo circo: o Garcia, uma das lonas mais importantes para a história brasileira das artes. O Garcia chegou a ter 360 artistas e ser o quarto maior do mundo. Em 2003, depois de 75 anos de atividades no país, a lona começou a se arriar e, por conta das dívidas que chegavam à casa dos 800 mil reais, teve de fechar suas portas. Diversas são as razões para sua queda. Desde os anos 80, o Garcia enfrentava crises financeiras sucessivas. A alta do dólar tornou inviável o pagamento de artistas internacionais com remunerações atreladas à moeda norte-americana – o circo já chegou a pagar 2,7 mil dólares por semana a trapezistas mexicanos. O picadeiro já encarava a concorrência da televisão. E, além de tudo isso, diversas leis passaram a proibir, em municípios específicos, a presença de animais no show, e, para o Garcia, não existiam espetáculos sem animais - já que ele era um dos únicos circos do mundo onde era realizada a procriação deles.

No dia 29 de Dezembro de 2002, na região de Santo Amaro, Zona Sul Paulistana, aconteceu o último espetáculo do Garcia. Apenas 280 pessoas na arquibancada capaz de receber 3.500 espectadores. A arrecadação, lastima a dona do circo, Carola Boets, não foi suficiente nem para pagar os 300 reais gastos com a manutenção dos geradores daquela noite. O apresentador Arisvaldo Rabelo tradicionalmente abria os shows e, naquela noite, não foi diferente. Ele, mesmo estando triste durante o espetáculo, afirmou que não iria falar em despedida: “No lugar de adeus, vou me despedir como sempre fiz, dizendo até o próximo espetáculo”. Entretanto, para o Garcia, a próxima apresentação nunca aconteceu. As lonas do Circo dos Sonhos, diferente das do Garcia, ainda estão de pé. Eles já receberam, dentro dos mais de 30 anos de experiência, mais de 2,8 milhões de espectadores. “As pessoas hoje possuem um pensamento que o circo morreu ou que está decadente, o que é um imenso engano, cada um tem seu modo de fazer circo” afirma Asdrubal Savioli, produtor do espetáculo.

Em meu dicionário, circo é sinônimo de normalidade Hudson rocha, palhaço

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A LONA MÁGICA. Caras de surpresa da plateia por causa dos feitos fantásticos dos artistas; gargalhadas provocadas pelo palhaço; a beleza das cores dos figurinos. O primeiro ato do Circo do Sonho então se encerra com um número de báscula – acrobacias com a participação de uma “gangorra”. A música, por um instante, é trocada pela fala de alguém anunciando um breve intervalo e, após isso, o ambiente é invadido por músicas infantis, como hits do Balão Mágico e Xuxa. A plateia sai para ir ao banheiro, comprar pipoca ou churros, ou simplesmente esperam em suas cadeiras pelo começo do segundo ato. A função recomeça. A razão de todas as gargalhadas dessa vez vem de Hudson Rocha, de 45 anos e representando a quinta geração de sua família no circo o artista que, ao colocar a maquiagem, se torna capaz de arrancar o sorriso no rosto do público. Alega que “em meu dicionário, circo é sinônimo de normalidade”. Por mais que no primeiro ato o palhaço tenha aparecido apenas uma vez, no segundo sua presença se dá em dois momentos. Mesmo provocando gargalhadas estrondosas, o foco de luz não está apenas em Rocha. Chega a hora dos números de mágica tomarem o centro da arena: desaparecer, dissociar do corpo a cabeça da assistente de palco, reaparecer, trocar de roupas instantaneamente; esses são os verbos que espelham esse momento. Semelhante ao começo do primeiro ato, o segundo também termina com a volta de todo o elenco. Um número de sapateado apodera-se do picadeiro ao mesmo tempo em que os artistas agradecem a presença do público - esses que, como Sandra Corrêa, de 52 anos, escolheu se encontrar embaixo da lona que abriga o encantamento circense. Além de dizer que “os palhaços lembram minha infância” a principal razão da vinda de Corrêa foi trazer sua neta Valentina, de cinco anos, para também entrar em contato com as artes circenses. A melodia dos aplausos sustenta o momento final do espetáculo. E, com sorrisos do tamanho que suas bochechas aguentam, está na hora dos artistas se despedirem. Ainda existem muitos obstáculos para aqueles que vivem da arte circense no Brasil, mas o show tem que continuar. Portanto, quando as cortinas se fecham a alegria e satisfação bailam no ar, pois, no dia seguinte, elas sabem que irão se abrir mais uma vez.

As artes circenses consistem na capacidade do artista, por meio de muita dedicação e treino, de elevar seu corpo a posições extremas e improváveis

MAURICIO ABBADE

O Circonteúdo, conhecido entre os do meio como o principal portal da diversidade circense, reafirma a fala de Savioli com a continuação de uma pesquisa com a colaboração do Núcleo de Artes Circense da Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB), iniciado pelo Pindorama Circus, sobre o levantamento dos circos itinerantes no Brasil, ela afirma que no Brasil, existem 178 circos itinerantes. Pesquisas como essas ainda estão em construção e não possuem números exatos já que localizar todos os circos de um país continental como Brasil não é uma tarefa fácil.

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MÚSICA

Vanguarda mineira O Clube da Esquina impactou o cenário musical da década de 1960 por meio de arranjos que se propagam até hoje Texto por Fernando Oda

M

ilton Nascimento recebeu o título de doutor honoris causa em música no ano de 2016 pela Berklee College of Music, em Boston, nos EUA - uma das mais respeitadas universidades de música do mundo. Ao lado de nomes como B.B. King (Blues) e Miles Davis ( Jazz), lia-se no cartaz que anunciava as participações do evento: Milton, o homem que criou um gênero. Na década de 1960, surgia um movtimento musical em Belo Horizonte chamado Clube da Esquina, que teve como fundadores Milton Nascimento e Márcio Borges. Bituca (apelido de Nascimento)

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cantava e Borges compunha. Eles passaram a se encontrar para criar música juntos e logo a qualidade dos trabalhos chamou a atenção de outros artistas, que se integraram ao grupo, como Beto Guedes, Fernando Brant, Flávio Venturini, Lô Borges, Tavinho Moura, Tavito, Toninho Horta e Wagner Tiso. O grupo liderado por Borges e Milton lançou o primeiro álbum, “Clube da Esquina”, em 1972. As letras das faixas conversavam entre si por meio dos temas que representavam, como por exemplo o amor, tanto por uma pessoa como também pela experiência de viver; o interior de Minas Gerais, diversas vezes ilustrado pela figura do trem de ferro que eles viam passar pelos campos, levando gente e sonhos dentro dos vagões; a liberdade, defendida pelo livre arbítrio das ideias e das ações de cada um. Ivan Vilela, violonista e professor de Música Popular Brasileira na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP), analisa os aspectos musicais teóricos que marcaram a construção das faixas a partir dos

Lô Borges na contracapa do disco do tênis, lançado em 1972

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arranjos. “‘Cravo e canela’ marca as influências do congado de Moçambique na pulsação das batidas. Na faixa que encerra o disco, ‘Ao que vai nascer’, a letra é quase recitada e a melodia fica por conta dos vocalises sobre os instrumentos. Também foi colocado um efeito de fade out no últimos segundos da música, ou seja, o volume vai diminuindo aos poucos até desaparecer”. Vilela afirma que esse recurso pode ter sido utilizado para atribuir um sentido de continuidade à obra. Continuidade essa que se propagou até seis anos depois, quando o álbum “Clube da Esquina 2” foi lançado em 1978. Assim como no primeiro disco, a percussão é protagonista em diversas faixas, uma vez que ela “ganha vida” e cria sua própria melodia. As harmonias psicodélicas remetem aos Beatles. Muitos membros do Clube da Esquina eram fãs da banda e foram encorajados, assim como os rapazes de Liverpool, a inovar. E LÁ SE VAI MAIS UM DIA. Não demorou muito, apenas dois toques do telefone e Lô Borges atendeu minha ligação exatamente no horario em que nossa conversa estava agendada. Primeiro questionei o artista sobre a importância do relançamento do disco que leva seu nome, lançado no mesmo ano em que nascia o primeiro trabalho do Clube. O disco do tênis, como ficou conhecido popularmente pelo fato da capa reproduzir a imagem de um par surrado de Adidas branco, é composto por 15 faixas inteiramente autorais, que foram moldadas em arranjos experimentais de sonoridades e ritmos, trazendo novas dimensões para o cenário musical. Em parceria com a banda de Pablo Castro, o disco foi relançado na plataforma vinil em 2017. “O renascimento se dará não apenas no conteúdo, mas também na forma”, justificou. Com voz calma, mas assertiva, ele acrescentou que o relançamento seria uma tentativa de resgate de uma obra cujas cançōes nunca entraram para as setlists de seus shows. As músicas foram minuciosamente trabalhadas dentro do gênero nas quais se encaixam – Folk, Rock, Balada, Baião. “Cada canção é uma tradução do que eu estava sentindo”.


DANÇA

Sombrinha na

Pauliceia O frevo sai de Pernambuco e ocupa diferentes lugares Texto por Laura Molinari, Luisa Pascoli e Milena Alvarez Fotografia por Laura Molinari

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egundo o livro “Frevo - 100 anos de folia”, de 2007, escrito por Camilo Cassoli e Luiz Augusto Falcão, diferente da maioria dos ritmos populares brasileiros, o surgimento e o amadurecimento do frevo se deram em uma área bastante limitada à cidade de Recife. Como, então, que uma tradição tão localista e enraizada se espalhou por diferentes campos da cultura? Para Alisson Lima, pernambucano de nascença e professor de frevo no Instituto Brincante, na Vila Madalena, o cenário do ritmo na capital paulista vem ganhando cada vez mais abertura. “O frevo é uma dança contagiante”, afirma. O professor também ressalta o contraste entre costumes. “Os paulistanos, muitas vezes, desconhecem ou possuem uma visão superficial sobre a cultura de outros estados, já que costumam consumir a arte vinda de fora do país. Aqui as pessoas não estão acostumadas a ouvir e a sentir o corpo da forma que o frevo proporciona, porque vivem um ritmo frenético de trabalho e de estresse”. É nesse contexto que o Instituto Brincante promove a propagação da cultura nacional em São Paulo. Além de aulas de frevo, o espaço oferece cursos sobre danças afro-brasileiras, capoeira, poesia e percussão. O projeto foi idealizado pelo violinista Antônio Nóbrega, que pretendia apresentar aos próprios brasileiros um Brasil ainda pouco conhecido. Nascido em Recife, Nóbrega trilha um caminho de grande envolvimento com a música popular brasileira e é, atualmente, a principal autoridade na divulgação do frevo para além de seu estado de origem. A Cia Brasílica também contribui para a disseminação de ritmos genuinamente brasileiros pela capital paulista. Foi fundada em 2005 pelo recifense Deca Madureira e por Lucila Poppi com o intuito de transmitir a alegria nordestina aos paulistanos. Localizada no bairro da Lapa, fornece aulas, debates, eventos culturais e ensaios dos mais diversos ritmos, entre eles o frevo. Atualmente, os dois fundadores conduzem a companhia de dança contemporânea, responsável por levar criações singulares e críticas aos mais diversos públicos. “Canteiro de Obra”, de 2010, é um dos espetáculos premiados do grupo. A apresenta-

ção promove, por meio de experiências rítmicas e sonoras em um ambiente de uma construção civil, uma forte interação com a plateia e discute questões sociais como o alto número de migrantes nordestinos em canteiros de obras. O frevo, junto a outros ritmos brasileiros, auxilia a companhia a tratar de temas atuais interagindo com o cenário multicultural existente na capital paulista. O coreógrafo André Luís Santana da Silva nasceu nas proximidades de Olinda, em Pernambuco, e veio a São Paulo em 2015. Formado em danças brasileiras, balé clássico e contemporâneo, foi responsável por trazer o frevo aos jovens bailarinos que nunca haviam tido contato com o ritmo. Ele conta que sente orgulho em poder levar parte da cultura brasileira a um ambiente onde ela é desconhecida. O frevo também está presente no carnaval de rua da terra da garoa com o bloco “Olha o Sucesso”. Foi fundado por Pedro Henrique Carvalho, Manuela Alcoforado, Bartolomeu Cavalcanti e Thiago Gomes, que moraram em Recife antes de se mudarem para São Paulo. Eles tiveram a ideia do bloco quando o carnaval de rua começou a crescer e a se estruturar na capital paulista. Em 2016, ela foi posta em prática e continua sendo uma proposta única. Com a intenção principal de manter o bloco pequeno, em um clima de “carnaval de bairro”, os fundadores evitam divulgar o trabalho. Mesmo assim, há um aumento significativo do público. A paulistana Ana Becker disse que foi participar por indicação de um amigo e que pretende retornar: “Foi o meu bloco preferido, o ambiente estava incrível”. Segundo uma das organizadoras, Manuela Alcoforado, no primeiro ano de realização do bloco, cerca de 500 pessoas participaram da festa e a recepção dos paulistanos vem sendo muito positiva: “As pessoas adoram a questão cultural. O ritmo é contagiante e, logo, todos estão se acabando de frevar sem sequer saber dar um passo da dança”.

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CIDADE

Sacanagem de respeito A Casa Podo é especializada em realizar todo o tipo de prazer e atender a qualquer público na capital paulista Texto por Pedro Garcia

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o Belenzinho, bairro da Zona Leste de São Paulo, a poucos quarteirões da estação Belém do metrô se encontra um ambiente comercial que destoa um pouco de seu entorno. No meio de uma rua majoritariamente residencial, nomeada Toledo Barbosa, na altura do número 519, encontra-se a Casa Podo. A fachada com um pé desenhado em uma das paredes não deixa transparecer o que ocorre no interior do ambiente. No período noturno, as luzes e música alta mudam um pouco a vista externa do lugar, que passa a aparentar ser uma boate. Porém, a Casa Podo se diferencia dos locais de festa que a maioria das pessoas costuma frequentar, ela é uma casa de fetiches. Como seu nome sugere, a especialidade da casa é a podolatria, mas de acordo com seu proprietário, Leo – que prefere não ter seu sobrenome divulgado, como, aliás, todos os outros entrevistados para esta reportagem –, a Podo realiza qualquer tipo de fetiche. A predominância do desejo por pés é percebida logo na entrada. No local, existem mesas e cadeiras, ao lado do balcão do bar, e sobre elas ficam dispostos sapatos de salto alto.

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Nesse mesmo salão inicial, existe uma cadeira suspensa para quem deseja ficar dependurado e uma mesa de sinuca, não utilizada da forma usual, como contaria Leo ao longo da noite. Um estreito corredor leva ao segundo cômodo, onde estão instaladas cabines escuras com cortinas em vez de portas, nas quais é possível realizar sexo grupal e voyeurismo, prática na qual os participantes têm prazer em observar relações sexuais de terceiros, sem nenhuma interação física. Ao lado das cabines, existe um sofá de frente para uma parede onde há um “X” desenhado. Nele, há fivelas para prender as mãos de quem desejar. Entre a parede e o sofá está uma pequena área livre com um tapete no chão, onde quem gosta de ser pisado ou usado de cadeira pode realizar seu fetiche. Ainda nessa parte da Casa Podo, está a mesa do DJ que toca literalmente de sertanejo a heavy metal. A casa noturna se completa com mais um cômodo. Nos fundos, localizam-se quatro quartos, para os que desejam um pouco de privacidade. Em um deles, inclusive, há um “X” para os casais sadomasoquistas, que sentem prazer em fornecer ou sentir dor, mas que não são exibicionistas. Leo conta também que

prostitutas da região utilizam os quartos do local para trabalharem, devido ao baixo preço de entrada, vinte reais por casal, sem tempo estipulado de permanência. Mas o responsável pelo local ressalta que o público da prostituição é diminuto e frequenta o local na maioria das vezes à tarde, quando não estão acontecendo as festas fetichistas. Os eventos temáticos na Casa Podo ocorrem todos os sábados. Leo afirma que as vantagens de seu estabelecimento são, além do baixo preço, a abertura para o público em geral, heterossexual em sua maioria, mas também há a presença de LGBTs. A limpeza do local não é das melhores, com latas de cerveja espalhadas e alguns cinzeiros lotados. A equipe de funcionários garante que há a troca da roupa de cama e que ela está sempre limpa. Camisinhas e lubrificante também são uma preocupação e são distribuídos pelo ambiente. É permitido fumar narguilé e cigarro no interior da casa e menores de idade podem entrar tranquilamente, já que o documento não é pedido na entrada. A noite começou parada. Mas próximo a uma da manhã as práticas de fetiche começam. Umas das frequentadoras


Aqui você pode falar sobre o que sente tesão que a gente dá um jeito de realizar Leo, proprietário da casa podo

tirou sua saia e se posicionou de calcinha em frente ao “X” na parede. Naquele momento, um homem chegou com um chicote e começou a açoitá-la, depois mudou o objeto para uma raquete de frescobol e acabou a sessão com um chicote equestre, o que atesta a cultura do consentimento implantada no local. Sempre que Renata, a mulher na parede, fechava sua mão, o homem parava de bater em sua bunda. Mais tarde, Vitor, um frequentador assíduo do local, contou que na Casa Podo e no mundo fetichista o consentimento é essencial e sempre presente. Ele relata nunca ter visto um homem puxando uma mulher pelo braço, como ocorre em baladas, e diz sempre haver códigos para quando a pessoa se sentir desconfortável, como o uso de três tapinhas como em uma luta no facesitting, quando uma pessoa senta na cara da outra até sufocá-la. A podolatria seguiu em alta no restante da noite. Com homens massageando, chupando e beijando os pés das mulheres. Leo aproveitou esse momento para divulgar o concurso de pés femininos que ocorreria em duas semanas, com dez jurados avaliando diversas categorias, como a maciez, das concorentes. O dono da casa

também comenta o fato de uma mulher se tornar uma rainha em meio aos fetichistas por ter pés atraentes e ganhar presentes e até mesmo dinheiro, caso opte por cobrar para masturbar homens com o pé. Leo também conta outras preferências sexuais realizadas no local. Na Casa Podo, é possível comprar meias femininas de 50 a 100 reais. Lá também são vendidas roupas intimas, urina e fezes de mulheres. Na mesa de sinuca, as pessoas deitam para serem queimadas com cera de vela ou então participarem de um ritual de sushi, no qual uma pessoa deita nua ou seminua e é colocada comida sobre seu corpo. Há também casais em que um deles gosta de se fingir de cachorro, coloca um plug anal semelhante a um rabo e imita o animal. Além de muitos homens que procuram por inversão no sexo, ou seja, mulheres que os penetrem com dedos ou acessórios. Sobre a inversão, Vitor conta um causo ocorrido em uma festa. Ele narra que após o término de uma briga na piscina de plástico montada para a ocasião, lembrando a famosa Banheira do Gugu, um frequentador da casa tirou sua roupa na frente de todos os presentes e pediu que uma mulher o “comesse”. Vitor diz não

ter a coragem de fazer o mesmo publicamente, mas assim como muitos homens que vão à Podo, pratica tal ato entre quatro paredes, mas lembra que nunca comentaria o assunto da porta para fora da casa de fetiche devido ao tabu existente com o prazer anal masculino. Leo conta não se surpreender com mais nenhum fetiche. “Se você me contar que gosta de se masturbar assistindo o Datena eu vou achar normal. Aqui você pode falar sobre o que sente tesão que a gente dá um jeito de realizar”, conta. Um dos fetiches que considerou mais inusitado foi o pedido de um homem casado para comprar pele de um pé feminino, adquirido após uma mulher lixar seu calcanhar. Na multiplicidade de fetiches, ele conta que sua última parceira sexual só chegava ao orgasmo com um aspirador de pó em sua vagina, pois sentia prazer na sucção. “Todo mundo tem um fetiche, as pessoas só têm medo de dizer e explorar isso”, afirma Leo. Ele conta ainda que na Casa Podo as pessoas têm a chance de se libertarem sexualmente, sem julgamentos e sem preocupação de serem expostas. O que ocorre na Podo fica por lá, com conforto e respeito, mas muita sacanagem.

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CRÔNICA

Cotidiano número 01 Texto por Guto Martini

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cheiro desta cidade é pior às 6 horas do que às 18 horas. Vai por mim: de manhã o estômago vira com qualquer coisa. No Metrô, por exemplo, pegar a Linha Vermelha do Tatuapé até o Anhangabaú é um teste de resistência. Mas tem uma hora que, sabe, foda-se. Você se acostuma com a mistura de cheiros de hidratante, subaca disfarçada com desodorante vagabundo e bafo matinal. Não tem mais embrulho no estômago, só cansaço da noite mal dormida, conformismo e um pré-estresse antes de entrar no serviço. “Ei, garoto, isso significa que você é um proletário. Bem-vindo à realidade, porra!” É verdade. Eu era um proletário. Eu e a Stephany. Cara! Foi ela que me deu a mão quando tropecei na vida adulta. Precisava muito de grana e ela fez uma indicação no lugar que trampava: a Uranet. Uma empresa de telemarketing no Centro de São Paulo. Minha amiga era dessas punks paulistanas de moicano, coturno e jaqueta de couro rasgada. Ela queria ser cineasta, mas ainda não tinha nada muito concreto. Estava metida num relacionamento bosta e um pouco perdida na vida. Como não podia se dar ao luxo de ficar parada, foi atrás de arranjar dinheiro num dos poucos negócios que aceitam gente de visual “diferentão”. No telemarketing, eles estão pouco se fodendo, a única regra é que não pode bermuda

Tirinha por Henrique Artuni

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e coisas que a etiqueta coxa chamaria de “indecentes”. De resto, sem problemas. Eu tinha acabado de entrar na faculdade de Jornalismo e conseguir um estágio logo assim, no primeiro mês, era complicado. Então, com meu velho em cima de mim em casa, atirei-me com a Stephany para o time dos cobradores do gerúndio. Eu e ela: os garotos da zona leste indo todos os dias para Líbero Badaró, lá do lado daquele vale fedido. Nosso prédio era o Edifício Mercantil, um bem grande e com o topo estranho parecendo inacabado – você já deve ter visto se costuma passar pelo Centro Velho. A gente era pontual sempre, até naquelas segundas-feiras em que estávamos de ressaca depois de voltar do Madame Satã. “Acabados, mas on time” era o nosso lema e a gente o seguia à risca. Tão à risca que, às vezes, já estávamos lá meia hora antes de bater o ponto. Quando isso acontecia, era bom. Estendíamos qualquer que fosse o assunto começado durante nossa cruzada no Metrô, que geralmente girava em torno do namoro dela, dos foras que eu levava e de algum filme bizarro dos anos 1980. Em todo o caso, ou o papo caia sobre a desgraça de se apaixonar feito um idiota ou sobre o John Carpenter. Era muito louca a nossa brisa: amor e terror. Ela gostava de fumar antes de entrar no Mercantil. Um Hollywood vermelho.

Na verdade, dois. Ela sempre fumava dois e baforava na minha cara pra me irritar. Eu fazia cena e xingava, mas na verdade não ligava muito, não. O cheiro do cigarro meio que cobria outros piores, como o de mijo e esgoto, que eram bem fortes na Miguel Couto, uma rua pequena e estreita que corta a Líbero Badaró. Era lá que ficávamos conversando antes de dar a hora, cada dia alternando entre as lanchonetes que tinham todas uns salgados meio estranhos nas estufas embaçadas. Comíamos sem medo enquanto nossas conversas seguiam entre os tragos de cigarro e a música que saía dos fones de ouvido dela – quase sempre, alguma coisa do The Clash. Era assim até chegar a inevitável hora de subir e fazer a primeira promoção ou cobrança do dia. Engraçado lembrar dessa época. De lá pra cá, mudaram algumas coisas. Não estamos mais naquele canto de São Paulo já faz tempo. Foi aquilo: seguimos o baile. Às vezes, passo por lá (embora nunca naquele horário tão cedo) e as memórias são essas. Nenhum grande acontecimento, nada muito “uau!”. É mais aquele negócio de sentir pelo cotidiano que passou, de ter marcado um lugar pela lembrança sem pensar muito no desfecho – este quase nunca existe. Death or glory becomes just another story, igual o Joe Strummer cantava do fone da Stephany.



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