Esquinas ­ nº 49 ­ Segredos

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REVISTA-LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA FACULDADE CÁSPER LÍBERO #49 – 1º SEMESTRE DE 2011

Segredos revelados Julian Assange, Zé do Caixão, Carmen Sandiego, Redes Sociais, Ghost Writers: o que eles têm em comum? Ali na Esquina Especial: (re)descobrindo o Centro de São Paulo


Único do país na TV aberta Produzido, realizado, editado e apresentado pelos alunos dos cursos de Jornalismo e de Rádio e TV, o programa Edição Extra explora as novidades e os bastidores do mundo da Comunicação. Todo primeiro domingo de cada mês à meia-noite, logo depois do Mesa Redonda, na TV Gazeta.

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EDITORIAL

Fundação Cásper Líbero Presidente Paulo Camarda Superintendente Geral Sérgio Felipe dos Santos Faculdade Cásper Líbero Diretora Tereza Cristina Vitali Vice-Diretor Welington Andrade Coordenador de Jornalismo Igor Fuser

com a

língua nos dentes

Professor responsável Heitor Ferraz Mello Monitoria Editora Fernanda Patrocínio Assistentes editoriais Ítalo Fassin, Jaqueline Gutierres e Lidia Zuin Editor de Arte e Fotografia Petrus Lee Diagramação Petrus Lee, Renan Goulart, Camila Luz e Henrique Koller Revisão Gustavo Nárlir, Ítalo Fassin, Jaqueline Gutierres, Louise Solla, Nathalia Henrique, Paulo Pacheco, Renata Barranco, Thiago Tanji e Tiago Mota Participaram desta edição Afonso Ribeiro, Aline Pereira, Amanda Massuela, Ana Beatriz Gebara, Ana Carolina Neira, Ana Gabriela Maciel, Ana Luiza Pandolfi, Ana Luísa Vieira, Ananda Cseiman, Andressa Basílio, Anna Beatriz Pouza, Anna Paula Mascarenhas, Barbara Gomes, Beatriz Viabone, Beatriz de Oliveira, Bianca Castro, Bianca Chaer, Bianca Mascara, Bruna Fernandes, Bruna Moraes, Bruno Bataglin, Bruno Grossi, Bárbara Vanderlei, Caio Vitor Hungria, Camila Baos, Camila Bianchi, Camila Lafratta, Camila Luz, Carla Leonardi, Carlos Aros, Caroline Teixeira, Caroline Zilberman, Cínthia Zagatto, Daniela Guardão, Danillo Oliveira, Danilo Braga, Danylo Martins, Deborah Rezaghi, Edoardo Ghirotto, Eduardo Gonçalves, Eduardo Silva, Felipe Cordeiro, Fernando Zorzetto, Filipe Sbarra, Flávia Knisper, Flávia Sartori, Flávio Passos, Flávio Passos, Francini Vergari, Gabriel Carneiro, Gabriel Medeiros, Gabriel Moreno, Gabriela Colicigno, Gabriela Godoy, Gabriela Kimura, Gabriela Soutello, Gabriela Zocchi, Gabrielle Winandy, Guilherme Aleixo, Guilherme Athaide, Guilherme Burgos, Helder Ferreira, Helena Kaulich, Isabela Pastor, Ivan Oliveira, Izabella Passos, Julia Bezerra, Julia Rezende, Juliana Periscinotto, Júlia Daher Marques, Júlia Viana, Laura Araújo, Laura Bugelli, Laura Neaime, Laura Stoppa, Laís Chaves, Laís Peterlini, Lidia Zuin, Liliana Barretto, Luan Freires, Luan Granello, Luana Fagundes, Luana Martins, Lucas Menegale, Lucas Paulino, Lucas Reginato, Lucas de Freitas, Luciana Gonçalves, Luisa Coelho, Luisa Massa, Luíza Fazio, Marcela Lourenzetto, Marcella Merigo, Marcella Paula, Marcos Rodrigo, Maria Beatriz Gonçalves, Maria Lúcia Zanutto,Mariana Auresco, Mariana Janjacomo, Mariana Kindle, Mariana Limeira, Mariana Marinho, Mariana Rizzatto, Marina Espindola, Marina Junqueira, Marina Maranhão, Marina Pape, Marina Pellorca, Marília, Leoni Beserra, Marília Pelliciari, Maíra Roman, Melissa Vaz, Miguel Amado, Murilo Pavini, Mário Sérgio da Silva, Naiara Araujo, Natalia Julio, Natália Alves, Patrícia Alves, Patrícia Dichtchekenian, Paula Lopes, Paula Teresa, Pedro Samora, Priscilla Bastos, Rafael Costa, Rafael Rojas, Raquel Bertani, Renan Goulart, Renan do Couto, Renata Barranco, Ricardo Gonçalves, Ricardo Pacheco, Ricardo Rossetto, Roberto Fideli, Rodolfo Mondoni, Rodrigo Fragoso, Rodrigo Tolotti, Simone Albuquerque, Stella Vasco, Stephanie Teramai, Suellen Fontoura, Talles Braga, Tatiane Rosset, Thais Campoy, Thais Santana, Thais Schreiner, Thamires Andrade, Thaís Lee, Thiago Navarro, Thomas Freier, Victor Bonini, Vinícius de Melo, Vivian Garcia, Yasmine Crepaldi

Foto de capa: Guilherme Burgos Agradecimentos Ariovaldo Vicentini, Carlos Costa, Cláudio Arantes, Daniela Osvald, Gilberto Maringoni, Hugo Studart, Liráucio Girardi, Ricardo Muniz e Simonetta Persichetti Núcleo de Redação Avenida Paulista, 900 — 5º andar 01310-940 — São Paulo — SP Tel.: (11) 3170-5874 E-mail: revistaesquinas@gmail.com www.casperlibero.edu.br

HEITOR FERRAZ MELLO

Enquanto a equipe de alunos-repórteres do Esquinas desvendava alguns segredos do nosso tempo, fazendo entrevistas e escrevendo suas matérias, um fenômeno curioso acontecia: o assunto começou a aparecer estampado na capa de várias revistas de banca. Na redação, até comentávamos entre nós a tamanha coincidência. Claro, houve aqueles que desconfiaram de vazamento de informação. Mas logo na sequência, um outro segredo veio à tona e ressaltou a importância do tema que tínhamos escolhido. Pego com a boca na botija, Dominique Strauss Kahn não aguentou as revelações de seus atos na suíte de um hotel novaiorquino e perdeu o emprego no FMI — e um possível mandato presidencial na França. A coincidência tem certamente um motivo, já que não há mistérios na face da terra. Basta pensar nesse tumultuado começo de século: com as redes sociais, tão em voga, a noção de privacidade como que sofreu um abalo. Num passeio rápido pelo Facebook, por exemplo, podemos encontrar muitas pessoas revelando mais do que escondendo. Assuntos privados ganham circulação pública, e até mesmo um namorico escondido acaba sendo compartilhado. Em alguns casos, o Facebook ocupa a função da janela espiã das velhas fofoqueiras de bairro, que não pensavam duas vezes

Na edição 49, a Revista Esquinas procurou abordar polêmicas e fatos ocultados do nosso dia a dia. E foi preciso grande esforço na apuração para revelar os segredos tintim por tintim: ao todo 159 repórteres participaram além dos 11 monitores do Núcleo Editorial. Outros segredos também estão no portal Esquinas: http://bit.ly/esquinas

em dar com língua nos dentes. Um outro fato, e de grande relevância, foi o escândalo pessoal de Julian Assange, o criador do WikiLeaks. Ele que vinha (e continua) revelando segredos de Estado, criando verdadeiro mal-estar na desumana política internacional, virou manchete por causa de um escorregão na vida sexual. A notícia correu mundo, gerou capas de jornais e revistas, com o tratamento típico que se dá aos casos escandalosos de celebridades do momento. Claro que a trombeta em torno do caso (sem entrar em considerações legais) tem um objetivo: enfraquecer toda ação política de seu site, que vem disponibilizando documentos explosivos. Para nós, esses casos serviram de ponto de partida para pensar este número da revista. O caso Assange e seu WikiLeaks ocupam dez páginas desta edição. Não poderia ser diferente. Mas também procuramos levantar outras pautas que envolviam a palavra segredo, como a vida dos espiões e detetives, os cantos escondidos da cidade de São Paulo, as sociedades secretas, as expressões em língua portuguesa que se relacionam ao segredo e a privacidade devassada por câmeras de segurança e outras revelações do que estava guardado a sete chaves. Eis aqui, nas 72 páginas desta revista, alguns desses segredos revelados.

GUILHERME BURGOS

Revista-laboratório do curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero

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SUMÁRIO

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18 06 DOSSIÊ WIKILEAKS

32 UM ESPIÃO DE UNHAS COMPRIDAS

18 BOQUINHA DE SIRI

40 A HISTÓRIA (CENSURADA) DA VIDA PRIVADA

22 AÍ SIM, FOMOS SURPREENDIDOS NOVAMENTE!

42 PITADA DOS CHEFS

27 ALTEREGO

44 IF HACKER, NOT CRACKER

30 ESCOLA DE DETETIVES

50 VOCÊ JÁ ENCONTROU CARMEN SANDIEGO?

A organização fundada por Julian Assange vem desvendando verdadeiras bombas, antes mantidas como sigilo de Estado

Conheça algumas profissões que fazem do segredo o seu ofício

Atletas e treinadores: como lidar com as polêmicas que envolvem o esporte e as vidas de quem vive dele?

Pessoas que viveram sob dupla identidade em plena ditadura brasileira

Opção rápida e barata, curso cujo um dos professores é o cineasta Zé do Caixão atrai alunos

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José Mojica, o “Zé do Caixão”, ensina sobre a arte da espionagem — atraindo fãs e curiosos

Algumas biografias geram polêmicas depois de publicadas, com direito a brigas judiciais

A família Basile conta quais são os ingredientes para fazer sucesso na cozinha

A vida de quem se aventura diante da tela, driblando códigos binários

A ladra mais famosa dos games está de volta com aplicativo para Facebook


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52 FAMA E ANONIMATO

Conheça os ghost writers: escritores que vivem do silêncio para melhorar o texto alheio

56 NÃO É SEGREDO PRA NINGUÉM

As identidades por trás das máscaras, poderes e fantasias dos superheróis

60 OS SUSPENSES DE UMA NOVELA

Noveleiros, críticos e autores falam sobre os elementos de uma boa trama

66 SEÇÕES 25 ARQUIVOS SECRETOS 34 CÂMERAS DE VIGILÂNCIA 36 ENSAIO 42 GASTRONOMIA 48 PARAÍSOS FISCAIS 58 SOCIEDADES SECRETAS 64 EXPRESSÕES 70 CRÔNICA

62 OS MISTÉRIOS DE ARQUIVO-X

Explicar casos paranormais e mantidos em sigilo peo FBI é a missão dos agentes Mulder e Scully

66 (RE)DESCOBRINDO SÃO PAULO

Neste número, a seção “Ali na Esquina”virou um especial sobre as aventuras no Centro paulistano e a Caminhada Noturna

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ESPECIAL: dossiê WikiLeaks

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REPRODUÇÃO

WikiLeaks Saiba mais sobre esta “organização midiática sem fins lucrativos” liderada por Julian Assange e que vem revelando informações antes sigilosas

REPORTAGEM ANNA BEATRIZ POUZA, BIANCA CHAER, LUAN FREIRES e YOLANDA MORETTO (2o ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO LUCAS REGINATO (1o ano de Jornalismo), THAÍS LEE e TIAGO MOTA (2o ano de Jornalismo) IMAGEM PETRUS LEE (2o ano de Jornalismo)

ARQUIVOS SECRETOS SOBRE a guerra no Iraque, invasão no Afeganistão, telegramas diplomáticos, manobras políticas disfarçadas. O WikiLeaks se intitula uma “organização midiática sem fins lucrativos” e se dedica a trazer a público notícias e informações ocultadas, ou mesmo escondidas, de diversos governos. O website (www.wikileaks.ch/) foi criado por Julian Assange, jornalista e ciberativista australiano, e traz um recurso inovador, seguro e totalmente anônimo para a publicação destes arquivos secretos. O material proveniente de fontes independentes de várias partes do mundo é repassado aos jornalistas associados ao WikiLeaks. O diferencial tecnológico é o processo de criptografia pesada pelo qual passam os documentos. Isso que os torna praticamente impossíveis de serem rastreados, até mesmo pela própria organização, protegendo quem os enviou. Até o momento, a página tem se mantido firme contra os ataques políticos.

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ESPECIAL: dossiê WikiLeaks “A mídia impressa pode usar o material publicado pelo WikiLeaks como uma fonte importante de dados a serem checados”, comenta Carlos Castilho, jornalista e colaborador do Observatório da Imprensa. “É claro que os jornais, revistas, rádios e TVs não podem investigar tudo o que é publicado. A verificação do material divulgado pelo WikiLeaks é um processo complexo em que a imprensa convencional tem dificuldade para executar a tarefa.”

O INÍCIO – CASO LADY GAGA No dia 17 de junho de 2007, um helicóptero AH-64 Apache do Exército norte-americano sobrevoava o subúrbio de Bagdá, capital do Iraque, a um quilômetro de altitude, invisível para quem estivesse em terra. Os pilotos avistaram um grupo de homens armados e decidiram abrir fogo, usando um canhão automático de 30 milímetros. Após o ataque, uma van que passava pelo local parou para tentar resgatar os sobreviventes, mas também se tornou alvo dos ataques aéreos norte-americanos. Com o embate, 12 pessoas morreram, entre eles a fotojornalista Namir Noor-Eldeen, seu assistente e motorista, Saeed Chmagh, além de dois funcionários da agência internacional de notícias Reuters; duas crianças que estavam na van também se feriram na emboscada aérea. Os detalhes do ataque do helicóptero Apache e da morte dos funcionários da Reuters não foram divulgados pelo Exér-

cito norte-americano. Mas, em 2010, tudo mudou depois que Bradley Manning, de 23 anos, soldado descontente da 2ª Brigada de Combate da 10ª Divisão de Montanha, gravou mais de 250 mil documentos que “expõem avaliações francas e embaraçosas de funcionários dos Estados Unidos a respeito de líderes mundiais”, segundo o portal Terra. Com a desculpa de trabalhar em frente ao computador ouvindo um CD com músicas da cantora Lady Gaga, Manning gravou os documentos que ficavam armazenados na rede militar secreta na internet. Em um chat, o soldado teria contado seu feito a Adrian Lamo, ex-hacker conhecido por ter invadido os sites da Microsoft e do jornal The New York Times, e afirma ter entregue o material a Julian. Embora as autoridades americanas evitem associar o nome do soldado ao WikiLeaks, e o próprio fundador do site nunca tenha confirmado a origem dos documentos, no bate-papo entre Manning e o ex-hacker divulgado pela revista norteamericana Wired, o soldado afirma ser “uma fonte de alta relevância” e ter desenvolvido “uma relação com Assange”. Bradley Manning foi detido pelo Exército norte-americano no Kuwait e hoje está preso na base Quântico dos Marines, na Virgínia, há nove meses. Ele foi indiciado em julho de 2010 por ter obtido ilegalmente o vídeo que mostrava o ataque do avião Apache em território iraquiano e repassado a Julian Assange. Com o nome de “Assassi-

A jornalista investigativa Natalia Viana é a representante brasileira no grupo de Assange

ARQUIVO PESSOAL

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nato Colateral”, o vídeo de 39 minutos foi exibido pela primeira vez no dia 5 de abril de 2010, no Clube Nacional de Imprensa, em Washington, capital dos Estados Unidos. A película apresentava um plano geral do que havia realmente acontecido três anos antes. Na exibição, soldados do Apache abriam fogo contra um grupo de homens armados, apesar de não demonstrarem agressividade destes — o que desmentia a afirmação dos militares de que havia uma ameaça aos soldados, o que os pilotos estado-unidenses consideraram uma justificativa para os tiros. Apesar do erro dos norte-americanos, a divulgação do documento não causou o impacto esperado por Assange.

O CLUBE DOS 4 No dia 25 de julho de 2010, a bomba esperada por Julian Assange finalmente chegou, com a publicação de diários militares da guerra do Afeganistão, também entregues pelo soldado Manning. Para divulgar a informação, o WikiLeaks fez acordos com periódicos de expressão mundial. O jornal britânico The Guardian foi o primeiro a fazer contato com o grupo de Assange, que sabendo do acesso aos documentos, tentou obter informações inéditas. Após as negociações entre as duas organizações, foi decidido que o jornal americano The New York Times e a revista alemã Der Spiegel também participariam da divulgação dos diários. A parceria entre as quatro empresas foi importante para a credibilidade das informações vazadas e para evitar possíveis boicotes por partes dos países aos quais os primeiros documentos diziam respeito. No total, o site postou cerca de 500 mil documentos relacionados às guerras do Afeganistão e Iraque. Enquanto o WikiLeaks publicou na íntegra os documentos, os periódicos ficaram com a missão de analisar e organizar as informações para que estas fizessem sentido quando publicadas. A interação dos renomados veículos fez com que o público passasse a ver o conteúdo como jornalístico. “O WikiLeaks não é exatamente uma instituição jornalística no sentido tradicional, tal como um jornal ou uma rádio”, explica José Cretella, doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP). “Ele tem características próprias, ou seja, é um site de notícias nos moldes de outros semelhantes. É uma pessoa jurídica privada sediada na Suécia.” Para Daniela Ramos, jornalista e especialista em Interfaces Sociais da Comunicação, o grupo criado por Assange já se afirmou como parte da cadeia de informação. “O que ele faz não é exatamente jornalismo. O WikiLeaks dá as condições para o jornalismo continuar provando para que serve: investigar os interesses dos cidadãos de forma transparente, sem o interesse de nenhum poder.” The Guardian, The New York Times e Der Spiegel tiveram cerca de um mês para ana-


PETRUS LEE

lisar os dados recebidos. Devido à complexidade do trabalho, as empresas chamaram colaboradores, como correspondentes em outros países, com o intuito de ajudar na contextualização dos fatos, além de montarem programas de busca nos computadores das redações para encontrar as informações. É o que relatam os repórteres David Leigh e Luke Harding do The Guardian, no livro WikiLeaks: a guerra de Julian Assange contra os segredos de Estado (Verus, 2011).

ORIENTE MÉDIO A publicação dos dois jornalistas também descreve como os diários de guerra mostraram uma face dos combates até então oculta. Um exemplo é o caso do ataque a uma escola no Afeganistão, que resultou na morte de sete crianças, em junho de 2007. Os militares norte-americanos afirmaram na época que houve um ataque iniciado por forças afegãs contra a escola, porque nela havia atividades de grupos rebeldes. Os diários divulgados, entretanto, indicavam que não houve um ataque, mas o teste de um novo tipo de sistema de mísseis dos militares. A ação não foi iniciada pelos afegãos, mas pela Força Tarefa 373, um departamento especial secreto do Exército dos Estados Unidos até então desconhecido. O ataque foi motivado pela suspeita de que Abu Laith al-Libi, um dos líderes do Al Qaeda, estivesse no prédio. A reação norte-americana sobre o vazamento do material militar foi forte e Assange foi retratado como “terrorista” e “conspirador”. Militares o acusaram de colocar a vida de informantes em perigo, afirmando que ele “teria sangue em suas mãos”, apesar do processo minucioso que censurava determinados nomes dos arquivos antes de colocar as informações na web. “A principal motivação é questionar a credibilidade do site WikiLeaks como fonte informativa ao desacreditar a figura de seu fundador”, explica o jornalista Carlos Castilho. Já o advogado José Cretella lembra que os Estados Unidos e outros países têm uma história com o terrorismo. “O moderno terrorismo internacional ficou mais consistente a partir de 1972, com os atentados na Vila Olímpica, durante os Jogos Olímpicos de Munique. Em 40 anos a situação parece muito mais grave e, de forma correspondente, os países que se sentem ameaçados reforçaram enormemente as medidas de segurança e introduziram legislação extremamente rigorosa”. Três meses depois da divulgação dos diários de guerra do Afeganistão, foi a vez dos documentos sobre o Iraque, também publicados com a cooperação dos três periódicos. Mais do que divulgar histórias surpreendentes, como no caso afegão, os diários impressionaram pelos números. Os Estados Unidos afirmavam que não faziam a contagem de corpos, mas nos relatórios os números eram precisos: 4.748 soldados norte-americanos ou aliados mortos até

Para o advogado José Cretella, o WikiLeaks não é exatamente uma instituição jornalística

o fim de 2010, cerca de 70 mil mortes de civis desde a invasão, 31.780 mortes devido a bombas implantadas por rebeldes nas estradas e 34.814 por atentados extremistas. Os documentos ainda mostravam violência de militares contra civis e presos.

REFORÇO E IMPACTO Em 28 de novembro de 2010, o site de Julian Assange publicou 250 mil telegramas diplomáticos dos Estados Unidos. Para organizar os dados, mais dois jornais entraram no jogo: o espanhol El País e o francês Le Monde. Os telegramas não foram divulgados todos de uma vez como alguns veículos anunciaram, mas aos poucos, sendo que alguns deles ainda estão passando por um processo de análise. A publicação desse material também só

foi possível devido às facilidades tecnológicas. No livro “WikiLeaks”, os repórteres comentam que se esses telegramas fossem impressos, equivaleriam a uma biblioteca com mais de 2.000 livros: “nenhum diplomata se atreveria a escrever tanto antes da era digital. E, mesmo que tivesse escrito, nenhum espião teria conseguido roubar cópias daquela quantidade de papéis”. Isso mostra como a tecnologia foi um fator determinante para que pudesse haver um vazamento dessas proporções. “Há uma nova cultura que está se espalhando pelo mundo e que foi gerada pela difusão das arquiteturas comunicativas digitais e interativas”, diz o sociólogo Massimo di Felice, doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). “Alguns valores desta nova cultura são a

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ESPECIAL: dossiê WikiLeaks REPRODUÇÃO

O WikiLeaks trouxe à tona os segredos da guerra dos Estados Unidos contra o Afeganistão

NATHALIA VIANA - ACERVO PESSOAL

transparência, o acesso de todos às informações, o código aberto, a cultura da inclusão, a possibilidade de cada indivíduo produzir e divulgar conteúdo, a participação tecnologicamente mediada nos processos de decisão e nas questões públicas.” Com a divulgação dos telegramas, a reação norte-americana se agravou. Pressionados pelo governo dos Estados Unidos, vários serviços de pagamento, como PayPal, Mastercard e Visa, bloquearam doações para as contas do WikiLeaks, o principal meio de arrecadação de fundos da organização. O banco suíço PostFinance bloqueou a conta pessoal de Assange e a empresa eletrônica Amazon expulsou o WikiLeaks de seu grupo de servidores. Nenhuma dessas empresas tinha, no entanto, motivos legais para as ações e se tornaram alvos de represália de entidades como a Anonymous, uma organização mundial de hackers. “Nós não somos filiados ao WikiLeaks ou qualquer coisa assim”, diz um hacker do grupo que atende por &Topiary. “Nós defendemos a liberdade de informação e quando descobrimos que empresas como a Paypal estavam cortando os fundos do site, decidimos atacar.” Posteriormente, todas as empresas retornaram seus serviços à organização. O conteúdo dos telegramas publicados varia de menções de festas entre embaixadores norte-americanos e asiáticos; por relatos de casamentos; a comparação do presidente russo Dimitri Medvedev como “o Robin para o Batman de Vladimir Putin”. “Entre esses documentos, metade é desclassificada, ou seja, qualquer pessoa poderia ter acesso a eles”, afirma Natalia Viana, parceira do WikiLeaks no Brasil. “A lógica da democracia é que os documentos do governo se tornem públicos. Nesse sentido, o WikiLeaks está ajudando a fortalecer o poder democrático, que não é baseado somente no Estado, mas também em seus cidadãos.”

MÍNIMO SIGILO A exposição das relações diplomáticas entre as nações por meio dos documentos revelados destacou a disparidade existente entre o discurso público e o discurso confidencial norte-americano — sobretudo a visão que os Estados Unidos têm acerca dos demais países. O WikiLeaks assumiu o papel de investigar e divulgar informações sigilosas que interessem ao público. Porém, como era de se esperar, ao adotar esta posição, dúvidas sobre a credibilidade e as intenções da organização começaram a ser levantadas. A decisão de selecionar cinco grandes veículos tradicionais para editar e contextualizar os documentos obtidos foi uma tentativa de contornar o problema, constituindo um paradoxal encontro entre o WikiLeaks e os representantes da imprensa convencional. Carlos Castilho, que além de ser colaborador do Observatório da Imprensa, é autor do blog Código Aberto, acredita que a

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Se por um lado a imprensa perdeu uma posição privilegiada junto aos consumidores de informações, ela começa a assumir cada vez mais a função de contextualizadora de fatos, dados e processos divulgados por blogs, redes sociais e ferramentas de produção colaborativa como a Wikipédia e o WikiLeaks”, Carlos Castilho, colaborador do Observatório da Imprensa e autor do blog Código Aberto presença de um novo ator no processo informativo muda substancialmente a organização deste. “Se por um lado a imprensa perdeu uma posição privilegiada junto aos consumidores de informações, ela começa a assumir cada vez mais a função de contextualizadora de fatos, dados e processos divulgados por blogs, redes sociais e ferramentas de produção colaborativa como a Wikipédia e o WikiLeaks.” O debate sobre a liberdade de expressão também foi revigorado por ocasião das recentes ações do WikiLeaks. A caçada a Julian Assange e a punição imposta ao soldado Bradley Manning que aguarda julgamento e foi recentemente transferido de prisão devido às críticas recebidas pelo governo a tentativa mal sucedida de bloquear o acesso ao site e a regulamentação que busca equivaler a organização a uma forma de terrorismo, foram algumas das respostas do governo dos Estados Unidos aos vazamentos. A valorização do sigilo por trás de acordos diplomáticos é característica da política norte-americana por isso sua preocupação perante o WikiLeaks faz sentido. Em tese, tornar público o processo de negociação diplomática pode prejudicar o diálogo e podar avanços e entendimentos, algo diferente de publicar apenas os resul-

BRAZILIAN FACTS Assange e seus colaboradores fizeram questão de fincar a bandeira em diversos lugares do globo, inclusive no Brasil, que esteve entre os países que fizeram parte da primeira fase de divulgação dos documentos da diplomacia americana. Em entrevista exclusiva à revista Trip (Maio de 2011, #199), ele mesmo explica que a relevância do país provém de sua independência nas Américas. O Brasil tem sua própria cultura, e a língua portuguesa, na visão de Julian, também deveria estar representada. “Havia ainda a formação do atual governo. Sabíamos que o novo Ministério seria nome-

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The New York Times e The Guardian: dois jornais que ajudaram a legitimar o grupo de Julian Assange

tados das negociações. No artigo “Vazamentos, sigilo, diplomacia: a propósito do significado do WikiLeaks”, veiculado neste ano na publicação Política Externa, da editora Paz e Terra, Celso Lafer, ex-ministro das Relações Exteriores do Brasil, ressalta que “os governos, em especial os de países democráticos, devem levar em conta a opinião pública e dar a ela indicações no sentido de direção do processo”. Ainda assim, “sem um mínimo de sigilo, de quiet diplomacy, não há condições de efetiva negociação”. Mas como os jornalistas devem se comportar diante da fragilização do sigilo diplomático? Os documentos que antes tinham como suporte o papel, hoje foram transportados para as plataformas digitais, que facilitaram o acesso e os vazamentos de informações. Toma forma um novo questionamento ético dentre profissionais desta área, que já gerou diferentes reações. No livro Open Secrets: WikiLeaks, War and American

Diplomacy, publicado pela Groove Press em 2011, Bill Keller, editor-executivo do The New York Times, destaca a preocupação dos jornalistas norte-americanos com a segurança nacional e a proximidade destes com aqueles que controlam a política externa dos Estados Unidos, tendo antes repassado os despachos ao Departamento de Estado, atitude que não foi tomada pelo jornal britânico Guardian, por exemplo. Diante de diferentes posicionamentos e de uma conjuntura tão recente, é impossível prever os efeitos que o surgimento do WikiLeaks provocará na atividade jornalística a longo prazo. Por enquanto, as redações se movimentam para averiguar a veracidade dos documentos obtidos. Apenas é certo que novas organizações nos moldes da organização de Assange fatalmente surgirão. De acordo com o sociólogo Massimo di Felice, elas já surgiram. “Já existem várias experiências análogas em vários cantos do mundo. O fenômeno só vai crescer.”

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ESPECIAL: dossiê WikiLeaks ado em janeiro, então era importante para nós soltar o material, antes do fim do governo Lula. Assim, qualquer eventual impacto chegaria a tempo, na hora certa”, explica o hacker ao repórter Lino Bocchini. Afinal, impactar e provocar reações é a principal missão de Assange. A responsável por selecionar, revisar e divulgar documentos no Brasil é Natalia Viana, jornalista investigativa que “há dez anos produz reportagens sobre política, direitos humanos e meio ambiente”, como consta em seu site. Após concluir o mestrado em Radiojornalismo na Goldsmiths College, em Londres, firmou parceria com o WikiLeaks para lançar, em primeira mão ao público brasileiro, arquivos confidenciais de diversos governos do mundo, especialmente dos Estados Unidos, em um projeto intitulado Cablegates. Natalia é a representante brasileira no grupo de Assange. Fica a cargo dela escrever matérias para o site, tanto em inglês quanto em português e também construir parcerias com grandes veículos de comunicação nacionais. Os primeiros a desfrutar de exclusividade para divulgar as informações cedidas pelo WikiLeaks foram os jornais Folha de S.Paulo e O Globo. “O WikiLeaks está em uma terceira fase de divulgação no Brasil. A primeira veio com a Folha; a segunda, com O Globo; e agora estamos enviando documentos para um grupo chamado ‘blogs progressistas’”, esclarece a jornalista. Questionada se não vai contra a política democratizadora de Assange permitir que mídias tradicionais monopolizem o acesso aos documentos sigilosos, Natalia retruca, defendendo que essa decisão, na verdade, só tem ampliado a discussão e repercussão na sociedade. “Nós recebemos críticas contestando a posse desses documentos por parte da Folha e do Globo, mas é muito mais democrático que eles estejam com os dois do que se estivessem sob a posse de um jornal internacional”, defende. Paralelamente, em parceria com a revista Carta Capital (Editora Confiança), Natalia também alimentou o blog (http://cartacapitalwikileaks.wordpress.com/), no qual tenta travar um contato mais próximo com os leitores. Hoje, todos os arquivos estão disponíveis no site apublica.org. “Peço que as pessoas indiquem temas para que eu pesquise nos documentos”, conta. Dos cerca de 250 mil telegramas em poder do WikiLeaks, aproximadamente três mil se referem ao Brasil. Segundo apuração da própria Natalia Viana, dessa quantidade, 63 são provenientes do departamento de Estado e 2.919 foram enviados entre 2002 e 2010 (1.947 originados da embaixada em Brasília e os outros 909 dos consulados de São Paulo, Rio de Janeiro e Recife). “Estou com três mil documentos e só publicamos quinhentos. A ideia do WikiLeaks é publicar tudo de modo que os grandes temas possam ser discutidos

e não só jogados na rede”, explica a jornalista. Os autores dos telegramas vazados são, quase sempre, embaixadores norte-americanos no Brasil. Donna Hrinak (que ocupou o cargo de 2002 a 2004), Jonh Danilovich (2004 a 2005), Cifford Sobel (2006 a 2008) e Thomas Shannon (2009 até agora) escreviam — e, no caso do último, ainda escreve — a Washington dando o seus pareceres sobre questões de ordem interna do Brasil. Os demais membros, como o cônsul–geral Christopher McMullen, também manifestavam suas opiniões por meio de despachos. Os mais frequentes documentos tratam de encontros e reuniões, traçam perfis de indivíduos influentes que interessam ao governo norte-americano ou revelam pequenas descobertas políticas. Não há, portanto, registro dos bastidores de nenhum episódio extremamente vergonhoso. Natalia Viana deixa transparecer certa satisfação com tal resultado: “os documentos que envolvem o Brasil mostraram pela primeira vez como funciona a nossa diplomacia e como agem os norte-americanos aqui, embora não tivesse nenhum escândalo gigantesco, o que é bom, porque significa que nosso governo tem mantido uma linha independente”.

LULA Alguns dos telegramas mais reveladores aludem às eleições presidenciais de 2006, quando Luíz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), disputava o segundo mandato com o candidato da oposição, Geraldo Alckmin, do Partido da So-

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cial Democracia Brasileira (PSDB). Declarações impactantes, como a do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso sobre Alckmin, dizendo que o último era “um caipira de Pindamonhangaba”, datam dessa época. A fala de FHC, reproduzida pelo ex-governador paulista Cláudio Lembo em reunião na última semana de abril de 2006 com representantes dos EUA, trouxe à tona o clima de divisão que predominava no PSDB às vésperas das disputas nas urnas. Outra revelação eleitoral vazada pelo WikiLeaks e repercutida por Natalia Viana envolve o atual vice-presidente da República, Michel Temer, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Na ocasião, Temer, que à época presidia o partido, lançou críticas aos colegas que prestavam apoio a Lula em 2006. Dizia que o petista, durante o primeiro turno, não recompensava devidamente os esforços dos colegas do PMDB no governo. “Eles dão o cargo para um político do PMDB, mas não o controle real do ministério”, reivindicou. Na reunião, ocorrida em 9 de junho com o cônsul geral McMullen, Temer expressou desejo de que as pastas da Saúde e Agricultura, consideradas duas das mais expressivas, fossem concedidas a seus partidários em troca de apoio político à situação. Após a reeleição de Lula, os dois ministérios em questão foram entregues, respectivamente, a José Gomes Temporão e Reinhold Stephanes, ambos filiados à legenda. Além da corrida presidencial, os despachos publicados por Assange e seus colabo-


radores dão conta de outras passagens importantes da política nacional. Uma delas é o mensalão do PT, desvendado no primeiro mandato da gestão Lula. O “Big Monthly” — alcunha que os norte-americanos deram ao esquema — rendeu um pacote de 34 telegramas, em que os termos “Lula’ é mencionado 450 vezes; ‘PT’, 248; e ‘José Dirceu’, 229”, como consta no blog de Natalia Viana. Quanto aos perfis traçados pelos diplomatas, destaca-se o de José Serra. No dia 11 de fevereiro de 2009, Thomas White, cônsul-geral em São Paulo, recebeu o encargo de relatar a Washington tendências, intenções e personalidade do possível candidato tucano à presidência. Baseado em entrevistas com gente próxima a Serra — como Aloysio Nunes, Cláudio Lembo, Cristina Ikonomidis —, White empregou os termos “insone”, “antissocial” e “workaholic” (viciado em trabalho) para defini-lo. Resumiu, ainda, a trajetória política do perfilado e qualificou sua postura econômica como “um pouco intervencionista”. Apesar disso, analisou que, se realmente lançado como concorrente às eleições pelo PSDB e eleito, Serra poderia ser útil às negociações com os norte-americanos. Assange contou, em entrevista exclusiva à revista Trip, que pretende aumentar a atuação do WikiLeaks no Brasil. O australiano diz que “recebeu sempre muito apoio vindo de brasileiros” — Lula foi, inclusive, o primeiro presidente a repudiar a condenação de Assange, em dezembro de 2010.

ASSANGE E O PULO DO GATO

REPRODUÇÃO

Documentos divulgados pelo Wikileaks revelam os trânsitos de ações militares norte-americanas

“Um australiano maluco de cabelo branco que não parece querer ficar no mesmo país por muito tempo.” Esta é a maneira que o soldado Bradley Manning, da 2ª Brigada de Combate da 10ª Divisão de Montanha, principal informante do WikiLeaks, descreve Julian Assange, o fundador do site responsável pelo maior vazamento de documentos secretos da história. Tal citação aparece no livro WikiLeaks: a guerra de Julian Assange contra os segredos de Estado (Editora Verus, 2011, 328 páginas), escrito pelos jornalistas David Leigh e Luke Harding. Nascido no dia 3 de julho de 1971, em Townsville, na costa nordeste da Austrália, Assange teve uma infância turbulenta. Passou por 37 escolas e pelos três casamentos desastrosos de sua mãe. O computador tornou-se, então, seu único amigo. Aos 17 anos, já era um hacker procurado pela polícia do estado de Victória, onde morava, em Melbourne. Em 1991, provavelmente, se consagrou o melhor do mundo: apesar da pouca idade, Julian Assange já havia invadido o site da Agência Espacial Americana (NASA), o sistema do Pentágono (Sede do Departamento de Defesa dos Estados Unidos), o Instituto de Pesquisa de Stanford e outros sistemas, até então considerados, seguros. Três anos depois, Assange foi finalmente pego, após ter suas linhas telefônicas grampeadas. Respondeu, em 1996, por 24 acusações, sobre as quais se declarou culpado, e recebeu uma multa de US$ 2.100,00. O juiz considerou que suas ações não provocavam mal nem geravam lucro, mas foi avisado de que se voltasse a hackear seria detido. Antes de ativar o WikiLeaks em dezembro 2006, Assange criou um blog chamado IQ.org, que, na verdade, era um esboço do que mais tarde seria o famoso site publicador de documentos secretos. “Quanto mais secreta ou injusta é uma organização, mais os vazamentos estimulam o medo e a paranoia na liderança e no círculo de planejamento. Isso deve resultar no consequente declínio cognitivo em todo o sistema, o que resulta na diminuição da habilidade de se manter no poder”, pensava o fundador. Foram quatro anos até que Assange conseguisse notícias e documentos com efeito bombástico como desejava, e só os obteve em virtude do trabalho de delator do soldado norte-americano Bradley Manning. Entretanto, as informações publicadas pela organização passaram a ocupar tanto destaque na mídia internacional e revelar uma quantidade tão vasta de segredos embaraçosos, tanto de governos quanto de grandes empresas e corporações, que Assange passou a sentirse perseguido por todos — e não somente pela CIA (Agência Central de Inteligência). Começaram a surgir histórias, como a contada por Daniel Domscheit-Berg, ex-porta-voz do WikiLeaks, em seu livro Inside WikiLeaks: my time with Julian Assange at the world’s most dangerous website (Por dentro do WikiLeaks: o tempo que passei com Julian Assange no website mais perigoso do mundo, em tradução livre), lançado pela editora norte-americana Doubleday, em 2011. Domscheit-Berg descreve “crueldades” que Assange praticava com seu gato, Mr. Schmitt, durante o período em que moraram juntos, conforme divulgou o jornal The New York Times. “Julian estava sempre atacando o pobre animal. Ele fazia com os dedos o formato de uma pinça e agarrava o pescoço do gato. Era um jogo para ver quem era mais rápido. Julian preferia atacar quando o gato estava cansado. Deve ter sido um pesadelo para o pobrezinho”, conta. Acostumado a levantar o tapete dos governos e revelar atos sórdidos, Assange passou a ter sua vida vasculhada. E qualquer escorregão dele viraria notícia explosiva. A aguardada bomba veio em 7 de dezembro de 2010, quando o jovem australiano foi preso em Londres, sob as acusações de coerção ilegal, assédio sexual e estupro, crimes supostamente cometidos na Suécia. Ele aguarda atualmente o pedido de extradição feito pela Suécia à Inglaterra, para poder ser julgado e cumprir pena no país nórdico onde as denúncias foram feitas. As duas mulheres que o acusaram alegam que ao manter relações sexuais com ambas, Assange recusou-se a usar preservativo, entre outras condutas inadequadas que na Suécia podem ser consideradas crime. Se condenado, Julian poderá ficar atrás das grades por dois anos. Perdendo credibilidade e sofrendo pressão de diversos governos ­— como o russo, que teme os milhares de documentos ainda não divulgados — Julian Assange tornou-se uma figura ambígua. É visto por uns como terrorista virtual que não mede as consequências das informações que publica, e por outros, como um pop star da liberdade de informação numa cruzada pela transparência política. Em 2010, a edição italiana da revista Rolling Stone consagrou Assange com o título de Rock Star of the Year. No último dia 11 de maio, Assange foi condecorado com a “Medalha de Ouro da Fundação para Paz” de Sydney, devido a sua “excepcional coragem na defesa dos direitos humanos”. Com o prêmio, o fundador do WikiLeaks agora se une a outras ilustres personalidades premiadas, como Nelson Mandela e Dalai Lama. Segundo Stuart Ress, diretor da organização, Assange e seu WikiLeaks “criaram uma nova ordem no jornalismo e no fluxo de informação”.

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Por onde tudo escapou ARTE DANILO BRAGA (4o ano de Jornalismo)

Como funciona o wikileaks

1 Origem Os documentos são coletados por qualquer pessoa disposta a denunciar informações relevantes que foram censuradas. Os dossiês, chamados nos meios diplomáticos de cables, são reunidos e enviados ao WikiLeaks.

2 Anonimato Para garantir sigilo e proteção à identidade dos informantes, os documentos são enviados por um dispositivo conhecido por Tor. Este sistema utiliza uma rede de mais de dois mil computadores e servidores fantasmas voluntários ao redor do mundo para não deixar rastros da origem ou destino da mensagem.

Documentos vazados

97 070

Confidenciais

75 792

Não classificados Apenas uso oficial

11 322 4 678 4 330

Secretos Confidenciais NOFORN* Secretos NOFORN* Ultrassecretos

0

58 095 Principais assuntos

1 2 3

Política internacional Política interna Análises econômicas

* Documentos NOFORN (aqueles vedados a estrangeiros) não podem ser divulgados para outros países

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4 5 6

Terrorismo Negócios internacionais Inteligência


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Criptografia Para que as informações não caiam em mãos erradas, os dados enviados e armazenados nos servidores do WikiLeaks são criptografados. Neste processo, cada letra é substituída por números e cada palavra torna-se uma sequência numérica, impedindo, assim, que o conteúdo seja visualizado por qualquer indivíduo. Somente os que sabem por qual número cada letra foi trocada podem entender o que está escrito. Para ter acesso às informações, Julian distribuiu, em um guardanapo, senhas para os jornalistas envolvidos no projeto.

Ao todo, o WikiLeaks já liberou

3 Imprensa

Depois de passar por análise da equipe do WikiLeaks, os documentos são enviados para jornalistas de veículos como The Guardian, The New York Times, Der Spiegel, El País e Le Monde. Juntos decidem quando as informações serão publicadas, evitando possíveis vazamentos.

Público As informações são publicadas como notícias nos jornais e depois disponibilizadas na íntegra em sites como thepiratebay. org. Também podem ser lidas no wikileaks.org ou, no site apublica.org, alimentado pela jornalista Natália Viana.

1.200.000.000 documentos

Mas o que é que a

Lady Gaga tem a ver com isso?

Se você tivesse um acesso sem precedentes a redes sigilosas repletas de casos de corrupção e escândalos diplomáticos de seu próprio país, o que faria? O soldado norte-americano Bradley Manning passava horas vasculhando inúmeros documentos confidencias aos quais tinha acesso, no Campo Hammer, no Iraque, enquanto usava fones de ouvido, fingindo ouvir Lady Gaga. Manning pegou seu CD regravável, cheio de músicas da diva pop, formatou e copiou os documentos sigilosos — foi o modo mais seguro que encontrou para repassar as informações. Para o hacker Adrian Lamo, com quem mantinha frequentes conversas e quem acabou denunciando-o ao Exército norte-americano, Manning disse que a falta de segurança lhe permitiu acessar os dados sem levantar suspeitas. O soldado ainda confidenciou: “eu ouvia e cantava baixinho ‘Telephone’, da Lady Gaga, enquanto extraía, possivelmente, o maior vazamento de dados da história americana”. ESQUINAS - 1º SEMESTRE 2011

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REDES SOCIAIS TEXTO CAMILA BIANCHI, CAMILA LAFRATTA, MARINA PAPE (1º ano de Jornalismo), MARIANA AURESCO, MARINA MARANHÃO, MARIANA RIZZATTO, THAIS SCHREINER (2° ano de Jornalismo), LAÍS PETERLINI e THAMIRES ANDRADE (3º ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO TIAGO MOTA (2º ano de Jornalismo) e FERNANDA PATROCÍNIO (4º ano de Jornalismo) IMAGENS PETRUS LEE (2º ano de Jornalismo)

vidas

COMPARTILHADAS Mais de 500 milhões de pessoas aderiram às redes sociais. O fenômeno não para de crescer no mundo todo — e novas redes continuam surgindo CADEIRA AJEITADA, COMPUTADOR ligado. A área de trabalho carrega todos os aplicativos e programas e o mouse rapidamente dá um clique duplo no ícone da internet. Abas são abertas: portal de notícias, Facebook, Twitter, e-mail, enquanto a dupla de ícones verde e azul indica a abertura do MSN Messenger. Em segundos, janelas piscam e informações emergem da tela luminosa. As respostas vêm de outros computadores, tablets, aparelhos celulares — são pessoas que aderiram, igualmente, a este costume tecnológico. A inovação veio com o ICQ (sigla sonora de I Seek You, termo em inglês referente a eu procuro você), programa de comunicação instantânea pela internet, desenvolvido por quatro israelenses em 1996 e que hoje conta com mais de 42 milhões de usuários no mundo. A tendência para bate-papos virtuais e personalização das informações, com a criação

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de comunidades e espaços para publicar coisas de interesse supostamente comum, fez surgir outras redes como Orkut e Messenger. Atualmente, há 43 milhões de internautas no Brasil, dos quais 30 milhões são usuários do Orkut, 17 milhões estão no Facebook e 12,6 milhões escrevem no microblog Twitter. RELACIONAMENTO A intimidade do homem com a tecnologia amplia o espaço de interação social. Para Ana Luiza Mano, membro do Núcleo de Pesquisas da Psicologia em Informática (NPPI), a internet tem a função de incluir as pessoas em um grupo. “O convívio na internet pode até aumentar o convívio ‘ao vivo.”’ O estereótipo do internauta solitário que passa horas em frente à tela de um computador já não vale para os dias de hoje. Por meio do Facebook, por exemplo, os usuários podem organizar eventos e convidar seus amigos para um convívio face a face, mesmo que essa

face seja apenas uma foto. “Isto porque a pessoa interage mais com outras e esta interação torna possível o contato no dia a dia”, conta Ana Luiza. “Porém, a questão é discutível. Já vimos casos de pessoas que possuem uma ampla rede de contatos na internet, mas não conseguem se relacionar fora do âmbito virtual.” O relacionamento social via internet, entretanto, tem os seus perigos. Afinal, com a exposição na rede virtual ainda é possível guardar segredo? Rafael Sbarai, editor e blogueiro da revista Veja, acredita que deve haver cautela ao publicar conteúdo. “As pessoas têm um nome a zelar e precisam ter bom senso. Muita gente tem a mania de postar quando está bêbado e até mesmo comprar brigas e ofender os outros. Esse tipo de comportamento deve ser evitado”, aconselha. Tiago Leifert, apresentador do Globo Esporte na Rede Globo, foi citado por Sbarai. Leifert se envolveu em discussões com torcedores


e telespectadores via Twitter, além de ter um desentendimento com o ex-jogador Neto, atual comentarista esportivo da Rede Bandeirantes. A reportagem da Revista Esquinas procurou o apresentador global, mas não obteve retorno. Para o editor, “as personalidades estão perdidas no mundo digital, não sabem como lidar com o público e acabam tomando posturas inaceitáveis”. Tudo que é publicado online pode afetar a “vida offline” das pessoas. Buscando dar solução a problemas deste porte, já surgiram empresas que zelam pela boa reputação na internet e tentam assegurar a privacidade de seus clientes. É o caso do site californiano ReputationDefender.com, cujo fundador, Michael Fertik, tentou junto ao governo norte-americano uma regulamentação nesse sentido. Os usuários poderiam ter um relatório completo de tudo o que está relacionado a eles no mundo digital, possibilitando a exclusão de algumas informações. Fertik, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, no dia 10 de novembro de 2010, afirmou que “as redes sociais, os comentários online e o excesso de compartilhamento na rede criaram uma ameaça à reputação e à privacidade de todos”. ETIQUETA NA REDE Sem que o usuário deseje ou perceba, seus dados podem ser expostos a indivíduos que mal conhece. Foi o que aconteceu com a produtora Diólia Graziano, que tem mais de 2.500 amigos no Facebook. “A princípio, um primo resolveu adicionar algumas conhecidas minhas em sua conta e passou a importuná-las. Não foi o único caso. Como já morei na França, uma de minhas amigas ficava constantemente questionando quem eram os meus amigos franceses, como se aquilo fosse um catálogo de homens.” Hoje, após ter alterado suas configurações de privacidade, apenas amigos em comum podem se ver na página da produtora, bem como visualizar fotos e acessar dados. Ana Luiza Mano aponta a educação para internet como solução para problemas deste tipo. “Quando se aceita os termos de consentimento de um determinado site e se publica coisas nele, a pessoa fornece material e conteúdo para livre uso. Mas ninguém sabe disso, ninguém lê esses termos”, afirma Ana Luiza. Além de conhecer o funcionamento de cada site, a pessoa deve conhecer os seus próprios limites. “Se alguém não irá aguentar a exposição de ter um vídeo delicado seu circulando no Youtube, não é para colocá-lo lá. Nem se pode publicar algo no Twitter que não diria pessoalmente a alguém”, expõe. “Hoje estou mais sanguessuga do que lebre”, conta Diólia. A metáfora faz sentido. Para a produtora, a lebre seria aquele que está sempre presente e ativo na internet, enquanto o sanguessuga só acompanha o que é postado. O risco de exposição a faz pensar duas vezes antes de se tornar a tal lebre. “Tenho que pensar bem no que postar já que minha filha, meu ex-marido e alguns clientes têm meu Facebook. Por isso criei outra conta só para pessoas mais próximas. Assim eu me solto um pouco mais”, confessa Diólia. A produtora ainda aconselha: “não misture. Prefira fazer dois perfis a se limitar a postar o que você deseja ou publicar algo que possa lhe prejudicar tanto no trabalho quanto na ‘vida offline’”.

AS 5 MAIORES REDES SOCIAIS DO MUNDO 590.000.000 usuários

A maior rede social do mundo. O Facebook permite a interação entre usuários, promoção de atividades, compartilhamento de informações pessoais e comentários. Recentemente foi tema do filme A Rede Social (2010), dirigido por David Fincher, que conta a história da empresa e de seus fundadores — com destaque para Mark Zuckerberg, CEO e maior acionista da empresa, com 24%. O que começou como uma rede somente para alunos da Universidade de Harvard, hoje emprega 1.700 pessoas e vale mais de 13 bilhões de dólares, além do alcance global de 38,1% de usuários. É o maior site de fotografias dos Estados Unidos, com 60 milhões de fotos publicadas, ultrapassando sites especializados para esta função, como o Flickr. 41.000.000 usuários Rede de negócios lançada em 2003, o LinkedIn promove aproximação profissional. Ou seja, é uma espécie de agenda de contatos virtual, atuando em mais de 400 regiões econômicas no mundo. 37.000.000 usuários* O nome foi originado do dono, Orkut Büyükkökten, engenheiro turco que trabalha no Google — empresa que filia a rede social que virou febre, sobretudo no Brasil e na Índia. A ideia do Orkut é ajudar os membros a conhecer nova pessoas e manter relacionamentos por intermédio de gostos divulgados em comunidades e da biografia divulgada na página de cada usuário. 34.000.000 usuários Músicas, filmes, games, fotos. Criado em 2003, sob o slogan “Um lugar para amigos”, o MySpace promove a interação baseada nos gostos culturais. Nestes oito anos, artistas puderam divulgar seu trabalho no site. A cantora brasileira Mallu Magalhães, os americanos do The Strokes, além do quarteto inglês Arctic Monkeys são exemplos de sucesso desta vertente de marketing musical. 28.000.000 usuários Considerada um clone do Facebook, o russo VKontakte é conhecido em países ocidentais como In Touch ou In Contact. Seus usuários concentram-se em Cazaquistão, Belarus, Ucrânia e Rússia. Fonte: www.google.com/adplanner. Acesso: maio de 2011 *Número de usuários da versão para brasileiros www.orkut.com.br

As redes sociais já atraem mais de meio bilhão de usuários no mundo todo

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CHAPÉU PROFISSÕES

GABRIELA KIMURA

siri

boquinha de

Jornalistas, advogados e médicos. Conheça alguns profissionais que, mantendo a boca fechadinha, fazem do segredo seu ofício REPORTAGEM ALINE PEREIRA, BEATRIZ VIABONE, GABRIEL MORENO, GABRIELA SOUTELLO, IZABELLA PASSOS, LAURA BUGELLI, STELLA VASCO (1o ano de Jornalismo) e FRANCINI VERGARI (2o ano de Jornalismo) IMAGENS LAURA BUGELLI, GABRIELA KIMURA e GABRIELA SOUTELLO (1o ano de Jornalismo)

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SIRI. ESTE PEQUENO crustáceo é constantemente lembrado em expressões populares para caracterizar um segredo bem guardado. A associação deve-se ao fato do siri ter uma boca minúscula, difícil de ser vista a olho nu. Para algumas profissões, adotar uma postura rigorosa para manter um segredo é mais do que uma brincadeira de linguagem: é assunto de trabalho. O segredo em determinadas profissões pode ser tanto um problema quanto objeto de ofício. É necessária a imposição de posturas éticas que delimitem o que pode ser revelado e o que deve ser mantido em sigilo, independentemente da circunstância. E este dilema está presente em mais profissões do que se costuma notar.


“Você pode ter um cliente com um segredo até bárbaro, mas, mesmo que seja possível recusar a causa, não pode denunciá-lo para a polícia”, Roberto Podval, advogado criminalista

Espiões, por exemplo, têm como objetivo investigar e descobrir os segredos comprometedores de determinadas pessoas. O filme The Conversation (1974), de Francis Ford Coppola, narra a história do espião Harry. Ao tornar-se alvo de suas técnicas de espionagem, ele sente na pele como é ter sua vida particular transformada em vida pública, entrando em conflito com os objetivos práticos e a ética da profissão. Harry reconhece que existe trabalho “sujo” (penetrar na particularidade dos indivíduos), mas alega não ser responsável pelas consequências que, por vezes, fazem mal às pessoas: o espião está apenas cumprindo suas funções.

NA JUSTIÇA Ao ser perguntado sobre a possibilidade de revelar segredos de seus clientes, mesmo em casos de urgência, como conflitos familiares ou perturbações mentais, o advogado criminalista Roberto Podval reafirma a impossibilidade de se expor publicamente. “Você pode ter um cliente com um segredo até bárbaro, mas, mesmo que seja possível recusar a causa, não se pode denunciá-lo para a polícia. É complicado, trabalhamos com outros valores”, diz o advogado que defendeu o casal Nardoni, acusado de assassinar a filha Isabella, de cinco anos, em 2008. A profissão pode permitir, por meio de escutas telefônicas, por exemplo, o acesso a informações pessoais dos clientes, “segredos que eles não gostariam que soubessem, ou até que existissem”. Tal fato contribui para “um constrangimento entre cliente e profissional em ambientes fora do escritório”, como afirma Podval. “Algumas pessoas que são vistas almoçando comigo nem são meus clientes mas outras já perguntam se elas têm algum tipo de problema criminal quando às vezes não existe nada.” Para o advogado, porém, situações como essa acabam não repercutindo em notas jornalísticas falsas, porque ele possui contato direto e fácil com a imprensa. A questão do sigilo coloca em xeque também a da ética, existente e necessária em qualquer profissão. Para Podval, não há grandes casos de desvio ético em sua área. “O meio em que nós trabalhamos, inclusive em São Paulo, é relativamente pequeno”, afirma. Tendo em vista a convivência direta que há entre os profissionais, o uso da ética torna-se essencial para se manter em uma

boa posição, tanto interna quanto externamente. “Até por malandragem, as pessoas aprenderam que ser ético é bom. Acho que nem tanto em relação a sua moral própria — até porque existe quem não se importa com isso — mas em relação ao meio mesmo, você fica classificado como uma pessoa correta ou não.” Para o advogado criminal, manter o equilíbrio entre valores pessoais e aqueles que a profissão exige pode ser bastante complicado. Podval afirma que “em uma ponta, você trabalha com a polícia, com a delegacia. Em outra, estão o judiciário, os tribunais. No meio disso tudo, também é preciso lidar com a imprensa, que quer saber o que está acontecendo”. Casos de grande repercussão, como o de Isabella Nardoni, acabam afetando a vida profissional e pessoal do advogado atuante na área. Clientes e familiares questionam o envolvimento dele em casos de acusações de crimes hediondos, o que pode complicar ainda mais a situação. Apesar disso, Podval

tem em mente que “todos têm direito à defesa até que se prove o contrário. Aí é que entra a ética: realize eticamente o seu trabalho, acreditando nele”.

CONFIDÊNCIAS Para um advogado, a confidência é um álibi, que pode se tornar peça fundamental para a aceitação do profissional em defender ou não o caso. Já para um psicólogo, a questão é diferente. Afinal, o sigilo nesta profissão pode ser reflexo, por exemplo, de uma patologia que deve ser tratada e não apenas estudada. Assim, manter o segredo significa construir a confiança para que o tratamento proceda. “Quando o psicólogo se forma e faz o juramento, ele promete respeitar a manutenção do sigilo, sob riscos de sofrer penalidades previstas no próprio Código Ético da profissão”, afirma Maria Luiza Dias Garcia, psicóloga e coordenadora da Associação de Terapia Familiar. Contudo, é inevitável a ocorrência de casos em que ambas as posturas adotadas possam ser postas à prova. Violência doméstica, abuso sexual e vício em drogas: nestes casos o segredo pode ter seu caráter rompido frente a uma confissão ou relato de paciente que se imponha não em relação ao questionamento moral, mas à própria legislação brasileira. “Qualquer perigo de vida para o cliente justifica quebrar o sigilo”, afirma Haroldo Tuyoshi, doutor em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP). Porém, o emprego da denúncia pode ser uma saída eficiente e assegurada por lei: “eu nunca precisei ferir o Código Ético. De maneira

Para o advogado criminalista Roberto Podval, até por malandragem as pessoas aprendem que ser ético é bom

GABRIELA SOUTELLO

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GABRIELA KIMURA

Celso Marzano explica que, na relação entre médico e paciente, o que este conta entre quatro paredes é segredo

geral, ele prevê a maioria das situações”, comenta Tuyoshi. Maria Luiza dá o exemplo para uma situação crítica. Uma paciente de 22 anos da psicóloga, certa vez, chegou ao consultório depois de passar a noite se drogando. Para garantir a segurança da jovem, ela ligou para a mãe da paciente, que logo foi buscála. “A menina foi conduzida ao hospital e ficou internada. Claro que perdi a paciente: quando fui visitá-la na clínica, ela esbravejou: ‘o que você está fazendo aqui? Não é mais minha psicóloga!’.”

NA REDAÇÃO Da apuração ao texto final, os jornalistas também precisam manter alguns padrões de ética básicos para não distorcer nenhuma informação e causar problemas com as fontes. Para José Eduardo Costa, redator-chefe da revista Você S/A, da Editora Abril, “a ética no jornalismo é algo indiscutível mesmo que, para isso, seja preciso man-

ter alguns segredos longe da redação”. Já para o Bruno Torturra, diretor de redação da revista Trip, “o código de ética só é respeitado dependendo de senso ético da própria pessoa”. Torturra acredita que os entrevistados criam uma relação de confiança com os jornalistas e contam offs para mostrar que são pessoas normais. No jarguão jornalístico, o off é aquela informação que o entrevistado conta, mas que não quer que seja publicada. José Eduardo Costa diz não gostar de off, pois “pressupõe que o jornalista assuma a responsabilidade pela informação veiculada”. O editor da Trip conta que, às vezes, depois da entrevista, “o entrevistado liga para pedir que alguma informação concedida não seja publicada. Mas ela pode ficar irritada, pois não pediu o off no momento da entrevista. Faz parte do trabalho do jornalista”. Ele relata que pode acontecer de uma informação ser levada a público e prejudi-

UM SEGREDO A MAIS Ser “Muro das Lamentações” também é profissão. Conhecido como ouvidor, este profissional é quem reporta reclamações, reivindicações e elogios de um determinado público aos seus superiores. Antônio Luiz Laurindo, o Tostão, ouvidor do Colégio Santo Américo, no bairro paulistano do Morumbi, atende aos alunos, pais, professores e moradores de comunidades próximas à instituição. “Nesse meio, o profissional torna-se referência para todos aqueles que atende e deve ser discreto em relação aos problemas que lhe são apresentados”, ensina o ouvidor Tostão. A discrição, portanto, é indispensável. “Não devo nem identificar as pessoas, peço que elas me mandem um e-mail sobre tudo o

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que conversamos. É importante que isso seja registrado, para que não se dê margem à dupla interpretação. Tostão acha essencial a proximidade e a confiança que mantém com os alunos. “Não há necessidade de me afastar do público que atendo para o encaminhamento e resolução de questões levantadas.” O ouvidor, porém, enfrenta alguns dilemas éticos. “Houve uma situação em que tive que reportar o caso aos meus superiores, pois representava risco para a instituição.” Além de ponderar acontecimentos, buscar o equilíbrio necessário, entre a ética que envolve a profissão, a instituição e o próprio Antônio Luiz Laurindo, faz parte da missão do ouvidor.

car a imagem da fonte. “Uma vez um pastor pediu o off após revelar ao repórter que era a favor da legalização da maconha e não tinha objeções com homossexuais. Mas ele não podia afirmar isso publicamente.” Jornalista pode ter perfil em rede social? Nenhum dos dois profissionais vê problema nisso. “A prática do jornalismo não exige nenhum segredo de vida pessoal. Mas algumas opiniões devem ser expressas com parcimônia. As redes sociais tornam qualquer pessoa uma formadora de opinião em potencial, mas o jornalista carrega o atributo desta imagem”, esclarece José Eduardo. Para Bruno Torturra, “as redes sociais ajudam a entender o fluxo das informações e achar pessoas. Essas redes podem ajudar jornalistas a ter contato com fontes para entrevistas”.

CONSULTÓRIO Algumas pessoas podem se sentir constrangidas ao revelar problemas íntimos delas mesmas: titubeiam ao falar ou acabam não revelando tudo. Mas quando algum motivo as leva ao consultório médico, omitir informações pode inviabilizar o tratamento. “Na relação entre médico e paciente o que este conta entre quatro paredes é segredo”, afirma Celso Marzano, urologista e sexólogo. O compromisso do médico é ouvir, respeitar e usar as informações somente a favor do paciente. A ética nesta profissão é regida pelo Conselho Regional de Medicina (CRM) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) que estabelecem as normas do que pode ser compartilhado sobre os pacientes e julgam os casos de erros ou problemas médicos. “Para pesquisas médicas ou uso de algum caso específico em um congresso, é necessário que o profissional peça autorização ao paciente, mesmo que não cite o nome deste e use apenas suas iniciais. É necessário, inclusive, a assinatura e a autorização por escrito do paciente para a utilização”, declara Celso Marzano sobre prontuários médicos.


LAURA BUGELLI

“O que se escreve na ficha clínica só pode ser visto pelo médico. Estes tipos de dados do paciente só podem ser fornecidos após uma requisição judicial, em casos que são levados para o tribunal. Nem mesmo a família tem acesso aos dados, a não ser que o paciente seja menor de idade: somente neste caso os familiares tem o direito de saber.” Como diretor do Centro de Orientação e Desenvolvimento da Sexualidade (CEDESSP), Marzano explica que, se em uma especialidade qualquer as informações devem ser rigorosamente mantidas, na área da sexualidade até mesmo o que o paciente diz ao médico é segredo para a família e amigos. “Numa terapia sexual você conhece a história pessoal do paciente, o que envolve também outras pessoas. Isso é segredo absoluto. É feito um contrato por escrito com o paciente, deixando claro que nessa psicoterapia de trabalho emocional, tudo será mantido em sigilo”. Quando a questão chega aos abusos sexuais, Celso Marzano concorda que o segredo seja quebrado. “Na esfera sexual, doenças como pedofilia, parafilia ou práticas que sejam prejudiciais devem ser noticiadas às autoridades, conforme exige o Conselho Federal de Medicina”. A omissão das doenças não ocorre somente com denúncias para garantir os direitos de quem está sendo abusado, o médico afirma que alguns pacientes já chegaram a pedir que ele ajudasse a esconder doenças sexuais de suas companheiras, inventando histórias absurdas. “Não vou dizer à parceira de um homem que ele pegou gonorréia após fazer xixi contra o vento. Existe quem fale e acredite nisso. Isso só seria possível se antes o paciente transasse com uma mulher sem proteção alguma.” Mas os segredos não estão somente do lado do profissional que deve mantê-los, em respeito à ética e ao paciente. Por se tratar de assuntos delicados, alguns pacientes escondem fatos de extrema importância não só para o tratamento, mas também para a obtenção da verdade. A omissão pode prejudicar o médico, como conta Marzano. “Tive um paciente que veio pedir um atestado que o declarasse impotente sexual. E nenhum homem nunca quer assumir este tipo de doença. Claro que ele quis esconder de mim que estava sofrendo uma acusação de assédio sexual de duas adolescentes, e que foi orientado pelo advogado a conseguir o atestado para que fosse comprovada à justiça sua impossibilidade de cometer os assédios.” Celso Marzano lembra que o segredo é normalmente utilizado como recurso de proteção aos que sofrem preconceitos. “A homossexualidade também envolve muito segredo. Devido ao preconceito e ao medo da reação da sociedade, às vezes, as pessoas preferem manter a orientação sexual escondida a se submeterem ao sofrimento. O atraso da sociedade em relação à sexualidade é muito grande. Eu, por exemplo, escrevi um livro sobre sexo anal, com todos os detalhes, e já fui excomungado. Mas estamos avançando, as pessoas estão amadurecendo.”

O ouvidor Tostão diz que é preciso ser discreto para ter sucesso na profissão

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ESPORTES

AÍ SIM, fomos surpreendidos novamente!

O esporte também tem seus segredos. Atletas e treinadores revelam como lidar com informações sigilosas REPORTAGEM BEATRIZ DE OLIVEIRA, BIANCA MASCARA, LUCAS DE FREITAS, MARCELLA MERIGO (1o ano de Jornalismo), CAROLINE ZILBERMAN, LUANA MARTINS, LUCAS PAULINO, MÁRIO SÉRGIO DA SILVA e RICARDO GONÇALVES (2o ano de Jornalismo) IMAGENS GAZETA PRESS

ESCÂNDALOS DE DOPING. Jogos comprados. Problemas de saúde omitidos até o último segundo. Nem só de vitórias suadas e conquistas merecidas é feito o esporte. São muitos os casos de atletas que esconderam fatos importantes a respeito de suas condições físicas, esquema tático, ou, até mesmo, de suas vidas pessoais. No Brasil, o futebol é uma paixão nacional — e também, o esporte que atrai mais holofotes e fofocas. “O problema de segredo no futebol é a individualidade de cada um que está convivendo, principalmente dentro da Seleção Brasileira”, conta Mário Jorge Lobo Zagallo, um dos brasileiros mais experientes em Copas do Mundo. Campeão do mundo como jogador em 1958 e 1962 e como técnico em 1970, Zagallo estava no comando da seleção brasileira quando passou um dos momentos mais dramáticos da história do nosso futebol. Na final da Copa do Mundo de 1998, realizada na França, o camisa 9, Ronaldo, sofreu convulsões horas antes da partida.

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“Ronaldo foi para uma clínica e estava vetado para o jogo. Quando retornou, todos os exames estavam 100% e ele entrou no último momento, faltando cinco minutos para o início da partida”, explica o então técnico da seleção. Zagallo escalou Ronaldo, conhecido pela torcida como “Fenômeno”, para a decisão. No entanto, o eleito melhor jogador do mundo em 1997 pela FIFA (Federação Internacional de Futebol), não correspondeu às expectativas, jogou mal e desestabilizou todo o time. Resultado: 3x0 para a França.

HERMANO Para o comentarista esportivo Benjamim Back, o caso de Diego Maradona na Copa de 1994 foi um dos maiores escândalos divulgados pela mídia. Após a vitória de 2 a 1 da Argentina sobre a Nigéria, o craque argentino da época foi sorteado para fazer o exame antidoping. Cinco substâncias ilegais foram encontradas em sua urina, todas derivadas da Efedrina. Doping é o consumo ilícito de uma droga estimulante, que pode

suprimir temporariamente a fadiga, aumentar ou diminuir a velocidade, melhorando a atuação de um esportista. Back, no entanto, diz que já deixou “de publicar histórias que iriam render importantes reportagens, mas que poderiam prejudicar a vida do atleta em questão”. Para o apresentador do programa Estádio 97, da rádio Energia 97 FM, o futebol é repleto de boatos, portanto, “não se pode divulgar um caso sem ter provas”. Fernando Fernandes, repórter esportivo da TV Bandeirantes, afirma não gostar de entrar na vida pessoal dos atletas. Mas, em relação ao caso de hipotireoidismo do atacante Ronaldo, ele admite: “se tivesse tido acesso à informação antes, confesso que teria divulgado, apesar de ser algo de foro íntimo”. Ao anunciar oficialmente sua aposentadoria, em fevereiro de 2011, o “Fenômeno” declarou que um exame, feito há quatro anos no clube italiano Milan, havia detectado a doença. O hipotireoidismo consiste na


Ao lado de Zico, Zagallo coordenadava treino da Seleção Brasileira em 1998

OUTROS SEGREDOS Caso Williams Dona de treze títulos de Grand Slam, a tenista norteamericana Serena Williams, que não atua desde julho de 2010 por conta de um ferimento no pé que causou o rompimento do tendão, teve seu retorno às quadras novamente adiado ao descobrir que sofre de embolia pulmonar. Serena já foi submetida a várias cirurgias e retornou às quadras em junho, para o torneio de Wimbledon Caso Semenya A sul-africana Caster Semenya, que em 2009 conquistou ouro nos 800 metros rasos do Mundial de Atletismo em Berlim, foi alvo de polêmica ao ter sua feminilidade questionada. A Federação Internacional de Atletismo determinou prazo de 11 meses de investigação. A notícia de que Caster era hermafrodita surgiu na Austrália, mas as autoridades nunca confirmaram o caso. Em 2010, a atleta pode voltar a competir normalmente.

Nelsinho Batista destaca a importância de separar a vida pessoal da profissional

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baixa produção de hormônios pela tireoide e um de seus sintomas é o ganho de peso. Mesmo sendo alvo de constantes chacotas, Ronaldo só revelou o problema no dia em que anunciou sua aposentadoria, após a eliminação do Corinthians na Taça Libertadores da América de 2011. Não são todos os jogadores de futebol que saem pela porta da frente quando deixam seus clubes. Muitas vezes, o processo de negociação de um ídolo acaba decepcionando milhares de torcedores. Benjamin Back faz questão de ser claro: “não existe amor à camisa. Não podemos ser hipócritas. O que deve ser cobrado é o respeito e não o amor. O futebol é a profissão desses jogadores”. Fernando Fernandes concorda com seu colega: essa história de amor à camisa se traduz em efetividade e produtividade. “O futebol virou, sim, um negócio baseado no interesse e no resultado. Por isso, a rotatividade dos jogadores é tão grande.”

SIGILO Nelsinho Batista, treinador do clube de futebol japonês Kashiwa Reysol, acredita que é importante separar a vida pessoal da profissional. “Não se trata de esconder informações. Muitas vezes não há necessidade de expor o que você tem ou sente, só isso.” No entanto, em relação às estratégias e táticas de jogo, a história é diferente. De acordo com o técnico, hoje é muito difícil esconder esse tipo de informação e surpreender o adversário. “Tenho uma equipe no Japão que analisa o meu adversário da próxima partida. Estou jogando neste final de semana, mas já estou de olho na partida do próximo.” O treinador conta que, para isto, imagens são colhidas e editadas durante a semana, depois são passadas aos jogadores. Mas e o treino fechado, não adianta em nada? “Este tipo de treino pode até funcionar para preparar uma bola parada ou uma jogada de falta. Mas, mesmo assim, é muito difícil ser surpreendido taticamente. E, se acontecer, é possível resolver antes mesmo de entrar em campo, só de bater o olho”, esclarece. BASTIDORES Um jogador difamado pela suspeita de provocar sua própria expulsão, uma ciência controversa decidindo as estratégias no campo de jogo e estudantes infiltrados com a missão de conturbar o adversário. Tudo isso seria suficiente para despertar tensões em um jogo comum. Todavia, tais elementos estiveram presentes na decisão do Campeonato Paulista de 1977, quando o Corinthians conquistou o título, após quase 23 anos de hiato. Mais de três décadas após o polêmico jogo, Rui Rei, o atacante da Ponte Preta, é tão lembrado quanto Basílio, autor do gol corintiano da final. A lembrança, porém, não é das melhores, pois sua expulsão, aos 17 minutos do primeiro tempo, foi cercada de discussões. O jogador da Ponte Preta foi acusado de ter se vendido ao Corinthians. Para alimentar ainda mais os boatos, três meses depois, foi contratado pelo clube do Parque São Jorge. “O Rui estava sendo provocado sempre

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“Não existe amor à camisa. Não podemos ser hipócritas. O que deve ser cobrado é o respeito e não o amor. O futebol é a profissão desses jogadores”, Benjamin Back, comentarista esportivo

que chegava perto da área pelos zagueiros corintianos”, revela José de Souza Teixeira, conhecido como Professor Teixeira, preparador físico do Corinthians na época. “O árbitro era durão e, depois de reclamar de uma falta, Rui Rei recebeu o amarelo e continuou reclamando. Não sei o que ele disse, mas o juiz puxou o vermelho logo em seguida.” O professor contou que, entre as táticas utilizadas pelo Corinthians para vencer o time da Ponte Preta, havia um recurso, no mínimo, insólito: a ciclobiologia. Uma ciência proposta por um guru da área, o “senhor” Antonio Oláia, como é chamado. Segundo ele, trata-se de um estudo capaz de determinar, a partir da data de nascimento, as oscilações do comportamento físico, emocional e intelectual das pessoas em cada dia do ano. “Precisávamos tanto do título que acreditaríamos em tudo, até em galho de arruda na chuteira”, afirma Teixeira. Na ocasião, o artifício apontou Rui Rei em duplo dia crítico: físico e emocional.

COM O CORAÇÃO José Macia, ou apenas Pepe, é considerado um dos maiores jogadores da história do futebol brasileiro. Ele foi um dos principais parceiros de Pelé nas conquistas do Santos, na década de 1960, e segundo maior artilheiro da história do clube. Quando pendurou as chuteiras, ainda atuou como treinador. Conhecido como “Canhão da Vila”, pela potência de seus chutes de perna esquerda, ele conta que o Barcelona tentou contratá-lo algumas vezes, para competir com a equipe que o Real Madrid tinha na época, mas preferiu permanecer no Peixe — algo raro no futebol de hoje. “Nós recebíamos propostas do exterior, mas não aceitávamos. Tínhamos prazer em jogar no nosso clube e escolhíamos com o coração”, declara Pepe. Esta era também uma das razões para o sucesso do clube. Os jogadores ficavam no Santos e se tratavam como uma família. Pepe revela que ouviu muitas histórias de jogadores que fugiram de concentrações, mas afirma que isso nunca aconteceu enquanto ele jogava. “Ninguém pulava o muro. Se você fizesse isso, ficava no meio do mato.” Como treinador, ele também teve a sorte de não ter comandado fujões. “Não era rígido, mas era muito respeitado pelos meus jogadores, por causa da minha história. O fato de eu ser amigo deles ajudava também”, conclui.

“Fenômeno” esteve envolvido na polêmica da Copa de 1998


ARQUIVOS SEÇÃO SECRETOS TEXTO CHAVES, LUISA(XºCOELHO, LUISA MASSA, MARIA LÚCIA ZANUTTO, MARCELLA TEXTOLAIS NOME DO AUTOR ano de Curso) PAULA (1º ano de DO Jornalismo) e MARINA PELLORCA (2º ano de Jornalismo) IMAGEM NOME AUTOR (Xº ano de Curso) ARTE RENAN GOULART (3º ano de Jornalismo) IMAGENS MARIA LÚCIA ZANUTTO e LUISA COELHO (2o ano de Jornalismo)

Documentos são guardados no Arquivo do Estado de São Paulo. Aos poucos as informações, que antes ficavam confinadas, estão em poder público

DURANTE A DITADURA militar brasileira, pessoas foram perseguidas e torturadas. Os documentos que registraram esses atos eram produzidos pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), o órgão controlador e repressor de movimentos políticos e sociais contrários ao regime político vigente na época — neste caso, entre 1964 e 1983. Hoje, a maioria desses arquivos está disponível para a população, porém muitos continuam inacessíveis ou restritos. Os principais alvos eram os que se opunham ao regime — estudantes, intelectuais, jornalistas, artistas, escritores e engajados políticos. O DOPS era dividido em diversas delegacias espalhadas por todo Estado, o que facilitou a dispersão dos arquivos. Em 1991, o acervo do DOPS foi transferido para o Arquivo Estadual de São Paulo e, segundo o decreto-lei nº. 8159, mesmo que restrito, todo cidadão poderia ter acesso aos documentos. Porém, devido ao processo de tratamento dos arquivos, somente em 1994 as famílias dos torturados puderam manipular os documentos. Em 1996, qualquer cidadão poderia acessar tais informações mediante a um termo de responsabilidade, como ocorre atualmente. Dentro do Arquivo do Estado de São Paulo, segundo Rafaela Leuchtenberger, historiadora e diretora do setor do DOPS, os documentos

foram organizados em três tipos de fichários: ordem política, ordem social e dossiês. “As fichas do arquivo geral, que remetem aos dossiês do Serviço Secreto, terão o nome da pessoa, uma linha de informação e o código remissivo. Essa é uma particularidade de São Paulo: não temos dossiês temáticos, mas sim em códigos alfa numéricos, em que cada um destes remete a um tipo de documento.” Também não há documentos que comprovem ou incriminem torturadores. “Há nomes de torturados e fotos de corpos, mas nos dossiês

aparecem apenas justificativas, como ‘ele fugiu e morreu durante um tiroteio’. Geralmente os documentos que comprovam tortura não são constitucionais”, revelou a historiadora. ACHADOS Frequentemente são descobertos novos documentos que deveriam estar em poder do Arquivo. Um caso recente foi a de arquivos do DOPS na cidade de Santos, uma região política e economicamente importante na época — o porto de Santos, considerado o maior no país, fez com que a cidade fosse designada área de segurança nacional. Devido ao péssimo estado, os documentos

serão passados por uma higienização e estarão disponíveis ao público em julho. “É possível que tenha documentos do DOPS em outros estados, mas é obrigatório estarem aqui”, acrescenta Rafaela. A historiadora admite que “o número de documentos disponíveis no Arquivo do Estado deveria ser muito maior. Temos aqui 1.173 metros, 1,5 milhão de fichas. Mas pensando que o DOPS São Paulo existiu de 1924 a 1984, é muito tempo de produção documental e a gente percebe que a documentação tem intervalos. Conclui-se que houve uma limpeza”. Porém, nem todos os estados funcionam como o de São Paulo, Paraná e Paraíba. No Rio de Janeiro, por exemplo, é necessária a autorização dos familiares da pessoa pesquisada, para que os arquivos passem por uma comissão que tarjará os outros nomes contidos no documento liberado. A justificativa atribuída diz respeito à privacidade e ao risco de violar a honra e a intimidade. No entanto, Rafaela destaca que “a CONARQ, que é o Conselho Nacional de Arquivos, entrou com uma recomendação aos estados para que providenciassem a abertura dos documentos no modelo São Paulo e Paraná. Quem tem que decidir são os governadores, que deliberam para os secretários, que, por sua vez, deliberam para os arquivos”. ESQUINAS ESQUINAS –– 2º 1º SEMESTRE 2010 2011

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SEÇÃO TEXTO NOME DO AUTOR (Xº ano de Curso) IMAGEM NOME DO AUTOR (Xº ano de Curso)

SERVIÇO As pessoas que costumam frequentar o Arquivo do Estado de São Paulo são em geral estudantes de humanas, jornalistas, advogados e familiares de rebeldes que querem provar que o Estado os prejudicou. Para a consulta, basta digitar o nome nos computadores disponíveis e os números referentes às pastas aparecem. “É necessário o uso de luvas plásticas para preservar o material e há ainda uma parte microfilmada, que pode ser visualizada em maquinas especificas”, avisa Rafaela. Já no Arquivo Nacional, há o programa Memórias Reveladas, que tem a proposta de reunir informações sobre a história política recente do Brasil. Desse projeto participa o grupo “Tortura Nunca Mais”, criado na década de 1970 pelos familiares das vítimas, com o intuito de lutar contra qualquer tipo de agressão praticada pelo poder público e seus agentes e que ainda atua na busca pelo esclarecimento das mortes e desaparecimentos. “A abertura dos arquivos é um processo muito difícil, já que depende de uma boa vontade que não existe. Há uma relação muito forte com a responsabilização dos agentes públicos que praticaram atos criminosos como torturas, assassinatos e desaparecimentos”, diz Marcelo Zelic, vice-presidente do grupo. Em 2009, o jornal Folha de S.Paulo publicou uma ficha falsa que listava supostos crimes cometidos pela atual presidente Dilma Rousseff. Sobre esse assunto, Rafaela Leuchtenberger declara que “em São Paulo não houve o bloqueio do acesso aos arquivos de Dilma. A proibição ocorreu sobre os documentos que estavam em Brasília. Aqui, houve um probleminha com a Folha de S.Paulo, que veio investigar e publicou uma ficha que não existia. Quando a Dilma nos pediu a ficha e viu que não existia, entrou com um processo. A jornalista voltou aqui e disse que nós a tínhamos escondido. Vieram peritos e

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Documentos do Arquivo Estadual de São Paulo

declararam que era falsa. Temos todo o controle sobre o que é pesquisado”. Sobre este incidente, o jornal declarou que a ficha não teve como origem o arquivo do DOPS, mas sim um e-mail recebido pela jornalista responsável pela notícia.

Durante 2010, em meio à campanha eleitoral, Carlos Alberto Marques Soares, o presidente do Superior Tribunal Militar, ordenou que os arquivos referentes à presidente Dilma no período da ditadura fossem guardados, para evitar eventual uso político inadequado dos documentos. Ainda não se sabe quais motivos políticos ou até econômicos (devido às indenizações) estão por trás

de alguns desses arquivos secretos, ou se, em algum caso, o acesso será dado à toda documentação. Mas para que um dia isso seja possível, a pressão da sociedade continuará indispensável.


DITADURA O jornalista Rui Veiga é filho de pais que atuaram no Partido Comunista e conta que foi obrigado a usar “um nome de guerra”.

alter ego HELDER FERREIRA

Relatos de brasileiros que foram obrigados a entrar na clandestinidade para sobreviver durante a ditadura militar no Brasil REPORTAGEM GABRIEL CARNEIRO, MARCELLA LOURENZETTO, RICARDO PACHECO (1o ano de Jornalismo), ANA CAROLINA NEIRA, DANILLO OLIVEIRA, HELDER FERREIRA, RAFAEL ROJAS, THAIS SANTANA (2o ano de Jornalismo) e MARÍLIA PELLICCIARI (3o ano de Jornalismo) IMAGENS RICARDO ROSSETTO (1o ano de Jornalismo) e HELDER FERREIRA (2o ano de Jornalismo)

“OS MELHORES ANOS da vida do ser humano são os da juventude e eu não pude vivêlos por completo.” A frase de Victória Grabois pode sintetizar o sentimento de quem viveu na clandestinidade durante a ditadura militar. Era 1º de abril de 1964 quando João Goulart, então presidente da República, foi derrubado e os militares tomaram o poder. Durante os 21 anos de repressão, o país viveu em meio a manifestações, medidas de censura e prisões arbitrárias. Sem meios legais de exercer seus direitos e sob orientação de organizações políticas, grupos contrários ao governo viram a clandestinidade como forma de se manterem atuantes e sobreviveram neste cenário.

SUBMERSOS Victória Grabois, de 67 anos,

costuma dizer: “meu engajamento político se iniciou ainda no carrinho de bebê, percorrendo as ruas do Rio de Janeiro”. Durante a adolescência, ela participou ativamente de movimentos políticos. Exemplos como esse não eram atípicos na época, com crianças e adolescentes criados em lares de militantes. Foi em uma casa assim que Victória e, posteriormente, seu filho Igor Grabois, foram criados. “Sou filha de comunistas. Meu pai era membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasilerio (PCdoB) e minha mãe participava do movimento de base do partido”. No dia em que o golpe foi dado, Victória e sua família entraram para a clandestinidade e se mudaram para São Paulo. Seu pai, Maurício Grabois, era um comunista conhecido, pois havia fundado o PCdoB, além de

ter liderado a Guerrilha do Araguaia, no Pará, no final dos anos de 1960. Com o nome de Teresa Freitas, Victória viveu clandestinamente em São Paulo, onde fez o supletivo e ingressou na Faculdade de Ciências e Letras de Moema. Depois, passou a dar aulas em escolas públicas e particulares. A situação era de risco, pois havia o medo de ser descoberta. “Não tinha amigos, só colegas de faculdade e trabalho”, conta. Com os anos da clandestinidade, ela aprendeu a conter sentimentos de raiva, tristeza, alegria e saudade. Assumir outra identidade significava proteger a própria vida e também a de sua mãe e de seu filho, ainda criança. “É difícil viver clandestina, você pode ser presa a qualquer momento”, relata. O episódio da Guerrilha do Araguaia foi

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INFÂNCIA Igor Grabois, de 44 anos, professor e economista, é filho de Victória. Uma das lembranças da infância passada na clandestinidade o faz citar o filme “Cria Cuervos” (1976), do diretor Carlos Saura. Grabois assistiu, no antigo Cine Belas Artes, em São Paulo, à obra que retrata a infância conturbada de Ana, filha de um general franquista, melancólica e triste que vive um luto permanente e aflições internas. A frase “eu não acredito em paraíso na infância”, reproduzida no filme, marcou Igor, que aos cinco anos foi obrigado a adotar o nome Jorge. Suas memórias da infância envolvem um isolamento crescente do mundo exterior, conforme o cerco fechava-se contra os militantes. A vida nas casas alugadas, as mudanças constantes de endereço. O mais marcante deles foi um sobrado na região do Brooklyn, onde viveu de 1972 a 1979. Com o caráter em formação, ele não era capaz de entender por que levava uma vida diferente das demais crianças. “Todas as crianças da clandestinidade não eram informadas das experiências. De repente meu pai não veio mais, meu avô não veio mais e isso nunca foi explicado. Descobri a morte dos meus parentes, literalmente, pela imprensa.” As demais pessoas não faziam ideia do que acontecia com ele, já que de fora sua vida parecia normal. “A minha fuga, na época, era pela arte. Nos anos 1970, eu ouvia as músicas de Chico Buarque e Geraldo Vandré.” Apenas em 1980 ele voltou a ser Igor. Os documentos escolares mudaram no ano seguinte. “Foi como nascer de novo”, conta. DUAS VIDAS O período da ditadura refletiu de modo diferente para o jornalista Rui Veiga. Ao contrário dos Grabois, que

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viveram clandestinamente no Brasil, ele teve de lançar mão de uma nova identidade para sair do país e fugir da repressão. Paulistano e filho de pais ligados ao Partido Comunista (ex-PCB), em 1967, Veiga aliou-se à Ação Libertadora Nacional (ALN) — organização revolucionária opositora ao regime militar, liderada por Carlos Marighela. Foi estudante de Física na Universidade de São Paulo (USP), mas fez do jornalismo sua profissão, trabalhando no jornal O Estado de S. Paulo. Por fazer parte de uma organização clandestina e levar uma vida de estudante e trabalhador com sua identidade legal, Veiga afirma ter se apropriado de duas identidades à época. De acordo com seus relatos, as táticas para driblar a ditadura eram diversas. “Quando se entrava em um partido comunista, você automaticamente recebia outro nome: o de guerra. O meu, no primeiro momento, era Antônio”, recorda o jornalista. “Nós tínhamos um nome próprio, um apelido e um sobrenome que variavam de acordo com as circunstâncias. Muitas vezes você tinha vários nomes de guerra.” Rui Veiga relata as condições de quem militava e precisava se desfazer da vida pública e se abrigar em esconderijos — conhecidos como aparelhos — pela cidade. “Era um processo difícil. A pessoa ficava dias sem poder sair, esperando instruções para alguma missão. Isso é de uma crueldade mortal.” Ele conta que teve a chance de presenciar o clima de paranoia que assolava os combatentes. “A depressão chegava para essas pessoas que ficavam compulsoriamente dentro de um lugar, esperando um próximo ponto, onde sabiam que poderiam morrer, ou serem presas”, recorda. Acusado de assaltar o supermercado Morita do bairro da Saúde, em São Paulo, e de fazer parte da Ação Libertadora Nacional (ALN), foi preso e torturado pela Operação dos Bandeirantes (OBAN) e pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). “Durante as torturas, eu mentalizava situações específicas para evitar cair em contradição”, declara. Diferente de outras vítimas, Veiga afirma ter conseguido manter a calma. “Preservar minha identidade legal me ajudou. No primeiro dia, eles me puseram no pau-de-arara e, mesmo assim, não confessei minha participação na ALN.” Depois de ter sido interrogado pela auditoria militar, o jornalista foi libertado por falta de provas. Porém, nesse meio tempo, colegas da ALN foram presos e acabaram entregando membros da organização. Neste episódio, Veiga foi descoberto e precisou deixar o país para fugir da perseguição e repressão. Ele comenta que, quando saiu do Brasil, se desligou da ALN, que na época já estava esfacelada. Com a ajuda de um exímio falsificador de documentos e membro da organização, Veiga, que falava italiano, passou a se chamar Jean Carlos Carabelli e se tornou um jornalista vindo da Itália. “Tinha documentos, credenciais da Agência Europhotos. De-

RICARDO ROSSETTO

marcante na vida de Victória. Antes do início do movimento, ela costumava frequentar a casa dos sogros e levar o filho para passar as férias no Rio de Janeiro. No entanto, os laços familiares foram cortados — mais precisamente com o irmão, o pai e o marido, Gilberto Olímpo. No embate, os três foram mortos e as responsabilidades de Victória dobraram. Ela afirma que a morte do marido a fez também perder aquele com quem ela compartilhava todas as angústias e medos daquela época, além de discutirem questões filosóficas e partidárias. “Este momento foi um dos mais difíceis de minha vida. Perder todos os homens da família e viver na clandestinidade, sem ter uma identidade própria, trabalhar para sustentar mãe e filho. Foi um sofrimento indescritível.” Victória conta que já chegou a acreditar que morreria na clandestinidade, apesar de ainda sonhar em retornar ao Rio de Janeiro, encontrar seus amigos e familiares, andar pelas ruas, fazer compras, ir ao cinema, como uma pessoa livre e sem medos. Só em 1982, graças a uma ação na justiça, ela deixou de ser Teresa Freitas. “Aprendi a lidar com a minha condição, faço parte da história do Brasil. Não abandonei minhas raízes e lutei contra a ditadura, mesmo na clandestinidade.”

corei alguns dados e mantive a nova identidade, como se tivesse nascido em Siena, morasse em Roma e fosse solteiro. A única dificuldade era que o cara tinha alguns anos a mais que eu”, conta. Em 1973, depois de passar por Campinas, Foz do Iguaçu e Paraguai, ele chegou à Argentina. Lá, conseguiu emprego como jornalista e iniciou um relacionamento. “Minha namorada sabia da minha condição política no Brasil. Com medo de ser descoberto, escondi todos os meus documentos originais na casa dela”, conta. “A paranoia ainda continuava. Para alguns, eu era Carabelli e para outros, Rui.” As experiências internacionais do militante duraram até 1979. Na Argentina, ficou até a explosão do golpe militar em 1976 que, segundo Veiga, era muito mais pesado que o episódio brasileiro. “Depois do golpe argentino, adotando minha identidade real, fui para Portugal e para a Espanha, trabalhar como jornalista.”

SUBVERSIVA É assim que Amélia Teles, de 66 anos, líder feminista e militante dos direitos humanos, define sua situação na época em que viveu na clandestinidade. “O


Igor Grabois relata sua experiência na clandestinidade devido à ditadura

próprio partido não queria que eu saísse. Eu era a subversiva dentro da subversão, porque não queriam que eu saísse.” Amelinha, como gosta de ser chamada, iniciou sua vida política ainda jovem na cidade onde nasceu, em Belo Horizonte. Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1965, um ano e meio após o golpe, quando passou a ser ilegal. “Viver clandestino em um centro urbano, no Brasil, era muito perigoso. O Estado tinha controle quase absoluto das pessoas. Eu mudava constantemente de casa e de emprego.” Ao contrário de outras pessoas que viviam na mesma situação, durante os oito anos que viveu clandestina, Amelinha teve outras identidades, nem sempre registradas. “A orientação era de ter nomes sempre parecidos com o original, para que não esquecêssemos. E para que os outros que viviam na clandestinidade tivessem mais facilidade em lembrar”, conta. Conseguir um emprego não era empecilho, mas costumavam ser atividades informais. As rupturas eram a pior parte. Ela costumava fazer amigos em lugares públicos: jogar bola com meninos no Parque do Ibira-

puera, soltar pipa e andar de bicicleta. “Eu fazia lá um papo rápido, mas não podia manter essa relação. Quando estava gostando de alguém, tinha que interromper. Mas era a forma que eu tinha de encontrar a vida. Todo ser humano quer ter amigos, não é porque você é clandestino e comunista que você não gosta, mas você não pode. O mais pesado da clandestinidade é não ser você mesmo, não encontrar amigos e parentes e se isolar.”

CIDADÃO Como Igor Grabois, o jornalista Pedro Pomar, de 54 anos, conheceu a clandestinidade na infância. “Marcos Soares foi o nome que adotei aos sete anos e, obviamente, meus pais também usaram nomes fictícios.” Seu pai, Wladimir Pomar, militante do PCdoB, tentou resistir ao Golpe Militar, mas foi preso e libertado meses depois. Quando saiu da prisão avisou que a família precisaria mudar de nome por questões de segurança. O envolvimento na política começou aos 23 anos, o que coincide com a fase final do regime militar. Por isso, Pomar considera que sua participação na luta foi modesta se comparada à vivência de outros militantes de esquerda da época. “Fui um brasileiro

como outro qualquer, com a única diferença de ser filho e neto de dirigentes comunistas que arriscavam a própria vida lutando contra o regime militar”, afirma. Mesmo com essa concepção, ele viveu na clandestinidade por 33 anos, entre 1964 e 1997. Com o fim da ditadura e a partir do momento em que amigos e companheiros de militância política passaram a conhecer melhor sua história de vida, Pomar, ainda documentado como Marcos Soares, começou a reaparecer assumindo sua verdadeira identidade. “Houve um período em que o Marcos Soares dos documentos conviveu com Pedro Pomar, naturalmente, em especial depois do lançamento da primeira edição de meu livro Massacre na Lapa, em 1987.” Apesar da experiência com nome fictício, Pomar considera que viver em segredo não foi o que mais lhe deixou marcas. A brutalidade da ditadura, o assassinato do avô, também chamado Pedro Pomar, e as torturas sofridas pelo pai durante os anos de prisão, as quais deixaram sequelas significativas, foram fatos bastante simbólicos que não lhe permitiram esquecer os anos difíceis de regime ditatorial no Brasil.

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DETETIVES

Conhecida da literatura, esta profissão existe na vida real e é uma opção rápida e barata de se entrar no mercado de trabalho REPORTAGEM ANA LUÍSA VIEIRA, ANA LUIZA PANDOLFI, MELISSA VAZ (2º ano de Jornalismo), LAURA ARAÚJO (3º ano de Jornalismo) e NATÁLIA JULIO (4º ano de Jornalismo) IMAGEM GUILHERME BURGOS (3o ano de Jornalismo)

UM CACHIMBO ACESO, uma boina, uma capa xadrez e uma lupa compõem uma figura característica dos quadrinhos. Sherlock Holmes foi apresentado ao mundo na edição de novembro de 1887 da revista inglesa Beeton’s Christmas Annual. Dono de raciocínio lógico e capacidade de dedução invejáveis, junto de seu fiel escudeiro Watson, Holmes é o modelo que perpetua no imaginário quando o assunto é detetive. Na vida real, a profissão existe, requer formação, tem mercado disponível e ainda dá dinheiro. Evódio de Souza, de 69 anos, é um detetive contemporâneo, que está no ramo desde os 21 e atualmente é presidente do Sindicato Nacional de Detetives. Nos seus dois escritórios de investigação, que ficam no Centro de São Paulo, a decoração não foge muito do esperado: cinzeiros, livros de cursos de espionagem e artigos para o trabalho à venda, como canetas que filmam, spray de pimenta orgânico e equipamentos antigrampo telefônico. Evódio começou cedo e aos 22 anos passou a dar aulas de espionagem. “Eu tinha dificuldade em conseguir detetives particulares bons para trabalhar pra mim. Pela falta de profissionais, resolvi montar uma escola paralela à agência de investigação.” O Instituto Universal de Detetives Particulares (IUDEP) é sediado no primeiro andar de um prédio antigo do centro da capital paulista. Com direito a elevador de madeira, piso gasto e iluminação turva, o cenário combina bem com o que se espera de uma instituição que tem José Mojica Marins, o Zé do Caixão, como professor. O cineasta ingressou no ramo da investigação há doze

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anos, convidado por Evódio de Souza a lecionar arte dramática para espiões. Ele utiliza-se de recursos como o “ação!” e o “corta!” do cinema para comandar as encenações de seus alunos e exige disciplina: dá bronca quando falam baixo ou riem da apresentação alheia. A radialista Fernanda Pascoantônio, que atualmente trabalha com logística, confessa que ele foi um dos atrativos que a levaram até o curso. “Vim aqui por acaso para acompanhar meu namorado e acabei entrando por saber que a aula era do Zé do Caixão. Como estudei Rádio e Televisão, ele pra mim é tudo. Essa foi a oportunidade de conhecê-lo.” O clima de mistério, típico dos romances do britânico Sir Arthur Conan Doyle, porém, se restringe ao aspecto velho do local e aos trajes excêntricos de José Mojica. Grande parte dos alunos tem um objetivo claro: encontrar melhores oportunidades no mercado de trabalho. “A maioria das pessoas que procura o curso está desempregada, buscando uma nova profissão”, esclarece Marco Aurélio de Souza, um dos fundadores da instituição.

CIFRAS “Curso de detetive ensina atividade bem remunerada” é a manchete de um exemplar datado de 1996 do jornal Diário Popular de São Paulo, estampado em uma das paredes da recepção do IUDEP. A tendência é clara e os alunos confirmam: a remuneração, muitas vezes, é fator determinante para a escolha desta profissão. O pedreiro R., de 50 anos, confirma: “entrei no curso para adquirir conhecimentos e ganhar mais dinheiro”. Um profissional já

“Tem detetive que ganha 60 mil reais por mês, chega de helicóptero. Mas isso já é parte da falcatrua”, Evódio de Souza, 69 , Presidente do Sindicato Nacional de Detetives


estabelecido no mercado ganha, em média, 400 reais por dia, enquanto iniciantes ficam na faixa dos 150 e investigadores mais conhecidos sobem o preço, segundo Marco Aurélio, que atualmente coordena o curso. A detetive Ângela Bekeredjian, que já participou de famosos programas de televisão — como Fantástico (TV Globo) e Superpop! (RedeTV!) — e tornou-se requisitada pela mídia, cobra de 450 a 1000 reais por dia de trabalho. Para Evódio, em um mês, é possível garantir em média 15 mil reais — de maneira honesta. “Tem detetive que ganha 60 mil reais, chega de helicóptero. Mas isso já é parte da falcatrua”, comenta, referindo-se a investigadores que forjam conclusões para corresponder às expectativas do cliente ou para conseguir mais dias de trabalho e ganhar mais dinheiro.

ra o serviço desconfia de seu parceiro e, em cada dez casos investigados, oito confirmam a suspeita. Mas o campo de atuação de um detetive é vasto e não se restringe aos relacionamentos amorosos: engloba desde espionagens simples até as mais complexas. O profissional pode infiltrar-se em uma propriedade particular para investigar empregados e familiares do cliente, ou pode exercer atividades de inteligência para o governo e contraespionagem em empresas para averiguar casos de corrupção. “Tem muito detetive que trabalha para indústrias e empresas, investigando contas e fraudes. Mas a maioria dos clientes vem com casos pessoais, problemas de família”, afirma Evódio. Para um bom disfarce, o ideal é um homem

Campo de atuação de um detetive é vasto e não se restringe aos relacionamentos amorosos: engloba desde espionagens simples até as mais complexas

NA PRÁTICA Mesmo com a boa remuneração, o exercício da profissão no Brasil tem seus percalços: apesar de reconhecida pela Constituição Federal, não existe um órgão do governo que a fiscalize ou cursos técnicos e profissionalizantes para organizá-la. “Há falta de união, de um órgão fiscalizador, de uma regulamentação nacional da profissão. Não existe um código de ética”, critica o professor do curso de detetive particular do IUDEP que não quis se identificar. Enquanto na Espanha é preciso fazer um bacharelado de três anos e nos Estados Unidos, um curso técnico de dois anos, aqui, o futuro detetive recebe sua carteira de identificação profissional e é registrado no RENAPIS (Registro Nacional dos Profissionais de Investigações de Segurança) após concluir um curso livre em alguma agência de investigação. Treinamento e registro não são suficientes para o sucesso na área. “Tem que ter o dom, o jeito para trabalhar. Tem gente que é muito boa na teoria, mas não na prática. Tem que ter paciência, ficar de campana: às vezes, a pessoa não nasceu para o negócio”, comenta Marco Aurélio de Souza. “É uma profissão que requer muita atividade, muito tempo trabalhando, você tem que ficar alerta o tempo todo e descobrir as coisas”, afirma Ângela. Um pouco de teatro e cara-de-pau não podem faltar. “Não pode ter medo, tem que saber mentir, fazer a pessoa acreditar que é verdade. Se não tiver essas manhas todas, não vai ser um bom detetive”, conclui Evódio. Em números, ingressar na profissão não costuma ser difícil, demorado ou caro. Entre as opções de trabalho, um detetive recém-formado pode solicitar seu emprego em uma agência de investigação particular ou juntar capital para abrir um escritório e trabalhar como autônomo. Quanto ao tempo, a carga horária de um curso é de em média 120 horas — algumas instituições oferecem a opção de cursos por correspondência ou online. Enquanto o preço do pacote de aulas varia entre 120 e 300 reais.

EM FAMÍLIA O carro-chefe da investigação particular ainda são os casos de infidelidade conjugal. A maioria das pessoas que procu-

e uma mulher trabalhando juntos, ressalta o professor que não quis ser identificado. “Se o casal estiver em uma campana e chegar a polícia, eles podem fingir que só estão namorando.” Ele ainda aponta as qualidades de cada um: enquanto o homem é mais bruto e objetivo, a mulher é mais sensível e intuitiva. Discrição, paciência, cara-de-pau, capacidade infiltrar-se em qualquer ambiente e conviver como se fosse da “tribo” são características necessárias a qualquer aspirante a detetive. Em um misto de curiosidade e ambição, a profissão pode ser, no fundo, um exercício de altruísmo. “Estamos aqui para colaborar com as pessoas. É como ajudar ao próximo. E muito válido porque eu trabalho em qualquer lugar”, conclui a detetive Ângela.

FINANCEIRO O curso é procurado por aqueles que querem aumentar a renda

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PERFIL

espião de unhas

COMPRIDAS Em curso para detetives, José Mojica é a grande atração para os alunos, que além das aulas buscam uma vaguinha nos filmes de Zé do Caixão REPORTAGEM NATÁLIA JÚLIO (4o ano de Jornalismo) IMAGENS GUILHERME BURGOS (3o ano de Jornalismo)

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“ANOTEM SEUS NOMES, idade, uma frase sobre o amor, uma sobre o ódio, uma sobre a vida e uma sobre a morte.” Assim começa a aula de José Mojica Marins no curso de investigação, num sábado de manhã no Centro de São Paulo. Quem olha aquele senhor de 75 anos na rua talvez não dê conta do seu passado. Vestindo calça social e uma camisa rosa, não chama atenção — exceto, talvez, pela unha do polegar esquerdo, três vezes maior que o esperado. Na sala, a presença do neto Pedro tira ainda mais a nuvem em torno do mito: é só uma criança com sono sentada em uma das últimas fileiras, acompanhando o avô em uma de suas aulas. Mas assim que José Mojica começa a falar, dá para entender por que o homem é tão famoso. De maneira teatral, levantando as mãos acima da cabeça, o primeiro tópico abordado na aula é o suposto fim do mundo em 2012 previsto pelo calendário Maia. “Apenas um terço da população sobreviverá — ou nem isso”, profetiza o professor. A morte é assunto recorrente no curso, assim como o sexo: os alunos encenam passagens onde perdem familiares, dinheiro ou estão sob tensão sexual. Os temas são bem conhecidos por Zé do Caixão e os títulos de seus filmes confirmam: À meia-noite levarei sua alma (1963), Essa noite encarnarei no teu cadáver (1967), Sexo e sangue na trilha do tesouro (1972), Perversão — estupro (1979), Mundo-mercado do sexo (1979), 48 horas de sexo alucinante (1986)... A lista é longa. Filho de um toureiro com uma dançarina de tango, ambos de origem espanhola, Mojica nasceu em São Paulo e cresceu em meio às bobinas de filmes. Seu pai, Antonio André Marins, passou a tomar conta de um cinema quando ele tinha três anos de idade, numa época em que a sétima arte era um dos poucos entretenimentos na cidade. “Eu estava lá no centro de tudo, era eu quem dominava isso: tomava conta do cinema. Fui muito privilegiado.” Além dos filmes, dar aulas é algo que sempre esteve presente em sua vida. Ele afirma que desde os oito anos era “professor” e ensinava a arte de fazer cinema para quem quisesse aprender. No currículo, mais de 150 filmes — o número tende a aumentar, já que as filmagens do próximo começam em outubro deste ano —, e um programa que vai ao ar no Canal Brasil, nas sextas-feiras, à meia noite, chamado O estranho mundo de Zé do Caixão, que conta com entrevistas sobre as superstições e o lado macabro dos convidados. Além disso, Mojica já atuou como detetive anos atrás, em algumas poucas ocasiões. E, é claro, tem ainda o curso de atuação para espiões que ministra há mais de duas décadas. “Dando aula há tanto tempo e fazendo outras coisas da vida, tento ser um professor que traz novidades para a sala”, comenta.

CRIATURA E CRIADOR A fama tem seu preço. O de José Mojica é o ego inflado. Na sala,ele fala sobre seus filmes, dá autógrafos, tira fotos. O poder de fascinação que exerce sobre os alunos é perceptível: Zé é

GUILHERME BURGOS

o centro das atenções. Quem olha de fora, pode imaginar que ele dá aulas para encontrar atores. É o que o cineasta afirma diversas vezes ao longo das duas horas em que leciona, dizendo que vai “entrar em contato com os que mais gostou para um futuro teste”. Na plateia de alunos, um riso de esperança, misturado com orgulho, aparece tímido. E, fora da sala, o reconhecimento não demora a chegar. Poucos segundos com os pés na Rua Sete de Abril, no Centro, foram o suficiente para que um homem gritasse: “Olha o Zé do Caixão aí! Trash!”. “Zé Mojica não tem nada a ver com o Zé do Caixão”, afirma. De qualquer maneira, ambos sabem muito bem que sexo vende, dentro e fora do cinema. Discretamente, levantando a sobrancelha e com um sorriso de lado, revela que “todo mundo gosta de ver um beijo”. Com o intuito de concretizar essa imagem, ao final da aula, Mojica leva os alunos para o centro da cidade, onde formam uma roda e um casal é escolhido para uma cena — de beijo. Antes de apontar um homem e uma mulher para a encenação, o professor pergunta quem se habilita e, pelo silêncio absoluto que ouve em resposta, su-

gere que a cena termine quando as bocas estejam a pouquíssimos centímetros uma da outra (ele próprio, aliás, chega com a boca bem perto das alunas). Aos gritos de “câmera, ação!”, ele dirige, com um cigarro entre os dedos, os alunos-atores, com uma esperança clara de que o clima esquente um pouco. Ambos, homem e personagem, sabem muito bem que o desconhecido fascina. O misterioso — seja nas telonas, ou nos casos a serem investigados — está sempre presente, e a fórmula tem dado certo. “O Zé do Caixão adora o desconhecido. Tudo aquilo que foge ao normal”, conta Mojica. O homem real, porém, assume uma fraqueza: ele tem medo. “Eu tenho a mesma curiosidade do Zé, mas não tenho a coragem dele”. O temor mais óbvio e natural do ser humano, porém, nenhum dos dois tem. “Se eu não tivesse morrido, eu teria medo da morte. Mas nos anos 1970, tive uma parada cardíaca. Parou tudo: o coração, a mente. Fui dado como morto por quatro minutos. Vi tudo grande e diferente, com as cores se misturando. Eu gostei de ter morrido.” Para quem já viveu tantas experiências macabras, as atuais manhãs de sábado de José Mojica são até que bem tranquilas.

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CÂMERAS DE VIGILÂNCIA

ANA GABRIELA MACIEL

TEXTO CAIO VITOR HUNGRIA, GABRIELA ZOCCHI, JÚLIA VIANA (1º ano de Jornalismo), ANA GABRIELA MACIEL, CAROLINE TEIXEIRA, FLÁVIA SARTORI, MARÍLIA LEONI BESERRA, PATRÍCIA DICHTCHEKENIAN (2º ano de Jornalismo) e LUANA FAGUNDES (3º ano de Jornalismo) IMAGEM ANA GABRIELA MACIEL (2o ano de Jornalismo)

VIGILÂNCIA E MONITORAMENTO — Em base montada na Chácara Klabin, na zona sul de São Paulo, policial militar observa a movimentação

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MOSTRA ou NÃO MOSTRA? Câmeras de vigilância e de televisão estão tão inseridas no cotidiano dos cidadãos que despertam comportamentos, no mínimo, estranhos “SORRIA, VOCÊ ESTÁ sendo filmado!”. Quem nunca leu essa frase em algum canto da cidade? Ela é comum, porque é reflexo da preocupação com a segurança que levou estabelecimentos e residências a instalarem câmeras por toda parte. Na opinião de Emerson Oliveira, consultor de segurança, “nesse tipo de situação, as pessoas não se incomodam e aceitam bem o fato de estarem sendo monitoradas por câmeras”. Porém, a ideia não é novidade: há 40 anos, o filósofo Michel Foucault já falava sobre técnicas de monitoramento humano. O que na época foi chamado de Sistema Panóptico se relaciona com a atual tentativa de garantir ordem por meio da vigilância de câmeras. A crescente popularização dos aparelhos de filmagem proporcionou o efeito contrário: em alguns casos a câmera não cumpre o papel principal de intimidar atos ilícitos, mas se torna atrativo para pessoas que querem expor suas imagens. Em busca dessa popularidade, o reality show Big Brother Brasil é sucesso de audiência, além de muito disputado pelos candidatos a entrarem na casa. SEGURANÇA A iniciativa dos moradores da Chácara Klabin, bairro da zona sul paulistana, de instalar aparelhos de vigilância é um exemplo. Assustados com o aumento da criminalidade, os habitantes planejam instalar uma base de videomonitoramento em parceria com a Polícia Militar, ainda neste ano. Segundo Camilo Cristófaro, presidente da Associação de Moradores da Chácara Klabin, “a repercussão entre os moradores é positiva”. Isso demonstra que a difusão de câmeras tem o consentimento da população, apesar de algumas liberdades serem sacrificadas. Atualmente, há sete câmeras de vigilância localizadas na própria base de policiamento. “Em 2011, pretendemos colocar mais de 25 câmeras em pontos estratégicos”, conta. Com base em casos desse tipo, Vladimir Safatle, professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas na Universidade de São Paulo (FFLCH — USP), lembra que “vivemos em uma ditadura do medo, em que as relações humanas são construídas com receio e desconfiança”. A grande questão política atual é a segurança, o que nos torna cada vez mais submetidos a essa dinâmica do monitoramento. “A todo instante a sociedade alimenta o discurso de que há um risco iminente. Porém, as pessoas têm demandas contraditórias: elas querem intimidade, mas não dispensam a segurança”, explica o professor Safatle.

PRAZER DA EXPOSIÇÃO Ao mesmo tempo em que um circuito de vigilância ajuda a coibir práticas ilegais, pode incitar o lado expositivo das pessoas. “Aqui estou acostumado a ver de tudo: acidentes de carro, de moto, caminhões presos no túnel por entrarem sem permissão, assaltos e pessoas que gostam de se exibir”, relata um operador de monitoramento de câmeras da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), que pediu para não ser identificado. O trabalho dele consiste em fiscalizar, por meio do videomonitoramento, as práticas que possam prejudicar o trânsito de veículos e de pessoas no túnel Ayrton Senna, na capital paulista. As histórias acompanhadas pelo operador comprovam a falta de seriedade com que os cidadãos veem o circuito de vigilância. “Ano passado, uma Kombi que levava várias mulheres parou dentro do túnel. Elas desceram, começaram a dançar e a tirar a roupa diante da câmera.” Apesar do poder de atração dos aparelhos em alguns casos, em outros ele simplesmente é ignorado. “Desde o magnata até o motoqueiro, todos param para urinar dentro do túnel.” Na opinião do operador, essas atitudes ganham espaço em um cenário de impunidade, como o do Brasil. “Tudo passa a ser normal. Tanto faz andar pelado ou agredir uma pessoa”, enfatiza. Episódios como estes mostram a nova relação que as pessoas têm com a visibilidade de suas atitudes. “Nós aprendemos a gostar de ser observados”, explica o professor Safatle. Isso acontece pela importância que a imagem tomou na sociedade, fazendo com que cada pessoa desenvolva sua individualidade de acordo com o grau de exposição a que está submetida. Reflexo disso é o reality show Big Brother Brasil, ilustração clara de uma sociedade que valoriza a vida como um espetáculo e que gera o gosto por se expor. A exibição da própria imagem para todo o país é incorporada ao cotidiano dos participantes, estimulando o comportamento natural diante das câmeras. Cristiano Naya, participante da 11ª edição do BBB, afirma que isso realmente acontece. “Quando estamos no programa, nos acostumamos e acabamos fazendo o que temos vontade, independentemente de sermos filmados ou não”, confessa o engenheiro que tirou a cueca enquanto tomava banho, aparecendo nu em rede nacional. ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2011

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CHAPÉU ENSAIO

segredos

PAULISTANOS As esquinas e os cantinhos da cidade de São Paulo. Neste ensaio, os repórteres assumiram a posição de flâneurs e captaram detalhes da metrópole

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CARLOS AROS, JÚLIA BEZERRA, LUAN GRANELLO e MARIANA LIMEIRA (1o ano de Jornalismo)

Casarão Franco de Mello: o prédio em deteriorização já abrigou membros da elite cafeeira de São Paulo

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AMANDA MASSUELA, ISABELA PASTOR, HELENA KAULICH, MARIANA MARINHO e THOMAS FREIER (1o ano de Jornalismo)

Obra estação para construção de ponto na linha Lilás: estação Adolfo Pinheiro vai ligar Santo Amaro até a Chácara Klabin

ANNA PAULA MASCARENHAS, BRUNO GROSSI, EDOARDO GHIROTTO, FLÁVIO PASSOS, RAFAEL COSTA e RENAN DO COUTO (1o ano de Jornalismo)

Antigo reduto intelectual paulistano, a Vila Pororó hoje tem sua arquitetura em ruínas 38

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EDUARDO GONÇALVES, GABRIELA GODOY, MARINA JUNQUEIRA, JULIA REZENDE e FILIPE SBARRA (1o ano de Jornalismo)

Museu da Mágica - João Peixoto dos Santos mostra efeitos criados pela arte do ilusionismo ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2011

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BIOGRAFIAS

a história da

VIDA PRIVADA Publicar uma biografia no Brasil não é mais questão de apuração REPORTAGEM LUCIANA FARIA GONÇALVES (1º ano de Jornalismo), PAULA LOPES DOS SANTOS, LAURA NEAIME BARROS, MAÍRA FELTRIN ROMAN e NATÁLIA ALVES (3º ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO JAQUELINE GUTIERRES (3o ano de Jornalismo) e FERNANDA PATROCÍNIO (4º ano de Jornalismo)

AS BIOGRAFIAS PODEM ser divididas em duas categorias: autorizadas e não-autorizadas. Mas a divisão não funciona bem assim. “A única biografia que existe é a não autorizada. A outra, quase sempre, é uma farsa, deveria ser assinada direto pelo biografado”, diz Ruy Castro. Jornalista e escritor, ele é um dos mais famosos autores de biografias no Brasil, como a do dramaturgo Nelson Rodrigues (O Anjo Pornográfico, 1992), o craque do futebol Mané Garrincha (Estrela Solitária, 1995) e da cantora Carmen Miranda (Carmen – Uma Biografia, 2005) – todos publicados pela editora Companhia das Letras. Para Reynaldo Damazio, sócio e editor da Portal Editora e crítico literário “quando uma biografia séria, que envolve pesquisa rigorosa e resulta em um bom texto, é proibida por razões familiares ou pessoais, é uma grande injustiça não só com o autor. Desrespeita-se a editora, a cultura e a história, além de representar prejuízo financeiro”. Se a máxima de Ruy Castro quanto à definição de biografia for aplicada ao recémlançado livro do senador e ex-presidente José Sarney, escrito por Regina Echeverria (Sarney – A Biografia, Editora Leya, 2011), estaria faltando uma assinatura na capa da obra. Em nota no final da publicação, a biógrafa agradece as mais de 70 horas de depoimento e o empréstimo de cartas, diários e arquivos pessoais, além de descrever o biografado com qualidades mil. No início, o acordo era de que a publicação seria feita sem passar pelas mãos do político. No entanto, o trato foi rompido para “evitar erros diante da longa história” – assim, o atual pre-

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sidente do Senado autorizou a publicação de sua biografia. A obra inclui passagens controversas, como o envolvimento do político no caso do Mensalão e a atuação de Sarney no período militar. O livro tornou-se, portanto, uma biografia autorizada.

LEI Um projeto de lei criado originalmente pelo então deputado federal petista Antônio Palocci, em 2008, propunha o impedimento da censura prévia de biografias não-autorizadas — Palocci hoje é ministrochefe da Casa Civil e está sendo investigado pelo Ministério Público Federal sobre os possíveis recursos ilícitos, que aumentaram seu patrimônio. No entanto, o projeto havia sido arquivado em janeiro deste ano. Coube à deputada Manuela d’Ávila, do PC do B, colocá-lo novamente em campo. Em entrevista ao site de notícias jurídicas Última Instância, Manuela afirmou que “o projeto regula uma contradição existente entre o artigo 5° da Constituição Federal e o artigo 20 do Código Civil”. A deputada se refere ao fato de a Constituição estabelecer a liberdade de expressão, ao mesmo tempo em que o Código Civil prevê a possibilidade de proibição da “divulgação de escritos ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade ou se destinarem a fins comerciais”, salvo os casos em que existe a permissão expressa do personagem citado. Ou seja, uma lei dá ferramentas para que o escritor publique o que for de sua vontade e acredite ser relevante, enquanto a outra dá


o direito ao biografado e familiares de proibir a circulação da obra. A advogada Renata Ferraz, do escritório Andra Propriedade Intelectual, não acredita que apenas essa medida possa resolver os impasses existentes atualmente. Para ela, mais importante é que se estabeleçam os parâmetros para tais publicações: “Antes de propor uma alteração, deve-se conceituar o que é personalidade pública e o quanto sua trajetória pública e privada tem relevância para a história do nosso país, pois assim evitaríamos a invasão de privacidade em massa”. A atual Constituição acaba delegando ao Poder Judiciário as decisões em relação ao assunto, pois encontramos duas diretrizes legais em confronto. Cabe apenas ao juiz definir se uma biografia não autorizada tem o direito ou não de ser veiculada. Em geral, o bloqueio na publicação dos livros vem por parte de herdeiros dos biografados. “Quase sempre, é puro oportunismo, vontade de ganhar dinheiro às custas do papai ou do vovô. Alguns desses herdeiros nem gostavam de seus parentes ilustres, como uma sobrinha da Carmen Miranda e as filhas do Nelson Rodrigues”, comenta Ruy Castro. Entretanto, a advogada Renata Ferraz ressalta que esse é o papel do herdei-

ro diante da lei, sendo que “a biografia deve respeitar a moral do biografado narrando sua trajetória pública e privada com a verdade, sem atribuir juízo de valor”. Porém, ao mesmo tempo, segundo a Lei de Direitos Autorais, o autor tem, em todos os momentos, o direito de se opor a qualquer ação que tente modificar sua obra, podendo assim “Prejudicá-lo ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra”.

BIÓGRAFOS X BIOGRAFADOS Algumas vezes, a bronca parte do próprio retratado, descontente com os conteúdos exibidos nos relatos, como foi o caso do livro Roberto Carlos em Detalhes, de Paulo César de Araújo (Editora Planeta, 2006). A decisão de recolhimento da obra foi consequência de um acordo feito entre biógrafo, biografado e editora. Acordo contra o qual Paulo César tentou resistir fazendo novas propostas, como a retirada dos trechos que incomodavam o cantor. “Não há nada que possa ser considerado ofensivo no texto de Paulo César de Araújo, muito pelo contrário: nota-se o respeito e a admiração pelo artista”, opinou Reynaldo Damazio, que afirma inaceitável a retirada do livro de circulação. Outros escritores também se manifestaram contra a

DIVULGAÇÃO

O rei proibiu circulação de Roberto Carlos em Detalhes, em 2006

atitude do Rei Roberto Carlos: segundo reportagem do jornal O Globo, Paulo Coelho considerou a “atitude infantil”. Na mesma edição, o diretor da Companhia das Letras, Luiz Shwarcz afirmou que “cabe à editora e ao autor lutarem pela liberdade de expressão até o fim. Uma pessoa tem todo o direito de lutar se estiver sendo difamada, mas não pode pedir a retirada do livro. Se ficar provada a calúnia, aí sim, os exemplares podem ser recolhidos”. Falar sobre um dos cantores mais famosos do país vai além do acordo entre biógrafo, biografado e editora, segundo Reynaldo Damazio, passa por outros setores da sociedade. “Há interesses econômicos e de marketing em torno de um ídolo popular que se tornou um empreendimento que estão por trás dessa censura deslavada”, afirmou o editor. Segundo Paulo César, a marca que o caso deixa para a liberdade de expressão é a pior. “Desde o início estava claro que esse livro seria um divisor de águas para o bem ou para o mal. Outras editoras estavam esperando o resultado dessa publicação para ver se lançavam ou não obras com apelo parecido”, disse em entrevista à revista Isto É, em 2008. Há ainda os casos em que a tentativa de veto vem de pessoas que não têm nenhum direito nem participação no patrimônio do artista, como uma das cinco ex-mulheres de Raul Seixas: Kika Seixas. O jornalista Edmundo Oliveira Leite prepara, desde 2004, a biografia do músico. A ex-mulher, que cedeu entrevistas ao jornalista e foi uma das primeiras a saber da biografia, enviou-lhe em setembro de 2009, um telegrama dizendo que não autorizava a publicação da obra. A justificativa que ela apresentou foi o caráter tendencioso das perguntas do biógrafo nas entrevistas que lhe concedera. Segundo ela, restringiam-se apenas ao uso de drogas. O jornalista afirmou surpresa ao receber o telegrama, tanto por Kika ter levado o caso para a imprensa quanto pela acusação que ele classificou de mentirosa, por ela se julgar no direito de proibir o livro. “A Kika não tem o direito sobre a obra do Raul. Nenhuma das ex-mulheres dele têm. Isto é um bem que diz respeito aos herdeiros: as três filhas dele. E, mesmo assim, não podem me impedir de pesquisar e escrever sobre ele. Elas têm o controle sobre a obra dele, não sobre a sua história.” O jornalista não se sentiu acuado pela ameaça, nem pensou em desistir da obra temendo a aplicação do artigo 20 do Código Civil. “Esse artigo é inconstitucional. A Constituição dá o direito à liberdade de expressão e ele contradiz esse direito assegurado por ela”, comenta. Uma figura pública está sujeita a investigarem sua vida e escreverem sobre ela. “O problema é que herdeiros sempre gostam de faturar com a fama de seus antecessores”, lamentou Reynaldo Damazio. Agora é aguardar a publicação do livro do jornalista Edmundo Oliveira Leite. Ou assistir à mais uma polêmica sobre biografias autorizadas e não autorizadas.

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CULINÁRIA

PITADAS DOS

Chefs

Entre temperos e quitutes, a família Basile revela seus segredos na cozinha REPORTAGEM ÍTALO FASSIN (2º ano de Jornalismo), NATHÁLIA HENRIQUE, MARCOS RODRIGO e VINÍCIUS DE MELO (3º ano de Jornalismo) IMAGEM ARQUIVO PESSOAL

COZINHAR É UMA arte. Ainda mais para pessoas com as quais o cozinheiro não interagiu anteriormente, como é o caso dos chefs. O segredo para o preparo de uma boa comida, seja ela um prato de alta gastronomia ou um lanche, é basicamente o mesmo de outras profissões. Envolve a qualidade dos produtos e a dedicação desempenhada no trabalho. Berço do amadurecimento gastronômico dos chefs Fernando e Juliano Basile, o restaurante Le Gourmet Bistrot, localizado na Serra da Mantiqueira, foi criado em 2004 pelo chef Antônio Basile Neto. Formado em direito, Toninho, como é conhecido, decidiu implantar o restaurante na cidade de Gonçalves, sul de Minas Gerais, por perceber que a região carecia de um estabelecimento com alta gastronomia. A riqueza de alimentos produzidos na própria região dá ao chef a oportunidade de preparar pratos com hortaliças, legumes e verduras orgânicos. Além da fartura de vegetais, o restaurante oferece pescados e carnes, procurando contemplar o gosto variado dos clientes. “Nós deixamos o espaço aberto para que o cliente oriente o chef sobre aquilo que ele deseja comer. Se temos os ingredientes para fazer o que o ele quer, a gente faz”, diz Toninho.

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O prazer do chef Basile é inovar na criação dos pratos. No final de cada ano, o cardápio do Le Gourmet é completamente alterado. “De dezembro a outubro, eu estudo o cardápio do ano subsequente. Essa época é uma festa. Fazemos testes, provas e degustações entre nós e com os amigos, buscando um aperfeiçoamento do cardápio dentro da culinária que nos propomos a fazer”. A primeira página do cardápio do Le Gourmet fala sobre a troca de energias presentes na elaboração de cada prato. Toninho acredita que o ingrediente secreto existe, mas não está na esfera física. “O chef transmite para a comida aquilo que está sentindo. Por isso, o ideal é que a manipulação dos alimentos seja feita com bastante tranquilidade”, afirma. Para Basile, o segredo de um bom chef está em uma qualidade fundamental que não se ensina – a sensibilidade. Através dela, o chef interage com a preparação do prato, com os produtos que utiliza e também com os produtores que fornecem os ingredientes com os quais ele trabalha. “O cozinheiro é um artista. Para ele não cair na mesmice tem que criar, dar vazão à criatividade e ser sensível a tudo o que compõe o dia a dia dele”, explica.

“O chef transmite para a comida aquilo que está sentindo. Por isso, o ideal é que a manipulação dos alimentos seja feita com bastante tranquilidade”, Antônio “Toninho” Basile Neto, chef do restaurante Le Gourmet


Fernando e Juliano Basile Os gêmeos Juliano e Fernando Basile, de 19 anos, são os mais novos chefs de talento da gastronomia brasileira. “Tudo começou bem cedo, aos dez anos de idade”, relata Juliano. Toninho Basile, pai dos meninos, possuía uma pizzaria em Gonçalves, cidade localizada no sul de Minas Gerais. Foi ajudando a fazer pizza que os irmãos entraram no mundo culinário. Um ano depois, colocaram a mão na massa no restaurante Le Gourmet Bistrot, também da família. “Lá nos especializamos em pratos contemporâneos, com influência das cozinhas francesa, espanhola e italiana”, explica Fernando. Precoces, aos quatorze anos, foram aceitos na Escola das Artes Culinárias Laurent — do renomado chef francês Laurent Suaudeau. Além disso, Qual o segredo para a formação de um bom chef?

Por que Gonçalves tem atraído uma nova geração de chefs de cozinha paulistas?

FERNANDO A cidade é bem bucólica, tem apenas cinco mil habitantes. Gonçalves é atrativa por estar localizada entre Campos do Jordão e Monte Verde. As pessoas agora estão procurando cidades menores para começar novos negócios.

Como as técnicas gastronômicas franco-espanholas colaboraram para a formação de vocês?

FERNANDO A culinária francesa e a espanhola são bem diferentes. Na verdade, a nossa base foi a francesa, tanto no restaurante do meu pai, o Le Gourmet Bistrot, quanto nas aulas com o chef Laurent. No entanto, desde o começo, queríamos saber um pouco de cada culinária do mundo. Passamos pelas culinárias japonesa, catalã e basca para poder montar uma culinária só, mas isso é complicado porque cada uma tem uma técnica diferente. Se a culinária francesa diz que é para fazer de um jeito, a espanhola pode dizer que é de outro, então, você acaba tendo que procurar em livros e tirar dúvidas na Internet. Gastronomia é isso, ficar 24 horas por dia ligado.

Existe um segredo para trabalhar bem em família?

JULIANO A minha relação com o Fernando, tanto dentro da cozinha quanto fora, é super boa. Até porque somos gêmeos e estamos juntos desde pequenininhos. No máximo, ficamos separados um do outro por três dias. Mas tem que saber diferenciar a hora do trabalho e a hora do lazer familiar.

Além da influência do pai, houve influência da mãe ou da avó na paixão pela gastronomia?

JULIANO Desde pequenos ficávamos na cozinha com nossas avó e bisavó, preparando refeições. Como a família é grande, sempre que nos reuníamos, nós dois ajudávamos na cozinha. A paixão pela gastronomia começou aí.

E qual é o segredo de um bom prato?

FERNANDO No nosso restaurante, trabalhamos com a questão da energia que você vai passar para o produto com o qual está trabalhando. Se você está se sentindo mal, precisa deixar isso de lado para não influenciar no preparo dos pratos. É preciso gostar de cozinhar. A energia positiva é o que realmente faz diferença na preparação de um prato. JULIANO Para mim, o segredo de um bom prato está relacionado com o amor e a paixão no que você está fazendo. Não adianta preparar uma refeição e colocar energia negativa em cima dela. Quando você vai para cozinha tem que esquecer os seus problemas. Nós amamos cozinhar desde pequenos, então cozinhamos com paixão. Isso influencia muito no nosso produto final. ARQUIVO PESSOAL

FERNANDO Muita gente diz que nós somos a revelação culinária do momento. Porém, ainda somos muito jovens. Por enquanto, não me considero um grande chef, pois tem que ter muito conhecimento e ainda estou estudando. Além disso, ser ou não ser um bom chef de cozinha depende muito do dom, como em qualquer profissão. Nosso pai, por exemplo, não fez nenhuma escola. Ele aprendeu com os livros e pondo em prática na cozinha. Existem dois tipos de chefs: o teórico, aquele que cria livros, fala sobre a composição de cada alimento; e o prático, que está diretamente ligado ao fogão. JULIANO Acredito que a pessoa se torne um bom chef com estudo e prática. A cozinha é algo que não tem fim: sempre descobrimos uma novidade e a cada dia temos que estudar mais, senão você fica para trás. Tem que pesquisar, conhecer e experimentar. Acho também que o segredo para um bom futuro na Gastronomia é a ousadia, mas para isso é preciso saber o que fazer na cozinha. Deste modo, você entenderá o que pode ser mesclado, o que não pode e qual o gosto de cada ingrediente. Enfim, estudo é primordial na Gastronomia

ganharam o prêmio “Melhor Restaurante do Brasil”, pelo Guia Quatro Rodas. Os gêmeos dividiam a rotina entre as aulas de culinária e o ensino médio. “Quando terminamos o terceiro ano do colégio, o Laurent nos incentivou a buscar uma especialização fora do Brasil”, contam os irmãos. Em Sevilha, encaminharam-se direto para a pós-graduação da Escola de Hotelaria, Gastronomia e Cultura Espanhola. Atualmente, os gêmeos Basile trabalham no Le Gourmet Bistrot do pai, e abriram um restaurante próprio de gastronomia brasileira chamado Janelas com Tramela. Em entrevista à Revista Esquinas, os jovens chefs contam quais são seus toques e segredos para um bom prato.

Para Fernando e Juliano cozinhar com amor e paixão faz toda a diferença nos pratos

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Hacker> </not Cracker> As aventuras daqueles que exploram a vida além dos códigos binários REPORTAGEM GABRIELLE WINANDY, MARIA BEATRIZ GONÇALVES, VIVIAN GARCIA, YASMINE CREPALDI (1o ano de Jornalismo), GUILHERME ALEIXO (2o ano de Jornalismo), PEDRO SAMORA (3o ano de Jornalismo) e LIDIA ZUIN (4o ano de Jornalismo) IMAGENS REPRODUÇÃO

NO MUNDO VIRTUAL, os hackers coexistem com os crackers. Apesar de confundidos, cada um possui sua própria ética, o que os distingue. Segundo Douglas de Oliveira, estudante de Ciências da Computação na Universidade do Sagrado Coração (USC), os hackers são especialistas em códigos, na linguagem das máquinas. “Eles entendem a fundo como funciona programação, sistema operacional, banco de dados e conseguem obter informações privilegiadas. Só que utilizam isso para o bem.” Para Oliveira, estes veem a prática como diversão, como um desafio a se superar. “Eles tentam invadir mais por prazer, na verdade”, comenta. Já os crackers, apesar de terem os mesmos conceitos dos hackers, usam seus conhecimentos para “invadir sistemas, roubar senhas, contas e bancos”. Outrora piratas de dados, jóqueis e cowboys do ciberespaço. Foi na literatura que os hackers nasceram como figuras heróicas — mesmo que antiéticas. O subgênero cyberpunk da ficção científica surgiu como termo a partir de um conto escrito por Bruce Bethke, em 1980, quando relatou a invasão que sofrera em seu computador. A figura degenerada, un-

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derground e embebida em tecnologia ganhou grandes protagonistas como Case (Neuromancer, de William Gibson. Ace Books, 1995), Neo (Matrix, dos Irmãos Wachowski. Newmarket Press, 2000) e Marcus (Little Brother, de Cory Doctorow. St. Martins Press, 2008). Não só os livros e o cinema consagraram a atividade, mas jogos, como Uplink, que tenta passar às pessoas a sensação perigosa e ilícita que permeia o arquétipo. Longe dos efeitos especiais e da trilha de música eletrônica, o dia a dia de um hacker é muito mais técnico do que cinematográfico. “Hoje, por causa dos filmes de ficção científica, é de conhecimento geral que o hacker é alguém que tem grandes habilidades com computadores e que consegue entrar em sistemas”, indica Vinícius Camacho Pinto, hacker conhecido na rede por Vinícius Kmax. O interesse geralmente nasce como um hobby, uma curiosidade que pode ser saciada numa pesquisa do Google, em que sites como Invasão.com.br ou InvasãoHacking.com podem servir de norteadores. Há também uma literatura própria para os interessados, desde livros técnicos sobre

REPRODUÇÃO

HACKERS



COMO OS ANTIVÍRUS FUNCIONAM

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As empresas de combate aos vírus vasculham ameaças digitais na web das seguintes formas: contam com computadores de grande capacidade para visitar páginas, receber spam e identificar vulnerabilidades em aplicativos. Uma vez identificadas, elas procuram criar uma “vacina”; com tecnologia baseada em reputação, as empresas se apoiam nos dados fornecidos automaticamente pelos clientes para definir o grau de confiabilidade de um arquivo baixado. Se há um aplicativo baixado pelo internauta que é novo e houve relatos de que é malware, o usuário é alertado. Esta abordagem é complementar à vacina: analisa o comportamento dos programas instalados para determinar, por intermédio das informações de mercado e do próprio funcionamento do programa, se ele pode ser confiado ou não, se precisa de monitoramento, ou se é um código malicioso.

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Quando novas ameaças virtuais são encontradas — o que inclui vírus, sites de phishing (forma de fraude eletrônica, caracterizada por tentativas de adquirir fotos, músicas e outros dados pessoais, ao se fazer passar como uma pessoa confiável ou uma empresa enviando uma comunicação eletrônica oficial), códigos maliciosos ou até spam — a equipe de resposta da empresa trabalha para criar o que se chama “vacina para o vírus”, que nada mais é do que um código de computação capaz de anular e até apagar o código malicioso. Depois disso, por meio de uma ferramenta chamada “LiveUpdate”, o antivírus instalado na máquina do usuário recebe automaticamente a vacina, tornando o computador imune à praga virtual. “O LiveUpdate do Norton, por exemplo, atualiza todos os computadores com Norton instalado no mundo num intervalo não menor que 5 minutos e não maior que 15 minutos, todos os dias. Temos estruturas e centros de respostas, responsáveis pela criação das vacinas espalhados em 4 locais do mundo, o que nos permite ter uma equipe de resposta ativa e trabalhando durante as 24 horas dos 7 dias de todas as semanas”, afirma Bruno Rossini, gerente de relações públicas da Symantec/Norton.

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Toda ameaça digital pode ser combatida. A questão é identificá-la o mais rápido possível. Por isso as empresas investem em abordagens, como a tecnologia de reputação, para reconhecer pragas recém-criadas ou até pragas completamente desconhecidas e que danificam computadores de usuários, as chamadas ameaças de Dia-Zero. Na eventualidade da descoberta de uma praga desconhecida, trabalha-se em uma vacina para proteger a comunidade antivírus de forma ágil. Atualizações são constantes e o desafio é identificar essas ameaças e trabalhar incessantemente para desenvolver a vacina contra ela.

Informações cedidas por Bruno Rossini, gerente de relações públicas da Symantec/ Norton.

programação até jornalísticos como The Hacker Crackdown (Bantam Books, 1992), de Bruce Sterling, no qual se discute a atividade hacker no início da década de 1990. “Eu descobri que gostava de ir além, não só de fazer funcionar. Gostava de quebrar e reconstruir, explorar totalmente as possibilidades”, conta Kmax.

MANUAL DA INVASÃO Um dos problemas mais críticos que estas pessoas enfrentam é o preconceito com a denominação. Preconceito este que surgiu na década de 1990, quando um cracker chamado Morris criou um vírus, nomeado Michelangelo. Este worm praticamente derrubou a internet logo nos seus primeiros passos. O trauma foi grande e as pessoas passaram a ver o termo como negativo. Hackers e crackers são distinguidos a partir de suas regras, sendo que os primeiros se baseiam em normas desde “trate os sistemas que você invade como trataria seu próprio computador” até “quando terminar, notifique os administradores dos sistemas sobre qualquer brecha de segurança que você tiver encontrado”. Faz parte desta lista também a indicação para que “não invada na intenção de roubar dinheiro ou informações” e “nunca apague intencionalmente ou danifique um arquivo em um computador que você tenha invadido”. Estas cláusulas são para direcionar o hacker e fazer com

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que ele ajude os operadores e usuários com suas habilidades em vez de usá-las apenas para obter lucros e causar problemas, como o cracker faz. Tais condutas podem ser encontradas no site www.fornet.com.br/pessoal/alison/ietica.htm.

ESCOLA DE HACKERS Existe ainda uma terceira opção, que se baseia em cursos e escolas para hackers. Para Kmax, trata-se de estratégia de marketing: “todo tipo de conhecimento você adquire no dia a dia. Não existe nenhum curso que vá resumir toda essa estrada que é conhecer as linguagens de programação, a lógica dos sistemas”. Para ele, os bons profissionais hackers são autodidatas que começaram como programadores. “Consigo citar pessoas que admiro na área, as que passaram dez anos estudando. Esse tempo é suficiente para você se formar, concluir um mestrado ou doutorado e, mesmo assim, elas não se consideravam hackers. Como é que alguns meses de curso podem sintetizar dez anos de experiência?”, acrescenta Kmax. Do seu ponto de vista, nem uma graduação em Ciências da Computação poderia ser definitiva. “É um abismo de distância entre alguém que é programador e um especialista em segurança ou um hacker. O jeito é se tornar um bom programador e adquirir muito conhecimento. Um bom hacker não pode estar preso a uma única linguagem nem a um único sistema operacional”, alerta.

Tipos de hackers White Hat: Usuário que só procura falhas em sistemas, seja por diversão ou contratação, para testes de segurança. Gray Hat: Possui visão parcial. Desde que não cometam um crime ‘real’ (como vandalismo, roubo ou fraude), tudo é válido. Black Hat: Mais conhecido como cracker. Usa seus conhecimentos para, principalmente, invadir, destruir e roubar. Newbie: Novato, inexperiente. Script Kiddie: É o inexperiente que precisa de programas para crackear sistemas, e o faz pelos ganhos materiais ou pela fama. Phreaker: Indivíduo especialista em telecomunicações.


HACK DAY Para mostrar a importância da prática na sociedade atual, a empresa norte-americana Yahoo! criou em 2005 o “Hack Day”. Trata-se de um evento com duração de 48 horas, dedicado ao aprofundamento do estudo para hackers e também para simples usuários que se interessem por programação. Nessas convenções, que acontecem ao redor de todo o mundo, inclusive no Brasil, além de palestras com especialistas, programadores e hackers renomados, os visitantes ganham acesso ilimitado à internet e tentam invadir sistemas em testes autorizados para encontrar falhas e brechas na segurança das empresas. Conhecida como Transparência Hack Day (http://thacker.com.br), é mais uma oportunidade de reunião entre hackers, desenvolvedores e ativistas. “Nós nos encontramos para juntos pensarmos e desenvolvermos projetos que usem dados públicos e tecnologias abertas da internet, promovendo a participação política e a transparência”, conta a jornalista Daniela Silva. Ela ainda afirma que este é um “Hack Day com proposta diferente a do Yahoo!”, já que o evento é focado em projetos políticos. Baseados no princípio da publicidade, que determina que as ações de um governo democrático devem ser públicas, os participantes trazem à tona informações de sites do governos que não estão disponíveis na internet. “Às vezes, os formatos não permitem que os dados sejam cruzados com outros conteúdos”, acrescenta Daniela. Participam desta iniciativa jornalistas e acadêmicos. VIDA HACKER No dia a dia, os hackers podem ou não trabalhar em sua área nativa. Para Douglas de Oliveira, esta prática nem é uma profissão, mas um título dado a uma pessoa com bastante conhecimento em programação. No caso de Vinícius Kmax, ele afirma nunca ter conseguido um trabalho fixo. “Nenhum emprego na área hoje, no Brasil, iria me satisfazer. Prefiro ser freelancer, porque tenho uma liberdade maior para continuar sendo curioso, a me adequar a um modelo de trabalho que está muito defasado.” Segundo ele, as empresas multinacionais precisam se adaptar para receber esses novos profissionais, sem esperar que eles se possam se adequar a elas. “É um modelo de relação empregador-empregado que surgiu muito antes da internet. Mas o mercado está aí. Quem for atrás consegue ganhar dinheiro com segurança da informação. Porém, é preciso ralar muito mais. Não é tão fácil como uma profissão estabelecida há centenas de anos”, explica Kmax. A dificuldade é tanta que nem mesmo uma empresa especializada em segurança de computadores, como a Norton, conhecida por seu antivírus homônimo, vê hackers como funcionários em potencial. Bruno Rossini, gerente de relações públicas da Symantec/Norton, os considera “criminosos digitais que agem de forma organizada e que buscam dinheiro do usuário, seja por meio da revenda de dados pessoais ou pela extor-

são direta”. Para ele, empregar um hacker seria uma recompensa pelo comportamento ilícito. “Apesar de suas óbvias qualificações técnicas para executar funções em qualquer empresa de segurança, contratá-los seria uma premiação pela falta de ética das pessoas que decidem agir na ilegalidade em busca de ganho financeiro”, assegura. Diante dessa consideração, Kmax se lamenta pela posição da Norton. “Se a empresa pesquisar um pouco, vai descobrir que o termo nasceu no campus da Universidade de Massachusetts. Eles eram as pessoas que desmontavam telefones e que faziam parte de uma contracultura, não só baseada na rede de computadores”, conta. Ele defende que “hackers são subversivos. Colocá-los como criminosos é deturpar completamente o termo”. Apesar de toda habilidade necessária, Daniela opina que “todo mundo já plugou adaptadores de tomadas diferentes para fazer um novo, em vez de simplesmente comprar o padrão que a indústria nos empurra”. Em sua comunidade, ela explica que ser curioso já é o suficiente para ser tido como hacker. “Somos aqueles que não aceitam o status das coisas. Criamos caminhos alternativos para consertar ou fazer algo de um jeito mais inteligente do que pelo processo comum. Isso tudo sem pedir permissão pra ninguém, porque nos consideramos seres autônomos e livres”, conclui Daniela, que já se proclama parte desse universo.

“Não existe nenhum curso que vá resumir toda essa estrada que é conhecer as linguagens de programação, a lógica dos sistemas”, Vinícius “Kmax” Camacho Pinto, hacker

Mercado: hackers são vistos como funcionários potenciais por empresas de segurança de computadores, como a Norton

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ECONOMIA TEXTO DEBORAH REZAGHI, FLÁVIO PASSOS, JÚLIA DAHER MARQUES, TALLES BRAGA e THIAGO NAVARRO (1º ano de Jornalismo), BRUNO BATAGLIN, LUCAS MENEGALE, MIGUEL AMADO e RODRIGO FRAGOSO (2º ano de Jornalismo) IMAGEM THIAGO NAVARRO (1o ano de Jornalismo)

Paraíso PRA QUEM? Os controversos paraísos fiscais: opção de investimento para alguns, rota do crime para outros

INVESTIR DINHEIRO NO exterior pagando menos impostos. A ideia pode parecer tentadora, mas, muitas vezes, faz parte de um esquema de fraudes, que envolve lavagem de dinheiro, alíquotas baixas, capital estrangeiro e regiões autônomas: os chamados paraísos fiscais. Em países como Suíça, Ilhas Cayman, Bahamas ou Panamá, contas e empresas são abertas dessa forma, tendo seu anonimato garantido. CONCEITO Paraísos fiscais são locais onde há pouca intervenção do Estado quanto à cobrança de impostos e, por isso, atraem atividades ilícitas. Para mandar dinheiro a um desses lugares, basta abrir contas ou empresas, genericamente denominadas como off-shore, o que pode ser feito até por procuração. Os investimentos que chegam ao paraíso fiscal são identificados por uma combinação de letras e números, o que garante o anonimato do cliente. Eles são muito utilizados por quem deseja lavar dinheiro, ou seja, tornar o montante arrecadado ilegalmente, geralmente do narcotráfico e da corrupção, em algo de origem aparentemente lícita. Basicamente, os passos de um processo de lavagem de dinheiro são: ocultar a origem, transformá-lo em outra forma de valor (isso pode ser feito mediante inúmeras transações financeira e/ou comerciais) e integrá-lo no mercado. Todo esse procedimento pode envolver bancos, empresas fantasmas, cassinos, mercado de arte e jóias, entre outros. Contudo, embora poucos saibam, há formas legais de se aplicar dinheiro nesses países. LEGALIDADE A transação é considerada ilegal

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apenas quando não é declarada ao Banco Central e à Receita Federal. A declaração para o primeiro tem apenas cunho estatístico, pois alega-se a quantia e o local para o qual ela será enviada, quando as quantias ultrapassarem U$100.000,00. Já a relação com a Receita Federal é mais complicada, pois é preciso justificar a origem do dinheiro. Diferente da evasão fiscal, em que o indivíduo sonega ou consegue um jeito de burlar os pagamentos de impostos, pode-se praticar a elisão fiscal, ou seja, realizar um planejamento tributário a fim de diminuir o peso dos impostos que se paga. Essas praças financeiras são vocacionadas, ou seja, para cada investimento a ser feito há um local adequado. “A maioria dos navios do mundo costuma ser licenciada na Libéria, uma vez que esta possui uma legislação trabalhista muito flexível para embarcações”, exemplifica Luis Eduardo Schoueri, professor de Direito Tributário da Universidade de São Paulo (USP). Existem empresas especializadas em selecionar o melhor lugar para realizar transações específicas de um determinado ramo comercial. Entretanto, “quem tem dinheiro lícito, por que vai procurar um paraíso fiscal?”, questiona Carlos Eduardo Carvalho, economista especializado em sistema financeiro e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). A garantia do anonimato e a baixa tributação são atrativos para refugiar o crime. Isso ocorre em países modernos e absolutamente seguros, por possuírem um Estado forte que dão maior garantia de que o dinheiro não será desviado. A Suíça é um dos paraísos fiscais mais

conhecidos. Por se declarar como neutra na Europa, sem fazer parte de nenhum Estado Nacional, e nem possuir exércitos, a chance do país ser invadido ou atacado é bem menor que a dos demais – isso o torna um bom “abrigo de dinheiro”. Outro ponto importante sobre a Suíça é que os serviços financeiros constituem um importante setor de sua economia. Estes são lucrativos devido ao imenso montante de dinheiro movimentado em contas anônimas. O Uruguai também já teve esta característica, vivendo do dinheiro evadido do Brasil e da Argentina, garantindo o seu estado do bem estar social sem ter que cobrar impostos. O Brasil não considera o Uruguai como um paraíso fiscal, provavelmente, por questões diplomáticas. LAVAGEM Todos os anos, 500 bilhões de dólares são lavados no mundo, segundo o UNODC (órgão das Nações Unidas contra Drogas e Crimes), dos quais 80% desconfia-se ter origem no narcotráfico. Muitas legislações tentam controlar casos de lavagem de dinheiro, mesmo em alguns paraísos fiscais, como o Panamá e as Ilhas Cayman. No Brasil, instituiu-se, em agosto de 1998, o Conselho de Atividades Financeiras (COAF), que definiu a lavagem de dinheiro como crime e criou medidas para restringir estas práticas, podendo o infrator cumprir pena de até 12 anos. Contudo, não é absolutamente eficaz: havia apenas 34 funcionários para vistoriar o Brasil inteiro em 2007. “Falta vontade de acabar com isso. Mas como que um partido político vai movimentar os fundos de campanha?”, comenta o professor Carvalho. Conseguir uma ordem judicial contra essas


THIAGO NAVARRO

práticas é complicado, pois o sigilo financeiro é considerado um direito absoluto, embora já tenha sido quebrado em casos como os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Devido à colisão dos aviões suicidas com o complexo financeiro World Trade Center e a subsequente desconfiança sobre a Al Qaeda, as contas desta organização fundamentalista islâmica foram rastreadas. Elas foram descobertas em paraísos fiscais, que se recusaram a entregar os nomes de seus donos. Sob ameaça dos Estados Unidos de bloquear as operações dos paraísos com Nova Iorque, o sigilo foi quebrado, já que a maior parte das transferências passa em algum momento pela Big Apple. BRASIL Mais de 110 bilhões de dólares de brasileiros estão investidos no exterior mediante declaração espontânea, segundo o site do Banco Central. Deste montante, 70% estão aplicados em paraísos fiscais, sendo 30% nas Ilhas Cayman. A Receita Federal publica periodicamente uma lista dos países que o Brasil considera paraísos fiscais: aqueles com imposto inferior a 20%. Na relação publicada em 2010, constam 65 países, principalmente ilhas do Atlântico e Pacífico. Em nosso país, embora existam empresas com regime fiscal que busca reduzir alguns impostos, elas apenas encontram brechas da lei que as permitam reduzir a taxação. Isso, porém, não é considerado uma fraude. O Brasil, hoje, não pode ser considerado, em nenhum aspecto, um paraíso fiscal. Mas, infelizmente, como conclui o professor Carlos Eduardo Carvalho, “ainda somos o paraíso da injustiça”.

Apesar do Brasil não ser um paraíso fiscal, o professor Carlos Eduardo Carvalho afirma que “ainda somos o paraíso da injustiça”

Quatro grandes escândalos econômicos da história do Brasil Caso Coroa Brastel (1983) – O empresário Assis Paim Cunha, dono do grupo Coroa-Brastel, foi acusado de ter emitido enorme quantidade de letras de câmbio (títulos de créditos) frias. O mercado financeiro sofreu uma perda de aproximadamente US$ 50 milhões. Banco Nacional (1995) – Considerado um dos maiores escândalos financeiros do Brasil, o caso consistiu em empréstimos fictícios para 652 clientes fantasmas, o que gerou um rombo de US$ 15 bilhões para os cofres públicos. Precatórios (1997) – Este gerou uma CPI. As fraudes com títulos públicos superaram os 5 bilhões de reais. Os ex-prefeitos de São Paulo, Paulo Maluf e Celso Pitta, estavam envolvidos. Banco Santos (2005) – Devido a desvios de R$ 2,2 bilhões, o Banco Central interveio e tomou controle da instituição de Edemar Cid Ferreira. Em 2005, foi decretada sua falência e até hoje os credores tentam recuperar seu dinheiro na justiça. ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2011

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CARMEN SANDIEGO

você já encontrou

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Carmen Sandiego A espiã mais famosa dos games volta à ativa nas redes sociais, ganha novos fãs e reaviva a paixão dos antigos REPORTAGEM MARIANA JANJACOMO, MURILO PAVINI, RAQUEL BERTANI (1O ano de Jornalismo), BÁRBARA VANDERLEI, CAMILA LUZ, FERNANDO ZORZETTO (2º ano de Jornalismo) e THAIS CAMPOY (3o ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO JAQUELINE GUTIERRES (3º ano de Jornalismo) IMAGEM REPRODUÇÃO

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MISTERIOSA, DESAFIANTE E intimidadora. Carmen Isabela Sandiego é a espiã mais famosa dos games, há 28 anos em atividade. Com a capa vermelha, botas de couro e chapéu caindo sobre os olhos, encontrou seus maiores cúmplices em 1983: seus próprios criadores — Gene Portwood, ex-funcionário da Disney, e Lauren Elliot, designer de jogos. O jogo Where in the world is Carmen Sandiego? produzido pela Broderbund Software, estreou em 1985 como plataforma para o Apple II. Assim começava a carreira criminosa mais bem sucedida da história. A saga da vilã ganhou um novo capítulo em 2011. No dia 9 de fevereiro, a empresa de desenvolvimento de jogos Blue Fang lançou o game de mesmo nome da versão anterior, retomando as investigações sobre os maiores roubos do mundo. Desta vez, porém, a ladra comete os delitos na rede social Facebook. “O novo jogo é uma memória bacana da juventude de pessoas que hoje têm 30 anos. Poder revisitá-la, certamente, traz um gostinho de nostalgia”, comenta Leonardo Dias, diretor executivo da empresa de inovação tecnológica Taxi Labs.

NO JOGO Conhecida por não respeitar as leis, Carmen nem sempre esteve ligada ao mundo do crime. Quando criança, ela perdeu os pais e foi morar em um orfanato. Sua história mudou quando foi adotada pelo chefe da agência de detetives ACME (sociedade fictícia criada pela série de curtas metragens de animação Looney Tunes), onde se tornou a melhor agente da companhia, resolvendo casos com rapidez e eficácia. Contudo, com o passar do tempo, desvendar crimes se tornou uma atividade simples e enfadonha para a detetive, que, então, resolveu enfrentar um desafio mais complicado: superar a ACME. Desistiu de seu trabalho e fundou a agência V.I.L.E. (Villains’ International League of Evil), que reúne as maiores mentes criminosas do planeta. Carmen e seus comparsas roubam os artefatos mais valiosos da humanidade. “É surpreendente. Em certa ocasião, um agente da V.I.L.E. conseguiu roubar o teto da Capela Sistina”, ressalta Ivan Baroni, gerenciador da comunidade do Orkut “Eu encontrei a Carmen Sandiego”. O game começa quando o jogador entra para a folha de pagamentos da ACME. Como o mais novo detetive, você deve percorrer o mundo atrás de pistas para capturar os integrantes da V.I.L.E. A cada caso resolvido, ganham-se pontos de experiência e acesso a fases com grau de dificuldade cada vez mais elevados. O objetivo final é sempre o mesmo: encontrar e prender Carmen. Os jogos da franquia procuram ensinar história e geografia, por intermédio de pistas que são informações sobre cidades e países. A versão para Facebook de Carmen Sandiego, contudo, pode trazer algumas barreiras culturais aos jogadores. Detalhes geográficos além das cores de bandeiras e elementos de paisagens dos países, domínio de inglês e disponibilidade para solucionar um mistério, em média em 24 horas, são al-

gumas das dificuldades que os usuários do site de Mark Zuckerberg enfrentam. Apesar disso, o jogo Where in the World is Carmen Sandiego? conta com mais de 352 mil jogadores — o equivalente à população da cidade de Bauru, no interior paulista.

NA TV Roubar nos videogames não foi suficiente para Carmen Sandiego. Em 1995, estreou na emissora norte-americana Fox o desenho animado Where on Earth is Carmen Sandiego?, que tinha como personagens principais os jovens detetives Ivy e Zack. O desenho seguia a mesma lógica do jogo: Carmen roubava algum artefato precioso no começo do episódio e na agência ACME, o chefe (uma cabeça flutuante em um fundo roxo) explicava a missão para os dois investigadores. Misturando cenas reais com imagens animadas, os irmãos detetives seguiam as pistas e enigmas que indicavam o paísalvo de Carmen. A cada novo cenário, o chefe aparecia para apresentar o lugar, dando uma rápida lição de história e geografia. Where on Earth is Carmen Sandiego? parou de ser exibido definitivamente nos Estados Unidos em 1999. No Brasil, o primeiro programa a apresentar a vilã às crianças foi o extinto Angel Mix, da Rede Globo, entre 1996 e 1998. No ano seguinte, o SBT comprou os direitos de exibição do desenho, transmitindo-o até o ano 2000. A última aparição da ladra na televisão foi em 2005, na emissora de TV por assinatura Nickelodeon. Na internet, Carmen tem suas aventuras espalhadas por canais de exibição de vídeos, como o YouTube. NA INTERNET As redes sociais permitiram não só o retorno do jogo, mas também o contato entre os jogadores. “O game foi um dos meus favoritos na infância. Um dia, tentei encontrar alguma comunidade brasileira no Orkut sobre Carmen Sandiego, mas não consegui — havia apenas algumas em inglês. Então, resolvi criar uma para agregar fãs e discutir sobre o jogo”, conta Ivan Baroni. A interatividade entre os jogadores permite a troca de dados e a colaboração na resolução dos casos. “O mercado de jogos está atento ao segmento de social games, porque ele apresenta um modelo de remuneração diferente do que se tinha até então. São games que chamamos free to play, em que o resultado vem da venda de bens virtuais e publicidade”, explica Dias. No segmento de jogos para redes sociais, os grandes sucessos são jogos inéditos como Farm Ville e City Ville. “Os pioneiros têm colhido frutos rentáveis, como a Zinga que é considerada a empresa com maior crescimento e lucratividade na história”, comenta Dias. No entanto, empresas consolidadas na área de games ainda não descobriram o caminho para portar os seus títulos para redes sociais. “Certamente, elas continuarão tentando e com o tempo veremos se conseguirão. Afinal, partir de uma marca, um título ou personagem conhecido com certeza ajuda.

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GHOST WRITERS

fama e anonimato Eles fazem a obra, mas nunca serão célebres. Vivem em um mundo onde as únicas regras são o silêncio e o respeito ao cliente

REPORTAGEM SIMONE ALBUQUERQUE (1o ano de Jornalismo), BIANCA CASTRO, GABRIEL MEDEIROS (2o ano de Jornalismo), ANDRESSA BASILIO e IVAN OLIVEIRA (3o ano de Jornalismo) IMAGEM PETRUS LEE (2o ano de Jornalismo)

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HÁ UM TIPO de escritor que se empenha em pesquisas, apura dados, esforça-se para ter ideias e passa horas (re)lendo passagens anteriormente escritas. Finalizado o texto, é hora de publicá-lo. Mas esse autor não tem assinatura: dá lugar, na capa do livro, ao nome de outra pessoa. São os ghost writers, operários das letras que anonimamente produzem textos a serviço de outros. Sob o manto da invisibilidade, esses profissionais das letras vivem à sombra de seus clientes, como fantasmas, numa relação em que não é conveniente aparecer em noites de autógrafos e nem mesmo usufruir de prêmios literários. Nesse universo, é curto o espaço para a vaidade. “É preciso ter maturidade para entender que o texto

pertence a quem contratou o ghost writer. Pessoas possessivas não devem aceitar esse tipo de trabalho”, acredita Eduardo Belo, jornalista e editor de livros que, eventualmente, atua neste mercado. O acordo a que profissionais como Eduardo se dispõem impede qualquer tipo de ligação afetiva com sua obra. O senso de propriedade e o ciúme não são bem-vindos se a intenção é ter uma relação profissional. No contrato moral com o cliente, a cláusula primordial é o segredo. “Afirmariam até a morte que foram eles que escreveram. Não contam nem para as suas mulheres”, diz Ryoke Inouê, ghost writer, referindo-se aos diversos políticos para os quais sigilosamente escreveu autobiografias.


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“Comecei a trabalhar escondida e tenho consciência de que escolhi viver por de trás da cortina”, Adriana Farias, ghost writer

Além de deputados e senadores, celebridades e empresários formam o conjunto de clientes que, sem tempo ou talento o bastante para escrever, solicitam a ajuda de um “fantasma”. É como se houvessem descoberto que uma autobiografia é também ótima estratégia de marketing pessoal. “A melhor obra publicitária é um livro que fala da vida deles. E, de preferência, um bem escrito”, afirma Ryoke, que já chegou a receber R$200.000 pela biografia de um empresário. Também há casos em que não é o próprio autor que toma a iniciativa do projeto editorial. “Funciona assim: a editora convida o autor e sugere o ghost. Pode acontecer de esse autor não gostar da escolha, já que o convívio com o cliente é uma relação íntima”, diz Nanete Neves, ghost writer que ajudou a fazer livros de artistas e empresários, inclusive o de um falecido ator de teatro.

CONVIVENDO COM O FANTASMA Uma vez contratado, é hora de começar a pesquisar e fazer entrevistas. Para Nanete Neves, o maior desafio é a adaptação ao estilo do contratante. “Não vou fazer um livro meiguinho se estou falando sobre um executivo de uma corporação, que é um líder, impositivo, astuto, que manda”, diz a ghost, que teve de lidar com um famoso empresário dono de tais características. Agir como um escritor fantasma exige conhecer a fundo o cliente, suas manias, posições políticas, posturas e até intimidades. A proximidade é terreno fértil para que a relação fique pessoal. Há casos em que o ghost writer ultrapassa a fronteira do escritor e se envolve com a vida do cliente. O personagem de Ewan McGregor em O escritor fantasma, filme de Roman Polanski lançado em 2010, se vê em apuros quando descobre mais do que deveria ao escrever as memórias de um poderoso ex-primeiro ministro britânico. A situação também pode aproximar cliente e escritor além do ideal. “Uma vez me emocionei com a história de um político. Viramos amigos depois”, revela Ryoke, que, no entanto, deixa claro a necessidade de cuidados na hora de escrever a obra. “Para saber administrar

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os conflitos, temos que manter distâncias.” Quando perguntado sobre quais seriam estes conflitos, Ryoke destacou a incômoda missão que é “tirar leite de pedra”. “Muitas vezes, o cara insiste que a história dele é interessante, mas não é. Então temos que criar algo verossímil e que se relacione organicamente com os fatos que ele viveu.” Impasses como esse acontecem quando o autor se coloca na berlinda entre respeitar o cliente e, ao mesmo tempo, os leitores. “Estou a serviço do contratante, mas não posso escrever uma mentira”, afirma Ryoke. Mas, nem todo ghost writer age assim. Pelo contrário, há um tipo de fantasma requisitado justamente para enganar o leitor. É o caso do engenhoso comércio de teses e dissertações acadêmicas.

DE QUEM É A TESE? Os inúmeros ghost writers de trabalhos acadêmicos estão espalhados por todo o Brasil e podem ser encontrados facilmente em mecanismos de busca na internet. Rodrigo Pereira é gerente e supervisor do site Click Monografias (www.clickmonografias.com.br) e atesta a particularidade da categoria: são fantasmas de escrita e de corpo, já que não é necessário encontro pessoal entre contratante e contratado. Basta uma única troca de emails. “O aluno só entra em contato, manda uma ideia de tema e diz mais ou menos como ele quer que o trabalho fique. A partir daí, a gente escolhe alguém da equipe que tem afinidade com o tema e pronto”. O Click Monografias tem 25 funcionários, graduados nos mais diferentes cursos. Rodrigo, por exemplo, é formado em Ciência da Computação. Pelas implicações éticas, tudo o que esse tipo de escritor quer é ser fantasma mesmo. “Não queria que as pessoas soubessem o que eu fazia. Comecei a trabalhar escondida e tenho consciência de que escolhi viver por de trás da cortina”, explica Adriana Farias, que escreve sobre qualquer área. “Quando não tenho afinidade com o tema, pesquiso mais ainda. Mas há trabalhos que eu nem preciso pesquisar. Sento lá e escrevo de cabeça, só com o conhecimento acumulado de trabalhos anteriores.

Apesar da necessidade de sigilo, tanto Rodrigo quanto Adriana acreditam que o trabalho que fazem é honesto e necessário, uma vez que julgam que as instituições de ensino não preparam o aluno para a pesquisa. “A culpa não é do aluno e sim do orientador. Eles discriminam o nosso trabalho, mas não têm a capacidade de estimular o aluno a ter gosto pela pesquisa”, acredita Adriana, que trabalha quase 24 horas por dia em cerca de dez trabalhos mensais e recebe, em média, R$ 750,00 por um trabalho de conclusão de curso (TCC) de 60 páginas — dinheiro que, para ela, é o bastante para abdicar de seus direitos sobre trabalho intelectual.

WIDE WEB WRITERS A necessidade de informação instantânea, rápida e em grande quantidade fez com que ghosts fossem pro-


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curados para promover as imagens de seus clientes em todas as mídias sociais, como blogs, twitters e perfis no Facebook. Além disso, as plataformas digitais possibilitam diversos tipos de interação. “Na internet, uma pessoa pode se multiplicar e até se metamorfosear. O fato de ser escritor é um facilitador”, acredita Cobbi. O rapper americano Kanye West, por exemplo, contratou duas pessoas para atualizar o seu blog (www.kanyewest.com), considerando que a atitude não implica na qualidade da informação. A cantora pop Britney Spears foi além e formou um time de manutenção das redes sociais. Já Shaquille O’Neil, jogador americano de basquete, causou polêmica ao se manifestar sobre o assunto no Twitter: “se você precisa de um ghost writer para escrever 140 caracteres, eu sinto pena de você”.

No Brasil, o twitter político do ex-candidato à presidência, José Serra, provocou questionamentos sobre a real participação dele em sua página na rede social. Em janeiro de 2011, dois comentários sobre cinema foram lançados no microblog. Porém, os que acompanhavam minimamente a agenda do político sabiam que, na verdade, Serra estava na missa de sétimo dia do ex-governador Orestes Quércia. Apesar da incoerência entre os tweets e a realidade, a equipe de Serra afirmou que ele é o único responsável pela atualização das redes sociais. “É o próprio Serra quem utiliza o Twitter. Não há ninguém com acesso à conta dele”, afirmou Regina Lacerda, assessora de Comunicação Interativa do PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira). Essas contradições são amostras do

quanto a profissão de ghost writer, apesar de legítima, ainda enfrenta questionamentos éticos, morais e políticos. No entanto, o caráter sigiloso desta profissão parece incomodar mais os que estão de fora do que os próprios escritores fantasmas. Ryoke Inouê é taxativo: “é simples: se o escritor-fantasma acha que tem algo genial para dizer, deve publicar seu próprio livro”. E no caso de Inouê, ele tinha. Publicou mais de 1.100 romances, fato que o fez entrar para o Guinness Book. Apesar de achar que o “prazer é idêntico ao de escrever um livro seu”, o escritor revela que escolheu ser fantasma pela gratificação financeira. “Obtive muito mais lucro produzindo obras para os outros do que com as minhas próprias”, afirma Ryoke, explicando o porquê de estar na profissão.

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SUPER-HERÓIS

Por trás das capas e máscaras, existem mais do que super-heróis salvando o mundo REPORTAGEM FLÁVIA KNISPER, GUILHERME ATHAIDE, LILIANA BARRETTO, ROBERTO FIDELI e TATIANE ROSSET (2º ano de Jornalismo) IMAGENS DIVULGAÇÃO

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JOVENS PICADOS POR aranhas radioativas, milionários em busca de vingança, extraterrestres que fizeram da Terra seu lar. O mundo dos quadrinhos apresenta uma variedade de personagens mascarados que escolheram ajudar ao mundo em troca de sua identidade. Essas histórias já são velhas conhecidas e, por mais diferentes que sejam entre si, apresentam um ponto comum: identidades secretas. Por serem tão populares no nosso dia a dia, os quadrinhos e seus heróis nos passam aquela sensação de conforto, de costume, de que sempre estiveram ali na banca mais próxima para serem comprados. No entanto, os primeiros super-heróis, os quais o mistério de suas identidades dava fôlego ao enredo, estrearam com as

novelas radiofônicas da década de 1930. O Lone Ranger, conhecido no Brasil por Cavaleiro Solitário, foi criado em 1933 por George Washington Trendle. A novela conta a história de um xerife do Texas que jura vingar a morte de seus companheiros em uma cilada, onde somente ele sobreviveu. Para cumprir a promessa, o personagem usa uma máscara para não ser reconhecido — o que trouxe confusão a alguns leitores que o chamavam de Zorro, erroneamente. O Sombra é outro personagem que fez muito sucesso nas rádios do começo do século XX. Criado por Walter Brown Gibson (cujo nome artístico era Maxwell Grant), o impiedoso personagem era um vingador mascarado, que escondia a identidade do


BATMAN - O personagem de Christian Bale, vive uma crise de sua essencialidade em O Cavaleiro das Trevas

GENTE COMO A GENTE - Kick Ass, o super-herói da vida real com roupas compradas no e-Bay

milionário Lamont Cranston. O herói usava um lenço vermelho sobre o nariz e a boca. Entre os atores que deram voz ao Sombra, destaca-se o cineasta americano Orson Welles — o diretor e ator dos filmes Cidadão Kane (1941) e Othelo (1952). O sucesso das novelas radiofônicas foi tanto que as histórias do herói ganharam espaços em revistas pulp, que são produzidas em papel de baixa qualidade. Estas revistas eram um entretenimento rápido e sem grandes pretensões artísticas. Os super-heróis das histórias em quadrinhos são considerados derivados dessa literatura pulp — editoras como a Marvel Comics já publicam revistas deste segmento.

A PRIMEIRA VEZ No entanto, foi somente quando um alienígena teve seu planeta natal destruído e fez da Terra seu novo lar que surgiu o primeiro personagem com identidade secreta nas histórias em quadrinhos. O Super-Homem foi publicado pela primeira vez na revista norte-americana Action Comics (Dc Comics, 1938). Para Douglas Quintas Reis, gerente do departamento editorial da editora Devir, a principal função da identidade secreta é a proteção. “Para que as pessoas não saibam

que ele é o herói e ficar protegido de ataques de seus inimigos. É como um respiro”, compara. Uma prova desta teoria é a série Crise de Identidade (DC Comics, 2004), que narra a história de parentes e pessoas próximas aos super-heróis que eram caçadas e mortas. Waldomiro Vergueiro, responsável pelo Observatório de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP, entende que a ideia de proteção não condiz com a realidade. “Quem vai ser doido de atacar a mulher do Super-Homem sabendo o que ele pode fazer de volta?”, indaga. De acordo com Vergueiro, o herói possui uma identidade secreta para se aproximar do leitor: “ele é um homem comum na maior parte do tempo, mas também tem o lado de super-herói. Assim, eu também posso ser um herói, posso ter minha identidade secreta”. Esse é um dos motivos pelos quais a maioria dos heróis adota profissões liberais, como a de jornalista ou fotógrafo.

NA VIDA REAL Outra forma mais específica de aproximação com o público, é quando o personagem se relaciona com algum tipo de preconceito. Os X-Men (Marvel Comics, 1963), por exemplo, são associados a homossexuais e negros, pois “juraram proteger um mundo que os teme e odeia”. Guilherme Sfredo Miorando, conhecido como Guilherme Smee, é redator de histórias em quadrinhos e diz que “revelar a identidade secreta pode ser associado ao fato de mostrar quem realmente é, por isso também está associado ao ato dos gays de ‘sair do armário’”. Para celebrar esse tipo de fã, acontece em Nova York a festa Skin Tight (um dos maiores encontros de fãs de quadrinhos nos Estados Unidos), onde homossexuais se vestem

como seus super-heróis favoritos. Kick-Ass (publicada no Brasil pela Panini, em 2010) foi escrita por Mark Millar em 2008 e ilustrada por John Romita Jr. A obra conta a história de Dave, garoto comum dos Estados Unidos apaixonado por HQs e super-heróis, que após sofrer assaltos decide se tornar um justiceiro mascarado. Sem poderes especiais como os do Super-Homem e sem a fortuna de Batman, Dave compra sua roupa no site eBay e passa a proteger sua cidade, levando muitos socos, pontapés e correndo perigo de vida no meio do caminho. Essa atitude é conhecida como “complexo de SuperHomem”, uma espécie de encargo do indivíduo em assumir responsabilidades sociais, ajudando os necessitados. Fora do mundo dos quadrinhos, este comportamento pode ser encontrado com mais frequência do que se pode imaginar. Um movimento interessante é o surgimento de vários “super-heróis da vida real”, que buscam ajudar pessoas e comunidades tanto com tentativas de combate ao crime quanto em tarefas comuns. “As pessoas estão cheias de apatia, mas há homens e mulheres que querem fazer diferença. Somos um movimento, mais do que um bando de caras usando roupas de elástico”, disse Dave Pople, o “Super-Herói”, um destes personagens curiosos, em reportagem à revista Superinteressante, da Editora Abril, em junho de 2010. Assim como ele, cada pessoa tem seu próprio perfil, semelhante aos personagens de quadrinhos. Eles se utilizam de recursos tecnológicos para promover suas habilidades e receber pedidos de ajuda. O super-portal que reúne todos estes heróis da vida real é o www.worldsuperheroregistry.com.

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SOCIEDADES SECRETAS TEXTO CAMILA BAOS, CÍNTHIA ZAGATTO, SUELLEN FONTOURA e RODOLFO MONDONI (2o ano de Jornalismo) COLABORAÇÃO EDUARDO SILVA, LUÍZA FAZIO (1O ano de Jornalismo) e BRUNA MORAES (2o ano de Jornalismo) IMAGENS RODOLFO MONDONI (2º ano de Jornalismo)

debaixo dos

MANTOS

Com intuito de melhorar o convívio em sociedade ou aterrorizar grupos étnicos, as sociedades secretas têm princípios e regras bem particulares

SOCIEDADES DE VALORES Embora haja divergência de opiniões sobre o início das sociedades secretas, a hipótese mais aceita é de que a Maçonaria foi a primeira ordem de cunho político a ser organizada. “Surgiu de grupos de pedreiros livres, na Idade Média, e este é um dos únicos dados confiáveis sobre sua origem. O resto é lenda misturada com a verdade”, afirma o mestre da Loja de Perfeição Aldebaram II. Os maçons seguem um sistema de moralidade em que cada integrante convidado precisa passar por uma série de investigações para ser iniciado no grupo. “Primeiramente, você deve ser um livre pensador e não ter pendência criminal ou civil”, explica um antigo Presidente de Loja, que prefere não se identificar. O processo é minucioso: se um candidato tem família, os responsáveis pela iniciação vão à residência dele para conhecê-la. O sistema de iniciação e níveis não é exclusividade da Ordem Maçônica, cuja ideologia inspirou novas organizações. Na Alemanha, os Iluminados da Baviera tiveram como mentor Adam Weishaupt, iniciado na Maçonaria e interessado em reformulá-la. “Para ser admitido, também bastava um convite. Quanto a passar de uma seção de graus da hierarquia para outra, era imposto um intervalo de tempo de pelo menos um ano de permanência em cada uma, em que o iniciado era testado sobre seu ‘merecimento’”, explica Carlos Raposo, historiador e pesquisador de ordens secretas, além de maçom. Os critérios que definiam o avanço dentro do grupo eram a

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RODOFOLO MONDONI

NOS CORREDORES DOS mosteiros da Idade Média, nas ruas da Alemanha dos iluminados e nas fazendas das colônias sulistas dos Estados Unidos. As sociedades secretas surgiram de ideias comuns a alguns indivíduos. Para corrigir o inapropriado, restabelecer a antiga ordem ou mudar totalmente o contexto em que vivem, esses grupos se fixam no subterrâneo, unem forças ao redor de uma causa e instigam a curiosidade de simpatizantes.


RODOFOLO MONDONI

À esquerda e acima – monumentos maçônicos localizados na cidade de Limeira, no interior paulista

fidelidade aos princípios da Ordem, a prontidão na realização de tarefas e a convicção quanto à necessidade de reformar a sociedade. O que hoje difere a Maçonaria dos Illuminati — como também são conhecidos os Iluminados da Baviera — é que estes foram extintos ainda no final do século XVIII. No entanto, teóricos da conspiração insistem em seu retorno e suas possíveis ações em busca de uma coletividade justa. Alguns, mais radicais, atribuem a eles a culpa dos atentados de setembro de 2001 nos Estados Unidos. “Grupos esotéricos atuais podem ser confundidos com os Illuminati originais, mas nenhum deles é uma continuação ou seria capaz de realizar algo parecido com o que ocorreu em 2001”, desmente Raposo. Os Iluminados da Baviera se dissolveram, mas a Maçonaria continua a influenciar novas Ordens. Uma delas é a DeMolay, fundada em 1919 nos Estados Unidos, composta por jovens de até 21 anos. “Os ‘tios maçons’ ajudam no desenvolvimento da organização, porque são mais velhos e têm mais experiência de vida”, comenta Victor Ganzella, estudante de Direito da Universidade Anhembi Morumbi. A Ordem possui uma vertente brasileira que completa 30 anos em 2011 e que faz sucesso nas redes sociais: alcançou os Trending Topics (espécie de ranking dos assuntos mais falados) no Twitter com a tag #demolayday. “O dia é comemorado com uma reunião para pais e convidados, onde um dos irmãos discursa em homenagem a Jacques DeMolay, último grão-mestre Templário, inspirador da sociedade”, explica

Cristofersom de Moura David, Sênior DeMolay que, por ter completos 23 anos, já é inativo. IDEALIZADORES DO MEDO Não é apenas com boas intenções que se reúnem organizações secretas: algumas têm objetivos um tanto cruéis. O exemplo é a Ku Klux Klan, iniciada em 1865, nos Estados Unidos, que começou como uma brincadeira para aterrorizar a população: jovens vestiam lençóis brancos e cavalgavam à noite. Em um contexto histórico de manifestações racistas no país, após a forçada abolição da escravidão nas colônias do sul, derrotadas na Guerra Civil Americana, a Ordem elegeu o negro como objeto de ataque. “No século XX, movimentos racistas quanto à imigração em massa, do sul e leste da Europa, agravavam a situação e fortaleciam esse tipo de Ordem”, avalia Sean Purdy, especialista em História da América e professor da Universidade de São Paulo (USP). O que começou como um jogo de assombrações tornou-se uma entidade

terrorista, composta por advogados, fazendeiros e ex-soldados do sul dos Estados Unidos. “Eram pessoas que mantinham suas atividades normais, mas quando usavam a máscara da Klan tornavam-se um poder paralelo, capaz de julgar e punir seguindo leis e códigos de conduta próprios”, explica Luiz Fernandes, especialista em História da América da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Na década de 40, a KKK foi oficialmente dissolvida pelo governo, após os membros se desorganizarem dentro da própria Ordem. Apesar disso, não é possível afirmar que a Klan desapareceu: seu nome é sempre lembrado em períodos de tensão racial. “As explicações racistas são simples, identificam claramente o inimigo a ser combatido e culpado pelas mazelas”, opina Fernandes. Atualmente, grupos nos Estados Unidos ainda se declaram ligados à ideologia Klan, mas suas ações se limitam a eventuais encontros, entrega de panfletos racistas e marchas de protesto.

“Eram pessoas que mantinham suas atividades normais, mas quando usavam a máscara da Klan tornavam-se um poder paralelo, capaz de julgar e punir seguindo leis e códigos de conduta próprios”, Luiz Fernandes, especialista em História da América da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) ESQUINAS - 1º SEMESTRE 2011

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NOVELA

novela suspenses de uma

Noveleiros falam sobre os trâmites e estratégias para guardar o mistério de um enredo acompanhado por milhares REPORTAGEM AFONSO RIBEIRO, BARBARA GOMES, BRUNA FERNANDES, ÉRICO LOTUFO, LAURA STOPPA, MARINA ESPINDOLA, VICTOR BONINI (1º ano de Jornalismo), ÍTALO FASSIN e RENATA BARRANCO (2º ano de Jornalismo) IMAGEM ÍTALO FASSIN (2o ano de Jornalismo)

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Nilson Xavier afirma que a opinião pública pode mudar a estrutura de uma novela

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UMA COISA É certa: novela sem segredo não existe. Histórias de amor, intrigas familiares e vilões ardilosos conduzem a trama das telenovelas brasileiras desde sua origem, na década de 1950. Os mistérios ganharam destaque nestas produções e auxiliaram o amadurecimento dos folhetins. Essa estratégia é usada para atrair o espectador em frente à telinha, de segunda a sábado — para que a trama seja montada e o segredo que amarra o enredo revelado. “Quem matou Odete Roitman?”. Jargão popularizado nos anos 1980 com a novela Vale Tudo, trouxe à tona o romance policial. Este gênero nas telenovelas brasileiras tornou-se recorrente, pois costuma retratar a morte como personagem — usando-a como mote para sustentar o enredo até o último episódio. Na novela de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, a morte de Odete Roitman se transformou em um fenômeno social, alcançando a média de 81,5 pontos no IBOPE após o assassinato da personagem, interpretada por Beatriz Segall. “Esse tipo de segredo, como qualquer outro, serve para provocar o telespectador. Você o joga para algo parecido com a sensação de uma leitura”, ressalta José Armando Vannucci, crítico de televisão. “Uma telenovela é uma obra em processo”, afirma Lauro César Muniz, roteirista da Rede Record. Muniz é o autor da novela Poder Paralelo, que foi transmitida entre 2009 e 2010, trama policial inspirada em contos do dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt e filmes do diretor inglês Alfred Hitchcock. “É um processo em que o autor é alimentado pelo feedback dos telespectadores, por meio da imprensa, dos e-mails que recebemos e até dos números de audiência.”

FINAL GUARDADO Definido o conflito central da obra, possíveis desfechos e ganchos são revelados somente a pessoas de confiança da produção. “Em Poder Paralelo, apenas o Hiran Silveira, diretor de teledramaturgia da TV Record, e o diretor geral Ignácio Coqueiro, conheciam os desfechos”, revela Lauro César Muniz. Foram gravadas duas versões sobre a decisão amorosa do personagem central Tony, interpretado por Gabriel Braga Nunes. “Foi preciso certa habilidade na escrita para armar uma situação até a última cena para que qualquer uma das versões pudesse ser real”, comenta Muniz Em 1997, Aguinaldo Silva assinou outra novela de grande repercussão. Em A Indomada, o principal mistério era sobre a identidade do personagem Cadeirudo, que só foi revelada no penúltimo capítulo. A figura que atacava mulheres em noite de lua cheia era vivida por Lourdes Maria, a beata fofoqueira de Greenville, cidade cenográfica onde se ambientava a trama. A devota interpretada pela atriz Sônia de Paula só soube que ela era o Cadeirudo junto com o público. “Seis atores gravaram o mesmo final e a produção editou o capítulo revelador duas horas antes de a novela ir ao ar”, relembra Sônia. Aguinaldo Silva teve o cuidado de ambientar Greenville no Nordeste brasileiro para dar maior embasamento da trama às lendas da região, dentre elas a figura do Cadeirudo. As aparições do personagem de terno e chapéu preto eram envoltas por uma nuvem de poeira e sonorizadas pelo característico bater de seus sapatos. “Mas ele não abusava das vítimas, apenas assustava”, esclarece Sônia. A atriz concorda que o “suspense é essencial para prender a atenção dos espectadores”. A novela global A Favorita (2008) inovou


ÍTALO FASSIN

Para José ArmandoVannucci, um dos segredos das telenovelas diz respeito à sensação de leitura

ao usar elementos característicos do suspense. João Emanuel Carneiro, o autor da trama, se inspirou nos romances policiais da escritora britânica Agatha Christie para escrever a novela. A renovação e um dos motivos de sucesso da novela se devem à revelação de que Flora (personagem de Patrícia Pillar) era a assassina de Marcelo (interpretado por Deco Mansilha), antes dos capítulos finais.

“Um mistério deve ser consistente e importante o bastante para sustentar uma história, caso contrário, o público não tem interesse em tentar descobrir os próximos passos”, Cintia Lopes, jornalista

ESTRATÉGIA Informações falsas que despistam espectadores e revistas de fofocas para aumentar a expectativa e gerar audiência são estratégias comuns quando uma novela alcança rapidamente o grande público. Os boatos divulgados, portanto, podem até interferir na trama, como foi o caso de A Favorita. A fidelidade dos telespectadores foi questionada pela Rede Globo, que estaria preocupada com a reviravolta no roteiro. Na época em que a dúvida foi lançada, para desmascarar o assassino, a emissora veiculou anúncios para promover a virada na história. Nilson Xavier, autor do livro Almanaque da Telenovela Brasileira (Editora Panda Books, 2007, 372 páginas) e criador do site www.teledramaturgia.com.br, destaca que “baseado nas pesquisas de opinião, o autor pode mudar a estrutura de sua novela para atender às expectativas do público”. O livro A seguir, cenas do próximo capítulo (Editora Panda Books), lançado em 2009 pela dupla de jornalistas Cintia Lopes e André Bernardo, reúne entrevistas com dez autores de telenovela brasileira. “Segredo em novela é tão importante quanto rima em poema”, afirma Bernardo. Cintia lembra da importância que um mistério adquire no decorrer da trama, devendo ser “consistente e importante o bastante para sustentar uma

história, caso contrário, o público não tem interesse em tentar descobrir os próximos passos”. Para ela, a verdadeira função do espectador é “tentar assumir o papel de detetive quando o mistério é lançado”, interagindo com o ficcionista. Na opinião dos escritores do livro, quando o assunto é mistério, o melhor novelista é Silvio de Abreu. Para quebrar o padrão de narrativa normalmente utilizado por outros autores, ele começa a escrever sua novela de trás para frente. “Primeiro, ele define quem mata e por que mata. E só depois pensa em quem morre”, constata André Bernardo. A fim de evitar o assédio da mídia, Silvio também distribui capítulos falsos e grava cenas que nunca serão exibidas. Outra maneira de se prevenir da avalanche de perguntas que chegam ao seu alcance é estender o número de capítulos que tratam do suspense central para garantir a audiência — como ocorreu com Passione, transmitida recentemente no horário nobre da Rede Globo. O poder de alteração de uma novela varia não só com o autor, mas também com a opinião do público ao longo de sua exibição. Para manter o clima de novidade, táticas como a mudança no caráter de determinado personagem, a inserção de outros, e mesmo a criação de histórias paralelas podem garantir o interesse até o último capítulo. Como explica Nilson Xavier, “a curiosidade do telespectador pelo desfecho de um bom mistério é o que alimenta a telenovela”. Seduzidos pela magia criada pela tevê, e com os olhos atentos a qualquer movimentação, somos levados a adentrar o mundo de um personagem com o qual nem mesmo nos identificamos, mas que, de alguma forma, aguça nossa curiosidade.

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ARQUIVO-X

Série americana traz temas como a existência de extra terrestres e conspirações

OS MISTÉRIOS DE

ARQUIVO Seriado retrata casos paranormais que desafiam os agentes Mulder e Scully

REPORTAGEM GABRIELA COLICIGNO (1º ano de Jornalismo), ANANDA CSEIMAN, DANIELA GUARDÃO, PATRICIA ALVES, RODRIGO TOLOTTI (2o ano de Jornalismo), ANA BEATRIZ GEBARA e CARLA LEONARDI (3º ano de Jornalismo) IMAGENS REPRODUÇÃO

CASOS ARQUIVADOS PELO FBI, um agente que acredita em extraterrestres, uma parceira cética e uma boa dose de suspense. Essa foi a receita para uma das séries de ficção científica de maior sucesso que o mundo já viu: Arquivo-X. A série estreou em 1993 na emissora norte-americana Fox. Criado por Chris Carter, o seriado foi um sucesso de audiência e conquistou um público fiel, com os personagens Fox Mulder, interpretado por David Duchovny, e Dana Scully, papel de Gillian Anderson.

TRAMA Num misto de ficção e suspense, a história começa com a transferência da mé-

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dica legista Dana Scully para o departamento onde os arquivos secretos do FBI (Federal Bureau of Investigation), órgão do governo norteamericano responsável por investigações, são guardados — os famosos Arquivos-X. Lá, ela começa a ter contato com os casos inexplicados de paranormalidade e conhece o psicólogo Fox Mulder, que se torna seu parceiro. Mulder é um homem curioso e obcecado, que busca provar a existência de seres extraterrestres, porque, aos 12 anos, sofreu com o desaparecimento de sua irmã, que ele acredita ter sido abduzida. Ao contrário de seu entusiasmado parceiro, Dana não se deixa levar facilmente pelo fantástico: para ela, a ciência


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está acima de tudo. A relação dos dois agentes, que a princípio era de rivalidade e vira um romance ao final de série em 2002, foi um dos atrativos para o sucesso do seriado. No decorrer do enredo, os parceiros do FBI acabam percebendo que, quando estão perto de desvendar algum caso, sempre são impedidos por alguém que desconfiam trabalhar para o governo norte-americano. Apesar de Fox Mulder e Dana Scully serem agentes do FBI, a dupla atua de forma autônoma para desvendar os mistérios da série. O personagem Cigarrette Smoking Man, interpretado por William B. Davis, é o personagem-símbolo deste impedimento. Conhecido no Brasil como Canceroso, este homem poderoso atrapalha a resolução dos casos da dupla de agentes desde o primeiro episódio, que estreou em setembro de 1993. A música de abertura é “The X-Files Theme”, instrumental composto por Mark Snow, e juntamente com as frases I want to believe (que significa “Eu quero acreditar”), Trust no one (“Não confie em ninguém”) e The truth is out there (“A verdade está lá fora”) abriram diversos episódios e se tornaram ícones para os fãs. Na sala de Mulder, há um poster que estampa a frase “Eu quero acreditar” e a imagem de um Objeto Voador Não Identificado (OVNI). Ronaldo Pelli, escritor e jornalista cultural, acredita que a constante busca por explicações para os casos de paranormalidade nos episódios de Arquivo-X seja um dos motivos do sucesso. “Quando a série é bem feita, o espectador acompanha cada episódio para tentar entender o que está se passando e ter acesso a mais uma peça do quebra-cabeça. Além disso, ele quer mais fontes de informações, que não se atenham apenas ao que é mostrado nas telas. Por isso, como um detetive, procura por mais dados.” Há boatos que afirmam que a NASA (National Aeronautics and Space Adminis-

tration), também conhecida por Agência Especial Americana, guarda em seus arquivos importantes descobertas sobre casos paranormais. Os que acreditam nesta afirmação reconhecem no seriado criado por Chris Carter a vontade para desvendar tais segredos.�������������������������������� “Arquivo-X mexe com algumas teorias da conspiração famosas, que sempre levantam as sobrancelhas dos espectadores. Há alguma força do governo que comanda as nossas vidas? Será que o que vivemos é a realidade? Estamos sozinhos no universo? Isso é um prato cheio para quem gosta de desconfiar de tudo e de todos”, ressalta Pelli. ���������������������������������������� Ao final de cada episódio, todas as provas do caso apresentado são destruídas e o mistério sempre é reafirmado. Até mesmo o agente Fox Mulder questiona sua crença: “Eu quero acreditar”.

REPERCUSSÃO Com um total de 202 episódios, a série teve nove temporadas, exibidas entre setembro de 1993 e maio de 2002. Os temas ligados à conspiração e à paranoia são tratados de forma assustadora e ao mesmo tempo bem-humorada: possível fórmula que fez de Arquivo-X um fenômeno mundial. O seriado foi ovacionado pelo público e pela crítica e ganhou vários prêmios, como o Globo de Ouro na categoria Melhor Série (drama) em 1994, 1995 e 1996. A série de Carter inspirou o surgimento de outras do mesmo gênero — inclusive o spin-off (que significa ‘série derivada’) baseada em três personagens de Arquivo-X, o trio de nerds colegas de Mulder. A montagem intitulada Os Pistoleiros Solitários (The Lone Gunmen, de 2001), porém, não obteve sucesso. Inspirados na série, dois filmes ainda foram lançados: Arquivo-X: Resista ao Futuro, de 1998, e Arquivo-X: Eu Quero Acreditar, de 2008. O sucesso da série no Brasil tem seu representante na comunidade Arquivo-X Brasil (����������������������������������� www.arquivoxbrasil.ning.com)������� , criaA agente Dana Scully passa por exames após suposta abdução

REPRODUÇÃO

da pelo jornalista Aldo Novak em 1995. O fã-clube reúne mais de 2.600 excernautas (denominação para os aficcionados por Arquivo-X), espalhados por 78 países, pelos mistérios investigados pelos agentes Fox Mulder e Dana Scully. Por intermédio do site, que traz na home page a alcunha de “a maior comunidade excer da América Latina do seriado Arquivo-X”, os fãs podem interagir de diversas formas, promovendo encontros e trocando informações. Carlos Quintino, também conhecido por Sr. Q., presidente do Arquivo-X Brasil, é espectador da série desde 1995. “���������������� Eu comecei a assistir a partir dos primeiros episódios. Eram sempre às sextas-feiras à noite e, às vezes, a balada atrapalhava. Por isso, gravava em fitas VHS para assistir no dia seguinte. O que me atraiu foi a busca da verdade em relação a fatos relacionados com investigações sobre extraterrestres, ufologia, paranormalidade e assuntos que fogem à lógica aparente.” Como todo fã, Carlos coleciona itens relacionados ao Arquivo-X, além de ter todas as temporadas da série, obviamente. “A parceria entre a comunidade com a produtora Fox Filmes Home Entertainment, para lançar todos os boxes no Brasil, em eventos que batizei como ‘Cabine-X’ ajuda bastante o fã. Por ser o presidente, tenho uma coleção de tudo que foi lançado, inclusive os brindes”, orgulha-se.

SERVIÇO Título do DVD: Box Arquivo-X: 1ª a 9ª Temporada - 53 Discos Elenco: David Duchovny e Gillian Anderson Ano de Lançamento: 2008 País de Origem: Estados Unidos ESPECIFICAÇÕES TÉCNICAS Região1,4 | Aprox 2500 min | R$ 289,90

Fringe

Conhecida no Brasil como Fronteiras, a série dramática retrata os casos que Olivia Dunham, a agente especial do FBI, o doutor Walter Bishop e seu filho Peter têm que resolver. O trio precisa solucionar casos inexplicáveis, conhecidos como “O Padrão”, que ocorrem todos os dias. Entre os mistérios estão experimentos secretos do governo, ataques biológicos de organizações terroristas e mutações genéticas. Um dos principais focos do seriado é o questionamento acerca da existência de outra dimensão — temática com referências às séries Arquivo-X e Além da Imaginação, de Rod Serling. Fringe também faz referência à divisão especial de investigação dos Estados Unidos e está na terceira temporada. No Brasil, a série é exibida pelo canal pago Warner e pelo SBT. SERVIÇO Distribuidora: Warner Home Video 1ª temporada em DVD: R$ 59,90 2ª temporada em DVD: R$ 99,90 ESQUINAS – 1º SEMESTRE 2011

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EXPRESSÕES TEXTO DANYLO MARTINS (2º ano de Jornalismo) e JULIANA PERISCINOTTO (3º ano de Jornalismo) IMAGENS MARIANA KINDLE (3º ano de Jornalismo)

na boca do povo

Às vezes, parece que o segredo da origem das expressões faladas informalmente em uma língua está guardado a sete chaves, mas não é bem assim. Tintim por tintim, vamos desvendar alguns destes mistérios, que não necessariamente são segredos de polichinelo

FAZER OUVIDOS DE MERCADOR e OUVIDO DE TÍSICO A expressão fazer ouvidos de mercador, ou seja, “fingir-se de surdo”, tem três versões possíveis, de acordo com Ari Riboldi, autor do livro O Bode Expiatório (Age Editora, 2007). Na primeira delas, a frase “seria o equivalente ao comportamento de um mercador, em plena via pública, gritando na tentativa de vender sua mercadoria — esforço inútil, já que a multidão passa e não lhe dá atenção”. Em outra hipótese, a expressão poderia ser relacionada a “fazer ouvidos de mau credor”, em que a palavra “mercador” pode ter sido confundida com “mau credor”. Por último, a frase seria originada de “marcador”, nome dado ao carrasco que condenava castigados com ferro em brasa, sem ouvir gritos e súplicas dos outros. Em contraposição, ouvido de tísico está relacionado a alguém que possui a audição bem apurada e consegue escutar até cochichos. A frase é originária da capacidade aprimorada de ouvir típica dos tísicos — pessoas com tuberculose — que, após contraírem a doença, passam a escutar melhor.

GUARDADO A SETE CHAVES Quem nunca ouviu esta expressão como prova de que algo está protegido e seguro? No século XIII, em Portugal, baús eram usados para guardar joias e documentos da corte, e tinham quatro fechaduras. No entanto, de acordo com Riboldi, o povo consagrou o número 7 por conta de seu misticismo originário de religiões primitivas da Babilônia e do Egito. “O número sempre esteve presente em histórias e lendas antigas, como na serpente de sete cabeças, nas sete vacas magras e nos sete pecados capitais”, exemplifica. Para se ter ideia do poder do algarismo, na era medieval, testamentos romanos eram lacrados exatamente com sete selos. Foi a partir de toda essa crença que a expressão ganhou força e se popularizou.

AS PAREDES TÊM OUVIDOS Esta expressão é usada para alertar alguém sobre o que será dito, pois mais pessoas podem estar ouvindo o suposto segredo. Marcelo Duarte em seu livro O Guia dos Curiosos — Língua Portuguesa (Panda Books, 2011), afirma que a expressão foi criada no século XVI, na França. “A rainha Catarina de Médicis era muito desconfiada e, para escutar melhor as pessoas de quem suspeitava, mandou fazer uma rede com furos, escondida no teto, nas paredes e nas molduras de quadros do palácio.” Com o sistema, era possível ouvir o que se passava nas salas através das paredes que passaram a “ter ouvidos”.

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TINTIM POR TINTIM Um segredo contado tintim por tintim é, sem dúvida, algo que contém muitos detalhes. A expressão tem origem relacionada ao som do tilintar das moedas, segundo Ari Riboldi. “O pagamento de uma dívida era realizado de moeda em moeda, ou seja, tintim por tintim. Mais tarde, passou a designar ponto por ponto, detalhe por detalhe, minuciosamente”, explica.

MEMÓRIA DE ELEFANTE Você costuma lembrar de todos os segredos que lhe são contados? Caso sim, é provável que seja tachado como uma pessoa que tem uma memória de elefante. Como a própria expressão mostra, sua origem está relacionada à capacidade que esse mamífero tem de se lembrar de tudo o que lhe é ensinado. Riboldi diz que “a expressão popular não tem relação com o tamanho do animal, e sim com a incrível habilidade de memorização, repetição de ordens e comandos que os elefantes possuem”.

BOQUINHA DE SIRI Se alguém confidenciar um segredo e pedir que você faça boca de siri, fique calado e mantenha o sigilo. Mas como surgiu essa frase popular? Segundo Riboldi, o uso da expressão está relacionado à anatomia do siri: “sua boca é tão minúscula que, dificilmente pode ser identificada a olho nu”. Além disso, o siri costuma segurar suas presas com as pernas e não com a boca, devido à dificuldade para abri-la.

SANTO DO PAU OCO

SEGREDO DE POLICHINELO Mário Cotrim conta em seu livro O pulo do gato (Geração Editorial, 2009) que “polichinelo era personagem característico da commedia dell’arte, o teatro popular improvisado, nome do bufão, personagem ridículo, sem traquejo, ingênuo”. Assim, segredo de polichinelo é aquele que, quando alguém vai contar, os outros presentes não dão atenção, pois já sabem do que se trata.

No século XVII, as esculturas de santos que vinham de Portugal eram fabricadas em madeira. Naquela época, era comum que os santos chegassem recheados de dinheiro falso, originando a expressão santo do pau oco. Marcelo Duarte acrescenta que, no ciclo do ouro, os contrabandistas tinham o costume de enganar a fiscalização por conta dos altos impostos cobrados pelo rei de Portugal. Para escapar das taxas, os donos de minas e grandes senhores de terras colocavam parte de suas riquezas no interior de imagens ocas de santos.

BOTAR A BOCA NO TROMBONE Costuma-se dizer que, quando alguém fala para diversas pessoas sobre determinado assunto, está colocando a boca no trombone. Eis uma ação típica de um fofoqueiro, que não se contenta em receber uma informação — até mesmo um segredo — e conta para todos o que acabou de saber. Para Ari Riboldi, a expressão pode ser considerada “uma figura de linguagem, pois o trombone é um instrumento de sopro que produz um som de volume muito alto”.

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ALI NA ESQUINA - ESPECIAL

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(re)descobrindo

São Paulo

Em meio à escuridão noturna, curiosos vão à caça de segredos no Centro da cidade REPORTAGEM MARIANA MARINHO, NAIARA ARAUJO, PRISCILLA BASTOS, STEPHANIE TERAMAE (1o ano de Jornalismo), PAULA TERESA (2o ano de Jornalismo), FELIPE CORDEIRO e PAULO PACHECO (3o ano de Jornalismo) IMAGEM MARIANA MARINHO (1o ano de Jornalismo), PAULA TERESA (2o ano de Jornalismo) e FELIPE CORDEIRO (3o ano de Jornalismo)

SÃO PAULO PODE ser considerada um museu a céu aberto com uma obra de arte a cada esquina, basta saber olhar. Porém, com a correria típica de uma cidade frenética, fica difícil prestar atenção a cada detalhe. A Caminhada Noturna surgiu como uma chance para se conhecer melhor o Centro de São Paulo. Todas as quintas-feiras, às 20h, paulistanos e turistas interessados realizam um passeio gratuito, de duas horas, com roteiro sempre variado, pelos locais históricos da capital. Coletes distribuídos e usados pelos integrantes, microfone e bandeiras amarelas erguidas durante a caminhada dão a entender que se trata de algum movimento social. Curiosos chegam até a questionar qual tipo de protesto estaria ocorrendo naquele momento. Analisando a situação, pode-se dizer que se trata de uma manifestação semanal em apoio à revitalização do Centro. “Uma coisa legal é que eu estou perdendo um pouco o medo do Centro. Não é ruim nem tão pesado quanto as pessoas acham. A presença da Guarda Civil e da Polícia Militar tem ajudado a amenizar este medo”, comenta André Corrêa, de 35 anos, analista de sistemas e fotógrafo nas horas vagas. O ponto de encontro é sempre a entrada do Theatro Municipal, na Praça Ramos de Azevedo, e toda caminhada é acompanhada por um guia. Na primeira edição, ocorrida em setembro de 2005, ainda não havia um guia contratado e os poucos participantes eram os próprios moradores dos arredores da região central. Hoje, a caminhada ganhou maiores proporções, porém, mantendo sempre a liderança de Carlos Beutel, idealizador e dono do restaurante vegetariano Apfel, que conta com duas unidades — uma no Centro e outra no Jardim Paulista. Após passar dois anos e meio em Nova Iorque, Beutel teve um choque na sua volta, no início dos anos 1990. “Encontrei uma situação desesperadora, um Centro absolutamente abandonado, na mão do crime, dos camelôs, de uma gestão corrupta e de um serviço público ineficiente. Não acreditei, não era possível

que aquela fosse minha cidade”, revela Beutel. Com a intenção de modificar esse quadro, o desafio foi criado: por iniciativa própria, Beutel deu início ao projeto da Caminhada Noturna. Em seis anos de caminhada, muitos segredos foram decifrados pelos participantes. Porém, para o idealizador, o evento poderia ser feito com mais frequência e maior apoio. “Se eu tivesse recursos, faria duas vezes por dia. Não tem coisa melhor no mundo do que você ir a uma cidade e ser bem acolhido”, conta Carlos Beutel. E ainda complementa dizendo que “o que nós precisamos é de uma gestão e uma zeladoria urbana condizente com a área mais emblemática da cidade”. Quem ajuda a desvendar curiosidades sobre o Centro é o guia Laércio de Carvalho, que já está na caminhada há cinco anos. Mesmo antes de trabalhar com esta iniciativa, ele mantinha uma relação estreita com a região. “A Vera Lucia Dias, que já foi guia do passeio, me convidou para participar da caminhada e fazer uma parceria — ela faria o percurso numa semana e eu, na outra”, explica. Por falta de tempo, Vera teve que se ausentar, mas Laércio continuou. Semanalmente ele convive com pessoas de diferentes estilos e sotaques. É possível encontrar participantes de diversas localidades e até de outras nacionalidades, como o casal peruano Marco Cortez Encinas, de 45 anos, e Vivian Galvez Villanueva, de 38 anos. Eles descobriram o passeio por um panfleto de hotel e afirmam que o choque cultural não foi tão grande. “Aqui é parecido com o Centro do Peru. Lá também tem muita pobreza e bastante gente que vende coisas nas ruas, mas aqui tenho a impressão de que existe mais liberdade”, conta o advogado Marco, num português claro. Há também quem more e trabalhe na própria região central, como Maria Helena Fantin, de 54 anos, escriturária no bairro do Bixiga. Frequentadora assídua, conheceu o projeto há cinco anos por intermédio de uma amiga. “Cada caminhada é diferente. Embora a gente visite, às vezes, o mesmo

local, o ângulo é sempre novo.” Para André Corrêa, que participa da caminhada há quatro meses, andar em grupo foi o que lhe trouxe segurança na hora de exercer o hobby de fotografar e, com o tempo, mudou sua forma de encarar a região. “As pessoas estão aqui por um bom motivo: a retomada do Centro. Estou aprendendo bastante, porque eu era um paulistano que sabia pouco sobre a história da minha própria cidade”, confessa. Independentemente da motivação, a Caminhada Noturna é um evento para desfrutar o Centro de forma única, saboreando história e cultura. Ouvir o badalar do sino do Mosteiro de São Bento, buzinas dos carros na Avenida São Luís, apreciar o som do grupo de jazz ao passar pelo Bar Brahma, escutar conversas em outros idiomas, enfim, renderse às diversas sonoridades que tentam entrar em sintonia. Enxergar detalhes em meio à riqueza arquitetônica em um passeio de encher os olhos. Ter contato com pessoas das mais variadas idades e regiões, sem medo do toque. No final, respirar fundo ao se dar conta das novas percepções adquiridas, sem saber quais dos cinco sentidos foram os mais aguçados em cada lugar visitado. De fato, um passeio multissensorial memorável.

1º DIA: CENTRO EM CHAMAS O primeiro passeio acompanhado pela Revista Esquinas pegou fogo. A caminhada do dia 10 de março aproveitou o ensejo do aniversário do Corpo de Bombeiros, fundado em 1880, e passou por prédios que sofreram incêndios na década de 1970. É o caso dos edifícios Andraus, em 1972, e Joelma, dois anos depois. O tour, porém, não se limitou a eles. O trajeto contemplou também outras atrações turísticas de São Paulo. A primeira visitada foi a região da antiga Cinelândia Paulistana, nas adjacências da Praça da República. As elegantes salas, que outrora traziam diversão e arte aos frequentadores do Centro, entraram em decadência e deram lugar a, principalmente, igrejas, estacionamentos e cinemas pornôs.

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Localizado na Avenida Ipiranga, o Cine Marabá foi um dos poucos que sobreviveu e que manteve a arquitetura original, com quatro colunas sustentando a marquise e o nome do cinema com a mesma tipografia de quando foi fundado, em 1944. “Hoje, a tecnologia dos cinemas é fabulosa, mas as salas são ridículas: um galpão sem a mínima beleza”, declara Laércio. O guia lamenta o fato de que a sala situada em frente ao Marabá — o Cine Ipiranga — está desativada e com o futuro incerto: “parece que o dono do pré dio vai restaurá-lo e transformá-lo num Centro de Convenções”.

FOGO Em seguida, a caminhada parou em um dos cruzamentos mais famosos da cidade: o das avenidas São João e Ipiranga, imortalizado nos versos de “Sampa”, de Caetano Veloso. Foi a chance de os visitantes tirarem fotos das placas das ruas e do concorrido Bar Brahma. Percorrendo a São João, passou-se pelo Cine Metro (hoje, sede da Igreja Internacional da Graça de Deus) até chegar ao Edifício Andraus, na esquina com a Rua Pedro Américo. Dez anos após a inauguração, em 1972, o Andraus pegou fogo por causa de uma sobrecarga de energia. O prédio foi reformado e hoje concentra repartições públicas. Já a caminho do Joelma, foi feita uma parada na Praça da República para contemplar o prédio que atualmente abriga a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, e onde funcionou por muitos anos a Escola Normal Caetano de Campos, fundada em 1894. O prédio foi construído pelo arquiteto e urbanista Ramos de Azevedo e funcionou como centro de formação de professoras primárias desde a sua fundação até 1978, quando recebeu o nome do ex-diretor: Instituto de Educação Caetano de Campos. Os participantes da caminhada observaram o alto do edifício, cujas janelas destoam das demais, eviden-

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ciando que fora construído posteriormente. Na Praça Dom José Gaspar, uma lembrança do glamour do passado. Importante ponto cultural em meados do século XX, a praça é o endereço da Biblioteca Mário de Andrade. O guia Laércio de Carvalho lembrou que Dom José Gaspar morrera no mesmo acidente de avião que matou o jornalista Cásper Líbero, em 1943. Aproximando-se da Praça da Bandeira, o passeio chegou ao Edifício Joelma. O terminal de ônibus que fica ao lado ilumina o local, que teve sua história manchada por um incêndio, em 1974, provocado pelo curto-circuito em um ar-condicionado. Apesar de o Joelma ter sido reformado e, atualmente, não oferecer riscos, as lendas envolvendo as 179 vítimas da tragédia ainda provocam receio nas pessoas. “Hoje é super seguro, mas tem todo esse estigma”, comenta Laércio. Histórias como a de barulhos dentro do Joelma, que poderiam tê-lo transformado em um prédio mal-assombrado, renderam boas risadas a quem estava presente.

2º DIA: (DES)ENCONTRO No passeio do dia 17 de março os participantes foram à Avenida Cásper Líbero. A via, que antes se chamava Rua da Conceição, ganhou o atual nome por abrigar o Palácio da Imprensa, sede da redação do jornal A Gazeta de 1939 a 1966, — quando se mudou para a Avenida Paulista. Um dos segredos do prédio, atual endereço da Justiça Militar da União da Cidade de São Paulo, é que ele foi o primeiro a ser construído com o intuito de instalar uma redação e uma oficina de jornais, ao passo que os periódicos concorrentes tiveram de adaptar prédios já existentes.

HISTÓRIA No Largo Santa Ifigênia, o grupo avistou a igreja homônima, que foi o palco

do maior conflito bélico da história da cidade. A Revolta Paulista de 1924, também conhecida como “Revolução Esquecida”, reuniu o Exército e a Força Pública contra o governo do presidente da República Artur Bernardes, pelo fim da oligarquia e da política do café-com-leite, a favor do voto secreto. “Aqui aconteceram vários combates. Era uma guerra sem perdão, atiravam usando canhões. Artur Bernardes mandou matar mais de 500 civis, além de bombardear aqui”, conta o guia Laércio de Carvalho. Ainda é possível ver as marcas dos tiros na fachada da catedral. “Como os pontos altos eram as igrejas, os soldados ficavam nas torres para verificar a movimentação. O exército sabia que tinha gente lá, por isso, atirava. O que a gente viu recentemente na Líbia já aconteceu aqui”, complementa o guia. O conflito civil durou cerca de um mês, mas, segundo Carvalho, pouca gente sabe disso. “Está tudo documentado. São histórias reais que acabaram parecendo segredos.”

BEM ESTAR Atravessando o Viaduto Santa Ifigênia, chega-se ao Largo São Bento. Próximo a ele, está a Rua Florêncio de Abreu, uma das mais antigas de São Paulo. Ao caminhar por ela, não é a variedade de lojas de ferramentas que chama atenção, mas sim o contraste entre a quantidade de pessoas que vasculham as enormes montanhas de lixo e a lateral imponente do Mosteiro de São Bento, decorada com personagens religiosas esculpidas em alto-relevo. Para alguns, pode se tratar de apenas mais uma rua. Para muitos, no entanto, ela tem um significado especial. É lá onde residem 203 famílias, num total de mais de 600 pessoas que passaram a viver no endereço da antiga Casa Centro, um prédio de escritórios que estava desocupado. Hoje, o edifício nomeado pelos mora-


CAMINHADA CHAPÉU NOTURNA Arquitetura dos antigos edifícios contrasta com o lixo e o abandono das ruas do Centro

“No Largo Santa Ifigênia aconteceram vários combates. Era uma guerra sem perdão, atiravam usando canhões. Artur Bernardes mandou matar mais de 500 civis, além de bombardear aqui”, Laércio de Carvalho, guia da Caminhada

dores de “Frente Comunitária e Cidadania” está sob a administração do coordenador de finanças Roberto Marcelino do Rosário, de 36 anos. “Tem um espaço amplo. Em cada pavimento moram três famílias: há o pavimento da Ala A e o da Ala B. Então, as famílias se organizaram, arrumaram madeira na rua e fizeram divisórias”, explica. A mudança para este local é expressiva: da miséria para uma vida decente. Os moradores prezam pela manutenção do prédio, realizando os serviços de portaria e faxina, além de contribuir com uma taxa mensal de R$ 50,00 de água e R$ 50,00 de luz. Segundo Roberto, a maioria das pessoas que mora ali possui uma ocupação, devido à vasta oferta de empregos da região. Quem o auxilia é Conceição Aparecida dos Santos, de 67 anos, professora de artesanato em ONGs. Ela conta com orgulho sobre as atividades remuneradas exercidas pelos moradores: “Não pensamos apenas na moradia, mas também no bem social. Temos capoeira, artesanato, feiras e outros eventos. Conciliamos tudo num lugar só: trabalho e moradia. É muito bom”.’

3º DIA: 25 DE MARÇO Diariamente, a Rua 25 de Março, o mais conhecido reduto ambulante de São Paulo, abriga camelôs, passos apressados e o burburinho da imensa quantidade de pessoas que a visita. Mas é à noite que realmente se nota a arquitetura dos estabelecimentos — os prédios tinham dois andares: o de baixo era a loja; o de cima, a casa do comerciante —, o silêncio e a montanha de lixo. A rua, que era o verdadeiro leito do Rio Tamanduateí, foi destaque no percurso do dia 24 de março. A caminhada teve início na Praça Ramos de Azevedo. Projetada para ser um jardim nos moldes europeus, é ornamentada por

obras em homenagem a Carlos Gomes, diretor da primeira ópera brasileira, “O Guarani”, exibida em 1911 no Theatro Municipal. Depois, seguiu pela Fonte dos Desejos, cuja conservação, como a da praça, deixa a desejar. Próximo dali, há o Vale do Anhangabaú, cercado por prédios emblemáticos como o Edifício Mirante do Vale, o mais alto do Brasil, com 170 metros de altura, o Shopping Light e o prédio da Prefeitura. Parece impossível imaginar que embaixo deste mesmo local corre o Rio Anhangabaú.

A GAZETA O percurso, que continuaria seguindo em direção à Avenida São João, de repente mudou para a Rua Líbero Badaró, lar da primeira redação do jornal A Gazeta. A vista atraiu grande número de fotógrafos que disputavam espaço com os carros, pelo charme das luzes em sua arquitetura. Logo foi possível avistar o Largo São Bento. Embaixo do relógio mais pontual da cidade, localizado no alto do Mosteiro, crianças jogavam bola e brincavam durante a noite, mostrando um lado despreocupado que parece não ter mais espaço na agitada e violenta São Paulo. A Florêncio de Abreu ganhou mais notoriedade neste dia. Na altura do número 123, um contraste: a arquitetura art nouveau da Casa da Bóia. Restaurada e conservada, ela divide sua calçada com um prédio abandonado. Assim como outras construções do Centro de São Paulo, o edifício precisa de melhorias e do auxílio dos próprios cidadãos, fato ressaltado pelo criador da Caminhada Noturna, Carlos Beutel, antes de seguir rumo ao Teatro Municipal. “A Copa de 2014 está aí. É isso que o turista vai ver? Nós, paulistanos, temos que pensar como vamos ajudar a nossa cidade. Participar da vida dela também faz parte da história”, exalta Carlos Beutel, momentos antes do encerramento do passeio.

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CRÔNICA TEXTO JAQUELINE GUTIERRES (3º ano de Jornalismo) IMAGEM REPRODUÇÃO

de roupa, eu vou

?

DE PEQUENA ATÉ hoje eu me pego pensando o que tem de tão censurável na nudez. Ninguém nunca me explicou. Só sei que não posso sair nua por aí e ponto. Isso eu descobri na infância com a minha mãe, que me vestia a parte de cima daquele ‘biquininho’ rosa com babados quando íamos à praia, mesmo que aquela peça de roupa não tivesse a mínima função. Eu ficava sem entender por que eu tinha que usar aqueles dois triangulinhos amarrados acima da barriga que, algumas vezes, de tão apertados chegavam quase ao pescoço e, por isso, não cobriam o que minha mãe achava que deveria ser coberto. Mesmo sem entender, fui bem treinada: eu aprendi a me cobrir; aprendi até a combinar os panos e a estar na moda. Tudo como uma fórmula matemática, ou como se eu tivesse um alarme interno que todos os dias me lembra: coloque uma roupa antes de sair de casa! E até hoje eu tenho tanto medo de esquecer as vestes e sair andando por aí com as “vergonhas” à mostra que até meu subconsciente me reforça a ideia com um sonho cruel. Esse pesadelo me acompanha desde pequena, não sei bem a partir de que idade, mas com certeza começou depois dos episódios traumáticos do biquíni no pescoço. No sonho, eu ando distraidamente por uma rua larga, longa e movimentada — algo como a Avenida Paulista criada pelo meu subconsciente —, até que os olhares das pessoas que passam por mim se tornam tão contínuos que me encabulam. Assustada, encontro o motivo para aqueles olhos arregalados: a minha falta de roupas. Nua, ando depressa, desesperada, procurando os pedaços de pano sem os quais eu não deveria sair na rua. Como acontece com qualquer outro sonho, eu não sei onde ele acaba ou onde começa. Só sei de uma coisa: nem no subconsciente, o lugar mais privado de qualquer homem – que de tão privado nem o próprio homem sabe o que ocorre lá –, eu estou livre das censuras. Eu acredito que tenha uma vozinha escolhendo por mim o que deve ser sigiloso, me fazendo um lembrete dos segredos do corpo que eu devo esconder mesmo quando não me importa que eles sejam públicos. Acordada, concluo que minha mãe soube passar bem o recado, afinal, nem naquele mundo criado no fundo da minha cabeça eu posso andar sem roupas. Não digo que eu queira passear despida por aí, só queria poder escolher entre os meus segredos, os que eu quero revelar.

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“Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrĂ­vel, que lhe deres: Trouxeste a chave?â€? Carlos Drummond de Andrade


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