Jornal Contexto / Suplemento "Pagu" - Edição 50 (Maio/2016)

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PAGU mulheres reivindicam autonomia nos espaços públicos e privado pág. xx

a via "crucis" feminista na militância religiosa pág. xx

coadjuvantes das próprias histórias


EDITORIAL Muito embora o recomendável para o bom repórter seja,

nas palavras de Eliane Brum, “atravessar a rua de si mesmo para olhar a realidade do outro lado de sua visão de mundo”, neste suplemento nós, mulheres, fizemos o processo

contrário. Voltamos nosso olhar para dentro para que nossa

experiência de condição da mulher na sociedade nos guiasse

na escuta de cada relato e interpretação de cada dado com os quais nos deparamos. Incluímo-nos nas histórias que conta-

mos por acreditar que elas representam a busca pela equidade

Alice Santos

de gênero em todos os espaços e que dessa luta também fazemos parte.

Os homens, porém, também integram a produção deste pro-

duto, numa redação repartida meio a meio entre os gêneros masculino e feminino, o mínimo de proporcionalidade que

uma equipe de trabalho deve ter. Por isso, três belas reporta-

gens são assinadas por três futuros jornalistas que usam suas

Flavio Ferreira

vozes para fazer ecoar as falas de mulheres.

A liberdade de ousar e a orientação sempre presente da

jornalista e professora Michele Tavares foram imprescindíveis para conseguirmos alcançar o objetivo do jornal laboratório:

experimentar ideias, construções e linguagem, para começarmos, desde já, nosso trabalho enquanto jornalistas, prezando

Iris Brito Lopes John Soares

pela sensibilidade e boa apuração na criação de narrativas. PAGU, a “musa trágica da Revolução”, no dizer de Carlos

Drummond de Andrade, será a musa do nosso suplemento. Jornalista, escritora, produtora de espetáculos, militante e

dona de tantas outras atribuições, Patrícia Rehder Galvão, seu nome de batismo, fez tudo aquilo que consideramos necessário para causar pequenas (ou grandes) revoluções: resistiu, insistiu, subverteu.

Lá em 1933, Pagu denunciava a violência de gênero e de

classe. No seu primeiro livro “Parque Industrial”, lançado

em 1933, escreveu “Todas as meninas bonitas estão sendo

bolinadas. Os irmãozinhos seguram as velas a troco de balas. A burguesia procura no Brás carne fresca e nova. O Carnaval continua. Abafa e engana a revolta dos explorados.

Matheus Brito

Indignamo-nos com a violência de gênero, com a pouca

Marília Souza

presença das mulheres na ciência, na política, no mercado

de trabalho e no cinema, com o preconceito da religião e, por isso, nos inspiramos em Pagu para não deixar passar o ma-

chismo - e ainda falamos sobre ativismo feminista na internet.

Parafraseando Rita Lee, somos rainha do nosso tanque, somos Pagu indignada no palanque.

Com vocês, a voz das mulheres, a voz de Pagu.



feminismo na internet ALICE SANTOS alicejor@outlook.com

MARY WOLLSTONECRAFT

SUBSTANTIVO SINGULAR. É essa a classificação morfossintática de uma das palavras mais carregadas de estigmas da língua portuguesa. Morfologias à parte, de singular o feminismo não tem nada. Apesar de ainda assustar muita gente que não entende as verdadeiras motivações e anseios do movimento, o uso da palavra ‘feminismo’ já foi mais temido. Quem está envolvida na causa não cansa de afirmar que as feministas buscam a igualdade entre os gêneros, mas em uma sociedade opressora criar nas pessoas aversão a movimentos é mais um dos recursos para continuar a consolidação de desigualdades. A história do movimento feminista é longa e como todo processo social sofreu alterações significativas ao longo das décadas se adaptando às relações sociais, comunicacionais e interpessoais de cada época. Em 2015, o feminismo protagonizou os debates levantados nas redes sociais demonstrando que estamos vivendo uma nova configuração do movimento. Mulheres cada vez mais jovens estão se empoderando e dando voz àquelas que por muito tempo não tiveram através das redes sociais como o Twitter e o Facebook. Entender a trajetória do movimento feminista e as alterações que ele sofreu é primordial para compreendermos os novos direcionamentos, as correntes atuais e qual o futuro desse movimento que cada vez mais vem ganhando espaço e público na internet. Apesar de o termo “feminismo” só ter sido criado na primeira metade do século XIX, Olympe de Gougues foi levada a guilhotina, durante a Revolução Francesa, por ter escrito em 1791 a Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, (alusão ao documento símbolo da Revolução a Declaração dos direitos do homem e do cidadão). Em seu texto, Gouges defendia direitos iguais para homens e mulheres principalmente no que diz respeito às relações com o cônjuge. Em 1792, foi publicado pela inglesa Mary Wollstonecraft, Uma reivindicação pelos direitos da mulher, documento que defendia principalmente a educação igualitária entre homens e mulheres. O movimento é historicamente dividido em três

OLYMPE DE GOUGES


FASES DO MOVIMENTO FEMINISTA fases ou ondas principais, a primeira delas ocorreu na Europa e nos Estados Unidos em meados do século XIX e início do século XX. O contexto sociohistórico dessa fase do movimento aconteceu conjuntamente com o desenvolvimento e consolidação do capitalismo através dos efeitos da Segunda Revolução Industrial, as cidades estavam em processo de urbanização e modernização. As mulheres integrantes dessa primeira onda, conhecidas como sufragistas, lutavam pelo direito ao voto feminino e independência da figura masculina (seja do pai ou do marido). Vale ressaltar que as lutas citadas anteriormente eram das mulheres prioritariamente brancas e burguesas. Nessa época, a comunicação era basicamente feita no suporte papel através de panfletos e livros. Os jornais impressos e a difusão do rádio consolidavam a comunicação de massa. A segunda onda aconteceu a partir da década de 1960 até década de 1980. Nessa fase, as mulheres, que já haviam conquistado direitos jurídicos e espaço no mercado de trabalho, buscavam equidade efetiva de gênero nesses espaços, pois apesar de não haver mais um bloqueio ao acesso das mulheres ainda existiam desigualdades e opressões no ambiente de trabalho e na representatividade política (contexto que existe ainda hoje), essa fase do movimento também alertava para a violência doméstica e o abuso conjugal. Conhecidas por queimar sutiãs e lutar pelo direito ao prazer, essas mulheres se alinharam com outros movimentos sociais da época como o movimento hippie e de contracultura, os grandes festivais de música como o de Woodstock, em Nova York, no fim da década de 1960, tinham uma forte presença feminista. No Brasil, sob o regime militar, as mulheres se aliaram à luta contra a ditadura e foram às ruas lutar pela democracia, como foi o caso de Patrícia Galvão, Pagu, primeira mulher brasileira a ser presa por motivos políticos. A terceira onda do feminismo, historicamente colocada a partir da década de 1990, vem questionar as posições das ondas anteriores que eram enfaticamente direcionadas para as mulheres brancas de classe média. O feminismo de terceira onda gera mudanças dentro do próprio movimento. Se a luta antes era contra o patriarcado (superioridade do homem sobre a mulher) a luta agora é interseccional, entende que cada mulher sofre uma opressão diferente dependendo da sua cor, religião, posição social, orientação sexual e identidade de gênero.

A comunicacao como ferramenta do feminismo ~ A década de ‘ 1990 foi um marco também para as telecomunicações, a audiência se segmentou e os

canais de tv a cabo se consolidaram a fim de agradar aos mais diversos públicos. O uso cada vez mais constante de e-mails e plataformas de bate-papo online, as primeiras fases do jornalismo na internet marcaram essa época que serviu de base para o desenvolvimento dos blogs e fotologs tão famosos na década de 2000. Imagine um funil. Partindo de maiores e mais antigos (porém não tão antigos assim) movimentos ou manifestações organizadas pelas redes sociais para os mais recentes e específicos. Na parte mais larga do funil, no fim de 2010 e início de 2011, os acontecimentos que levaram à Primavera Árabe aconteciam na Tunisía. Na sequência, a população do Egito ocupou entre 25 de janeiro e 11 de fevereiro a praça Tahrir, no centro do Cairo, protestando contra um governo autoritário e a falta de estrutura social e econômica do país. A organização, a convocação das pessoas às ruas, a comunicação interna do movimento e as informações que circulavam pelo mundo foram principalmente mediadas pelo Twitter. Em setembro de 2011, o centro financeiro dos Estados Unidos, Wall Street, foi ocupado por três meses pelo movimento Occupy Wall Street. Milhares de pessoas se instalaram no Zuccotti Park lutando contra a má distribuição de renda sob o lema “we are the 99%” (nós somos os 99%) se referindo ao fato de 1% da população dominar a maior parte da renda. Vale também ressaltar que, em 2011, aconteceram as primeiras Marchas das Vadias, movimento iniciado no Canadá quando uma universitária foi estuprada e um policial afirmou que se ela não se vestisse como vadia o crime não aconteceria. Mulheres indignadas com essa constante culpabilização da vítima foram às ruas afirmando que se ser vadia é ter liberdade de escolher o que vestir então “sejamos todas vadias”. No fundo da parte larga, temos junho de 2013 no Brasil, o aumento da passagem de ônibus em São Paulo foi o estopim para que as pessoas, em sua maioria jovens, fossem às ruas de cidades de todo o pais protestando sob o lema “não é só pelos 20 centavos”, na maior manifestação popular do país desde o Impeachment do presidente Fernando Collor, em 1992. Ao longo do processo outras


#CAMPANHAS

reinvindicações foram agregadas à jornada de junho, como gastos com a Copa do Mundo, falta de investimento em saúde e educação e da corrupção política como um todo. Na parte mais fina, porém não menos importante do funil, a segunda metade de 2015, mulheres tomaram conta das redes sociais se organizaram e tomaram as ruas contra o Projeto de Lei 5069 proposto pelo presidente da câmara dos deputados, Eduardo Cunha, o ato ficou conhecido como a Primavera das Mulheres. Fazendo um histórico dos debates que aconteceram desde 2013 até 2015 quando a Primavera Feminista teve seu ponto mais alto podemos destacar ações desenvolvidas nas redes sociais que se acumularam e culminaram na Primavera Feminista. Em 2013 o coletivo Think Olga lançou a campanha Chega de Fiu Fiu que lutava contra as cantadas e assédios sofridos pelas mulheres nos espaços públicos, a campanha cresceu e se tornou um site, onde as mulheres localizam onde sofreram os abusos fazendo assim um mapa dos locais mais perigosos para as mulheres no Brasil. A Campanha fez também uma pesquisa (através de um formulário online) com quase 8 mil mulheres sobre as situações de assédio e como elas se sentem a respeito desse tipo de abuso. Em março de 2014 o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) divulgou uma pesquisa cujo dados informavam que 65% das pessoas que responderam à pesquisa acreditavam que uma mulher que usa roupas que mostram o corpo merecem, ou estavam pedindo para serem agredidas. Indignada com o resultado dessa pesquisa a jornalista Nana Queiroz lançou a campanha #nãomereçoserestuprada postando uma foto sua de topless na frente do Congresso Nacional com os dizeres da hashtag escritos no corpo. A partir daí milhares de mulheres, inclusive as cantoras Valesca Popozuda e Daniela Mercury, compartilharam suas fotos com a mesma mensagem. Uma semana após a divulgação dos dados o IPEA alegou um equívoco nas respostas apenas 21% acreditavam que as mulheres mereciam de fato ser atacadas. O ano de 2015 foi marcado por debates feministas principalmente no Facebook e no Twitter, em outubro podemos destacar a polêmica envolvendo uma das participantes – de apenas 12 anos, do Reality Show Masterchef Jr. que foi algo de comentários de cunho sexual na internet. A indignação com tal cenário levou a campanha promovida pelo coletivo feminista Think Olga, com o uso da hashtag #primeiroassedio onde as mulheres compartilharam o primeiro abuso sofrido, conseguindo assim, milhões de relatos. Fernanda Mendonça, mestranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), coautora do artigo O movimento feminista e o ativismo digital: Conquistas e expansão decorrentes do uso das plataformas online, publicado em 2015, acredita que seja natural essa migração do movimento para as plataformas digitais, pois é uma mudança na forma como vivemos, mas também ressalta a importância de que essa transição seja utilizada para potencializar as mudanças


que o movimento deseja, e não acabe perdendo força em razão da comodidade da internet quando se comparado à velha forma de protestar nas ruas. Para Fernanda, os movimentos mais antigos, como o próprio feminismo, acabam se adequando e se “modernizando” com esses novos mecanismos, e as novas mobilizações acabam também fazendo uso da rede, como o que ocorreu no Brasil em junho de 2013 e como o Occupy e os demais ocorridos na Islândia, Espanha etc. “Não são movimentos exatamente conectados pelas causas, obviamente, e pode-se estabelecer diferenças, mas acredito que estão relacionados na forma como vêm se organizando e desenvolvendo o movimento por meio da internet, o que é muito interessante. Aparentemente, não há mais volta neste caminho de tecnologias”, destaca a pesquisadora. VIVEMOS A QUARTA ONDA? O simbólico ano de 2011 foi há apenas 5 anos e nós ainda estamos vivendo dentro desse fenômeno social de organização através da internet, dessa maneira é extremamente complicado analisar as implicações e características que esse movimento tem apresentado. Apesar disso suspeita-se que estamos vivenciando uma quarta onda do movimento feminista. Para a jornalista doutora em ciência da comunicação/feminismo pela USP, Vera Vieira de Fátima, as Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) fazem o que o filósofo e sociólogo Jürgen Habermas chama de potencialização do cerne da ação comunicativa, o modo de agir em comum, pois promovem um relacionamento mais horizontal entre quem ensina e quem aprende; ambos aprendem e ensinam ao mesmo tempo. Fátima destaca que a internet propicia canais que potencializam as reivindicações feministas multifacetadas que já vêm sendo gestadas na sociedade, bem como uma reformulação da agenda feminista, com novas estratégias de intervenção política e de atuação, levando em conta outras dinâmicas e a revolução das formas de expressão pessoal e interpessoal. “Considero a quarta onda do feminismo a interconexão das novas tecnologias com a multidão de vozes plurais e diversas, isto é, com as diversas correntes que não se viam representadas pelo movimento feminista tradicional. Aliás, a quarta onda agrega todas as correntes: urbano, rural, jovem, negro, acadêmico, masculino, lésbico, gay, transexuais, travestis, queer e demais transgêneros”, afirma Fátima que também é diretora executiva da Associação Mulheres pela Paz. Bárbara Nascimento é mestranda em Comunicação Social pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) e integrante do Coletivo de Mulheres de Aracaju. O coletivo se organiza de forma horizontal onde não há delegação de cargos e todas as integrantes têm as mesmas funções.

Através de sua página no Facebook, o Coletivo divulga suas ações (debates, atos, oficinas), interagem com seguidoras e seguidores, recebem convites e divulgam seus posicionamentos políticos. Bárbara, falando em nome do Coletivo, reconhece a importância e a potencialização das tecnologias para o trabalho que o Coletivo desenvolve, pois permite que a mensagem chegue a um público maior, mas sem deslegitimar a eficácia de ações na prática, no dia a dia. Porém, a pesquisadora acredita que ainda é cedo para creditar às manifestações 2.0 a instauração de uma nova onda feminista. “Se analisarmos cuidadosamente vamos perceber que as pautas de hoje são antigas e por não terem sido conquistadas permanecem atuais. É importante destacar que os debates impulsionados pelas redes através de páginas e blogs e das campanhas virtuais (#meupimeiroassedio, #meuamigosecreto) contribuem para a organização de mulheres e meninas contra o machismo. Enquanto movimento de mulheres precisamos acompanhar essas ações e implementar as nossas análises a partir delas. São pontapés que precisam ser trabalhados”, explica Bárbara. Gabrielle Nascimento é uma estudante de 16 anos que, assim como a pedagoga Renata Deça, de 35, teve os primeiros contatos com o feminismo através da Internet. Ambas destacam o papel dos blogs, sites e canais no Youtube nas suas descobertas sobre o que é o movimento e suas reivindicações. Em comum, essas mulheres também tem o fato de ambas já terem sofrido algum tipo de repressão por fazer comentários que defendessem a mulher em situação vulnerável seja online ou não. Renata acredita que as vivências que compartilhamos nas redes sociais devem ser levadas também para vida fora do mundo virtual, “a internet é também vida real, as coisas que fazemos lá, têm consequências reais nas vidas das pessoas, da mesma forma que sou contra e denuncio as opressões nas minhas mídias, na ‘vida real’ também vou à luta”, explica. Já Gabrielle afirma que a prática do feminismo online é uma pratica informativa, de espalhar a ideia. “O feminismo tanto online quanto na vida real são feitos com mesmo intuito mas não acho que a prática online consiga ser igual à prática na rua, não acho que consiga ter um impacto tão forte quanto” defende. Tanto o ambiente virtual, quanto o movimento feminista apresentam pluralidade de conteúdos e ao mesmo tempo pensamentos divergentes sobre o mesmo tema, abrindo assim o diálogo e expandindo o alcance. Por esse motivo é preciso cuidado e atenção quanto às informações divulgadas nas redes sociais. Renata ressalta: “é um ótimo meio de propagação de informações, tudo chega muito rápido, e todo mundo pode ter acesso. É fácil se manter informado pela internet. Mas é sempre bom verificar as fontes”.


a forca que vale ‘

menos

John Soares johnsoaresjornalismo@gmail.com

O Brasil é um país demarcado pelas desigualdades em vários aspectos, porém uma das que mais se destaca é a desigualdade de gênero principalmente no mercado de trabalho e na política, umas das principais esferas de uma sociedade. Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) atualmente a população feminina com mais de 10 anos de idade é maior que a masculina e maior também na população economicamente não ativa. Em 2009, em média, eram 10,6 milhões delas na força de trabalho, sendo 9,6 milhões ocupadas e 1,1 milhão desocupadas. Porém, elas são minorias na população ocupada. O contingente de mulheres na inatividade foi estimado em 11,3 milhões.

A Pesquisa Mensal de Emprego (PME) de 2009, revelou que das sete categorias analisadas a participação da mulher na indústria, construção, comércio, serviço prestado a empresas e outros serviços ainda é minoria, tendo maioria na participação dos grupamentos que incluíam a administração pública e serviços domésticos, tendo quase participação absoluta. Segundo Dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) coletados em 2014 indica que o nível de carteira assinada para mulheres cresceu 5,93% em relação ao ano anterior. Em 2010, a disponibilização de empregos para as mulheres no Brasil era de 18,3 milhões de postos de trabalho, já em 2011 esse nú-


mero aumentou para 19,4 milhões, porém o aumento nas ofertas de trabalho não minimizou os impactos salariais, homens continuam ganhando mais que as mulheres. No Cadastro-Geral de Empregados e Desempregados (Caged), a relação de salários entre homens e mulheres passou para 85,97% com um crescimento de 4,94% no salário das mulheres contra 4,74% aos homens. Dados do Relatório Global de Equidade de Gênero, do Fórum Econômico Mundial revela que a equidade de gênero no mercado de trabalho no Brasil pode durar até 80 anos.

TRANSEXUALIDADE NO MERCADO DE TRABALHO Diante de todas as dificuldades enfrentadas pelas mulheres na conquista e manutenção dos seus empregos, existe uma parte da população feminina que sofre muito mais na conquista desse objetivo primordial: o emprego. Geovana Soares, 22 anos, travesti, faz parte da diretoria da AMOSERTRANS (Associação e Movimento Sergipano de Travestis e Transexuais) e também integra o Coletivo de Mulheres de Aracaju. Ela trabalha em uma pizzaria como atendente e diz que só existem duas mulheres no quadro de. “Sempre acabo ouvindo uma piadinha ou uma conversa num tom machista entre eles, mas procuro relevar e fazer o meu trabalho. Nunca me ofenderam diretamente e lidam bem com o fato de eu ser travesti. ”, diz ela. Outro ambiente de trabalho comum entre travesti e transexuais que não estão na prostituição é o trabalho como cabeleireira, sendo autônoma ou em salões formais. Linda Brasil, 43 anos, estudante de Letras/ Português/Francês, trabalha como cabeleireira em sua residência. Ela diz que já trabalhou de carteira assinada, mas não como Linda Brasil, “não era eu”, diz. “Depois que assumi minha verdadeira identidade, nunca procurei emprego de carteira assinada e nem pretendo, justamente por isso que optei por trabalhar como autônoma, pois seria mais fácil”, ressalta diante das dificuldades e obstáculos encontrados na procura do emprego formal.Mulheres transexuais são vítimas diárias de uma sociedade que além machista e patriarcal se mostra LGBTFóbica e marginaliza todos pertencentes a sigla. A busca pelo emprego fica ainda mais difícil para elas, 90% vêem a prostituição como o único meio de manter o seu sustento, segundo dados da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais).

a luta e diaria

Dentre as diversas dificuldades enfrentadas pelas mulheres no ambiente de trabalho o machismo, o assédio moral e sexual são os seus maiores problemas. Um relatório divulgado pela BBC Brasil, em 2015, e realizado pelo site Vagas.com informa que o assédio moral no trabalho tem proporções semelhantes entre homens (48%) e mulheres 52%, porém no que se diz respeito

a assédio sexual, elas são vítimas em um número alto chegando em, 80% dos casos. Josenilde Dantas, 50 anos e mãe de 5 filhos, é agente comunitária de saúde e integrante do Coletivo de Mulheres de Aracaju e diz que já sofreu assédio como forma de piadas na tentativa de desqualificar o seu trabalho. Ela conta também que já sofreu assédio sexual nas ruas por onde trabalha. “Por ser um trabalho realizado nas ruas, fica difícil comprovar os assédios”, lamenta. Um estudo do Peterson Institute for International Economics, que investiga o impacto da diversidade de gênero nas empresas, revelou que o desempenho das empresas melhora quando mulheres estão em posições de liderança no meio corporativo. Dados investigados de 21.980 empresas em 91 países mostraram que empresas com pelo menos 30% de presença feminina em cargos executivos sêniores tem lucro maior 15% do que aquelas cuja a presença é menor. Dentre diversos fatores que impedem a mulher a conquistar tais posições de liderança em diversas empresas, está na falta de confiança por parte dos seus superiores. Mulheres sempre foram inferiorizadas no ambiente de trabalho, como conta Iza Jakeline Barros, 33 anos. Ela é chefe de manutenção na Secretaria de Segurança Pública do Estado de Sergipe e no seu serviço, ela lidera um grupo de 10 pedreiros. Ela conta que existem tensões diárias no seu trabalho devido a falta de respeito que sofre por parte dos homens pelo simples fato de não aceitarem uma mulher comandando o serviço ao qual pelo longo da história foi demarcado para homens. “Eu mantenho uma certa postura para evitar alguns constrangimentos e mesmo sem querer acabam me respeitando” conta. Por ser negra, Iza acrescenta que sofreu racismo, preconceito de classe e machismo onde um dos rapazes a chamou de negra pobre, que ela não entendia nada sobre o serviço e que mulher em obra só serviria para levar assovios de peão (como são chamados os trabalhadores).

no poder, sem poder

O poder hegemônico sempre foi voltado para o público masculino, na maioria dos setores da sociedade seu domínio é quase absoluto. O poder sobre decisões públicas, que deveria ser neutro em ralação a gênero, é dado aos homens, resultando em pouca sensibilidade desse público decisivo em relação ao público feminino, seus direitos e suas exigências. E ainda abala a representatividade da classe nas instituições políticas nas quais são tomadas decisões em comum a toda nação. Após uma intensa campanha nacional, a conquista do voto feminino ocorreu no ano de 1932, no governo de Getúlio Vargas, porém apenas mulheres casadas, autorizadas pelos maridos, viúvas e com renda própria teriam


público decisivo em relação ao público feminino, seus direitos e suas exigências. E ainda abala a representatividade da classe nas instituições políticas nas quais são tomadas decisões em comum a toda nação. Após uma intensa campanha nacional, a conquista do voto feminino ocorreu no ano de 1932, no governo de Getúlio Vargas, porém apenas mulheres casadas, autorizadas pelos maridos, viúvas e com renda própria teriam direito ao voto. Apenas em 1934, quando o direito ao voto foi consolidado na Constituição, foram eliminadas todas as restrições do Código Eleitoral, embora a obrigatoriedade do voto continuasse a ser apenas masculina. Em 1946, a obrigatoriedade foi estendida às mulheres. As estatísticas reveladas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em 2014, mostram que o eleitorado feminino é a maioria no país com o número de 52,13% enquanto o masculino é de 47,78%, com uma diferença de 4% a mais de mulheres de todas as faixas (de 16 anos aos 79 ou mais). Os dados do eleitorado feminino ainda revelaram que o crescimento do voto feminino alcançou a marca de 5,81% a mais em relação as eleições de 2010. Apesar de as mulheres terem uma maior participação nas eleições, sua presença em posições de poder na política ainda é menor que a dos homens, que assumem tais cargos em um número expressivamente maior. Segundo a legislação vigente, cada gênero deve ter no mínimo 30% e no máximo 70% de representatividade em todos os cargos - deputados federais, estaduais, distrital e vereador. Essa regra passou a ser válida após o decreto da Lei número 12.034/2009, uma pequena reforma na lei 9.504/1997 para que a presença feminina nas candidaturas fosse obrigatória. No Congresso Nacional, a presença feminina é bem inferior comparada aos homens. No Senado Federal, 12 cadeiras são ocupadas por elas, correspondendo a 14,81% dos cargos. Já na Câmara dos Deputados existem 51 representantes, equivalente a 9,94%. Levando em consideração que o Congresso possui 594 cadeiras, apenas 63 são ocupadas por mulheres. Supondo que uma pizza de 10 fatias representasse o nosso Congresso, 9 delas seriam devoradas por homens e apenas uma seria dividida entre as mulheres entre as mulheres. No Brasil, existe apenas um partido político voltada para a mulher, o Partido Da Mulher Brasileira (PMB), porém até nesse partido a representatividade feminina é escassa. O partido possui filiações em 18 estados. Dos 18 presidentes do partido nesses estados, 10 são mulheres e 8 são homens.


Existe no Brasil, um Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, a partir desse plano foi criada, em 2003, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República que promove a formulação, coordenação e articulação de políticas públicas que visem a inserção da mulher no meio político, gerando uma igualdade de gênero. Dados divulgados pela União-Inter Parlamentar em 2015, indicam que de um ranking de 190 países, o brasil ocupa apenas a 116 posição quanto a representatividade feminina no Legislativo. Em Sergipe, conforme dados da Secretaria de Tecnologia da Informação (STI), divulgados pelo Tribunal Regional Eleitoral de Sergipe, o eleitorado feminino corresponde a 768.231 equivalente a 55,14% enquanto o masculino é de 685.934 totalizando 44,86% dos votos aptos. A representatividade das mulheres em cargos políticos em Sergipe não é diferente da realidade do país. A bancada de deputados federais no estado não conta com nenhuma mulher e a bancada estadual tem apenas quatro representantes num total de 24 cadeiras. Para Josenilde Dantas, a maior dificuldade da inserção da mulher são internas aos próprios partidos, onde o machismo começa a ser reproduzido a partir do momento que os próprios homens querem discutir políticas para as mulheres sem qualquer tipo de consulta. “Eles querem decidir os nossos rumos. É preciso que a mulher se empodere dos seus conhecimentos políticos e se fortaleça na sua unidade coletiva”, diz ela. No ano passado, nenhuma pauta feminina foi aprovada no Congresso. O que segundo Bárbara Nascimento, feminista e presidente do PSOL em Aracaju, é preocupante pois, pautas conservadoras vem tomando espaço no congresso, como o estatuto da família, do nascituro e o projeto de lei (PL) 5069/13, que se aprovado implicará em uma restrição para ter assegurada a profilaxia e o atendimento no SUS em casos de estupro de mulheres. Um dos maiores problemas da baixa representatividade feminina na política trás impactos diretos na vida de todas as mulheres, devido a secundarização dessas pautas e a discussão das mesmas por homens, onde eles decidem assuntos que são pertinentes às mulheres. No que tangem as políticas públicas direcionadas as mulheres a situação é a mesma. “O machismo é estruturante de um sistema que explora a força de trabalho e pode ser sentida na desigualdade que se acentua quando comparamos homens brancos com mulheres negras.” ressalta ela.


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MACHISMO EXCLUI ^ MULHERES DA CIENCIA Nas Ciências Exatas, mulheres passam por “efeito tesoura” diante das dificuldades que enfrentam na graduação e pós-graduação Matheus Brito luismatheusbrito@gmail.com

ALESSANDRA foi a única aluna do curso de Engenharia Mecânica enquanto esteve na universidade. No primeiro dia de aula, um de seus professores disse que era melhor ela voltar para casa e ficar na cozinha porque, para ele, lugar de mulher era lá. Alessandra, no entanto, seguiu em frente para obter o diploma. Durante sua estadia na Universidade Federal do Ceará (UFC), ela teve uma única professora e trocou as roupas coloridas por roupas de cor neutra, como branco, cinza e preto, para que não chamasse atenção de professores e colegas. . Por causa dos constrangimentos que sofria fora e dentro da sala de aula, Alessandra pegava turmas nos cursos que possuíam mais mulheres, como os de Engenharia Civil e de Engenharia de Produção, ou mudava o percurso que fazia entre as didáticas do campus. Um dos professores parava a aula para vê-la passar pelo

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corredor. Depois de quase oito anos para concluir o bacharelado entre 1991 e 1999, Alessandra prosseguiu com o mestrado e doutorado. Na pós-graduação, porém, ela não deixou de ser intimidada pelo fato de ser mulher. No mestrado na UFC, um dos professores colocava obstáculos nas ideias que ela desejava pôr em prática. Já no doutorado, ela também teve desentendimentos com um professor que não aceitava suas decisões e que a proibiu de ter acesso ao laboratório da universidade e de manusear os equipamentos sem o auxílio de um homem. “E ele falou exatamente com essas palavras: ‘Alessandra só pode ter acesso às máquinas se tiver um menino observando’”, afirma ela, que fez o doutorado na Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais. Assim como Alessandra, única aluna no doutorado em Engenharia de Produção, os colegas dela também ficavam constrangidos por causa da imagem que os professores construíam dela. “Se eu consegui alguma coisa, não foi porque eu fiz bem feito, mas foi porque eu sou mulher, porque eu sou bonita. Qualquer outra coisa, menos porque eu trabalhei direito”. Alessandra iniciou o doutorado em Engenharia Mecânica em 2003 e o finalizou em 2012. Ao longo da formação, ela ainda lidou com o cargo das tarefas domésticas e da criação de um filho, que hoje tem 17 anos. Alessandra de Azevedo é hoje professora do curso de Engenharia Mecânica da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e coordenadora do projeto de extensão “Lugar De Mulher É Na Oficina – Quebrando Paradigmas”, que coloca alunas do curso em posições de liderança. Ela convive com mais duas professoras e nove professores no Departamento de Engenharia

Mecânica da universidade, que foi criado no ano de 2007. A primeira turma do curso possuía duas alunas e 48 alunos. Dessas duas, apenas uma se formou. O ambiente com pouca participação feminina que Alessandra enfrentou na graduação na década de 1990 se modificou um pouco. De acordo com o censo 2011 do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), cerca de um terço das pessoas matriculadas em cursos de Engenharia no país era do sexo feminino. Por outro lado, o número de alunas no curso de Engenharia Mecânica da UFS não é tão diferente do que foi no início, há nove anos. São 41 alunas e 222 alunos matriculados. Com o projeto “Lugar De Mulher É Na Oficina”, Alessandra decidiu atrair as meninas do curso para a área de especialização dela, soldagem. As 11 meninas que fazem parte do projeto criam protótipos de carros e oferecem minicursos sobre algumas áreas da engenharia para a comunidade. O projeto existe há quase dois anos e é financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). As garotas do projeto também trabalham com alunos do curso de Engenharia Mecânica. Segundo Alessandra, há uma tendência dos meninos

"Se eu consegui alguma coisa nao foi ,

porque eu fiz bem feito, mas foi porque eu sou mulher porque eu sou bonita."

Professora Alessandra de Azevedo com os alunos do projeto “Lugar de Mulher é na Oficina”. Foto: Adilson Andrade (Ascom/UFS)


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colocarem as meninas em funções de secretariado nas atividades: “’Ela tem a letra mais legal, ela tem a letra melhor’”, disse ela a respeito da postura dos alunos. A docente tenta podar essas atitudes e, para inverter as funções, coloca os meninos do projeto para exercer as atividades que não envolvem esforço físico. Nesse tipo de função, a professora distribui as tarefas entre os mais robustos do grupo. Uma das deduções dela no projeto é a respeito do desenvolvimento das alunas que, aos poucos, conseguem expor, argumentar e defender melhor suas ideias. A professora Drª. Márcia Barbosa, coordenadora do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), diz que as mulheres passam por um “efeito tesoura” na área acadêmica, principalmente nas áreas de Ciências Biológicas, Exatas e da Natureza. Enquanto estava no mestrado multidisciplinar em Engenharia Mecânica e de Materiais na Universidade do Ceará, a professora Alessandra de Azevedo conviveu com mais três colegas. Ela foi a única aluna no doutorado em Minas Gerais e foi a única que desenvolveu projetos na área de soldagem nas duas etapas da pós-graduação.

MENINAS NA COMPUTAÇÃO Patrícia Lima Soares, professora de Química do Colégio Estadual Atheneu Sergipense, engravidou durante a execução de um projeto financiado pelo Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento (CNPq) e pela Petrobras. O ano era 2014 e Patrícia assegurou seu direito à licença maternidade. Assim, ela pôde pausar o projeto por dois meses. No entanto, caso a professora engravidasse um ano antes, o CNPq poderia não aceitar a licença maternidade, pois somente em 2013 o conselho garantiu esse direito às pesquisadoras financiadas. Entre dezembro de 2013 e novembro de 2014, Patrícia liderou no Atheneu Sergipense o projeto “Meninas na Computação”, coordenado pela professora Drª. Maria Augusta Silveira Netto Nunes, docente do curso de Ciências da Computação da UFS. Patrícia orientou três alunas do ensino médio que desenvolveram projetos interdisciplinares com a linguagem de programação Scratch, desenvolvida pelo Laboratório de Mídia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Quando cursava o ensino médio na antiga Escola Técnica (Instituto Federal de Sergipe) e a graduação na UFS, ela conviveu com muito mais homens do que com mulheres. Patrícia teve mais facilidade com as disciplinas da área de Ciências Exatas do que com as Ciências Humanas, pois o curso Técnico de Química que fez na antiga Escola Técnica priorizava disciplinas como Matemática, Física e Química. No mestrado em Química que fez entre 2006 e 2009 na UFS, ela também teve de lidar com uma gravidez e pausar o projeto de pesquisa. Esse hiato a fez passar por alguns problemas para concluir os estudos. A professora do Atheneu também já


precisou desistir de um concurso na UFS por conta do rendimento salarial que teria e dos índices de exigência de produção acadêmica. Um dos colaboradores do projeto Meninas na Computação foi o professor de Física da UFS, o Dr. Tiago Nery Ribeiro, casado com Patrícia. Carolina Teodoro, Fernanda Lemos e Poala Eloá foram as alunas bolsistas do Atheneu que participaram do projeto. Em 2014, elas lideraram a turma do 2º ano do ensino médio da qual faziam parte e ajudaram a professora Patrícia na aplicação da linguagem de programação em sala de aula. Para Carolina Teodoro, aprovada no curso de Farmácia da UFS em 2016, a convivência com a professora Patrícia foi fundamental para escolher um curso superior. Ciências da Computação foi a segunda escolha dela no Sisu (Sistema de Seleção Unificada). Para a graduação, as meninas não optaram pelas

"OS MENINOS SE TOLERAM A FICAR HORAS E HORAS FAZENDO O MESMO EXERCICIo. as MENINAS, NORMALMENTE, SAO DESENCORAJADAS."

Ciências da Computação, curso que tinha 81,2% dos alunos do sexo masculino em 2008, conforme o IBGE. Preferiram seguir nas áreas de Ciências Biológicas. No Atheneu Sergipense, elas tiveram contato apenas com professoras de Química. Para Patrícia Soares, isso foi um diferencial para a formação das bolsistas, que se aproximaram da disciplina porque foram estimuladas e se espelharam nas professoras. Para a criadora do projeto, a professora Maria Augusta Silveira, o Meninas na Computação, mesmo com o alcance e recursos limitados, seria uma das medidas para equiparar a relação de homens e mulheres no mercado de trabalho. O estigma e sexismo na área de Computação, diz a professora, contribuem para pensar que as mulheres não são capazes de se destacar na área e, na maioria das vezes, precisam se esforçar mais que os homens.

Segundo uma pesquisa da revista norte-americana Nature, as mulheres precisam demonstrar 2,5 vezes mais produtividade do que os homens para serem consideradas competitivas. Maria Augusta convive com oito professoras e 26 professores no Departamento de Computação da Universidade. Ela pensou em criar o projeto e dar a ele um recorte de gênero enquanto participava de um programa de incentivo à ciência da Sociedade Brasileira de Computação, o “Almanaque para popularização de Ciências da Computação”. Segundo Maria Augusta, o número de mulheres na área de Ciências Exatas cai a cada ano, principalmente na área de Computação. Conforme o censo do IBGE de 2010, as mulheres totalizavam 25% dos profissionais da área de TI no Brasil. ONDE ESTÃO AS CIENTISTAS? No primeiro dia de aula, os alunos do curso de Matemática, Saneamento, Segurança do Trabalho e Eletrônica do Instituto Federal de Sergipe (IFS) recorrem à memória para citar nomes de mulheres cientistas. A maioria permanece calada enquanto alguns citam a polonesa Maria Curie, única ganhadora do prêmio Nobel em duas categorias distintas – Física e Química – e a única mulher a ganhá-lo duas vezes. É a partir desse exemplo que os alunos da professora de Português do IFS, Elza Ferreira Santos, desmistificam os estereótipos de gênero em sala de aula, embora a falta de exemplos de mulheres cientistas não seja acidental. Segundo o Instituto Unesco de Estatísticas, o público feminino soma 30% dos pesquisadores e ocupa 10% dos cargos de liderança em áreas científicas nas universidades e no setor privado ao redor do mundo. O processo de exclusão da mulher na ciência se inicia no ensino médio. Até o ensino fundamental, diz Elza, a diferença entre as notas de meninos e meninas na Matemática é irrisória ou inexistente. Na maioria das edições da Prova Brasil, do Ministério de Educação, do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) e da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), os meninos se destacam na Matemática e as meninas na área de leitura. Segundo Elza, a escola é responsável por esse resultado desarmonioso. Segundo uma pesquisa do National Bureau of Economic Research nos Estados Unidos, professores de matemática podem dar notas maiores para as meninas quando não sabem que elas são meninas. Um dos primeiros problemas é a falta de representatividade nos livros didáticos, afirma Elza: “Você pega um livro de Física e não vê exemplos com mulheres, mas exemplos com homens”. Ela ainda sinaliza que, entre o final do ensino fundamental e ensino médio, há poucas professoras nas áreas de Ciências Exatas, especialmente em Física – no Instituto, não há professoras dessa área. Para ela, há um processo de naturalização da capacidade de cognição masculina e de subestimação das habilidades que as meninas possuem em áreas de Ciências Exatas.


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“Os meninos se toleram a ficar horas e horas fazendo o mesmo exercício. As meninas normalmente são desencorajadas”, afirma. Outro exemplo de exclusão das mulheres da ciência, segundo a professora do IFS, está ligado ao perfil de quem se dá bem com matemática, o qual se assemelha a um “gênio isolado”. Tal perfil vai de encontro aos valores de socialização que a sociedade impõe às mulheres: “Ela foi treinada para ser bacana, legal, gentil, agradável. Ela não foi criada para ser ‘CDF’”, diz. Na tese de doutorado As armas de Marte no espelho de Vênus - a marca de gênero em Ciências Biológicas, a pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Mulher (NIEM), ngela Maria Freire de Lima Sousa, concluiu que as mulheres que se formaram na área de Ciências Biológicas na Universidade Federal da Bahia entre 1973 e 2000 incorporaram um perfil masculino. Além disso, o perfil de cientista determinado pela sociedade também é branco, heterossexual ou assexuado e de meia-idade, afirma a professora. Uma pesquisa da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, constatou que físicos, químicos e biólogos tendem a ver os homens de maneira mais favorável que as mulheres, mesmo que eles possuam as mesmas qualificações que elas. . Devido às adversidades pelas quais as mulheres passam no ensino médio, muitas delas não têm condições de enfrentar cursos cuja principal matriz é a matemática. As áreas de Ciências Humanas e Ciências Sociais se tornam o principal antro das mulheres que optam pela academia. Isso se reflete também no mercado de trabalho, onde as mulheres são a maioria nos setores de serviço – áreas de saúde, educação, comércio e administração – e os homens, nos setores tecnológicos. Segundo a professora coordenadora do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da UFS e coordenadora da Executiva da Rede Feminista Norte, Nordeste de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher e Relações de Gênero (REDOR), Drª. Maria Helena Santana Cruz, essa segmentação é resultado dos processos de socialização que homens e mulheres vivenciam com base nos estereótipos de papel de gênero. Para Maria Helena, é a divisão sexual do trabalho que vai determinar em qual área se concentram homens e mulheres. No livro Mapeando Diferenças de Gênero no Ensino Superior da Universidade Federal de Sergipe, a professora Maria Helena atribui a falta de participação e ascensão das mulheres na academia aos valores “androcêntricos” da ciência, ou seja, o uso indiscriminado do homem como parâmetro e padrão para resumir a sociedade e a comunidade científica. Durante a pesquisa para o livro, a professora Maria Helena também constatou que o público feminino passa mais tempo para se especializar em uma área do que os homens e tem mais dificuldades de assumir cargos de chefia, o que é resultado da sobrecarga das atividades domésticas e familiares que são atribuídas às mulheres. O índice de mulheres que são responsáveis pelas atividades domésticas é de nove


em cada dez e o de homens é de quatro em cada dez no Brasil, segundo o Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” (Nepo) da Unicamp (Universidade de Campinas), que se baseou nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) entre 2001 e 2012. Isso, segundo Maria Helena, pode refletir na paridade de professores. Entre 2009 e 2010, a universidade possuía 1.273 professores em três campi – 723 homens e 550 mulheres. Além das atividades domésticas, as mulheres na universidade enfrentam as rotinas e exigências de produção científica para manter os financiadores e progredir na carreira. “Se a mulher quer ter uma vida familiar, ela não consegue o mesmo nível de desenvolvimento e dedicação intelectual [que o do homem], pois é muita sobrecarga. O homem sempre joga a carga para mulheres, mas a mulher joga para quem?”, diz a professora Maria Augusta Silveira, do Departamento de Computação. Até 2010, a maioria dos professores da UFS com doutorado era do sexo masculino (56%). Maria Helena iniciou em 1992 as primeiras ações que criariam o Núcleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares sobre a Mulher e Relações de Gênero (Nepimg), no Departamento de Serviço Social da UFS. Na década de 1990, a principal dificuldade dos trabalhos com temática de gênero no Brasil era conseguir financiamento. O primeiro projeto da professora com o recorte de gênero sobre o trabalho das docentes na universidade enviado ao CNPq foi rejeitado, porque não era prioridade do conselho. O CNPq só começou a financiar e abrir editais para as discussões de gênero com a criação da Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), criada em 2003, no primeiro mandato do ex-presidente Lula. Até outubro de 2015, a SPM possuía status de ministério e estava ligada à Presidência da República. Naquele mês, a SPM se uniu às secretarias de Direitos Humanos, de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) para criar o Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos. Em 12 de maio de 2016, após o afastamento da presidenta Dilma Rousseff por causa da admissibilidade do processo de impeachment no Senado, o presidente interino Michel Temer extinguiu esse ministério. IDEOLOGIA DA FEMINILIDADE Numa atividade com a turma do último período do curso de Eletrotécnica do IFS, os cinco alunos da turma da professora Elza Ferreira discutiam a possibilidade de realizar concursos em outros estados. As meninas da turma, por outro lado, não pretendiam seguir a carreira na universidade. Para ela, as meninas não foram encorajadas a se desafiarem nem a ousar. Elza conta ainda que o mercado de trabalho pode ser muito mais hostil para as mulheres do que para os homens. O público feminino que se forma em Engenharia, na maioria dos casos, recua do mercado de trabalho devido a uma aceitação maior na universidade. A tese de doutorado de Maria Helena Santana Cruz fala da participação das mulheres nas indústrias

extrativistas de Sergipe. Na década de 1990, os homens representavam 93% dos empregados, mesmo com o elevado nível de escolaridade das mulheres. Por causa da masculinização desses ambientes, elas não conseguiam progredir na carreira. O mercado e a estrutura social podem exigir a perda da postura feminina para que a mulher se torne igual entre os colegas de trabalho, indica Elza Ferreira. “Ela precisa tomar uma postura de mais agressiva, de mais firme”. A forma como a mulher se expressa no mercado de trabalho pode ser uma “faca de dois gumes”. Para a docente de Português, a mulher vai precisar viver com o conflito de se aproximar mais de uma figura masculina ou não e lidar com as piadas de conotação sexual. “No início do século XX, as mulheres não eram maciçamente professoras, e quando algumas começaram a se tornar, elas eram ou muito feias ou ‘solteironas’”. Um dos primeiros passos que podem mudar esse quadro de exclusão é promover debates sobre gênero e sobre a condição da mulher nos espaços de poder. “Nós precisamos de homens e mulheres feministas”, conclui Elza. A escola é apenas um dos problemas para as garotas se inserirem na ciência e tecnologia. O primeiro impasse surge na família, que não legitima as escolhas das mulheres que optam pelas áreas tecnológicas. Os estereótipos de gênero são interiorizados por meio dos valores que se adquirem e se difundem na família, na escola e em outros espaços, segundo a professora Maria Helena Santana. Em ambientes masculinizados, as mulheres correm o risco de se apropriarem da própria masculinização para se sentir igual aos homens. “Muitas mulheres acham que para serem respeitadas, como no Direito, devem exercer o papel masculino”.

"nos precisamos de homens e mulheres feministas”


COADJUVANTES DAS PRÓPRIAS HISTÓRIAS Mulheres reivindicam o direito de decisão sobre vida pública e privada

Texto, diagramação e arte| Iris Brito Lopes Fotos|John Soares Modelo| Yasmin Azevedo



CERTA VEZ, li na página do facebook uma dessas frases publicadas por movimentos ativistas que são julgadas pela superficialidade, mas que podem levar a reflexões aprofundadas sobre questões histórico-sociais. “Não queremos que as mulheres tenham poder sobre os homens, apenas sobre si mesmas”, compartilham mulheres que reivindicam o direito de decidir sobre seus próprios corpos, vida pública e privada. “É isso! ”, pensei. O que queremos é a liberdade de escolha desde a roupa que usamos à profissão que exercemos. Na vida política, por exemplo, apesar de termos garantido o direito ao voto e sermos maioria do eleitorado, ainda ocupamos apenas 10,4% do parlamento brasileiro. Recentemente, ao assumir o cargo de presidente interino da República, Michel Temer repaginou seus ministérios só com homens, o que não ocorria no Brasil desde o governo de Geisel, de 1974 a 1979. Além disso, a pasta de Mulheres, Igualdade Racial e Juventude foi absorvida pelo Ministério da Justiça. Ainda que a presença feminina não signifique, necessariamente, o levantamento de pautas voltadas ao gênero, as mulheres precisam ter autonomia para ocupar os espaços políticos. No mercado de trabalho, nossos salários são 24% inferiores aos dos homens, mesmo no desempenho das mesmas atividades, de acordo com o relatório “Progresso das Mulheres no Mundo 2015-2016: Transformar as economias para realizar os direitos”, divulgado pela ONU no ano passado. Mesmo quando conseguimos subverter a lógica de que não devemos frequentar os espaços de debate público e de produção intelectual, não conseguimos ocupá-los efetivamente por conta da sua inadequação à nossa presença. Prova disso é que somente a partir deste ano, após 55 anos de existência, o Congresso Nacional vai ter um banheiro privativo para as mulheres. Não é difícil imaginar o quanto as ideias das parlamentares recebem menos atenção simplesmente pelo gênero da autoria.

E também não é preciso ir muito a fundo para perceber o tratamento dado à presidenta Dilma Rousseff (afastada no último dia 12 para julgamento do processo de impeachment), por exemplo, pelo incômodo que ela causa ao ocupar o maior cargo do executivo. A insultam com xingamentos machistas, comentam sobre sua vida sexual e a acusam de histérica e descontrolada como características próprias do gênero feminino na tentativa de desqualificar seu trabalho. Acusação parecida já aconteceu com Aline Braga, jornalista, 33 anos, que foi chamada de nervosa por ter discordado do chefe. “Ele sempre pedia para que eu fizesse alguma coisa e depois dizia: ‘olhe, cê não tá nervosa, não, né?! Não fique nervosa, não, viu?!’. Eu comecei a pensar e lembrei que há um tempo eu tinha reivindicado umas coisas de uma maneira mais enfática e aí eu entendi de onde vinha essa fala”. “Se você não está nervoso, por que eu estaria?”, foi a resposta que Aline usou para barrar a repetição desses comentários. Para Aline, a postura debochada e agressiva diante do comportamento incisivo da mulher acontece devido aos papeis diferentes e hierarquizados que os gêneros assumem. “Como meu pai bem diz, quem tem poder não se altera. O homem está sempre tranquilo dando ordens, porque, se alguém não cumprir, já sabe... É igual ao rei: fica sentado mandando matar todo mundo e não se exalta porque sabe que nunca vai vir nenhuma espada na sua barriga”, compara. Lembro-me bem de uma vez que, enquanto conversava com umas amigas sobre os ataques racistas que a jornalista Maria Júlia Coutinho, apresentadora da previsão do tempo do Jornal Nacional, sofreu na internet, uma delas afirmou não gostar de seu trabalho por ela “ser muito desaforada, falar como se tivesse certeza do que estava falando”. Mais uma vez, uma frase reproduzida pelo ativismo feminista atende um problema social de raízes profundas: “dizem que as mulheres falam muito, porque nossa voz é comparada ao silêncio, não à voz dos homens”. Ora, ela deveria estar calada, mas está falando. Deveria estar quieta, mas discordou e levantou a voz. Ou, para associar a outras conjunturas, podemos ficar com “a Casa Grande surta quando a senzala aprende a ler”.


Bianca Menezes* é estudante de Psicoogia, tem 20 anos e foi frustrada logo nas primeiras vezes em que tentou ingressar no mercado de trabalho. Na primeira experiência, foi assediada pelo contratante na fase de teste para a função de recepcionista. “Na hora que ele tava me ensinando as fitas do café e tal, me perguntou se eu namorava. Eu disse que não, aí ele: “algum homem já gozou na sua boca? ” Eu fiz: O QUÊ?!”, relembra indignada. Nessa época, Bianca tinha 17 anos, achou que tinha entendido errado e continuou fazendo o teste depois do homem ter mudado de assunto. “No final do dia ele falou que tinha gostado muito de mim, eu estendi a mão e ele me puxou, entrei em choque, empurrei ele na hora e vazei”. O pai de Bianca prometeu denunciar, mas nenhuma providência foi tomada. Da segunda vez, o assédio foi de outro tipo. Já na fase de experiência para ocupar um cargo também na recepção de uma empresa, Bianca percebeu que o gerente assediava as funcionárias moralmente as insultando de “burra” e “vaca”. “Uma delas chegou a desenvolver síndrome do pânico”, conta. Bianca só aguentou vinte dias. “Depois disso eu não senti vontade de trabalhar em mais nenhum lugar, prefiro fazer cookie e vender na faculdade. Não quero ficar trabalhando para um homem que, sei lá, é ridículo ou babaca”, desabafa. As hostilidades desses espaços às mul heres servem para reforçar os papeis culturamente postos aos gêneros e acabam limitando o poder de decisão sobre suas próprias vidas. Engana-se, porém, quem pensa que a restrição só acontece no ambiente participativo do mercado de trabalho e político. * Nome fictício para preservar a identidade.


Controle que violenta

A LÓGICA de restrição de participação da mulher nos espaços da vida pública está inserida numa lógica muito maior de negação da autonomia do gênero feminino, que diz às mulheres qual deve ser o seu comportamento e que, em muitos casos, resulta em objetificação dos seus corpos. A urgência do combate à violência contra a mulher é uma realidade da qual a sociedade, aos poucos, parece se dar conta. Organismos internacionais se mobilizam, como na criação da ONU Mulheres, e a pauta foi incluída no ordenamento jurídico brasileiro, através da ratificação da Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (CEDAW) e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher — Convenção de Belém do Pará. Somente em 2006 a lei Maria da Penha foi criada com a função de proteger as mulheres da violência doméstica e punir seus agressores. A lei do Feminicídio é ainda mais recente, sancionada no ano passado para qualificar o homicídio por gênero. É difícil esperar muita ação de um congresso que sequer se preocupa com a presença feminina lá dentro. Os esforços, porém, já têm resultado na informação da população. Apenas 2% da população brasileira desconhecem a Lei Maria da Penha, sendo que 54% afirmam conhecer uma mulher que já foi agredida por um parceiro e 56% conhecem um homem que já agrediu uma parceira, de acordo com o relatório “Percepção da sociedade sobre violência e assassinato de mulheres”, realizado pela Agência Patrícia Galvão. Só entre 2006 e2013 as denúncias de agressão à Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, aumentaram 600%, o que demonstra um maior encorajamento das mulheres a fazerem denúncias. A percepção não é para menos. De acordo com o Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres, 4.762 mulheres foram assassinadas no Brasil só em 2013, o que representa uma média de 13 mulheres assassinadas por dia e, segundo o levantamento da Organização Mundial de Saúde (OMS), divulgado em 2013, 35% da população mundial feminina com mais de 15 anos já sofreu violência física ou sexual. O que parece ser muito mais difícil de perceber é a relação da falta de autonomia das mulheres na ocupação dos espaços e decisões sobre suas próprias vidas com a violência praticada contra elas. Tendo em vista que a violência não é só física, como simbólica, sexual, moral, psicológica e patrimonial, a socióloga Mary Alves Mendes, em entrevista ao jornal O Dia, explica que a manutenção da prática da violência está correlacionada à dominação masculina. “Essas práticas de violência são indicativos de controle, mando e posse de homens sobre as mulheres, consideradas inferiores, frágeis e incapazes, representações essas que revelam a introjeção de valores machistas impregnados nas trajetórias de vida através dos diversos processos de socialização de homens e mulheres presentes, sobretudo, na família, escola e Estado”, pontuou.


VIOLÊNCIA FÍSICA

É aquela entendida como qualquer conduta que ofenda integridade ou saúde corporal da mulher. É pra+ticada com uso de força física do agressor, que machuca a vítima de várias maneiras ou ainda com o uso de armas, exemplos: Bater, chutar, queimar. cortar e mutilar.

VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA

Qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima da mulher. Nesse tipo de violência é muito comum a mulher ser proibida de trabalhar, estudar, sair de casa, viajar, falar com amigos ou parentes.

VIOLÊNCIA PATRIMONIAL

importa em qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de objetos pertencentes à mulher, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas suas necessidades.

VIOLÊNCIA SEXUAL

Qualquer conduta que constranja a mulher a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, acontece quando a mulher é obrigada a se prostituir, a fazer aborto, a usar anticoncepcionais contra a sua vontade ou quando a mesma sofre assédio sexual, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade.

VIOLÊN CIA MO RAL Qualque r condu ta que im calúnia porte em - oc afirma fa orre quando o agresso lsamente r ticou cr ime que que aquela pra ela não difamaç cometeu ão ; bui à mu , quando o agre ss lher fato s que m or atrisua repu ac tação; o u injúria ulem a o agress - quand or ofend o e a dign mulher. idade da


EM FEVEREIRO de 2015, a youtuber Jout Jout, após ouvir diversos relatos sobre relacionamentos abusivos, resolveu fazer um vídeo explicando como esse tipo de relacionamento acontece e incentivando as mulheres a se livrarem deles. Apesar de não dar o recorte de gênero, Jout Jout cita várias situações em que, principalmente os homens, são controladores dentro de um relacionamento amoroso, sendo mais famoso o caso de uma amiga que foi constrangida por seu companheiro na mesa de um bar, quando ele ordenou que ela tirasse o batom vermelho, porque estava com “cara de puta”. O caso, inclusive, nomeou o vídeo “Não tira o batom vermelho” que ganhou discussões pelo país. Bianca Menezes não conduziu sua própria história dentro de um relacionamento amoroso. Num namoro que durou um ano, seu parceiro, de 25, tinha ciúmes excessivos sobre suas amizades e tentava controlar suas atitudes. O tempo que passaram juntos foi marcado por cobranças e agressões do homem que já havia sido denunciado por violência pela ex-companheira. Ao tomar conhecimento do caso, Bianca pediu o fim do relacionamento, mas foi convencida por ele a apostar na sua mudança. “Eu acreditei porque ele me fazia bem em alguns momentos, sabe?! Eu pensei: todo mundo erra, todo mundo pode aprender”. As promessas de mudança se estenderam, mas nunca se cumpriram. “Ele assumia que me oprimia e me fazia mal e dizia que queria melhorar. Mas sempre fazia de novo e de novo e de novo. Ele começou a fazer terapia, mas nunca mudava. A gente nunca passou uma semana sem ele implicar comigo por algo, até por eu levar o celular para o banheiro para ouvir música enquanto eu tomava banho”, conta. Apesar de ter consciência sobre os abusos que sofria, Bianca não conseguia pôr fim no relacionamento por acreditar que, de alguma forma, tinha o controle da situação. “Ele me xingava, falava altas coisas, mas depois fazia um almoço perfeito, por exemplo. Eu cheguei a ponto de acreditar que aquilo era o certo, era saudável, que todo casal tinha suas dificuldades e que, por eu ser mulher e ele sempre procurar me agradar mesmo depois de arrombar a porta do banheiro que eu havia trancado por medo, era eu quem estava controlando”.

A última agressão aconteceu porque “ele achou ruim eu dançar com minhas amigas”. Segundo Bianca, após argumentar que ela estava o provocando, o rapaz foi embora com seus pertences e negou devolvê-los mais tarde, quando ela o procurou. “Ele falou que não ia devolver e que eu ia dormir na rua para deixar de ser idiota e me deu um tapa na cara. Eu revidei e apanhei em dobro”, revela. Ao pedir socorro, a Polícia Militar foi acionada, mas não agiu sob a justificativa de não ter presenciado a violência e a vítima não apresentar sangramentos. De acordo com a Lei Maria da Penha, em casos de flagrantes, os policiais devem recolher o casal e levá-lo à delegacia, sendo que a punição é cabível de fiança. Para não se expor, Bianca optou por não fazer exame de corpo delito naquele momento, mas depois constatou que, além dos hematomas, também estava com fratura em um dedo. Assim como Bianca, 625 mulheres fizeram boletins de ocorrência nos três primeiros meses de 2016 em Sergipe, tendo 274 inquéritos instaurados, dos quais 220 foram através de portarias e 54 por flagrantes. Após analisar os boletins, que apresentam apenas os resumos dos fatos, as delegadas ouvem as mulheres e podem despachar as medidas protetivas, que variam de acordo com cada caso e versam sobre distância do agressor, local especial para vítima etc. Os juízes têm até 48 horas para executar a medida. No caso de Bianca, a medida já foi despachada e seu agressor não pode se aproximar mais do que 200 metros de onde ela estiver. Ainda de janeiro a março de 2016, 117 homens foram indiciados pelo crime de violência contra a mulher e 153 inquéritos antigos foram concluídos em Aracaju. Os números são da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher, inserida no Departamento de Atendimento a Grupos Vulneráveis (DAGV) de Aracaju. Por conta da dependência emocional e/ou financeira, boa parte das mulheres desistem da queixa durante o processo de denúncia. Por isso, uma medida do Supremo Tribunal Federal (STF) determinou, em 2012, que mesmo que a mulher retire a queixa, o Ministério Público pode assumir o processo sem representação da vítima ou de vizinhos, conhecidos ou familiares - que também podem denunciar.


“Ele achou ruim eu

dançar com minhas amigas”


Denuncie

DISQUE 180


“Não é a violência que

cria a cultura, mas é a cultura que defime o que é violência”

Segundo a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, em 67,36% dos relatos as violências foram cometidas por homens com quem as vítimas tinham ou já tiveram algum vínculo afetivo. Para Francielle Gazola, do Coletivo de Mulheres de Aracaju, a violência contra a mulher acontece num contexto social de romantização da submissão do gênero feminino. “É construída socialmente a ideia de que a felicidade de uma mulher está num relacionamento romântico e numa família feliz pela

qual vale a pena qualquer esforço, inclusive tolerar a violência, em muitos casos. Para além dessa ideia, muitas vezes há situação concreta de dependência financeira do companheiro, chantagem em relação ao cuidado com os filhos, falta de informações ou perspectivas, dentre outros elementos”, afirma. A doutora em Sociologia pela Universidade de Michigan, Luiza Barros, acredita que a violência contra a mulher é bastante naturalizada na sociedade e isso resulta na sua aceitação. Em entrevista à Agência Patrícia Galvão ela diz que “não é a violência que cria a cultura, mas é a cultura que define o que é violência. Ela é que vai aceitar violências em maior ou menor grau a depender do ponto em que nós estejamos enquanto sociedade humana, do ponto de compreensão do que seja a prática violenta ou não”. Ainda hoje, resiste a ideia de que “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”. Entre as recomendações da Cartilha da Mulher da rede Direitos Humanos na internet se encontra a orientação de que, em casos de violência, as mulheres gritem “fogo” ao invés de “socorro”, porque assim há mais chances de receber ajuda.


Tô na rua, mas não sou tua

NO ANO PASSADO, feministas lançaram a campanha “O que você já deixou de fazer por ser mulher? ”, que em março deste ano ganhou força quando foi aderida pelo Instituto Avon. A campanha incentiva as mulheres a refletirem e publicarem situações em que foram podadas de fazer o que queriam simplesmente por sua condição de gênero. Entre os relatos, os mais frequentes denunciam a falta de liberdade das mulheres para vestirem o que desejarem e saírem de casa sozinhas, ambos pelo mesmo motivo: medo de assédio nas ruas. Não precisa ser mulher para perceber o quão inseguras as ruas são para o gênero feminino, mas só sendo uma para entender o pavor que os olhares e comentários invasivos nos causam quando circulamos. Nem sempre, porém, o assédio fica só nas palavras. Joyce Rocha tem 20 anos, é natural de Poço Verde, interior de Sergipe, e não tinha experiência com o transporte público quando, ao se deslocar para a faculdade, em Aracaju, por volta das 18h, foi surpreendida por um homem excitado encostando-se a seu corpo. “Foi horrível. O ônibus estava lotado, eu não conseguia me mexer. Uma senhora percebeu e começou a falar, mas eu não conseguia fazer nada, ainda em choque”. Quando os passageiros perceberam a situação, coagiram o assediador e ele desceu no ponto seguinte. “Quando eu cheguei em casa chorei muito, pois fiquei muito apavorada”, relembra Joyce. Além de não terem direito ao corpo, as mulheres também não têm direito à cidade. Seis entre cada dez mulheres são abusadas fisicamente no transporte público das principais capitais da América Latina, segundo estudo da Fundação Thomson Reuters. E uma pesquisa publicada em 10 de fevereiro pelo portal de notícias G1, feita em todo o país, revela que oito em cada dez mulheres jovens já receberam “cantadas” violentas ou foram abordadas de maneira agressiva em festas ou lugares públicos. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) causou polêmica em 2014 quando divulgou que 65% da população brasileira acredita que mulheres que usam roupas curtas devem ser estupradas. Posteriormente, o Ipea corrigiu o dado: são 26% que têm esse pensamento. Enquanto alguns se concentravam em apontar a gritante diferença entre um dado e outro, o mais importante ficava de lado: é incabível que a violência seja justificada pela vestimenta das mulheres, numa lógica de culpabilização da vítima e absolvição do algoz.

Incrivelmente, quem ocupa cargos em instituições responsáveis por promover o combate à violência também chega a culpabilizar a vítima. Em março deste ano, uma juíza foi acusada de fazer perguntas ofensivas a uma vítima de estupro durante o depoimento feito após pedido de restrição do seu agressor, no País Basco. Segundo a Associação Clara Campoamor, grupo feminista espanhol de apoio a vítimas de violência de gênero, após ouvir o relato, a juíza perguntou se a vítima, grávida de quatro meses, havia “fechado as pernas e todos seus órgãos femininos”. Para absolver o delegado Moacir Rodrigues de Mendonça da acusação de estupro da própria neta o juiz Eduardo Luiz de Abreu Costa, da comarca de Olímpia - SP, escreveu que “a não anuência à vontade do agente, para a configuração do crime de estupro, deve ser séria, efetiva, sincera e indicativa de que o sujeito passivo se opôs, inequivocadamente, ao ato sexual, não bastando a simples relutância, as negativas tímidas ou a resistência inerte”. Tentar justificar o estupro, por si só, já é violento. Exigir mais resistência da pessoa agredida ao invés de punir o agressor é cruel. Nós, mulheres, resistimos diariamente aos assédios que sofremos. Victória Moitinho, estudante de Direito aos 20 anos, resistiu ainda mais quando sofreu abuso sexual e resiste quando usa sua história para lutar pelo fim da violência contra a mulher. Sem nenhum pudor, ela narra o que aconteceu na noite de 24 de março deste ano, às vésperas do Encontro de Mulheres Estudantes (EME) da União Nacional de Estudantes (UNE) do qual iria participar caso não houvessem decidido por ela o que aconteceria. Nos últimos preparativos para o encontro, ela pegou uma moto-táxi em frente ao Shopping Jardins em direção a uma agência do Banco do Brasil na mesma avenida, onde desceu, pediu para o mototaxista esperá-la, sacou o dinheiro que precisava e subiu na moto em direção ao shopping novamente. Os rumos, entretanto, foram mudados sem seu consentimento. Ainda enquanto Victória ajeitava o capacete, o homem desviou do caminho correto. “Quando eu vi tentei descer, mas ele me segurou e acelerou a moto, parou num terreno baldio, numa rua escura rodeada por prédios em construção”, relembra. No primeiro momento, ela pensou se tratar de um assalto, já que havia acabado de sacar dinheiro, mas a primeira atitude do mototaxista foi


jogar a bolsa longe de onde estavam. O local parecia já ter sido preparado à sua espera ou de alguma outra vítima, com um compensado de madeira ao fundo. “A única coisa que eu conseguia pensar era ‘não acredito que isso tá acontecendo comigo’. Eu só pensava que não sairia dali viva”. Imaginar o que Victória viveu é de embrulhar o estômago. Ela conta que tentou fugir, mas escorregou na lama, caiu em cima de galhos de árvores e foi agarrada com mais força pelo agressor, que ameaçou matá-la com uma suposta arma que estaria na moto ou por estrangulamento. “Eu não consegui gritar. Eu tentei ser o mais racional possível, porque tudo que eu fizesse poderia piorar ainda mais”. O homem, que em nenhum momento tirou o capacete, a feriu física, moral, sexual e psicologicamente, levou sua virgindade e também sua paz. “Eu fiquei cerca de dez minutos parada no mesmo lugar, em estado de choque, totalmente machucada. Não passava nada pela minha cabeça, era só exaustão”. Só com a roupa do corpo, ela saiu do terreno e foi socorrida por uma mulher que fazia caminhada e a levou para casa. Sua mãe, que sofre de depressão, teve crise depressiva ao tomar conhecimento do caso. Apesar de ter saído do pesadelo que viveu, os dias seguintes também não foram fáceis para Victória. Ela tomou a pílula do dia seguinte, guardou as roupas numa sacola plástica para facilitar as investigações e tomou outras providências necessárias para o cuidado com a saúde e denúncia da violência. Na Delegacia da Mulher registrou a denúncia e recebeu o apoio psicológico necessário. No Instituto Médico Legal (IML) fez o exame de corpo delito. Encaminhada ao Hospital Nossa Senhora de Lourdes, recebeu coqueteis que são oferecidos pelo Sistema Único de Saúde(SUS). São memórias certamente inapagáveis de dias irrecuperáveis. Andar pelas ruas se tornou ainda mais difícil. “Eu fiquei com medo de tudo e de todos a todo momento. Toda vez que passava uma moto eu me tremia. Quando você passa por uma situação dessa e no dia seguinte você recebe olhares de homens com relação à sua roupa, é como se você acordasse de um transe, é muito mais intimidador, agressivo, abusivo do que qualquer outra situação”.

“Se eu pegar eu te envergo”

fifiu fiu!

Não foi fácil ter que relatar o pavor que viveu a cada passo que dava. Mas Victória ganhou forças quando percebeu que podia usar sua história para clamar pelo fim da violência contra a mulher. “A sociedade precisa acordar, precisa lutar, não pode mais tolerar que a violência contra a mulher aconteça. Eu queria ser ouvida, fiz um apelo para que as vítimas procurem ajuda no âmbito jurídico e amparo psicológico. A gente não pode ficar calada”, instiga. De acordo com o Ipea, apenas 10% dos 527 mil casos ou tentativas de estupro anuais, um por minuto, são denunciados à polícia (51.101, em 2012). 15% dos estupros são coletivos. Contar tudo, entretanto, não é o maior dos problemas. Problema, para Victória, é assistir a naturalização do abuso. “A gente tá naturalizando uma coisa que não deveria naturalizar. Nas novelas, por exemplo, passa o estupro, o abuso sexual de crianças e a gente acaba achando que é normal, mas não é normal. Vioência existe e precisa ser combatida a todo custo”, alerta. Ainda sobre o efeito da naturalização. sua mãe ouviu de um amigo a justificativa “mas, também, ela é bonita, né?!” Para conscientizar as pessoas da existência dessa violência, Victória publicou relatos do acontecimento no facebook e o que descobriu foi que existem mais casos semelhantes ao nosso redor do que a gente imagina. “Depois que eu publiquei, várias meninas vinham falar comigo que já tinha acontecido com elas também”. A garota não tem dúvida de que o que sofreu é reflexo da sociedade machista que prega a submissão da mulher e controla nosso poder de escolha. Para ela, tanto o “fiu fiu”, quanto o “Se eu te pegar eu te envergo de tanta força que eu vou colocar em você” que ouviu certa vez quando passava pela rua e o abuso sexual são partes de um todo: a objetificação da mulher. A passos lentos, o caso está sendo investigado e o que Victória espera é que não faça parte das 98% de mulheres que não veem seu agressor punido, de acordo com balanço feito pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que mostrou que apenas 2% dos processos concluídos pela Justiça resultaram em condenação aos agressores.


Violência também tem cor O MAPA da Violência 2015: homicídio de mulheres ratifica uma realidade social observada no dia a dia: a violência tem gênero, mas também tem cor. As mulheres negras são as que mais sofrem violência no Brasil, constata. Entre 2003 e 2013, a taxa de homicídio de mulheres brancas reduziu 9,8%, enquanto a de negras aumentou 54,2%. As expectativas de melhoria não são nada boas. Segundo o mapa, “as taxas de homicídio da população branca tendem, historicamente, a cair, enquanto aumentam as taxas de mortalidade entre os negros”. São resquícios de um Brasil escravocrata que ainda insiste em ser dividido entre Casa Grande e Senzala que retira dos negros qualquer dignidade humana. A militante negra e feminista Stephanie Ribeiro relembra a raiz da opressão a mulheres negras no Brasil. “O nível da agressividade relatada de mulheres negras pelas brancas no perído pré-abolição é chocante e acredito que as questões ficam enraizadas. A mulher negra sempre foi a mão de obra, a abusada e a que tiraram a humanidade ao extremo no Brasil. Mesmo no pós-abolição continuamos sendo uma “coisa” e não uma pessoa. Sueli Carneiro, doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e diretora do Geledés — Instituto da Mulher Negra diz que nós, mulheres negras, “fazemos parte de um contigente de mulheres com identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados. Hoje, empregadas domésticas de mulheres liberadas e dondocas ou de mulatas tipo exportação”. Também é nesse contexto que são observadas as violências mais ostensivas sofridas pelas mulheres negras, maiores vítimas da ilegalidade do aborto, da mortalidade na maternidade e no atendimento na saúde pública. Para Stephanie, o recorte negro é imprescindível para superação da violência contra a mulher. “Como vamos pensar em soluções especificas se não destacamos esses pontos?”, questiona.

59,4% DAS MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Balanço do Ligue 180 - Central de Atendimento à Mulher/2013

62,8% DAS VÍTIMAS DE MORTALIDADE MATERNA SIM/Ministério da Saúde/2012

65,9% DAS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA Cadernos de Saúde Pública 30/2014/Fiocruz

68,8% DAS MULHERES MORTAS POR AGRESSÃO

Diagnóstico dos homicídios no Brasil (Ministério da Justiça/2015)

DUAS VEZES MAIS CHANCES DE SEREM ASSASSINADAS QUE AS BRANCAS Taxa de homicídios por agressão: 3,2/100 mil entre brancas e 7,2 entre negras. (Diagnóstico dos homicídios no Brasil. Ministério da Justiça/2015)


Leis não bastam Não à toa, bate-se na tecla de que o Direito Penal, por si só, não consegue erradicar a violência contra a mulher. Em sua dissertação “A lei 11340/2006 e o tratamento penal dos problemas sociais de violência doméstica e familiar”, a advogada Aline Castro apura a efetividade da lei Maria da Penha e conclui que previsões legislativas não solucionam problemas sociais, apenas trazem mais rigor nas punições de condutas criminais. Aline explica que as medidas protetivas e políticas públicas previstas em lei ainda carecem de instrumentalização e regulamentação. Além disso, “enquanto apenas o lado punitivo da repressão à violência contra a mulher estiver em exercício, a vulnerabilidade social se manterá e a mulher continuará hipossuficiente na condução desse problema, sempre dependente de intervenção alheia, eternamente vítima”. Apesar de os avanços com a lei serem notórios, com a criação de uma estrutura específica de amparo legal às vítimas, com mecanismos de prevenção, inserção de políticas públicas e punição dos agressores, Aline defende que o tratamento penal seja complementado com ações afirmativas de políticas públicas. De maneira semelhante, a lei do Feminicídio traz importantes mudanças ao qualificar o homicídio por gênero. Os agravantes vão de 12 a 30 anos de reclusão, podendo aumentar de um terço até a metade se o crime ocorrer durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto, contra a menor de 14 anos, maior de 60 ou com defeiciência, ou, ainda, na presença de pais ou filhos das vítimas. “A especificidade da lei avança o reconhecimento do legislador a hipossuficiência feminina frente a essa questão social. É mais um mecanismo para coibir um problema social à violência e garantir a responsabilização e penalidade contra a mulher. O Feminicídio não se constitui em evento isolado e nem repentino ou

inesperado. Mas faz parte de um processo contínuo, que inclui uma vasta gama de abusos desde verbais, físicos e sexuais no cotidiano do sexo feminino”, explica Aline. “A violência contra a mulher viola a dignidade humana em sua essência e é preciso a parceria do Estado, principalmente através de políticas públicas de conscientização social e da sociedade como um todo para que o objetivo de proteção da mulher e do fim da violência no lar sejam alcançadas”. A perspectiva do movimento feminista para superação da violência,, segundo Francielle Gazola, é de autonomia da mulher em todas as circustâncias. “Precisamos investir numa sociedade que valorize a diversidade, na qual possamos escolher nossas brincadeiras, roupas, trabalhos, independente de gênero, raça, orientação sexual ou religião”. Essa mudança deve ocorrer desde as ações dos Estado, com a formação dos profissionais de educação, saúde, segurança pública, comunicação, operadores do direito, etc. e discussão da questão nas escolas, universidades e posto de saúde, às relações interpessoais com o empoderamento feminino. “É importante também empoderar as mulheres e fortalecer nossa participação em espaços de arte, de cultura, na política. Enfim, construindo uma sociedade mais igual e tolerante, as mulheres terão outro status e outra condição”, finaliza Francielle. Para ajudar a superar a insegurança das mulheres nas ruas, arquitetos defendem que o planejamento das cidades deve levar em conta suas necessidades específicas sobre vias, iluminação, transporte público e zoneamento urbano, na perspectiva de que a segurança nas ruas faz parte da busca pela igualdade de gênero. O principal argumento utilizado por esses arquitetos é que se as ruas forem seguras para as mulheres serão para toda a população.


Fotos| Dayanne Carvalho



A VIA CRUCIS FEMINISTA NA ^ MILITANCIA RELIGIOSA

Marília Souza Santos mariliass2058@gmail.com

OS CONFLITOS E APRENDIZADOS DAQUELAS QUE SE DIVIDEM EM DUAS IDEIAS E MODELOS DE VIDA INSERIR O DEBATE feminista nas instâncias religiosas nem sempre pode ser um processo tranquilo. Confrontar os dogmas das instituições anteriores a Cristo e dos evangelhos com as ideias libertárias inseridas com maior força no século XIX acaba sendo uma barreira a transpor entre a realidade social de uma mulher e a sua fé. Estar ao mesmo tempo na religião e no feminismo, porém, não significa uma contradição para nenhuma mulher, visto que ambas ideologias estão circulando a todo o momento pela sociedade. Apesar dos dados apontarem para um perfil ainda católico da parcela feminina no Brasil, é preciso notar as diversas mudanças que essas mulheres vêm enfrentando dentro da sociedade e também das suas religiões. O surgimento de grupos feministas religiosos, como as Católicas

pelo Direito de Decidir, as Feministas Cristãs ou o Feminismo Islâmico, é um grande exemplo de como os debates absorvem ideologias de vida e de fé, originando novos estudos como a Teologia Feminista. O feminismo traz o debate da igualdade entre os gêneros para cada vez mais espaços sociais. Suas discussões perpassam a sociologia, a biologia, a antropologia, a comunicação e diversas outras áreas em que a mulher está inserida. Além disso, é sentida a necessidade de discussão sobre o papel e a representação feminina nesses ambientes. Muitas acreditam no feminismo como forma legítima de libertação e, mesmo estando inseridas em doutrinas religiosas, negam os discursos e as imposições que a religião patriarcal pratica.


SÍMBOLOS A simbologia na religião e no feminismo também tem grande relevância para a construção de militantes e para a adesão de suas práticas. Estar diante de uma cruz, onde um homem santo deu a sua vida para livrar o pecado de todas as pessoas, comove e move a maioria dos brasileiros. Estar diante do livro sagrado, onde todos os ensinamentos de uma ideia de paz e fé também causa o mesmo efeito. Estar diante de um punho fechado dentro do símbolo que representa a mulher dá a ideia de luta e resistência a alguma forma de opressão e isso compactua com o histórico anseio de liberdade das mulheres. A virgem Maria representa para a fé católica a mulher de virtudes que deu à luz o filho de Deus, fazendo de seu corpo o instrumento iniciador da salvação da humanidade. Para algumas religiões protestantes, a imagem de Maria como mulher santa é rejeitada, justamente por uma não devoção aos símbolos e “falsos santos”. As religiões de matriz africana trazem corpos femininos místicos como símbolos de seus orixás, assim como assessórios, a exemplo do espelho de Iemanjá. Entretanto, a mística criada no corpo e na virtude de Maria seria a ideia mais utópica de mulher, seja ela religiosa ou não. O debate do direito ao corpo e da vida de mulheres perpassa também a violência a que são submetidas constantemente. Independente da virtude exposta por qualquer religiosa ou não religiosa, ou de sua roupa e comportamento, as mulheres estão suscetíveis à violência e ao assédio. A Marcha das Vadias, por todo o país, canta o direito ao corpo e a não violência ou abuso pelo fato de serem mulheres. “De burca ou de shortinho todos vão me respeitar!”. Para exemplificar dados de assédio envolvendo a mística do corpo feminino, a campanha Chega de Fiu Fiu, do site Think Olga, realizou uma pesquisa com cerca de 8 mil entrevistadas em 2013, baseada nos dados do IPEA do mesmo ano onde 26% de homens entrevistados declaram que mulheres de roupas curtas merecem ser atacadas e outros 58,5% acreditavam

que se as mulheres soubessem se comportar não haveria tanto estupro. Os resultados foram que pelo menos 99,6% já sofreram assédios, em espaços públicos como parques ou transportes públicos e também em locais privados como o ambiente de trabalho. 90% declararam já haver deixado de usar decote ou roupa curta por medo de assédio.

TEOLOGIA FEMINISTA

As mulheres estão inseridas na religião em uma quantidade considerável, e por diversos motivos os debates cotidianos acabam ultrapassando as santas paredes das instituições religiosas. Mas o inverso também pode e deve acontecer, como o caso da Teologia Feminista, que surgiu com a inquietação das mulheres religiosas ao observarem o predomínio e também o domínio de homens dentro das instituições, chegando a reinvindicações desde a maior participação de mulheres no clero e nas instâncias maiores das igrejas protestantes, até ao uso do tratamento feminino para se referir a Deus. A Teologia Feminista não se refere somente às religiões cristãs, suas teorias estão no cristianismo católico, no budismo e no protestantismo, expandindo-se gradativamente por outros espaços religiosos. No Brasil, a considerada pioneira dessas teorias é Ivone Gebara, integrante da Congregação das Irmãs de Nossa Senhora Cônega de Santo Agostinho e também doutora em Filosofia e Ciências Religiosas. Ivone, assim com Leonardo Boff em 1985, foi punida pelo Vaticano com dois anos de silêncio forçado, em 1990, por questionar a moral religiosa e debater temas como o aborto. Durante o silêncio arbitrário, Ivone Gebara concluiu o seu segundo doutorado na área de Ciências da Religião e seguiu com suas publicações. Após o surgimento do debate da Teologia Feminista, novas vertentes e discussões foram naturalmente emergindo, a partir das reinvindicações de grupos como as mulheres lésbicas e as mulheres negras. Ainda não há teorias que discutam a questão das mulheres transgêneras.

DADOS SOBRE GÊNERO NO BRASIL

Em 2014, o Sistema Nacional de Informação de Gênero e o Programa de Estatística de Gênero do IBGE lançaram um caderno baseado no Censo Demográfico de 2010. Alguns índices, a exemplo do analfabetismo, são considerados preocupantes no que se refere às brasileiras. A publicação traz estatísticas de gênero em diversos campos, inclusive a religião que aponta os seguintes perfis de religiosas:

63,8 % Católicos

24,1 %

Evangélicos

0,3%

Candomblé Umbanda


IDENTIDADE DE GÊNERO E CANDOMBLÉ

“Eu simplesmente aceitei meu destino”. Designada pela sociedade a viver em um corpo onde não se reconhecia ou a estar sempre à margem de tudo, Geovana Soares, 22, disse não ao determinismo biológico e se reconheceu como travesti. O destino aceito por Geovana foi o de sua religião. “Desde muito nova tinha uma ligação com religiões antigas que cultuavam e celebravam a natureza, mas sempre que ouvia o som de um atabaque me arrepiava inteira, foi quando fui convidada para uma reunião em um centro de umbanda”. Assim como muitas pessoas, Geovana, agora apresentada como filha de Oxum, não conhecia a religião em que acabara de ter contato. A história sobre o nascimento da Umbanda é contada a partir de Zélio Fernandino de Moraes, que ao receber um caboclo em meio a uma sessão espírita, fundou no dia seguinte uma nova religião, no ano de 1908.

A Umbanda é considerada genuinamente brasileira por mesclar o catolicismo europeu, os orixás africanos e as divindades indígenas tupiniquins de culto a natureza. Segundo o Mapa das Religiões, pulicado pelo Centro de Ciências Políticas da Fundação Getúlio Vargas, do Rio de Janeiro, em 2011, o número de mulheres que praticam a Umbanda é de 0,21% de acordo com o número total de praticantes da religião no Brasil. Um caboclo também falou à filha de Oxum. Ele disse que sua fé deveria dar mais um passo e esse novo rumo deveria ser no Candomblé, mais uma vez, Geovana aceitou o seu destino. “Confesso que no inicio eu tinha muitos preconceitos, claro que por conta da ignorância. Mas aos poucos Oxum foi me mostrando o quanto era bela a sua religião”, conta Geovana.

A história do Candomblé começa com os escravos forçados a mudar de país e de cultura, mas que não abandonaram seus orixás. Uma religião afro-brasileira, marginalizada e proibida por destoar da religião oficial do Brasil, a católica. As casas de Candomblé eram feitas as escondidas e dentro de residências domésticas de ex-escravos descendentes dos povos Yorubás e Nagôs. De acordo com o Censo das

Religiões do IBGE, de 2010, a prática do Candomblé é feita por cerca de 2.780 pessoas no Nordeste, e cerca de 5% desse número é praticante no estado de Sergipe.

Apesar da pouca idade, Geovana passou por diversos processos de reconhecimento durante sua vida. Aos 18 reconheceu-se enquanto travesti, também aos 18 anos se reconheceu enquanto candomblecista e em seguida, aos 20 anos, reconheceu-se enquanto feminista através de sua participação no Coletivo de Mulheres de Aracaju. A participação de mulheres transexuais e travestis elevaram o debate do Coletivo, que começou a pautar o feminismo interseccional, por entender que as opressões perpassam pelas mulheres de diferentes formas.

“Desde muito nova tinha uma ligação com religiões antigas que cultuavam e celebravam a natureza, mas sempre que ouvia o som de um atabaque me arrepiava inteira"

Geovana associa sua religião a sua militância enquanto feminista através das divindades e das responsáveis pela manutenção do culto no Brasil. “Eu particularmente sempre tive um interesse por entidades e divindades femininas, e no candomblé pude conhecer historias de varias Orixás fortes, guerreiras, sabias, carinhosas e revolucionaria. Então o feminismo tem tudo a ver com essa religião, até historicamente falando. As mães de santo


são as maiores responsáveis pela existência do candomblé hoje, foram elas que sempre deram a cara a tapa sendo perseguidas e enfrentando preconceitos”, comenta Geovana.

A reinvindicação da luta da mulher dentro da religião também vem acompanhada do reconhecimento da inserção do patriarcado nos terreiros e casas de Candomblé, mas ela afirma que o espaço de discussão que o feminismo vem conquistando está abrindo novos rumos também dentro do Candomblé. “Acho que estamos vivendo um momento de mudança na sociedade em geral e o empoderamento feminino debate sobre papeis de gênero e claro que a identidade de gênero está também se inserindo nesses espaços”, ressalta. Geovana espera ainda que como ela se reconheceu enquanto travesti, outras pessoas a reconheçam dentro do seu espaço de manifestação de fé. A relação com a identidade de gênero no Candomblé ainda é um tabu, assim como em muitas outras religiões. A impressão de Geovana, tanto tempo oprimida socialmente é que as mudanças acontecem aos poucos e através dos debates e do conhecimento, a opressão a sua identidade no campo espiritual também deixará de existir. “Ainda temos muito que avançar dentro da religião. Ainda hoje esse debate é tido como um tabu e simplesmente é deixado de lado. Claro que eu enquanto militante transfeminista, travesti e candomblecista não podia me abster de questionar meu papel dentro da minha religião. E por ser uma das primeiras travestis no estado a reivindicar meu espaço enquanto figura feminina dentro do terreiro, tenho que lidar com as perseguições e olhares tortos. Mas sempre digo que vim para o mundo para transformar”, afirma duramente Geovana. Historicamente oprimida, marginalizada, invisibilizada, às vezes demonizada, considerada aberração por não obedecer a um padrão dominante, tendo que conquistar espaços que sempre lhes foram negados através de luta, de socialização do conhecimento sobre si e de seu reconhecimento enquanto integrante legítima da sociedade. Essa descrição poderia ser sobre a trajetória de Geovana Soares, mas também caracteriza a sua religião.

A RECONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO RELIGIOSO E FEMINISTA O processo de construção religiosa de Ana Lúcia do Carmo, 22, começou aos três anos de idade através de seus pais dentro da igreja Assembleia de Deus. Aos 13, decidiu que aquela também seria a sua religião e que seguiria seus dogmas e ritos. Mesmo assim, Ana não entendia certas regras que a limitavam enquanto mulher, na manifestação de sua fé. “Sempre fui meio ‘diferentona’ porque nunca concordei com essa coisa de diferenciar homens e mulheres, sempre achei que somos iguais e assim devemos ser tratados”, conta Ana Lúcia. Durante muito tempo calada diante de algumas demonstrações de machismo dentro de sua família e da Igreja, Ana reagiu as essas ações e se afirmou enquanto feminista, decidindo então, se impor após um episódio triste com uma amiga. “Um dia, sendo eu líder dos jovens da igreja, em uma tarde de aconselhamentos, uma menina me confidenciou uma série de assédios que estava sofrendo por um pastor da igreja. Isso me revoltou de tal forma, por ver que mesmo ela sofrendo tamanho abuso ainda se sentia culpada. Conversei com ela, expliquei que de maneira nenhuma a culpa era dela e etc... Isso me trouxe a memória uma série de abusos que eu também já tinha sofrido, mas me calado durante muito tempo, foi então que percebi que não dava pra aguentar tanto machismo dentro da igreja e me calar, por achar que ‘não vale a pena comprar essa briga’”, lembra.

“Isso me revoltou de tal forma, por ver que mesmo ela sofrendo tamanho abuso ainda se sentia culpada. Conversei com ela, expliquei que de maneira nenhuma a culpa era dela e etc... "


Ao assumir-se feminista, Ana começou a se informar mais sobre o tema e a levar os debates para sua instituição religiosa, mostrando para outras meninas que elas poderiam ocupar os mesmos lugares que os homens na igreja e apontava a divisão que ainda existia lá dentro. A rapidez e a facilidade do acesso à internet, trouxe a muitas jovens o contato mais direto e aprofundado dos debates. Os confrontos de ideias foram e são inevitáveis ainda hoje, em relação aos sermões que inferiorizavam as mulheres ou até sobre as culpabilizações, seja por abusos sofridos pelas meninas, ou até sobre as religiosas que por algum motivo acabaram se divorciando de seus maridos, algo visto como degradante para uma mulher de fé. Ana, hoje, também é divorciada, apesar da pouca idade. Essa construção da mulher para o matrimônio também é uma prática religiosa. A afirmação de que elas devem ser boas esposas e boas mães, mascara uma imposição de responsabilidade e de estilo de vida que todas devem seguir, do contrário, a punição prometida será aplicada não em corpo, mas em alma. A desconstrução de Ana Lúcia não se aplicou apenas no âmbito exterior de sua vida, suas opiniões também foram desconstruídas em muitos aspectos. Em pautas polêmicas como o aborto, que é rigorosamente defendida pelos cristãos como um crime contra a vida, principalmente por ser a vida de um ser incapaz. O feminismo enxerga o aborto como uma escolha que a mulher faz de seu corpo e defende que o feto não se

caracteriza como uma pessoa ou um ser formado, e a prática clandestina de aborto é uma das maiores causadoras da morte de mulheres no país. Ana se reconstruiu em relação ao tema.

“Aborto sempre foi um assunto pessoalmente delicado para mim, porque fora o que a igreja prega, eu nunca entendi muito bem a decisão de não querer ser mãe. Até que me desfazendo dos discursos machistas, percebi que poder ser quem a gente quiser é principalmente escolher fazer o que bem entender com o nosso corpo, entendi também que nem toda mulher quer ser mãe, ou que as vezes não é o momento ideal e que não estar preparada para esse momento, nos dá sim o direito ao aborto, visto que em muitos casos somos ‘obrigadas’ por uma tal consciência moral a segurar a barra sozinha”, declara Ana Lúcia. A visão feminista e a religiosa dentro da cabeça e do coração de Ana Lúcia se completam no momento de acolher a próxima e lhe dar apoio em momentos difíceis, por entender que o machismo que uma irmã sofre, Ana também poderá sofrer um dia, e isso lhe dá forças para continuar e se emancipar ainda mais como uma mulher independente e fiel a sua igreja. A desconstrução de paradigmas é diária e necessária. “Sendo eu mensageira do amor de Deus, devo cumprir o meu papel de amar o próximo como a mim mesma, me colocando sempre no lugar da companheira, não para julgá-la, mas para sermos mais fortes juntas”, Ana Lúcia finaliza sorrindo.

OS DIFERENTES SÍMBOLOS DE LIBERDADE Seja através do olhar de Ana Lúcia ou Geovana Soares, é importante perceber que as mudanças nas religiões podem e devem acontecer, não para a descaracterização de toda uma construção histórica de diferentes manifestações de fé, construções essas que merecem o devido respeito por contribuir na formação humana e social de uma civilização, mas para diminuir os julgamentos prévios, que podem servir tanto para o reforço de estereótipos, quanto para a opressão do corpo e da vida das mulheres. Poderíamos entender as mudanças como avanços em um momento do mundo onde a humanidade est á cada vez mais intolerante, e não é por culpa de um ou outro elemento, mas por uma soma de fatores que não deram certo, mas insistem em se repetir. Ninguém deve ser considerado errado por ter religião e muito menos por escolher ser livre, mas é controverso pensar que no Brasil, um país laico, o diferente é não ter religião. Ter uma fé, não anula o direito à liberdade. Seria transformador rever aquilo que é passado aos fiéis ou seguidores dos dogmas e teorias, sejam eles religiosos ou feministas, para que o respeito de ambos seja garantido. Em um mundo ideal, não seria necessário escolher se o seu símbolo de liberdade será uma coroa de flores ou de espinhos.


CINEMA, substantivo masculino Flavio Ferreira flaviously@gmail.com A poderosa indústria cinematográfica mundial acumulou 38 bilhões de dólares no mundo todo em 2015, segundo dados da Rentrak. Um recorde absoluto que atesta a eficiência dos grandes lançamentos de blockbusters, filmes de ação e aventura e, sobretudo, da receita que Hollywood criou para esse mercado. Os 10 títulos de maior bilheteria foram responsáveis por 30% do montante mundial. A gigante arrecadação do último ano volta a financiar mais produções no mesmo estilo para que o ciclo se reinicie e a máquina da indústria cinematográfica não pare de gerar lucro para os grandes estúdios e produtoras. Nada de novo no front das produções industriais que vemos diariamente, inclusive no que diz respeito ao perfil dos pro-

fissionais. Os cinco filmes mais lucrativos lançados no ano passado pertencem a dois estúdios (Universal e Disney Comics) e nas equipes de direção e roteiro constam seis diretores e 11 roteiristas. Seis diretores brancos e apenas uma mulher roteirista. Um recente estudo da Universidade de San Diego estendeu a análise aos 100 filmes de maior bilheteria do circuito comercial americano em 2015 e revelou muito sobre essa indústria e quem a constrói. A saber, apenas 33% dos papéis com fala são mulheres, o que no universo de 2500 personagens analisados, corresponde a 825 deles. O protagonismo também é masculino, com uma porcentagem de 52% de homens contra apenas 22% de mulheres em papel principal – outros 26% são de mais de um personagem com igual destaque na história.


O filme

O roteiro

O estudo aponta ainda uma tendência que sustenta a teoria da representação simbólica de Bordieu, pois os indicativos melhoram quando analisadas somente produções com pelo menos uma mulher no cargo de direção ou roteiro. Os índices dão conta de que quando existem mulheres por trás das câmeras, papéis femininos com fala somam 40% e elas alcançam 50% de protagonismo, enquanto que nas produções onde somente homens trabalham, os números não passam de 30% de personagens femininas com falas e ínfimos 13% de protagonismo para elas. Ao todo, são 1337 profissionais envolvidos na direção, roteirização e produção executiva, dos quais 214 (16%) são do sexo feminino. Ter papel com fala não garante destaque e autosuficiência para a personagem feminina. É o que mostra o frágil, porém didático Teste de Bechdel, que só aprova filmes que atendam a três critérios simples: deve existir mais de uma mulher identificada e com fala, que as duas interajam durante o filme e que a interação não gire em torno de um homem ou qualquer assunto ligado diretamente a ele. Parece simples, mas reprova muitos títulos comerciais.

O elenco

O áudio

A CARA DE HOLLYWOOD

O vídeo

As grandes premiações que movimentam o show business por detrás das produções cinematográficas mundiais passam por turbulências nos últimos anos. Como principal reflexo do mercado de trabalho desigual, as premiações passaram a receber duras críticas em relação à pouca participação de mulheres e negros entre os indicados. O Oscar, principal premiação do cinema Hollywoodiano, chegou a enfrentar campanha de boicote no último ano. Na história recente da premiação é possível encontrar alguns bons momentos , como a histórica nomeação de Quvanzhané Wallis, os prêmios a 12 Anos de Escravidão – e Lupita Nyjongo e também Kathryn Bigelow, a primeira diretora premiada pela Academia. Em 2016 deslizou. As reclamações existem pois, como sintetiza a atriz Viola Davis em seu agradecimento pelo Emmy de melhor atriz por um papel na televisão, “não se pode ganhar um Emmy por papéis que simplesmente não existem”. E considerando os dados da San Diego University e o relatório de um estudo realizado pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), esses papéis, de fato, quase não existem. O relatório do GEMAA utilizou os 20 filmes nacionais campeões de bilheteria entre 2012 e 2014. Fora do circuito nacional existem movimentos independentes e algumas políticas públicas de incentivo para a cultura negra audiovisual, um exemplo de parceria como essa foi a Egbé – Mostra de Cinema Negro de Sergipe, que aconteceu de 6 a 9 de abril deste ano. Para Luciana Oliveira, cineasta e produ-


O corte

O salário

tora negra que organizou a Mostra, os problemas de representatividade advêm exatamente dessa falta de profissionais negros nos sets dos grandes circuitos comerciais e a Egbé surgiu dessa necessidade. “Me inquietava o fato de nós do movimento negro discutirmos diversas pautas sobre o negro, menos o cinema realizado por nós. Veio da inquietação que tínhamos quanto a falta de discussão deste cinema em um Estado em que há referências deste cinema, como Severo D'Acelino e a Everlane Moraes,e hoje o fato de existirem mais mulheres negras no Brasil fazendo cinema foi um meio que encontramos de nos representar”, comenta. Sobre as polêmicas vistas no Oscar, a cineasta acredita que “estas reivindicações não ficaram apenas nos discursos, hoje Viola Davis e Kerry Washington fundaram uma produtora nos EUA, o objetivo é que os filmes possam discutir narrativas multiétnicas”. A Mostra em Sergipe dividiu a cultura negra em temáticas a serem discutidas em cada dia e o resultado agradou Luciana: “Conseguimos lotar a sala de cinema do NPDOV [local de exibição num centro cultural de Aracaju], tivemos um público muito bacana nas salas do Sesc, e conseguimos atrair um público que fazia parte de nosso objetivo, que eram as pessoas que fazem parte de diferentes grupos do movimento negro de Sergipe.

O público

O Oscar

Tudo é [ou está] masculino.

MULHERES, TODAS ELAS Outro grupo de mulheres que encara problemas de representação e invisibilidade constante é o de mulheres LGBT, principalmente as transgênero. Geralmente sub-representadas ou utilizadas como alívio cômico por ser fora dos padrões de mulher que a indústria costuma vender, as mulheres transexuais são comumente representadas por homens ou por alguma atriz cisgênero que precisa se masculinizar, fato que acende o debate sobre as transidentidades. Enquanto as pesquisas conseguem denunciar abismos entre homens e mulheres cis na indústria mundial, as transexuais têm participação tão pequena e em papéis de tão pouco destaque que nem entram para esses índices. Algumas produções recentes tentaram dar conta da discussão de gênero no circuito hollywoodiano, mas a inclusão de atrizes e atores transexuais não acontece, comprometendo a solidez das abordagens. Basta lembrar que Jared Leto ganhou seu Oscar de coadjuvante pelo seu papel de mulher trans mesmo sob duras críticas. No cinema brasileiro um caso emblemático dessa luta de mulheres trans por espaço no mercado cinematográfico foi protagonizado por Telma Lipp, atriz transgênero e símbolo sexual da mídia brasileira ao lado de grandes nomes como Roberta Close e Rogéria – que se tornaria décadas depois a primeira atriz transexual a interpretar uma mulher cisgênero na TV. Lipp estava escalada para o papel de Lady Di em Carandiru (2004), fazia laboratório com o resto do elenco até ser substituída por Rodrigo Santoro, ator cisgênero que já se lançava para carreira internacional.


EXPEDIENTE Reportagem

Alice Santos

Flavio Ferreira

Iris Brito Lopes John Soares

Marília Souza

Matheus Brito

Pagu é um suplemento

do jornal laboratorial

Contexto do curso de Jornalismo

COORDENAÇÃO

PROFª Drª Michele Tavares (DRT - 1195/SE)

Fotografia

Chefe DO Departamento de

John Soares

profª drª greice Schneider

Dayanne Carvalho

artes

Flavio Ferreira

Iris Brito lopes

matheus brito Diagramação Alice Santos

Flavio Ferreira

Iris Brito Lopes John Soares

Marília Souza

Comunicação Social

Universidade Federal de Sergipe Campus Prof. José Aloísio de Campos

Av. Marechal Rondon, s/n, São Cristóvão - SE

Reitor

PROFº DRº Ângelo Antoniolli

Vice-Reitor

Prof. Dr. André Maurício C. Souza

Matheus Brito

PAGU


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